quarta-feira, 14 de julho de 2010

Eduardo Campos (O Enterro ou a Casa sem Cão)

Desenho de Gilberto Queiroz
A mulher, à pressa, já segurava a bolsa para sair, depois de verificar atenta se o fogão a gás não ficara com alguma boca acesa; e se voltou para o pai idoso, recomendando:

Estou de partida. Tenha cuidado na casa. Demoro pouco.

Ia acrescentar que por urgente necessidade tinha de se ausentar, pois precisava ganhar uns trocados a mais para dobrar a resistência do bodegueiro sem mais querer fiar... Parou. O outro dizia-lhe decidido:

– Vou sair também. Cadê o meu paletó?

Ela estacou surpresa:

– Sair? sair pra onde?

A voz do homem soou enérgica e resoluta:

– Você estava na cozinha, nem prestou atenção. Deu a notícia no rádio...

– Que notícia, pai?

– Você conhece, não... Era meu grande amigo. Morreu. Coitado do Belisário.

– Tão importante assim para merecer registro em programa de rádio? Não, papai, o senhor se confundiu...

Ele insistiu, a cobrar:

– Cadê o meu paletó?!

Seu paletó foi comido pelas traças... Tinha virado peça de museu.

Me parecia ainda bom de uso. A última vez...

Ela interrompeu-o:

– Isso foi há doze anos, quando faleceu o vizinho.

– Sei disso não. Bom, só sei que vou ao enterro do meu amigo Belisário. Sem paletó. Todo mundo vai reparar. É que nunca vesti silaque em cerimônia social.

– Papai, não quero teimar, mas tudo não passa de um equívoco. O locutor...

– ... o locutor falou bem duas vezes o nome dele, o endereço, deu tudo! Meu amigão! E você não sabe...

– Não sabe o quê?

– Tínhamos um pacto. Ele jurou, eu jurei também: se um dos dois morresse primeiro, o que ficasse estaria obrigado a ir ao enterro, estivesse onde estivesse. Assim vai ser... Deus o chamou em primeiro lugar, tocando a mim, agora, cumprir a palavra empenhada.

– Que palavra empenhada! Isso passou! E por favor vá sossegar tenho de ganhar o meu dinheiro.

– Ah, então é desse modo? Muito bem! Não causa admiração que o mundo esteja – me deixe dizer um nome feio – nessa esculhambação de hoje. Não! Sou de ontem, de tempo em que as pessoas possuíam palavra, cumpriam o trato. Cedia o lugar de sentar nos bondes a uma dama, ajudava a idosos...

– Papai, escute bem. Os seus netos já foram trabalhar, e eu só vou sair por extrema necessidade. Dessa forma o senhor não pode comparecer ao sepultamento do seu grande amigo. Por isso, é melhor se contentar com uma oração...

– Oração é coisa de protestante. Eu rezo.

– Pois então reze. Dá tudo igual. Contanto que fique em casa. A nossa, repare, não pode ficar sem ninguém, principalmente com a onda de ladrões solta no bairro...

– ... ladrões aqui ?!

– É onde dá mais.

Ele ficou pensativo. Depois de um momento, lembrou:

– Deixe o cachorro botando sentido. Você pode ir pegar os seus trocados, como falou, e eu sigo para cumprir o meu acordo...

Paciente, ela explicou:

– O senhor deve estar esquecendo as coisas... O Japi morreu... morreu de velhice. E nós não tivemos condições de adquirir outro animal de guardar a casa.

– Agora deu ruim! Eu não posso desfazer o trato com o falecido. O Belisário se estivesse em meu lugar, com paletó ou sem paletó ia acompanhar o meu enterro. Foi o melhor amigo que tive, marido exemplar.

Ela moveu a cabeça, aborrecida:

– E tem mais, papai, o dinheiro que vou receber é importante para pagar a mercearia. De outro jeito, se duvidar, vamos ter de passar fome... E mesmo...

– Mesmo o quê?

– O senhor, aos oitenta, não tem mais condições para sair de casa, desacompanhado.

– Minha companhia é Deus. Me considero forte, me levanto sozinho de noite para ir ao banheiro... e...

– Mas não pode.

– Alugo um menino do vizinho. Ainda tenho uma pontinha de dinheiro da aposentadoria.

– Compreenda, papai! A família do tal Belisário na certa nem sabe se o senhor existe. Bem, a hora está passando e preciso, agora digo como o senhor, preciso cumprir meu trato.

– Meu Deus, a que ponto cheguei na vida! Minha própria filha quer que eu fique desmoralizado. Contando não tem quem acredite!

– Ela tornou a insistir em tom amável:

– Papai, vá sentar-se na sua cadeira de vime, perto da porta... Prometo, prometo de verdade! Vou ficar atenta aos jornais! Podemos ir juntos à missa de sétimo dia.

– Missa de sétimo dia não é enterro. Não aceito esse tipo de solução.

E com convicção, exaltando-se:

– Vou ao enterro, VOU!

– Papai...

– VOU, VOU!

Foi só um instante, tempo em que ela apreensiva consultou o relógio, a ver que horas davam, e decidiu:

– Não tem acordo, não tem paletó, não tem enterro! Vá sentar na cadeira como estou mandando, que preciso ganhar o meu dinheiro. É isso!

– Deus castiga a quem maltrata os pais.

– É sentar bem direitinho e não deixar a casa só. Os ladrões, repito, andam por aí. Se duvidar vão entrar aqui e carregar o seu rádio. Vá, vá, vá, me obedeça!

Fê-lo arriar-se na cadeira de vime, nervosa, considerando que se não partisse quanto antes não teria como passar a roupa, tarefa a que se obrigara de véspera.

– Não deixe ninguém entrar. Ninguém mesmo!

Ele esteve para altear o tom da voz e protestar mais uma vez, chutar os móveis da sala, gritar palavrão, chorar, até chorar...

Mas se reconheceu trêmulo, esmorecido, e na realidade sucumbido por não poder, como prometera, honrar o compromisso com o Belisário.

E se deixou ficar batendo o pé no chão, perdidamente magoado.

Dolorosamente cão.

Fonte:
Nilto Maciel e Soares Feitosa. Jornal do Conto.

Eduardo Campos (1923)



Eduardo Campos (Manuel EDUARDO Pinheiro CAMPOS), nasceu em Guaiúba, então distrito de Pacatuba (Ceará), no dia 11 de janeiro de 1923, filho de Jonas Acióli Pinheiro e Maria Dolores Eduardo Pinheiro.

Órfão de pai, aos 4 meses, foi entregue aos cuidados dos tios João Pereira Campos e Isabel Eduardo Campos (Irmã de Maria Dolores).

Até 7 anos de idade viveu ao sopé da Serra da Aratanha, em Pacatuba. Pelos 8 anos, em companhia dos pais adotivos, foi morar na Rua do Imperador, 90, em Fortaleza (1930), circunstância que o inspirou, já adulto, ao resgate da memória desses idos, quando a sala de visita das casas ia parar virtualmente nas calçadas, os vizinhos aí reunidos depois do jantar.

Eduardo Campos jamais se distanciaria da moldura ecológica da Serra, nem da paisagem rural desse território geográfico, com ares de sertão.

Estreou em 1943, com o livro de contos Águas Mortas.

Seguiram-se, neste gênero, em 1946 Face Iluminada, em 1949 A Viagem Definitiva, em 1965 Os Grandes Espantos, em 1967 As Danações, em 1968 O Abutre e Outras Estórias (constituído por uma seleção dos presumíveis melhores contos), em 1970 O Tropel das Coisas, em 1980 Dia da Caça, em 1993 O Escrivão das Malfeitorias, em 1998 A Borboleta Acorrentada e em 1999 O Pranto Insólito.

Tem também peças de teatro, livros de folclore, romances, ensaios, biografias, memórias, além de grande número de produções especiais para o rádio e televisão. Seus principais romances são O Chão dos Mortos e A Véspera do Dilúvio.

Durante dez anos dirigiu a Academia Cearense de Letras; foi Secretário de Cultura do Estado, Presidente do Conselho Estadual de Cultura, e é Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Ceará.

Figura em antologias nacionais e internacionais de contos. É bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Iniciou-se nas letras escrevendo, dirigindo e representando peças de teatro.

Sua peça O Morro do Ouro foi representada 350 vezes; A Rosa do Lagamar, mais de 500. Sua obra teatral foi reunida em dois volumes, contendo O Demônio e a Rosa, O Anjo, Os Deserdados, A Máscara e a Face, Nós, as Testemunhas, no primeiro, A Donzela Desprezada, O Julgamento dos Animais, O Andarilho, além das já mencionadas.

Tem pequenas histórias incluídas em dez antologias, das quais duas no Uruguai e uma na Alemanha.

Fonte:
Nilto Maciel e Soares Feitosa. Jornal do Conto.

Artur Azevedo (Morta que Mata)



(CONTO MEIO PLAGIADO E MEIO ORIGINAL)

Um dia em que o Barreto, acabado o expediente, palestrava com alguns dos seus colegas de repartição, queixou-se da mesquinhez dos ordenados.

- Ora! Tu nada sofres! Acudiu um dos colegas, com um sorriso impertinente.

- Nada sofro?! Ora esta! Por quê?!.

- Porque és rico!

- Rico, eu?!...

- Naturalmente. Se não fosses rico, tua mulher não poderia andar coberta de brilhantes!

O Barreto soltou uma gargalhada.

- Ah, meu amigo, os brilhantes de minha mulher são falsos, são baratinhos, não valem nada!

- Não parece.

- Não parece, mas são. Minha mulher é de uma economia feroz, e tudo quanto economiza emprega em toilettes e jóias... mas que jóias!... Falsas, falsas como Judas... Já lhe tenho dito um milhão de vezes que se deixe disso; que não use jóias uma vez que não pode usá-las verdadeiras; que ela somente a si mesma se ilude, tornando-se ridícula aos olhos do mundo; mas não há meio: aquilo é mania! Tirem tudo, tudo à Francina, mas deixem-lhe as suas jóias de pechisbeque!...

Realmente assim essa Francina, de vez em quando, mostrava ao marido um par de bichas de brilhantes ou um colar de pérolas, que produziam o mais deslumbrante efeito, mas não passavam de jóias de teatro, compradas com os vinténs que ela poupava nas despesas da copa.

Barreto, que fora sempre um pobretão, nada entendia de pedras finas e por isso achava que as de sua mulher, apesar de falsas, eram bonitas; mas, no íntimo, ele envergonhava-se daquela fulgurante exibição no pescoço, nos braços, nos dedos e nas orelhas de Francina.

- Os que sabem que essas jóias são falsas, pensava ele, hão de me achar ridículo; os que as supõem verdadeiras poderão fazer de mim um juízo ainda mais desagradável. Toda a gente sabe quanto ganho: os meus vencimentos figuram na coleção de leis, na tabela anexa ao regulamento da minha repartição...

O Barreto pensava bem; mas a sua debilidade moral não permitia que ele contrariasse Francina.

Um dia o fracalhão percebeu - com que alegria! - que ela estava no seu estado interessante.

Eram casados havia oito anos e só agora se lembrava o céu de abençoar a sua união, mandando-lhes um filho! Ele esperava que os cuidados maternos modificassem o que sua mulher tinha de ridícula e vaidosa.

Mas as suas esperanças foram cruelmente frustradas pela fatalidade: a criança, extraída a ferros, nasceu morta, e Francina morreu de eclampsia.

O Barreto sentiu tanto, tanto, que quase morreu também.

Havia um mês que era viúvo quando um dia lhe apareceu em casa um homem que ele não conhecia, e se deu a conhecer como um dos joalheiros mais conhecidos da capital.

O Barreto perguntou-lhe o motivo da sua visita.

- É muito simples. A falecida sua senhora tinha jóias. É natural que o senhor não precisando delas pretenda desfazer-se de algumas, senão de todas. Venho pedir-lhe que me dê a preferência.

- Preferência para quê?

- Para comprá-las.

- Mas, meu caro senhor, as jóias de minha mulher são falsas.

- Falsas? Ora essa! E é a mim que o senhor diz isso, a mim que lhas vendi! A sua senhora seria incapaz de pôr uma jóia falsa!

- O senhor engana-se!

- Tanto não me engano, que lhe ofereço por essas jóias, se se conservam todas em seu poder, sessenta contos de réis!

O Barreto ficou petrificado; entretanto, disfarçou como pôde a comoção, e despediu o joalheiro, dizendo que o procuraria na loja.

Logo que ficou só, encaminhou-se para o quarto da morta, e abriu a cômoda onde se achavam as jóias; mas ao vê-las sentiu uma onda de sangue subir-lhe à cabeça e caiu para trás.

Quando lhe acudiram estava morto.

Fonte:
CD Rom Livros Eletronicos. Digerati.
Imagem = http://www.territoriofeminino.blogtv.uol.com.br/

terça-feira, 13 de julho de 2010

Rubem Alves (Jardim)


Um amigo me disse que o poeta Mallarmé tinha o sonho de escrever um poema de uma palavra só. Ele buscava uma única palavra que contivesse o mundo. T.S. Eliot no seu poema O Rochedo tem um verso que diz que temos "conhecimento de palavras e ignorância da Palavra". A poesia é uma busca da Palavra essencial, a mais profunda, aquela da qual nasce o universo. Eu acho que Deus, ao criar o universo, pensava numa única palavra: Jardim! Jardim é a imagem de beleza, harmonia, amor, felicidade. Se me fosse dado dizer uma última palavra, uma única palavra, Jardim seria a palavra que eu diria.

Depois de uma longa espera consegui, finalmente, plantar o meu jardim. Tive de esperar muito tempo porque jardins precisam de terra para existir. Mas a terra eu não tinha. De meu, eu só tinha o sonho. Sei que é nos sonhos que os jardins existem, antes de existirem do lado de fora. Um jardim é um sonho que virou realidade, revelação de nossa verdade interior escondida, a alma nua se oferecendo ao deleite dos outros, sem vergonha alguma... Mas os sonhos, sendo coisas belas, são coisas fracas. Sozinhos, eles nada podem fazer: pássaros sem asas... São como as canções, que nada são até que alguém as cante; como as sementes, dentro dos pacotinhos, à espera de alguém que as liberte e as plante na terra. Os sonhos viviam dentro de mim. Eram posse minha. Mas a terra não me pertencia.

O terreno ficava ao lado da minha casa, apertada, sem espaço, entre muros. Era baldio, cheio de lixo, mato, espinhos, garrafas quebradas, latas enferrujadas, lugar onde moravam assustadoras ratazanas que, vez por outra, nos visitavam. Quando o sonho apertava eu encostava a escada no muro e ficava espiando.

Eu não acreditava que meu sonho pudesse ser realizado. E até andei procurando uma outra casa para onde me mudar, pois constava que outros tinham planos diferentes para aquele terreno onde viviam os meus sonhos. E se o sonho dos outros se realizasse, eu ficaria como pássaro engaiolado, espremido entre dois muros, condenado à infelicidade.

Mas um dia o inesperado aconteceu. O terreno ficou meu. O meu sonho fez amor com a terra e o jardim nasceu.

Não chamei paisagista. Paisagistas são especialistas em jardins bonitos. Mas não era isto que eu queria. Queria um jardim que falasse. Pois você não sabe que os jardins falam? Quem diz isto é o Guimarães Rosa: "São muitos e milhões de jardins, e todos os jardins se falam. Os pássaros dos ventos do céu - constantes trazem recados. Você ainda não sabe. Sempre à beira do mais belo. Este é o Jardim da Evanira. Pode haver, no mesmo agora, outro, um grande jardim com meninas. Onde uma Meninazinha, banguelinha, brinca de se fazer Fada... Um dia você terá saudades... Vocês, então, saberão..." É preciso ter saudades para saber. Somente quem tem saudades entende os recados dos jardins. Não chamei um paisagista porque, por competente que fosse, ele não podia ouvir os recados que eu ouvia. As saudades dele não eram as saudades minhas. Até que ele poderia fazer um jardim mais bonito que o meu. Paisagistas são especialistas em estética: tomam as cores e as formas e constróem cenários com as plantas no espaço exterior. A natureza revela então a sua exuberância num desperdício que transborda em variações que não se esgotam nunca, em perfumes que penetram o corpo por canais invisíveis, em ruídos de fontes ou folhas... O jardim é um agrado no corpo. Nele a natureza se revela amante... E como é bom!

Mas não era bem isto que eu queria. Queria o jardim dos meus sonhos, aquele que existia dentro de mim como saudade. O que eu buscava não era a estética dos espaços de fora; era a poética dos espaços de dentro. Eu queria fazer ressuscitar o encanto de jardins passados, de felicidades perdidas, de alegrias já idas. Em busca do tempo perdido... Uma pessoa, comentando este meu jeito de ser, escreveu: "Coitado do Rubem! Ficou melancólico. Dele não mais se pode esperar coisa alguma..." Não entendeu. Pois melancolia é justamente o oposto: ficar chorando as alegrias perdidas, num luto permanente, sem a esperança de que elas possam ser de novo criadas. Aceitar como palavra final o veredicto da realidade, do terreno baldio, do deserto. Saudade é a dor que se sente quando se percebe a distância que existe entre o sonho e a realidade. Mais do que isto: é compreender que a felicidade só voltará quando a realidade for transformada pelo sonho, quando o sonho se transformar em realidade. Entendem agora por que um paisagista seria inútil? Para fazer o meu jardim ele teria que ser capaz de sonhar os meus sonhos...

Sonho com um jardim. Todos sonham com um jardim. Em cada corpo, um Paraíso que espera... Nada me horroriza mais que os filmes de ficção científica onde a vida acontece em meio aos metais, à eletrônica, nas naves espaciais que navegam pelos espaços siderais vazios... E fico a me perguntar sobre a perturbação que levou aqueles homens a abandonar as florestas, as fontes, os campos, as praias, as montanhas... Com certeza um demônio qualquer fez com que se esquecessem dos sonhos fundamentais da humanidade. Com certeza seu mundo interior ficou também metálico, eletrônico, sideral e vazio... E com isto, a esperança do Paraíso se perdeu. Pois, como o disse o místico medieval Angelus Silésius:

Se, no teu centro
um Paraíso não puderes encontrar,
não existe chance alguma de, algum dia,
nele entrar.

Este pequeno poema de Cecília Meireles me encanta, é o resumo de uma cosmologia, uma teologia condensada, a revelação do nosso lugar e do nosso destino:

"No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro:
no canteiro, urna violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de urna borboleta."

Metáfora: somos a borboleta. Nosso mundo, destino, um jardim. Resumo de uma utopia. Programa para uma política. Pois política é isto: a arte da jardinagem aplicada ao mundo inteiro. Todo político deveria ser jardineiro. Ou, quem sabe, o contrário: todo jardineiro deveria ser político. Pois existe apenas um programa político digno de consideração. E ele pode ser resumido nas palavras de Bachelard: "O universo tem, para além de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o Paraíso." (O retorno eterno, p 65).

Fonte:
Casa de Rubem Alves.

domingo, 11 de julho de 2010

Luis Fernando Verissimo (Clic)



Cidadão se descuidou e roubaram seu celular. Como era um executivo e não sabia mais viver sem celular, ficou furioso. Deu parte do roubo, depois teve uma idéia. Ligou para o número do telefone. Atendeu uma mulher.

— Aloa.

— Quem fala?

— Com quem quer falar?

— O dono desse telefone.

— Ele não pode atender.

— Quer chamá-lo, por favor?

— Ele está no banheiro. Eu posso anotar o recado?

— Bate na porta e chama esse vagabundo agora.

Clic. A mulher desligou. O cidadão controlou-se. Ligou de novo.

— Aloa.

— Escute. Desculpe o jeito que eu falei antes. Eu preciso falar com ele, viu? É urgente.

— Ele já vai sair do banheiro.

— Você é a...

— Uma amiga.

— Como é seu nome?

— Quem quer saber?

O cidadão inventou um nome.

— Taborda. (Por que Taborda, meu Deus?) Sou primo dele.

— Primo do Amleto?

Amleto. O safado já tinha um nome.

— É. De Quaraí.

— Eu não sabia que o Amleto tinha um primo de Quaraí.

— Pois é.

— Carol.

— Hein?

— Meu nome. É Carol.

— Ah. Vocês são...

— Não, não. Nos conhecemos há pouco.

— Escute Carol. Eu trouxe uma encomenda para o Amleto. De Quaraí. Uma pessegada, mas não me lembro do endereço.

— Eu também não sei o endereço dele.

— Mas vocês...

— Nós estamos num motel. Este telefone é celular.

— Ah.

— Vem cá. Como você sabia o número do telefone dele? Ele recém-comprou.

— Ele disse que comprou?

— Por que?

O cidadão não se conteve.

— Porque ele não comprou, não. Ele roubou. Está entendendo? Roubou. De mim!

— Não acredito.

— Ah, não acredita? Então pergunta pra ele. Bate na porta do banheiro e pergunta.

— O Amleto não roubaria um telefone do próprio primo.

E Carol desligou de novo.

O cidadão deixou passar um tempo, enquanto se recuperava. Depois ligou.

— Aloa.

— Carol, é o Tobias.

— Quem?

— O Taborda. Por favor, chame o Amleto.

— Ele continua no banheiro.

— Em que motel vocês estão?

— Por que?

— Carol, você parece ser uma boa moça. Eu sei que você gosta do Amleto...

— Recém nos conhecemos.

— Mas você simpatizou. Estou certo? Você não quer acreditar que ele seja um ladrão. Mas ele é, Carol. Enfrente a realidade. O Amleto pode Ter muitas qualidades, sei lá. Há quanto tempo vocês saem juntos?

— Esta é a primeira vez.

— Vocês nunca tinham se visto antes?

— Já, já. Mas, assim, só conversa.

— E você nem sabe o endereço dele, Carol. Na verdade você não sabe nada sobre ele. Não sabia que ele é de Quaraí.

— Pensei que fosse goiano.

— Ai esta, Carol. Isso diz tudo. Um cara que se faz passar por goiano...

— Não, não. Eu é que pensei.

— Carol, ele ainda está no banheiro?

— Está.

— Então sai daí, Carol. Pegue as suas coisas e saia. Esse negocio pode acabar mal. Você pode ser envolvida. — Saia daí enquanto é tempo, Carol!

— Mas...

— Eu sei. Você não precisa dizer. Eu sei. Você não quer acabar a amizade. Vocês se dão bem, ele é muito legal. Mas ele é um ladrão, Carol. Um bandido. Quem rouba celular é capaz de tudo. Sua vida corre perigo.

— Ele esta saindo do banheiro.

— Corra, Carol! Leve o telefone e corra! Daqui a pouco eu ligo para saber onde você está.

Clic.

Dez minutos depois, o cidadão liga de novo.

— Aloa.

— Carol, onde você está?

— O Amleto está aqui do meu lado e pediu para lhe dizer uma coisa.

— Carol, eu...

— Nós conversamos e ele quer pedir desculpas a você. Diz que vai devolver o telefone, que foi só brincadeira. Jurou que não vai fazer mais isso.

O cidadão engoliu a raiva. Depois de alguns segundos falou:

— Como ele vai devolver o telefone?

— Domingo, no almoço da tia Eloá. Diz que encontra você lá.

— Carol, não...

Mas Carol já tinha desligado.

O cidadão precisou de mais cinco minutos para se recompor. Depois ligou outra vez.

—Aloa.

Pelo ruído o cidadão deduziu que ela estava dentro de um carro em movimento.

— Carol, é o Torquatro.

— Quem?

— Não interessa! Escute aqui. Você está sendo cúmplice de um crime. Esse telefone que você tem na mão, esta me entendendo? Esse telefone que agora tem suas impressões digitais. É meu! Esse salafrário roubou meu celular!

— Mas ele disse que vai devolver na...

— Não existe Tia Eloá nenhuma! Eu não sou primo dele. Nem conheço esse cafajeste. Ele esta mentindo para você, Carol.

— Então você também mentiu!

— Carol...

Clic.

Cinco minutos depois, quando o cidadão se ergueu do chão, onde estivera mordendo o carpete, e ligou de novo, ouviu um "Alô" de homem.

— Amleto?

— Primo! Muito bem. Você conseguiu, viu? A Carol acaba de descer do carro.

— Olha aqui, seu...

— Você já tinha liquidado com o nosso programa no motel, o maior clima e você estragou, e agora acabou com tudo. Ela está desiludida com todos os homens, para sempre. Mandou parar o carro e desceu. Em plena Cavalhada. Parabéns primo. Você venceu. Quer saber como ela era?

— Só quero meu telefone.

— Morena clara. Olhos verdes. Não resistiu ao meu celular. Se não fosse o celular, ela não teria topado o programa. E se não fosse o celular, nós ainda estaríamos no motel. Como é que chama isso mesmo? Ironia do destino?

— Quero meu celular de volta!

— Certo, certo. Seu celular. Você tem que fechar negócios, impressionar clientes, enganar trouxas. Só o que eu queria era a Carol...

— Ladrão

— Executivo

— Devolve meu...

Clic.

Cinco minutos mais tarde. Cidadão liga de novo. Telefone toca várias vezes. Atende uma voz diferente.

— Ahn?

— Quem fala?

— É o Trola.

— Como você conseguiu esse telefone?

— Sei lá. Alguém jogou pela janela de um carro. Quase me acertou.

— Onde você está?

— Como eu estou? Bem, bem. Catando meus papéis, sabe como é. Mas eu já fui de circo. É. Capitão Trovar. Andei até pelo Paraguai.

— Não quero saber de sua vida. Estou pagando uma recompensa por este telefone. Me diga onde você está que eu vou buscar.

— Bem. Fora a Dalvinha, tudo bem. Sabe como é mulher. Quando nos vê por baixo, aproveita. Ontem mesmo...

— Onde você está? Eu quero saber onde!

— Aqui mesmo, embaixo do viaduto. De noitinha. Ela chegou com o índio e o Marvão, os três com a cara cheia, e...

Fontes:
VERÍSSIMO, Luis Fernando. As Mentiras que os Homens Contam. RJ: Objetiva, 2000.
Imagem = http://doisdedosdeprosa.wordpress.com

Direitos Aurtorais e de Acesso à Cultura


Artistas, produtores cultuais, ativistas sociais e todo o cidadão interessado podem contribuir com elaboração da nova lei do direito autoral, através do processo instituído pelo Ministério da Cultura, chamado de Consulta Pública para a Modernização da Lei do Direito Autoral, a Lei nº 9.610/98. Este canal de consulta e participação permanecerá aberto até o dia 14 de julho.

A idéia é convidar toda a sociedade a se envolver e aperfeiçoar o texto do projeto, que busca assegurar a efetiva realização do direito autoral e a garantir o direito de acesso da população às obras de autoria. Como justificativa, o MinC cita o estudo de 1998, formulado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), revelando que os os setores impactados direta ou indiretamente pela criação das obras intelectuais representaram 6,7% do PIB do Brasil, o que exige maior equilíbrio oferecido pelas garantis da Lei do Direito Autoral com os interesses das pessoas. Entre as muitas mudanças sugeridas pelo projeto elaborado pelo Minc, está a correção de algumas distorções existentes na atual legislação, que é de 1973, que pode penalizar criminalmente, por exemplo, atitudes corriqueiras como a simples cópia de um CD para outra mídias.

A seguir, algumas das principais pontos da mudança sugerida:

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O que muda para o Autor:
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Maior controle da própria obra
: o novo texto torna explícito o conceito de licença (autorização para uso sem transferência de titularidade). No caso dos contratos de edição, necessários para exploração comercial das obras, não serão admitidas cláusulas de cessão de direitos. A cessão de direitos terá de ser feita em contrato específico para isso.

Reconhecimento de autoria: arranjadores e orquestradores, na música, e diretores, roteiristas e compositores da trilha sonora original, nas obras audiovisuais, passam a ser reconhecidos de forma mais clara como autores das obras.

Obra encomendada: o criador poderá recobrar o direito em certos casos; terá garantia de participação em usos futuros não previstos; e poderá publicá-la em obras completas.

Prazo de proteção das obras: continua de 70 anos. Nas obras coletivas, será de 70 anos a partir de sua publicação.

Supervisão das entidades de gestão coletiva: associações de todas as categorias e o escritório central de arrecadação e distribuição de direitos de execução musical devem buscar eficiência operacional, por meio da redução dos custos administrativos e dos prazos de distribuição dos valores aos titulares de direitos; dar publicidade de todos os atos da instituição, particularmente os de arrecadação e distribuição.
Elas terão ainda de manter atualizados e disponíveis o relatório anual de suas atividades; o balanço anual completo, com os valores globais recebidos e repassados; e o relatório anual de auditoria externa de suas contas.

Instância para resolução de conflitos: será criada uma instância voluntária de resolução de conflitos no âmbito do Ministério da Cultura. Hoje, conflitos relacionados aos direitos autorais só podem ser resolvidos na justiça comum.
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O que muda para os cidadãos:
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Acesso à cultura e ao conhecimento: haverá novas permissões para uso de obras sem necessidade de pagamento ou autorização. Entre elas: para fins didáticos; cineclubes passam a ter permissão para exibirem filmes quando não haja cobrança de ingressos; adaptar e reproduzir, sem finalidade comercial, obras em formato acessível para pessoas com deficiência.

Reprodução de obra esgotada: está permitida a reprodução, sem finalidade comercial, das obras com a última publicação esgotada e também que não têm estoque disponível para venda.

Reprografia de livros: haverá incentivo para autores e editoras disponibilizarem suas obras
para reprodução por serviços reprográficos comerciais, como as copiadoras das universidades. Cria-se para isso a exigência de que haja o licenciamento das obras com a garantia de pagamento de uma retribuição a autores e editores.

Cópias para usos privados: autorizadas as cópias para utilização individual e não comercial das obras. Por exemplo, as cópias de segurança (backup); as feitas para tornar o conteúdo perceptível em outro tipo de equipamento, isto é, para fins de portabilidade e interoperabilidade de arquivos digitais. Medidas tecnológicas de proteção (dispositivos que impedem cópias) não poderão bloquear esses atos.

Segurança para o patrimônio histórico e cultural: instituições que cuidam desse patrimônio poderão fazer reproduções necessárias à conservação, preservação e arquivamento de seu acervo e permitir o acesso a essas obras em suas redes internas de informática. Não se trata de colocar as obras disponíveis na internet para acesso livre.
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O que muda para os investidores:
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Punição para quem paga jabá: o pagamento a rádios e televisões para que aumentem a execução de certas músicas será alvo de punição, caracterizada como infração à ordem econômica e ao direito de acesso à diversidade cultural.

Remuneração aos produtores de obras audiovisuais: produtores de obras audiovisuais passam a ter direito de remuneração pela exibição em cinemas e emissoras de televisões.

Permissão para explorar obras de acesso restrito: passam a ter a possibilidade de pedir uma autorização para comercializar obras que estejam inacessíveis ou com acesso restrito. Para isso, devem solicitar ao Estado a licença não voluntária da obra.

Estímulo a novos modelos de negócios no ambiente digital: prevê claramente direitos em redes digitais, definindo a modalidade de uso interativo de obras e a quem cabe sua titularidade. As mudanças no texto darão mais segurança para que os titulares se organizem para exercerem seus direitos e melhorarão a relação entre autores, usuários, consumidores e investidores. Dessa forma, essa revisão já coloca o funcionamento da economia digital no Brasil no rumo certo e prepara as bases para uma discussão mais ampla, que deverá ser feita nos próximos anos no mundo todo.

Com base nas contribuições recebidas, o governo federal promete consolidar o texto final do anteprojeto de lei que será encaminhado ao Congresso Nacional ainda em 2010.


Vicência Jaguaribe (Na Palma da Minha Mão )


Na palma da minha mão,
Cabe, irmão, a felicidade e a alegria
Que, com ousadia, não pedem para entrar.

Na palma da minha mão,
Cabe, irmão, a esperança verde e lustrosa
Que, nervosa, pede licença para falar.

Na palma da minha mão,
Também cabe, irmão, aquele amor
Que, ditador, um dia me deixou aflito.

Na palma da minha mão,
Cabem, irmão, as estrelas do céu e as do mar
Que vão se multiplicar pelo tempo infinito.

Na palma da minha mão só não cabem,
Irmão, a dor da perda e a angústia da solidão.

Como esconder essa dor e essa angústia,
Que com furor por entre os dedos escapam?
No solo se infiltram?
Por baixo da porta vasam?
As paredes escalam?
O ar contaminam?
Os rios e os oceanos emporcalham?

- Sinto muito,
Mas não há como escondê-las.
Só resta incinerá-las
E as cinzas, ao vento lançá-las.

Fontes:
Editora Protexto

Carlos Alberto Omena (Crime na Mansão)


De repente, quebrando o silencio daquela madrugada fria e chuvosa, ouve-se um grito estridente de pavor seguido de dois estampidos de revolver, saindo de uns dos inúmeros cômodos da mansão do Sr. Marques.

O Sr. Marques com a idade já beirando os 60 anos, mas com aparência de 50, era um empresário bem sucedido, muito rico e poderoso, enérgico, rigoroso, mas um bom coração, gostava de tratar bem os empregados da casa e funcionários de suas empresas. Sempre que algum deles aparecia com algum problema, o Sr. Marques tratava logo de ajudá-lo, pois entendia que se o funcionário estivesse bem, seus negócios também iriam bem e apesar de toda a sua fortuna, era um homem de atitudes muito simples. Não gostava de pompas, de festas badaladas, gostava de dirigir seu próprio carro, que alias não era novo, mas se sentia confortável com ele, comia no refeitório da empresa juntamente com seus funcionários, enfim, uma pessoa muito simples.

Ao contrario de sua esposa, dna. Vera, uma mulher muito bonita, esbelta e muito jovem pois tinha apenas 30 anos, metade da idade do Sr. Marques, que gostava de badalações, de festas, gastava dinheiro como se eles nascessem em arvores, mulher muito fútil ,gastava somente pelo prazer de gastar igualmente com seu filho Silas, um rapaz com 14 anos, muito mimado.
Dna. Vera odiava a maneira do Sr.Marques de ser e por conta disso as brigas eram constantes. Ela achava que pelo dinheiro e a posição que tinha, não deveria se misturar com os empregados,mas ele simplesmente ignorava os desmandos da mulher.

A mansão do Sr. Marques ficava numa rua muito arborizada, tipo daquelas que só se vê em filmes estrangeiros e tinha como vizinhos outras mansões não tão diferentes ou imponentes da dele. Os carros importados na garagens dava a real e nítida visão do poder aquisitivo dos moradores da rua. Nessa rua ficavam sempre a postos dois seguranças particulares, um de cada lado da rua e andando de um lado para outro, fazendo o patrulhamento da área.

A rua era regada pela tranqüilidade e paz, brindada por um silencio mórbido e às vezes assustador, principalmente ao cair da noite quando as luzes dos postes de iluminação sombreavam os muros altos das casas dando um ar ainda mais sombrio ao local.

E todo esse silencio e tranqüilidade fora quebrado naquela madrugada onde a garoa fina aliada a um frio gélido e cortante caia sobre a cidade por aquele grito pavoroso e os tiros.

Logo as luzes das mansões vizinhas começam a se acender e os moradores sem saber o que estava de fato acontecendo, dirigem-se ainda meio sonolentos à casa do Sr. Marques.

-Ninguém entra na casa antes da polícia chegar! Grita um.

- Mas se tiverem precisando de ajuda? Grita outro.

- Deve ter sido um assalto! Exclama mais um.

Minutos depois a policia chega à mansão, arromba a porta e entra encontrando em um dos cômodos da casa, mais precisamente no escritório o corpo inerte e já sem vida do Sr. Marques.

Ele fora morto com um tiro fatal na região da cabeça bem próximo ao ouvido.

Logo a notícia tomou conta da rua, deixando perplexa a multidão de vizinhos que se aglomerava diante da mansão, pois não acreditavam que um homem tão bom e generoso como aquele pudesse ter um fim tão trágico.

Quem teria assassinado aquele pobre homem? Ou teria sido suicídio?Afinal a arma foi encontrada na mão do morto. Essa era a pergunta dos curiosos e da policia que iniciava seu trabalho de investigação.

De cara a policia chega a conclusão de que assalto não teria sido, pois da casa nada foi roubado. Suicídio também não, tendo em vista a posição da arma e o tiro, pois segundo as testemunhas que ouviram os gritos e os tiros juraram terem ouvido dois disparos, fato que chamava atenção dos investigadores porque no corpo só fora encontrado uma perfuração e numa detalhada vistoria pelo escritório, palco da tragédia, não foi encontrado nenhum outro projétil.

Era um mistério.

Restava então interrogar parentes e empregados que moravam com ele e que estavam na mansão naquela noite.

Os primeiros a serem interrogados foram D.Vera, a esposa, e o filho Silas, que acabavam de chegar tão logo foram informados do ocorrido.

D.Vera e seu filho tinham saído cedo para uma visita a sua mãe, onde passaria a noite e só retornariam no dia seguinte.

Abalada e totalmente descontrolada, D.Vera mal podia falar, inclusive foi necessário a presença do médico da família para acalmá-la através de sedativos.

Depois vieram os empregados da casa: mordomo, cozinheira, faxineira, motorista. Todos um a um foram interrogados. E a cada interrogatório, mais difícil ficava a conclusão do caso, pois todos aparentemente inocentes poderiam ter cometido o crime.

Porque justamente naquela noite a esposa fora visitar a mãe, coisa que não fazia há meses?

Muito estranho e conveniente, inclusive porque nunca durante sua vida de casada dormiu fora de casa.

O mordomo tivera dias antes uma leve discussão com o patrão porque descobriu que ele mantinha um casso amoroso com a cozinheira e se utilizavam dos aposentos da empregada para seus encontros noturnos e o Sr. Marques por não admitir essa situação chamou-o às falas inclusive ameaçando-o de demissão caso perdurasse esses encontros, isso tornava o empregado e a serviçal também como suspeito do crime.

A faxineira alegou que dormia profundamente naquela noite e não viu e ouviu nada, mas, descobriu-se no entanto que ela entrou em casa por volta da 1 hora da madrugada,cerca de duas horas antes do crime pois jovem encontrava-se no portão lateral da casa com seu namorado Sebastião, jardineiro de uma das mansões vizinhas , que inclusive também tinha sido empregado do Sr. Marques alguns meses antes mas fora demitido após ameaçar bater no menino Silas,filho do patrão,por ter pisado no jardim onde trabalhava e estragado algumas flores.

Sebastião no dia de sua demissão estava muito nervoso e gritava muito pronunciando palavras obscenas, afrontando Sr.Marques, a Dna Vera chegando até a jurar vingança.

Para a polícia, estava ali um verdadeiro candidato a réu. Sebastião tinha todos os motivos e pelo seu jeito estourado, rude e violento e por já ter ido parar na delegacia uma vez por ter agredido um homem num bar da cidade tornou-se um suspeito em potencial, só faltava a confissão.

Mas e o segundo tiro? O que foi feito daquele projétil? A polícia não tinha a resposta ainda e isso intrigava os investigadores.

O único com álibi perfeito e que facilmente provou sua inocência no caso foi o motorista da casa.

Ele encontrava-se na casa de sua mulher juntamente com suas duas filhas depois que seu patrão dispensou seus serviços por aquela noite.

Mas apesar de ser considerado acima de qualquer suspeita tinha que ficar ali, participando de tudo, dando depoimentos, consolando a pobre viúva, tentando distrair Silas, que se encontrava desolado. O motorista era muito querido por todos na casa, por sua conduta sempre seria e responsável e pelo seu comportamento amável e prestativo.

Enquanto o entra e sai da policia e dos vizinhos curiosos continuava, o corpo do Sr. Marques permanecia ali estendido no chão e coberto com um lençol que já não era mais branco devido ao sangue que verteu de suas têmporas.

A primeiro plano, para os investigadores,o caso estava prestes a ser resolvido pois para eles o raciocínio utilizado era que Dna Vera cansada do controle do marido sobre seus gastos e por estar ainda na flor da idade, e a repressão devido as festas que dava na mansão, planejou o crime e contratou Sebastião,o jardineiro, a executá-lo. Pronto. Estava ali a solução do enigma.

Agora era só fazer a acareação ,colocar os dois um em frente do outro e aguardar que eles confessassem, simples.

Mas...e o outro projétil?

O dia já estava clareando e aquela chuva fina acompanhada do frio teimava em cair chegando até a trazer um certo desconforto, quando de repente entra na sala, vindo dos fundos da casa, uma mulher completamente encharcada , com suas vestes sujas de lama, carregando algo no colo enrolado num cobertor.

Todos se viram para a mulher, atônitos e sem entenderem nada . Ela, sem falar nada, completamente atordoada, com ar de sofrimento estampado no rosto totalmente desfigurado pela chuva e lama, caminha lentamente como se estivesse dopada e parecendo um zumbi , aproximou-se do corpo do Sr. Marques, abaixou-se, levantou o lençol que cobria seu rosto, acariciou-o carinhosamente ,deu-lhe um beijo , depositou o pacote que carregava junto ao corpo, cobriu-o novamente e levantou-se calmamente em direção dos policiais e num tom sereno e anestesiado fala:

- Pronto. Agora está tudo acabado; e desmaia.

Refeitos do susto e do clima sheaskeperiano que se instalara naquele momento, o médico da família que ainda se encontrava na casa reanima a mulher. Foram minutos de muita emoção e tensão.

Já reanimada e envolta de uma colcha para que se aquecesse pois estava tremendo muito de frio devido a chuva que pegara, a mulher começa a falar:

-Meu nome é Mirtes, eu entrei nessa casa enquanto todos estavam dormindo, já fizera isso antes, depois que sai fiquei assustada e me escondi num canto próximo a casa dos empregados atrás de uma árvore grande.

- Sabe, eu fui amante do Sr.Marques por muitos anos, eu era muito feliz ao lado dele ate o dia em que ele descobriu tudo. A partir daí ele mudou totalmente comigo, não me procurava mais, mandava recados que estava ocupado e por isso eu vim aqui hoje trazer o presente que ele tanto queria e por isso me chantageava.

- Isso mesmo, eu estava sendo vítima de chantagem por parte dele. Ele dizia que se eu não entregasse o que lhe pertencia, ia acabar comigo e ia conseguir a qualquer custo me tomar o que achava que era seu.

-Inclusive tentou me comprar, oferecendo-me muito dinheiro e eu não aceitei.

Todos estavam paralisados diante daquela confissão e ainda sem entenderem nada. E ela continuou num tom mais seguro e firme e agora mais amargurada.

- Eu entrei aqui de madrugada para dar um fim em tudo isso, pois já não aguentava mais a pressão sofrida por esse monstro, então vim aqui dar-lhe finalmente o presente que ele tanto queria, dar-lhe o que achava que era só seu.

Fui eu, sr. delegado, quem deu os tiros, fui eu ! gritou histericamente a mulher.

- Primeiro nós discutimos, ele estava irredutível, então no auge da discussão ele me arrancou dos braços o que eu havia lhe trazido dizendo que não ia levar de volta, foi ai, dr.que eu fiz a besteira.

- Tomada pelo ódio e vendo parte da minha vida sendo arrancada de mim não pestanejei. Peguei a arma que trouxera na bolsa, fechei os olhos e atirei. Atirei duas vezes.

-Mas o destino brincou comigo, eu errei um dos tiros. Um dos tiros não acertou onde devia.
Nesse momento, Mirtes levanta-se da cadeira onde estava sentada, caminha novamente ao encontro do corpo do Sr. Marques, de novo abaixa-se e levanta o cobertor que embrulhava o pacote que trouxera.

Todos arregalam os olhos, como se não acreditassem no que estavam vendo e continua:

- Esse era o presente que ele queria tomá-lo de mim. Ele queria só para ele.

- Esse era nosso filho!

Todos chocados com a cena dantesca que presenciavam não puderam deixar de notar um fato.
O bebê enrolado no cobertor tinha uma perfuração próximo ao coração.

Era o segundo tiro que faltava.

Neste exato momento e diante desse clima de grande tensão, rouba a cena um outro grito que invade completamente o ambiente, misturando a ficção com a realidade:

- Corta! Beleza pessoal, ficou perfeito. Amanhã continuaremos com as filmagens...

Fonte:
Editora Protexto

Marcia Sanchez Luz (Poemas Avulsos)


REMENDOS

Muitos são pequenos excertos
De grandes paixões
De poemas que falam
O que minha boca cala.
Muitos são pequenos remendos
De poucos retalhos
Que consegui obter
A duras penas.
Poucos são grandes acertos
Que me dispus a contar
Nas noites de insônia
Nos dias chuvosos
Nublados
Turvos
Frios.

O AMOR NO SONHO

O amor é tão perfeito quando durmo,
que mal me dá vontade de acordar!
Mas não tem jeito – o dia vem soturno
e o sonho acaba. É duro acreditar.

O amor no sonho é como o deus Saturno,
num farto, afoito e intenso festejar;
o adeus ao laço – algoz e taciturno –
que avilta, agride e evita o libertar.

O amor de sonho é sempre um aconchego;
permite ao colibri (que não descansa)
um beijo à flor que finge desapego.

Amor assim é sábado constante;
acalma o que guardado a dor alcança
e afasta a realidade lancinante.

RÉQUIEM PARA UM HOMEM SIMPLES, BRASILEIRO

Não dá pra não chorar por quem partiu
e que passou por nós deixando amor
em gestos simples como aguar a flor
e dar-se inteiro, mesmo que febril.

Não dá pra não chorar homem gentil,
que mesmo fraco, retorcendo em dor,
tirava forças e perdia a cor
para seu mal fingir que era sutil.

Sua viagem hoje começou,
eu sei. E sei também que a dor findou,
que não mais pesa a sua grande cruz.

Entre as estrelas ele agora brilha,
e no infinito, eis que a sua trilha
é, finalmente, de alegria e luz!

LUA NEGRA

Amo demais que até ferida brota
na cálida, escondida lua negra
dos meus delírios (dor que desintegra
calma desnuda em chuva de gaivota).

Os olhos choram mares, geram grotas,
fabricam densa nuvem que se integra
ao corpo equivocado pela entrega
sofrida num adeus desfeito em gotas.

Amo demais, eu sei, mas o que faço
se de outro jeito não conheço o amor?
A minha sina é nunca combater

o que me atrai e gera descompasso.
Se por um lado existe o dissabor,
tenho da vida a flor que vi nascer.



Fonte:
Stammtisch Confraria e Patotas
. http://www.stmt.com.br/marcialuz.htm

Marcia Sanchez Luz em Xeque



Apresentação

Falar de Márcia Sanchez Luz é falar de modernidade, de contemporaneidade. Márcia é, com certeza, uma das mais frequentes escritoras na maior ferramenta de comunicação da atualidade , a internet – para nós, brasileiros – ou a WEB, para o resto do mundo.

Entretanto estar presente na internet pode não significar nada, como pode significar muito. Afinal, alguém já disse que a internet deixa passar o que há de pior e o que há de melhor qualidade do mundo. Bem, o espaço é livre e, enquanto livre, é lugar que todos podem freqüentar sem censuras.

E é aí que Márcia se diferencia. Márcia é o que de melhor qualidade a internet tem deixado acessar em termos de literatura. Sua poesia, seus sonetos, suas trovas, tudo em Márcia traz o selo da qualidade. Não é para menos que esteja presente em tantos sítios (ou sites para os poliglotas), além dos seus. E olha que ela tem sido publicada por gente de indiscutível qualidade. Não é por menos ainda que seus sites, de tão atraentes e de tanta qualidade têm sido agraciados com diversos prêmios.

Talvez porque Márcia escreva com a alma. Sua pena é dotada de sentimento. Pena viva, que respira, não como respiram os seres humanos, mas inspira, vagarosamente, para sentir o tocar suave da inspiração e expira para expelir, suavemente, em versos o que lhe ditam as emoções. E Márcia se faz... simplesmente poeta. Poetisa, melhor dizendo!

Márcia é isto e mais um pouco, mas deixemos que vocês possam senti-la em sua entrevista e em seus textos neste espaço. E já que este espaço se chama “Frühstück”, e já que “Frühstück” é um momento de pausa, quem sabe não é momento de deixar espaço para o escasso tempo de cada um a fim de que possam curtir nossa convidada, não?!
Luiz Eduardo Caminha

Entrevista

Vamos começar pelo clássico: Quem é Márcia Sanchez Luz definida por Márcia Sanchez Luz?

Uma pessoa simples na forma de viver, mas complexa e cheia de questionamentos acerca do mundo e da vida. Alguém que vive um dia de cada vez, como se cada dia fosse uma caixinha a ser aberta e descoberta a cada instante.
Dizem que sou zen... devo ser mesmo...rss... Não fico pensando no amanhã, como também não vivo o passado. Relembrá-lo já me basta.

Qual a sua profissão e quais as atividades em que você está envolvida atualmente?

Sou escritora, poeta, tradutora e professora de inglês e francês.

Quando e como começou o seu interesse pelas letras.

Acho que desde que me conheço por gente, Caminha. Aos nove anos já escrevia bastante, em especial poesias, pois tanto em casa como no colégio sempre tive muito contato com as letras. Quando pequena, enquanto todos os meus amigos iam ao clube, eu fazia longas caminhadas para chegar à Biblioteca Municipal e lá passava as tardes devorando livros. Àquela altura, já havia lido toda a coleção de Monteiro Lobato, assim como já declamava, timidamente, Fernando Pessoa (a escola onde estudei priorizava múltiplas atividades voltadas para a arte, entre elas teatro, literatura e música).

Em que aspectos ser poeta e escrever influencia ou influenciou a sua vida?

Não sei viver sem escrever, em especial poemas. Preciso disto como o ar que respiro. Assim, independente de ser ou não lida, escrever faz parte de mim. Mas é muito gratificante quando recebo e-mails e comentários de pessoas que me leem e dizem o quanto minha poesia faz diferença na vida delas! Este é meu maior presente – saber que minhas palavras tocam algumas almas.

Você já publicou algum livro? Qual o nome do primeiro, seu gênero (poesias? crônicas? contos?) e sobre o que tratava?

Tenho dois livros publicados pela Editora Protexto. O primeiro, “No Verde dos Teus Olhos”, foi lançado em 2007. Trata-se de uma coletânea de poesias, com prefácio de Airo Zamoner.

Como você se sentiu na época. O que significou aquela 1ª. Publicação para o seu ser escritora, poetisa...

Foi e ainda está sendo a realização de um sonho, o reconhecimento de meu trabalho – algo difícil num país com tanta falta de oportunidade em todos os sentidos, não só no que tange à Literatura.

Fale-nos um pouco de suas outras publicações.

Fui agraciada pela Editora Protexto, em 2008, em razão do sucesso de “No Verde dos Teus Olhos”, com a publicação de “Porões Duendes”, meu livro de sonetos, prefaciado por Leila Míccolis.

Poeta, escritora. Qual o gênero que você mais se identifica?

Adoro me comunicar através da poesia! É como digo em um de meus poemas, intitulado Expurgo:

Transborda em mim
a alma de poeta que,
mesmo em festa,
apura o que não presta.”

Sua experiência em publicações na Internet é riquíssima. Seu blog “O imaginário” é leve, solto, gostoso de navegar e mostra toda a sua sensibilidade para a poesia. Além destes há muitos outros em que você mesma é autora ou publica. Como começou isto tudo?

Obrigada, Caminha! Levo muito a sério tudo o que faço, estudo muito e trabalho cada poema como se fosse um filho.
Minha experiência com a internet começou no final de 2006, a partir de um contato que tive com Leila Míccolis, editora do Portal Blocos Online, para onde comecei a enviar minhas colaborações literárias. Até então, minha opção era pelo anonimato. Em abril de 2007, fui convidada a participar da antologia digital “Saciedade dos Poetas Vivos”, de Blocos.
Como a internet é um espaço democrático, achei que seria interessante divulgar poesia e torná-la algo mais acessível à população que não tem como escolher entre a comida e a leitura. Assim, decidi criar um blog, o “Márcia Sanchez Luz”, com o intuito de publicar não só meus poemas, mas também os de diversos escritores. Como não queria me ater só à poesia, optei por divulgar eventos e notícias culturais.
“O Imaginário” surgiu a partir da idéia de centralizar parte de minha obra em um blog, diferentemente do primeiro – o qual continuo sempre atualizando.
Como a interação com os leitores é grande e extremamente gratificante em blogs, comecei a pensar na possibilidade de reunir os melhores comentários em um outro espaço, o “Repercussão Literária – Fortuna crítica da obra de Márcia Sanchez Luz”, como uma forma de retribuir o carinho imenso que recebo de todos que me leem.
Quanto aos outros espaços que me divulgam, são todos blogs, sites e portais muito bons, o que para mim é uma honra. E fico muito feliz com essa divulgação. Afinal, as palavras tem força, ainda mais quando escritas. Não vejo modo mais eficaz de mudar a realidade.

Você acredita em Deus. O que isto significa em sua vida?

Deus é luz, amor, está presente em minha vida em todos os momentos – bons e ruins. Na verdade, Ele está presente em cada ser...é só prestar atenção. Ele vive nos dando alertas e dicas. Não acredito na Igreja como instituição, pois que feita pelos Homens; e cada um tem um modo de interpretar as palavras do Criador. O problema é que tem tanto maluco querendo ganhar dinheiro às custas da fé!

Você considera a Internet uma ferramenta que acabou por despertar a literatura? Há chances da literatura tomar mais impulso através deste instrumento?

Acho que me adiantei, não é mesmo? Eu quero crer que sim, Caminha! Os blogs são um bom exemplo disto, exatamente por terem ferramentas que possibilitam ao leitor interagir com o escritor. Nada melhor do que essa proximidade para estimular o hábito de ler. Leitura é alimento para a alma, é também fonte de aquisição de conhecimento, o que capacita o ser humano a atuar mais em sua realidade e saber-se agente transformador, sujeito apto a mudar sua condição no mundo. E esta conscientização deve vir através de diferentes fontes – a internet é hoje uma das mais acessíveis fontes de conhecimento, além de possibilitar escolhas diversas. O acesso à literatura pela internet tem até um caráter lúdico, o que estimula o leitor a buscar, a partir das referências encontradas (citações, links), outros espaços literários.

Que recado que você daria a todos os que gostam de escrever e ainda não tiveram uma oportunidade de publicar um livro?

Que leiam muito, muito mesmo. E sempre. E que escrevam muito também, encarando o ato de escrever como um exercício. Que entendam que escrever exige trabalho árduo e constante. O poema, depois de feito, precisa ser lapidado, o que demanda humildade, paciência e senso crítico por parte de quem o escreve. O mesmo se aplica ao texto linear.

Qual o recado que você daria a todos os escritores e poetas?

Não sei se daria algum recado. Talvez diria que precisamos nos unir no sentido de fortalecer a classe e fazer com que o escritor seja reconhecido profissionalmente.

Escrever, para você, significa mais uma auto-realização ou você acha que a literatura e os seus trabalhos podem servir para a realização dos leitores? Para a construção de consciências?

Escrever é tudo isso. A realização pessoal acontece em dois momentos distintos: ao terminar um poema e gostar do resultado do que antes estava na esfera do idealizado e sentido. O segundo momento é receber o retorno dos leitores, que carinhosamente afirmam a importância de meus poemas em suas vidas.

O que significou e significa a leitura em sua vida?

O alimento que meu espírito precisa. A leitura abre caminhos, sejam eles cognitivos ou oníricos.

Um gênio aparece em sua frente e lhe diz: Faça três pedidos que poderiam mudar o mundo. O que você pediria?

Que todos sejam vistos como seres especiais e capazes de grandes realizações. Que haja paz na humanidade. Que o respeito aos direitos fundamentais dos Homens sejam cumpridos; nisto incluo a alimentação, moradia e garantia de estudo e de assistência médica.

Vou lhe dar um mote: um verso de Jalaludin Rumi, um dos maiores poetas do mundo, um afegão, que viveu entre 1207-1273 no seu poema “Em um dia, quando o vento é perfeito”:

Em um dia, quando o vento é perfeito,
As velas apenas precisam abrir-se,
E o mundo se encherá de beleza.
Hoje é um dia como este.”

Agora é com você!

O vento vem chegando, é tão bem-vindo!
Vem vento, vem buscar os sonhos meus!
Não é preciso muito para o mundo
vir a tornar-se espaço só de paz.

Obrigado Márcia. Deus lhe abençoe. Seu recado final.

Eu é que agradeço, Caminha. Foi um prazer estar aqui com você. Espero ter correspondido às suas expectativas e lhe desejo todo o sucesso do mundo.
Queria aproveitar a oportunidade para deixar os links de meus blogs e do site para aquisição de meus livros, pode ser?

[Márcia Sanchez Luz] – http://marciasl2001.blogspot.com
[O Imaginário] – http://poemasdemarciasanchezluz.blogspot.com
[Repercussão Literária] – http://marciasanchezluz.blogspot.com
[No Verde dos Teus Olhos] - http://www.protexto.com.br/livro.php?livro=145
[Porões Duendes] - http://www.protexto.com.br/livro.php?livro=197

Fonte:
Stammtisch Confraria e Patotas.
http://www.stmt.com.br/marcialuz.htm

sábado, 10 de julho de 2010

Olga Agulhon (O Bezerrinho Malhado)

Ilustração de Neide Rocha Portugal
Isa havia completado cinco anos. Houve festa na Fazenda São Pedro, mas não ganhou, no dia, o presente que mais esperava dos pais, pois o que tinha pedido ainda estava para nascer. Queria, há muito, um bezerrinho só para ela.

Duas semanas depois, três vacas deram cria. Isa, quando viu os bezerrinhos, não teve dúvida. Encantou-se, de imediato, com o bezerrinho malhado, cria da Mimosa.

– É esse, papai! Que lindo o meu presente!

– Escolha outro, filha. Esse é macho, vai virar touro. Já temos muitos na fazenda; o suficiente para cobrir as vacas que temos; não pretendo ficar com ele.

– Mas, pai, ele…. É o meu presente… É esse que eu quero.

– As outras duas são novilhas. Escolha uma delas, e os bezerrinhos que ela tiver, quando ela crescer, também serão seus. Se escolher o malhadinho, não prometo que ficará com ele até adulto.

Mas Isa nem ouvia mais o pai. Estava a acariciar o bezerrinho. Ninguém a faria mudar de idéia.

Sua vida mudou. Tornou-se mais alegre. Na maior parte do tempo estava com o bezerrinho. No começo ele era arisco, mas logo se tornou dócil; parecia entender a menina, que chegava a fazê-lo de cavalinho.

O bichinho chegou a desgarrar-se da mãe, como se ela fosse menos importante que Isa. Ambos foram crescendo e a amizade entre eles era cada vez maior.

As coisas na fazenda também foram mudando. O pai de Isa estava mecanizando a terra para plantar soja e, para isso, estava acabando com o rebanho. Ficara apenas com umas poucas vacas de leite e escolhera o melhor touro.

Malhado crescera, já era touro e não havia mais lugar para ele na fazenda. O pai de Isa nem pensou que a filha, depois de tanto tempo, iria ligar. Vendeu-o, junto com os outros, para um leiloeiro.

Quando a menina chegou da escola, ficou desesperada. Chorou o resto do dia, mas os pais não lhe deram muita atenção. Acharam que passaria a sua dor.

Ao levantar-se, no dia seguinte, Isa continuou fazendo suas tarefas. Nos momentos em que estaria com Malhado, permanecia no quarto, tentando ler alguma coisa, mas não conseguia distrair os pensamentos. Foi ficando cada dia mais triste, comendo menos, até cair doente. Pegou uma forte gripe, a gripe piorou, virou pneumonia.

Já havia passado um mês da venda do Malhado, quando o pai de Isa viu-se obrigado a sair à procura dele. Buscou notícias por toda parte. Achou a pessoa que o havia comprado do leiloeiro.

O dono, um tal de Onofre, adquirira o animal para cobrir suas vacas, mas não teve sorte.

– Olha, moço, não sei o que tinha o touro! Parecia doente, às vezes até triste. Estava sempre isolado do resto do gado e não cobria as vacas. Nem umazinha. Assim, não servia, não senhor.

Homem prático e conhecedor de gado que era, o senhor Onofre não insistiu; comprou um bom reprodutor e vendeu Malhado para o frigorífico.

Desanimado e desorientado, o pai de Isa pensou, então, em procurar um substituto, outro touro bem parecido. Talvez Isa percebesse que não era o mesmo; afinal, já fazia muito tempo que ela não via o Malhado. Ficou dois dias fora de casa rodando a região e, enquanto isso, Isa piorava.

No terceiro dia, ele retornou com um touro em cima do caminhão.

– Que sorte, Marta! Comprei pelo dobro do preço, mas vai valer a pena. Achei um touro igualzinho ao Malhado. Nossa filha não perceberá nenhuma diferença. Ficará contente, ficará boa. Vá correndo buscá-la.

Dona Marta voltou com a filha no colo, pois a menina estava muito fraca para andar.

– Olhe, Isa, achamos os seu Malhado!

A menina virou a cabeça, sem forças, em direção ao touro. Seus olhos se entristeceram ainda mais. Não disse palavra alguma. Voltou a cabeça para o colo da mãe e deu mais um suspiro.

Fonte:
AGULHON, Olga. Germens da terra. Maringá: Midiograf, 2004.

Bernardo Sá Barreto Pimentel Trancoso (A Rosa Branca)



Tantas púrpuras rosas no rosal;
Grosas e grosas, tão bonitas rosas;
Entre as rosas vultosas, majestosas,
Brota uma branca rosa, desigual.

Meu olhar só percebe a rosa tal;
Prefere-lhe, entre rosas mais charmosas;
Rosas prá te dizer que, em meio às grosas,
És como a rosa branca, especial.

Tens no andar que alucina novas cores;
É por ter novas cores que alucina;
És preferida, dentre mil amores.

Como a flor no rosal, tão pequenina
Que, perante outras mais formosas flores,
Difere e, o coração, logo ilumina.
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Lygia Fagundes Telles (As Meninas)


O livro narra a história de três universitárias de condição social e origens diversificadas, que se conhecem em um pensionato de freiras na cidade de São Paulo, tornam-se muito amigas, apesar das diferenças de valores e personalidades, convivem durante algum tempo, compartilham seus dramas e sonhos, ajudam-se nos momentos difíceis e terminam por separar-se definitivamente. O encanto e a dificuldade aparente da leitura repousam no foco narrativo cambiante: Lorena Vaz Leme, Ana Clara Conceição e Lia de Melo Schultz contam a própria história através do fluxo de consciência, misturando suas falas, ações, lembranças e críticas recíprocas. Depois dessa surpresa inicial, o leitor acaba por identificar o estilo de cada personagem e sente-se desafiado a desvendar o universo interior das três "meninas"- uma paulista quatrocentona, uma baiana "terrorista" e uma modelo de moral "duvidosa" e viciada em drogas.

Os capítulos não têm nome, mas números:

"Um"

Lorena Vaz Leme divaga em seu quarto dourado e rosa - com cozinha, geladeira, banheira etc - no pensionato Nossa Senhora de Fátima: pensa na amiga Lia de Melo Schultz, que tem pretensões a escritora e é militante política; no gato Astronauta, que cresceu e abandonou-a; em Che Guevara, que foi líder de toda uma geração; em M.N., homem misterioso que lhe desperta desejos eróticos, em Jesus Cristo, a quem dedica a música de Jimi Hendrix; e na morte desse roqueiro e de Rômulo, seu irmãozinho querido. Lia aparece para pedir-lhe o carro de "mãezinha" emprestado, e enquanto tomam o chá especial de Lorena, conversam e divagam sobre tolices e sobres coisas sérias, concomitantemente a greve na faculdade; a prisão de Miguel, namorado de Lia e militante político também; na alienação da burguesia acomodada; na repressão militar, nos amigos que estão presos e sendo torturados. Lorena lembra a morte traumática de Rômulo e sua agonia nos braços da mãe, vitimado por um tiro acidental dado pelo outro irmão, Remo.

Da fuga deste para o exterior através da Diplomacia, dos freqüentes presentes que ele envia a ela (sinos, lenços, roupas, comida...). Mistura a esses pensamentos a figura do médico Marcus Nemésios (o M.N.), casado e bem mais velho, de quem ela sonha receber amor, carinho e proteção (Aliás, passa o livro todo aguardando um telefonema dele, que nunca se concretiza); evoca ainda a figura de Ana Clara, suas origens "suspeitas", no excesso de tranqüilizantes que consome; pensa na própria adolescência, ao piano, no gostoso convívio familiar, nos banhos de banheira, na decisão de morar no pensionato, no aluguel e decoração do quarto por Mieux, o atual namorado da mãe. Lia fala sobre o livro que escrevera e acabara por rasgar. Criticam Ana Clara e o namorado Max, traficante que a viciou em drogas, e o provável e desconhecido noivo rico com quem ela pretende se casar para "sair do buraco", após plástica restauradora da virgindade, "bancada" por Lorena.

Lia pede várias vezes o carro emprestado, e um pouco de "oriehnid" (dinheiro "ao contrário", para dar sorte) para o "aparelho"(= grupo de resistência à ditadura militar). Apesar de temer envolvimentos com o grupo e suas conseqüências, Lorena é incapaz de dizer "não" aos pedidos da (s) amiga (s).

"Dois"

Ana Clara e Max drogam-se na cama e deliram. Ela sente-se travada, bloqueada, apesar das sessões de terapia - ela odeia o analista. Acha-se bonita (modelo, 1,77 m) e carente - a mãe, prostituta, nunca lhe deu atenção. Lembra-se do Dr. Algodãozinho, que deixava seus dentes apodrecerem para abusar sexualmente dela e da mãe, em sua cadeira de dentista. Pensa no quanto ama Max, mas que em janeiro casa-se com o noivo rico e resolve seus problemas. Sente ódio de Deus - e de negros. Resgata a infância carente, repleta de ruídos (ratos, baratas) e cheiros, nos prédios em construção, onde vivia com a mãe e os sucessivos amantes.Também evoca detalhes da vida das amigas Lia e Lorena. Max também delira. Reza. Teve educação esmerada (fala francês, é fino) mas empobreceu e tornou-se traficante. Tem uma irmã que sumiu com
as jóias da família e encontra-se internada em sanatório. Ana e Max se amam, mas seu relacionamento é difícil e complicado.

"Três" - Lorena reflete sobre a violência do mundo; assaltos a bancos; a morte de Rômulo; a profissão de Remo propiciando sua "fuga" para o exterior. Gostaria de poder alienar-se da "máquina desse mundo" violento (intertextualidade com o texto "A Máquina do mundo", de Carlos Drummond de Andrade), como uma ostra dentro de sua concha dourada (= seu quarto - refúgio). Rememora a chegada de Lia e A. Clara e a "invasão" das duas à sua privacidade, a amizade das três, apesar das personalidades opostas.

Miúda e magra, mostra certa inveja da beleza de Ana Clara, apesar da diferença cultural... Através da visão de Lorena, conhecemos um pouco mais sobre as duas amigas: Lia de Melo Schultz tem um "pé" baiano, da mãe Diú (D. Dionísia) e outro berlinense, do pai seu Pô (Herr Paul, exoficial nazista). Herdou do pai o vigor germânico; da mãe, as "proporções gloriosas e a cabeleira de sol negro" e o açúcar da voz.

É uma "mulher-hino", enquanto Lorena vê-se como uma civilizada, requintada "balada medieval" (ou "Magnólia desmaiada", para os colegas da Faculdade de Direito). Ana Clara "arrombou" a privacidade de Lorena, obrigando-a a verdadeiros exercícios de caridade cristã: mexe em tudo, nos livros, nos objetos pessoais. Tem olhos verdes, é modelo, linda, mas "de cuca embrulhada", deprimida e deprimente, juntadíssima, afetadíssima, mentirosíssima - "ni ange ni bête" - (nem anjo, nem demônio). Envolvida com sexo e drogas. Enquanto lancha ao sol, Lorena recorda o aborto de Aninha, resgatando a fábula da formiga e da cigarra (inconsciente, bagunceira, irresponsável), com quem compara a amiga. Recebe carta de Remo e pensa na morte de Rômulo. Filosofa sobre o lado omisso das relações humanas.

Sonha em casar-se com M.N., pois sente-se frágil, insegura, precisando de um homem em tempo integral. Ao voltar para o quarto, pensa no colega Fabrízio, na noite chuvosa em que ele veio estudar mas preferiu envolvê-la nos braços, ameaçando sua virgindade; na falta de luz e subseqüente chegada de Lia, estragando o momento mágico com suas alpargatas molhadas e suas pesquisas sobre a vida das prostitutas, sua obsessão por Miguel. Lia sai, mas chega Ana Clara, e "se instala". Fim da noite para Fabrízio e Lorena. No dia seguinte, conheceu o Dr. M.N. na sua Faculdade e ganhou carona. Passa a viver aguardando seu telefonema, fantasiando um amor edipiano.

"Quatro"

Max delira na cama. Gosta de Chopin, de Renoir. Conversa com a Coelha (A. Clara) sobre a riqueza passada, as viagens. Ana compara os diferentes níveis de artistas abstratos e reclama de estar lúcida - teria tomado aspirina? Lembra o passado de miséria e sonha com o futuro promissor como psicóloga de ricaços

- "Nessa cidade as pessoas não se preocupam mais com nome, mas com o saco de ouro" (de que adianta o nome Vaz Leme de Lorena, descendente de bandeirantes?). Quer esquecer a mãe, os amantes, Jorge, Aldo, Sérgio... e o suicídio com formicida. Lembra-se da amiga Adriana, feia e vesga, mas com casa na praia, onde A. Clara tentou lavar a memória do passado num banho de mar. Max desperta e os dois deliram juntos. Ela está grávida e quer abortar. Ele deseja o filho, cuja voz diz ter ouvido. Vão ficar ricos e fazer cruzeiros pelo mundo.

Ela é a gata borralheira, que tem encontro marcado com o noivo, que já deve estar inquieto com o atraso.

"Cinco"

Lorena aguarda o telefonema de M.N., como sempre. Pensa em arte, em literatura (Dante, Beatriz) , em música (jazz), em cheiros (incenso); em morte (Rômulo); na mãe e no carro (teme que Lia seja metralhada dentro dele). Gostaria de poder sair de moto com Fabrízio, um cinema, um jantar... mas acha que ele deve estar na faculdade, incitando a greve e namorando uma poetazinha que resolveu seduzi-lo. Recebe a visita da irmã Bula e desconfia que esta é a autora das cartas anônimas, que falam coisas horríveis sobre as meninas e as freiras, para Madre Alix, a superiora. Enquanto serve licor e biscoito para a freira, relembra a morte de Rômulo, as manchetes nos jornais; pensa em Lia, em Simone de Beauvoir (escritora francesa), em segundo e terceiro sexos, em M.N., em Che Guevara, em morrer e renascer (segundo S. Marcos, "é necessário nascer de novo").

Recupera a teoria da amiga "terrorista" sobre a perda de pureza do baiano e do índio, e cita Gonçalves Dias. Coloca um Noturno de Chopin e serve constantemente vinho à freirinha. Quando tampa a garrafa, pensa na ferida de Rômulo, na fuga de Remo. Despede-se da Irmã Bula e de sua velhice sem sentido.

"Seis"

Na sala imunda e mal iluminada onde montaram o "aparelho", Lia ("Rosa de Luxemburgo") e Pedro começam a separar material para o jornal. Conversam sobre experiências homossexuais; Jango; o nazismo; conceito de santidade; sobre Che Guevara; Martin Luther King (líder negro americano), engajamento político-social, atuação da Igreja progressista, casamento de padres, amor... Sai para uma operação noturna com o Bugre, que lhe conta sobre a próxima deportação de Miguel para a Argélia. De volta ao pensionato, feliz, conversa com Madre Alix: fala de seu amor pela família, do passado com saudade, do presente (fases da vida!...); de A. Clara, Max e seu envolvimento com drogas; na sua pretensa vocação para escritora; na desilusão com Miguel (muito cerebral) e Lorena (muito sofisticada). Madre Alix quer ajudá-las, mas sente-se impotente e teme por seu futuro. Sugere uma epígrafe para o livro de Lia e que serve para a vida das duas: "Sai da tua terra e da tua parentela e da casa de teu
pai e vem para a terra que eu te mostrarei"(Gênesis).

"Sete"

Irmã Clotilde leva frutas para Lorena, que se exercita na bicicleta. Falam sobre as duas Santas Teresas; sobre Tolstói; sobre homossexualismo (comenta-se no pensionato que I. Clotilde é lésbica); sobre beleza, ideais, filosofias de vida. A freira vai lavar as mãos e volta criticando a cor, a saúde e a alimentação das três amigas. Lorena anseia por beleza e um telefonema... Quer ficar só, mas a freira se demora na visita e no exame do quarto, dos animais, dos livros da moça. Esta lê um pedaço de um livro de Direito, cita frases em latim, enquanto pensa sobre o lado oculto das pessoas: a vida é um jogo de espelhos, e Lorena tem sede de autenticidade... Lia chega, a freira se vai. Devolve a chave do carro, conta sobre a viagem à Argélia, brinca de entrevistar Lorena (os assuntos de sempre: virgindade, casamento, M.N., Fabrízio, Pedro) e diz que esta é edipiana. Ambas mostram-se preocupadas com a gravidez de Ana "Turva" e sua dependência.

Divertem-se no jardim e despedem-se no portão. Lia pede roupas para os "revolucionários". Lorena fica pensando na iniciação sexual das amigas e imagina como será sua "primeira vez"(M.N. é ginecologista, um "gentleman").

"Oito"

Ana Clara e Max acordam e conversam: ele e Lorena são "aristocratas", têm álbum de retratos... Os de Lorena estão na garagem do pensionato. Criticam o amante jovem de "mãezinha", Mieux. Max vai até a geladeira, come e volta a dormir. Ana pensa na desculpa que vai inventar para o noivo aceitar seus sumiço. Arruma-se e sai. Chove. São quase 11 h da noite. Não consegue táxi e aceita carona de um industrial em um Mercedes. Foge dele e refugia-se em um bar, onde encontra um velhote estranho que a convida para seu apartamento. Confundindo-o com "um pai" que nunca teve, segue-o.
Apartamento de boêmio - retratos na parede, vitrola de corda, discos de tangos. Ana deita-se na cama e dorme, enquanto ele lê para ela textos sobre Napoleão, Rodolfo Valentino e tem orgasmo. Diz que o platonismo amoroso é a forma mais sutil e temível da paixão infinita e insaciável.

"Nove"

Na banheira, Lorena filosofa sobre "ser" ou "estar" no mundo - na desintegração do ser humano na cidade grande, no papel do filósofo, do advogado, do médico, do psiquiatra. Sente todos os sintomas de todas as doenças mentais, apesar de charmosa e inteligente. Lembra-se da fazenda, das procissões em que se vestia de anjo. Rememora o primeiro encontro com M.N. e imagina as reações de mãezinha quando lhe contar sobre ele. Sai do banho emocionada e veste um robe. Chega o colega Guga, que lhe conta ter abandonado a família, a escola e estar vivendo em um porão, numa comunidade. Escandalizada com sua sujeira, Lorena corta-lhe as unhas, alerta-o sobre promiscuidade e lê para ele uma carta de M.N. Guga se excita e tenta amá-la. Ela quase cede, mas reage e ele se vai.

Chega Lia. Conversam sobre filosofia, Lacan, auto-identificação, transferência de afetos.
Lia quer provar que M.N. está mais para pai que para namorado, mas Lorena não admite. Falam sobre o telefonema de Herr Pô e da promessa de ajuda em dinheiro para a viagem. Lorena entrega a Lia um cheque em branco e pede-lhe para usar uma cruz na corrente, enquanto filosofa sobre Deus, religião, fé. Lia sai rindo. Lorena faz caretas.

"Dez"

Lia pega carona com o motorista de mãezinha de Lorena e vai visitá-la. No caminho, consegue fundir a cabeça do senhor com seu discurso sobre família e liberdade. Recebida no hall pelo mordomo, fuma, examina os objetos e tapetes luxuosos, enquanto imagina sua viagem, a desunião da esquerda; vê-se na Argélia escrevendo seu diário e exaltando a Pátria. Mãezinha chora, na cama, a morte do psiquiatra Dr. Francis. Desajeitada, Lia tenta consolá-la e ouve suas lamúrias sobre a diferença de idade entre ela e Mieux, a impossibilidade de acompanhá-lo em seus programas, a dificuldade em aceitar a velhice e a morte. Lia lembra-se de sua família (tão equilibrada!) com saudade e amor. Mãezinha pergunta sobre os namoros de Lorena e Lia (acha-a masculinizada) e quer trazer a filha de volta à casa. Conta uma versão totalmente diferente sobre a morte de Rômulo (falência cardíaca, ainda bebê). Lia sente-se nauseada e pensa em ver o álbum de fotos na garagem: acha que mãezinha está escamoteando a tragédia por auto-defesa. Ganha roupas e mala para a viagem.

"Onze"

Tarde da noite. Ana Clara chega transtornada ao quarto de Lorena, que está estudando para a prova no dia seguinte (a greve terminara). Entra arrastada, gritando de dor no peito e imunda. Lorena coloca-a na banheira - seu corpo está cheio de nódoas roxas e sofre alucinações com formigas, baratas, Deus e Max. Pede uísque e a bolsa. Delira. Lorena pensa no abismo entre o ser e o estar, num futuro feliz no campo, fora de sua casca. As novelas da vizinhança encobrem os ruídos e finalmente A. Clara adormece. Lorena toma chá. Finalmente Lia chega para preparar as malas (a viagem será na manhã seguinte) e Lorena vai até seu quarto. Conversam muito - sabem que estão se despedindo - e Lia conta-lhe que Guga virá procurá-la. Não vêem futuro na relação com M.N., que jamais abandonará a família, pois a "dor do remorso dói mais que a dor física"(Tolstói). Ao voltar para o quarto, Lorena tem um choque: A. Clara está morta.

"Doze"

Lia corre aos acenos da amiga. Ao entrar, encontra Lorena massageando o peito de A. Clara, tentando revivê-la, enquanto reza. Lia pensa em chamar o pronto-socorro, em acordar todo mundo, em que poderia ter feito mais pela amiga, além dos "discursos". A bolsa de A. Clara está aberta: talvez dali ela tirara a própria morte. Lorena tem idéias e age: encomenda o corpo, reza em latim, veste e pinta A. Clara como se esta fosse a uma festa. Elimina todas as pista comprometedoras para Aninha e Max, além das freiras do pensionato. As duas amigas carregam A. Clara através da noite providencialmente nebulosa e abandonam o corpo em um banco em uma linda praça do bairro.

Voltam para o pensionato e separam-se: cada uma vai viver a própria vida. Lia no exílio. Lorena de volta para a casa de mãezinha, deixando sua concha para a futura hóspede, que vem do Pará. Ação A ação do livro é prevalentemente interiorizada. Quase nada acontece na realidade exterior; a vidinha pacata e rotineira no pensionato, as conversas intermináveis, os estudos, as visitas das personagens ao redor do quarto de Lorena - centro daquele microcosmo -, poucos momentos na faculdade e no "aparelho"; as atitudes contraditórias de Ana Clara e sua morte; a solução dada pelas amigas para se livrarem de um cadáver comprometedor.

Tudo se passa no âmbito da memória, enquanto as meninas resolvem o passado e evocam suas experiências em busca de auto-conhecimento, de solução para seus traumas e conflitos interiores, para a exorcização de seus "fantasmas". Personagens Lorena Vaz Leme, filha de fazendeiros, culta, fina, aristocrática, descende de bandeirantes. É aluna na Faculdade de Direito e bastante estudiosa: cita com freqüência passagens da Bíblia, frases em latim, em francês, em espanhol, de filósofos variados, escritores e músicos. Demonstra cultura e educação esmerada, onde se fundem harmoniosamente o erudito e o popular.

Assistiu impotente à derrocada da própria família e evoca freqüentemente esse passado, onde contrapõe os momentos felizes da infância, na fazenda, à morte acidental do irmão e a subseqüente desagregação do núcleo familiar - a fazenda vendida, o pai internado em sanatório, o irmão traumatizado pela culpa, a mãe vivendo de fantasias, terapias e falsas ilusões. Lorena tenta "equilibrar-se" fechando-se em uma concha dourada dentro do pensionato de freiras, onde pratica ginástica, faz chá, recebe cartas e presentes do irmão, visitas freqüentes de colegas, e de onde ajuda as amigas. Toma sol, lê, filosofa, mas pouco age. Segundo Lia, trata-se de uma burguesa alienada, apesar da bondade e do carinho com que recebe e ajuda a todos.

Mas o mundo insiste em invadir sua privacidade - as amigas, as freiras, Fabrízio, Guga, o amor impossível pelo médico mais velho colocam-na em freqüente conflito com o mundo exterior. Procurando viver de sonhos, perde várias oportunidades de realizar-se afetivamente e ser feliz. No entanto, diante da morte de A. Clara, consegue definir-se e agir positivamente, encontrando, por um lado, solução para o problema imediato; e, de outro, um possível desfecho para sua alienação: voltará para a casa da mãe, acabará por perceber a impossibilidade de um compromisso com M.N. e se abrirá para o amor de Guga, enquanto se resolve a enfrentar o mundo e a deixar sua "concha" definitivamente. Lia de Melo Schultz serve como contraponto à "finesse" de Lorena: veste-se mal, usa alpargatas, não gosta muito de banho, não cuida da aparência.

Veio da Bahia para fugir da mãe superprotetora e do pai com um passado misterioso de ex-oficial nazista. Matricula-se no curso de Ciências Sociais (foco de agitações estudantis na década de 60), onde se envolve com um grupo militante da esquerda e apaixona-se por Miguel, que acaba preso. Sua preocupação consiste em angariar dinheiro e roupas para o "aparelho", e está sempre discursando contra a alienação da burguesia, das amigas, e a pobreza do Nordeste. Seu equilíbrio repousa sobre dois referenciais: em seu engajamento político (doação de amor aos amigos e à liberdade da Pátria) e na segurança que encontra no amor de Miguel e no apoio da família, que, mesmo à distância, protege-a e dispõe-se a ajudá-la em sua fuga para o exterior. Escolhe seu próprio caminho e resolve-se bem.

Ana Clara Conceição apresenta o temperamento mais problemático e a personalidade mais inconsistente das três, apesar do fascínio que a força de suas evocações exerce sobre o leitor, as amigas e Madre Alix, principalmente. Filha de pai desconhecido, amargou uma infância carente, junto a uma mãe prostituída e constantemente machucada pelos sucessivos companheiros, um dos quais a induz ao suicídio pela ingestão de formicida. Ana foi seduzida por um dentista, que abusa sexualmente da mãe e da filha. Traumatizada, não consegue encontrar prazer nos seus relacionamentos amorosos. Permanece quase o livro todo na cama com o namorado Max, traficante que a viciou em drogas e, embora conversem muito, seu discurso aparece truncado - amam-se, mas não conseguem ser felizes. Sob o efeito das drogas, suas evocações são basicamente sinestésicas: ruídos (o roque-roque dos ratos e o barulho das baratas, nas construções), cheiros (do consultório do dentista, da bebida, do mar, do corpo de Max...), sensações variadas de frio e de calor entrecruzam-se enquanto ela desnuda seus traumas sem qualquer pudor e, fugindo à realidade, adia todas as soluções para "o ano que vem".

Só que o peso da memória é mais forte: nem a aspirina; nem a ilusão de um noivo rico; nem a probabilidade da plástica restauradora da virgindade; nem a perspectiva de ascensão social através da Faculdade de Psicologia, da carreira de modelo, do dinheiro que conseguirá na clínica para a burguesia; nem o amor e os conselhos de Madre Alix e das amigas conseguem salvá-la. Seu fim é trágico: morre de overdose no quarto de Lorena, e, vestida e enfeitada, cumpre seu destino num banco de praça, sem prejudicar aquelas pessoas que conseguiram dar-lhe um pouco de afeto, mas não a paz de que tanto necessitava.

Tempo

Subjaz à narrativa uma seqüência cronológica pouco marcada de alguns dias ou poucas
semanas: o tempo é voluntariamente vago e difícil de precisar. O que prevalece é o tempo psicológico, pois tudo acontece através do entrecruzar da memória, da evocação do passado, da mistura com algumas ações no presente. Alguns fatos permitem a localização da obra no final dos anos 60, pois evocam as agitações sociais, as greves universitárias, a prisão e a tortura de militantes políticos sob o enrijecimento da ditadura militar, o crescimento agressivo da megalópole que tritura o jovem e esmaga sua individualidade, alienando-o, censurando-o e dificultando-lhe a busca de caminhos. Passado e presente fundem-se de modo inextricável, e nos traumas da memória encontram-se as explicações para os problemas existenciais das três meninas - símbolos de toda uma geração massacrada e alienada por forças do passado e das
circunstâncias.

Espaço

Oprimidas pela cidade grande e sua violência, as três meninas refugiam-se no Pensionato N. Senhora de Fátima, na região central de São Paulo. O quarto-concha de Lorena constitui-se no refúgio para onde as pessoas convergem em busca de conforto, de carinho, de segurança, de afeto e compreensão - um tipo de oásis dentro de um mundo desorganizado, caótico e extremamente ameaçador, onde "Deus vomita os mortos".

Foco Narrativo

O foco narrativo em primeira pessoa é manipulado pela Autora de forma magistralmente cambiante: ele se desloca constantemente (e inesperadamente!) para o fluxo de consciência das três amigas, que se entrevistam, que se apresentam umas às outras e ao leitor, que refletem continuamente sobre si mesmas e umas sobre as outras, arrastando-nos nessas freqüentes invasões à privacidade de A. Clara, Lorena e Lião, que se vão desnudando paulatinamente diante de nós.

Existe uma dificuldade inicial para a leitura até a identificação do estilo peculiar de cada personagem, pois cada uma delas se exprime dentro de seu "dialeto" coloquial - o discurso mais elaborado e culto de Lorena, o regionalismo politicamente engajado de Lião e o pensamento confuso e truncado de Ana "Turva". Superada essa dificuldade, o leitor mergulha de corpo e alma no universo fantástico dessas três meninas encantadoras, representantes autênticas daquele que foi um dos períodos mais importantes e difíceis para a emancipação da mulher, para a liberdade de pensamento e para a realização individual dentro de um universo politicamente conturbado.

O romance As Meninas oferece-nos, de um lado, um painel saboroso das vivências de três pessoas em busca de si mesmas; de outro, uma amostra dos problemas cruciais que agitaram a juventude durante um dos períodos mais conturbados da história do Brasil, que Lygia Fagundes Telles teve a ousadia e a coragem de denunciar.

Fonte:
Cd Digeratti CEC003