segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Solano Trindade (Antologia Poética)


POEMA AUTOBIOGRÁFICO

Quando eu nasci,
Meu pai batia sola,
Minha mana pisava milho no pilão,
Para o angu das manhãs...
Portanto eu venho da massa,
Eu sou um trabalhador...

Ouvi o ritmo das máquinas,
E o borbulhar das caldeiras...
Obedeci ao chamado das sirenes...
Morei num mucambo do ""Bode"",
E hoje moro num barraco na Saúde...

Não mudei nada...

CANTA AMÉRICA

Não o canto de mentira e falsidade
que a ilusão ariana
cantou para o mundo
na conquista do ouro
nem o canto da supremacia dos derramadores de sangue
das utópicas novas ordens
de napoleônicas conquistas
mas o canto da liberdade dos povos
e do direito do trabalhador...

CONVERSA

- Eita negro!
quem foi que disse
que a gente não é gente?
quem foi esse demente,
se tem olhos não vê...

- Que foi que fizeste mano
pra tanto falar assim?
- Plantei os canaviais do nordeste

- E tu, mano, o que fizeste?
Eu plantei algodão
nos campos do sul
pros homens de sangue azul
que pagavam o meu trabalho
com surra de cipó-pau.

- Basta, mano,
pra eu não chorar,
E tu, Ana,
Conta-me tua vida,
Na senzala, no terreiro

- Eu...
cantei embolada,
pra sinhá dormir,
fiz tranças nela,
pra sinhá sair,

tomando cachaça,
servi de amor,
dancei no terreiro,
pra sinhozinho,
apanhei surras grandes,
sem mal eu fazer.

Eita! quanta coisa
tu tens pra contar...
não conta mais nada,
pra eu não chorar -

E tu, Manoel,
que andaste a fazer
- Eu sempre fui malandro
Ó tia Maria,
gostava de terreiro,
como ninguém,
subi para o morro,
fiz sambas bonitos,
conquistei as mulatas
bonitas de lá...

Eita negro!
- Quem foi que disse
que a gente não é gente?
Quem foi esse demente,
se tem olhos não vê.

EU GOSTO DE LER GOSTANDO

Eu gosto de ler gostando,
gozando a poesia,
como se ela fosse
uma boa camarada,
dessas que beijam a gente
gostando de ser beijada.

Eu gosto de ler gostando
gozando assim o poema,
como se ele fosse
boca de mulher pura
simples boa libertada
boca de mulher que pensa...
dessas que a gente gosta
gostando de ser gostada.

NEGRA BONITA

Negra bonita de vestido azul e branco
Sentada num banco de segunda de trem
Negra bonita o que é que você tem?
Com a cara tão triste não sorri pra ninguém?
Negra bonita
É seu amor que não veio
Quem sabe se ainda vem
Quem sabe perdeu o trem
Negra bonita não fique triste não
Se seu amor não vier
Quem sabe se outro vem
Quando se perde um amor Logo se encontra cem
Você uma negra bonita Logo encontra outro bem.
Quem sabe se eu sirvo
Para ser o seu amor
Salvo se você não gosta
De gente da sua cor
Mas se gosta eu sou o tal
Que não perde pra ninguém
Sou o tipo ideal
Pra quem ficou sem o bem...

REFLEXÃO

Vieste acender o meu fogo poético,
E minh’alma se abriu pras grandes festas,
A música dos teus poemas,
Faz-me dançar o bailado, Da primeira mocidade...
Eu sinto vontade de não ser sexo,
Para brincar contigo como criança,
E brincar de cirandinha com tu’alma.
Mas como sou sexo, Vou assistir um espetáculo humano;
A confecção de bandeiras iguais,
Para seres que parecem diferentes.

POEMA DO HOMEM

Desci à praia
Para ver o homem do mar,
E vi que o homem
É maior que o mar

Subi ao monte
Pra ver o homem da terra,
E vi que o homem
É maior que a terra

Olhei para cima
Para ver o homem do céu,
E vi que o homem
É maior que o céu.

O CANTO DA LIBERDADE

Ouço um novo canto,
Que sai da boca,
de todas as raças,
Com infinidade de ritmos...
Canto que faz dançar,
Todos os corpos,
De formas,
E coloridos diferentes...
Canto que faz vibrar,
Todas as almas,
De crenças,
E idealismos desiguais...
É o canto da liberdade,
Que está penetrando,
Em todos os ouvidos...

MEU CANTO DE GUERRA

Eu canto na guerra,
Como cantei na paz,
Pois o meu poema
É Universal.
É o homem que sofre,
O homem que geme,
É o lamento
Do povo oprimido,
Da gente sem pão...
É o gemido
De todas as raças,
De todos os homens.
É o poema
da multidão!

ABOLIÇÃO NÚMERO DOIS

Parem com estes batuques,
Bombos e caracaxás,
Parem com estes ritmos tristes e sensuais

Deixem que eu ouça
Que eu veja
Que eu sinta
O grito
A cor
E a forma
da minha libertação...

QUEM TÁ GEMENDO?

Quem tá gemendo,
Negro ou carro de boi?
Carro de boi geme quando quer,
Negro, não,
Negro geme porque apanha,
Apanha pra não gemer...

Gemido de negro é cantiga,
Gemido de negro é poema...

Gemem na minh'alma,
A alma do Congo,
Da Niger, da Guiné,
De toda África enfim...
A alma da América...
A alma Universal...

Quem tá gemendo,
negro ou carro de boi?
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mais poesias de Solano em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/solano-trindade-1908-1974-poesias.html
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Ricardo Faria (Um Poeta chamado Solano Trindade)


Tempos de Teatro de Arena, Redondo, TBC, TAIB, do Teatro das Nações, inaugurado com uma ópera para mais de mil pessoas vestidas a rigor.

A gente se reunia no Ponto de Encontro, uma livraria no subsolo da Galeria Metrópole, em frente à Praça da Biblioteca, na então Paulicéia Desvairada dos anos sessenta. Que bom ter conhecido tantas pessoas especiais.

Aquele negrão era cativante, mais ainda quando declamava e se repartia.

Solano Trindade, pernambucano de Recife, filho do sapateiro Manuel Abílio e da quituteira Emerenciana, cresceu dançando o Pastoril e Bumba-meu-boi. Participou dos Congressos Afros dos anos trinta, especialmente quando Gilberto Freyre lança seu Casa Grande & Senzala.

Em 1936, Solano funda o Centro Cultural Afro-Brasileiro e a Frente Negra Pernambucana, uma extensão da Frente Negra Brasileira. Publica os seus Poemas Negros. Inquieto, viaja para Minas Gerais e depois para o Rio Grande do Sul, onde cria, em Pelotas, um Grupo de Arte Popular.

Aquele homem de andar manso, cabeça cheia de planos e energia inabalável foi depois para o Rio de Janeiro. Em 1944 publicou o livro Poemas de uma Vida Simples. Em 1945, junto com Abdias Nascimento, criou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro.

Com Haroldo Costa fundou o Teatro Folclórico. Atuou em filmes como A hora e a vez de Augusto Matraga e O Santo Milagroso.

Na cidade maravilhosa, Solano gostava do Café Vermelhinho freqüentado por intelectuais, políticos, jornalistas, escritores e atores teatrais. Era amigo de pessoas como o Barão de Itararé e Santa Rosa.

Solano filiou-se ao Partido Comunista, as reuniões da Célula Tiradentes ocorriam na sua residência e, durante a perseguição aos comunistas, empreendida pelo governo Dutra, entram em sua casa. Seu filho, Liberto, está deitado, doente. A polícia vira o colchão, à procura de armas. Exemplares de seus livros são apreendidos.

A filha Raquel lembra: "Papai jamais esconderia armas. Sua luta era feita com idéias". Preso, não se abala. Raquel e a mãe, Margarida, percorrem as cadeias até encontrá-lo.

Quando sai, Solano parece fortalecido. Embora com os olhos tristonhos, seu otimismo é contagiante, nasce do seu amor pela arte e pela vida. Continua escrevendo, fazendo teatro e espalhando sonhos e esperanças por onde passa.

Preocupava-se com o que chamava de folclore, com as danças populares. Dizia ser necessário pesquisar nas fontes de origem e devolver ao povo em forma de arte. Sua experiência mais bem sucedida neste sentido foi o Teatro Popular Brasileiro, criado por ele, por sua esposa Margarida Trindade e pelo sociólogo Édison Carneiro em 1950

Com Haroldo Costa fundou o Teatro Folclórico. Atuou em filmes como A hora e a vez de Augusto Matraga e O Santo Milagroso.

Na cidade maravilhosa, Solano era freqüentador do Café Vermelhinho, onde se reuniam intelectuais, políticos, jornalistas, escritores e artistas de teatro. Ali era amigo de pessoas como o Barão de Itararé e Santa Rosa.

O Embu é um agradável município distante cerca de uma hora do centro de São Paulo. Embora tão próxima à metrópole, a cidade guarda um clima bucólico, aconchegante.

Quem chega no Embu aos domingos, quando é grande o movimento de turistas, não imagina estar diante da concretização do sonho de artistas negros, dentre eles o poeta Solano Trindade, pesquisador das nossas tradições populares, teatrólogo, pintor e boêmio; um ser humano de grande carisma e visão, para quem a arte representava parte essencial da vida.

Solano vem a São Paulo e é convidado pelo escultor Assis para apresentar-se no Embu e leva o seu grupo. Dormem no barracão de Assis nos finais de semana, quando mostram sua arte para um número cada vez maior de pessoas. Participam da peça "Gimba", de Gianfrancesco Guarnieri. Em 1967, apresentam-se para um dos criadores da Negritude: Leopold Senghor.

Solano apaixona-se pelo Embu, muda-se para lá e sua casa torna-se uma núcleo artístico. Na cidade já havia um movimento com artistas como Sakai e Azteca, mas a atividade de Solano e Assis faz surgir a feira de artesanato e revoluciona o local, aumentando o fluxo turístico.

Solano chegou a ser conhecido como "o patriarca do Embu". A casa e o coração de Solano estavam sempre prontos para receber, na panela, havia comida para quem chegasse a qualquer hora.

Ironicamente, no final da vida, vários desses amigos se afastaram, mas talvez este seja o cruel destino dos grandes criadores, de profetas e poetas assinalados. A poesia de Solano o marcou. Orgulhava-se ser chamado de “poeta negro”; - “Sou negro, meus avós foram queimados pelo sol da África minh'alma recebeu o batismo dos tambores atabaques, gonguês e agogôs.”

Casou-se três vezes e teve quatro filhos. Raquel Trindade, que hoje continua o trabalho do pai, no Embu, descreve-o: "Existem artistas que aparentam ser uma coisa e, no fundo, são outra. Papai mostrava-se como era, um pai fantástico".

Último ato: esse poeta dava-se completamente à arte e à vida sem se importar com bens materiais, ainda que seu trabalho tenha favorecido a muitos. A partir de 1970, sua saúde começou a apresentar problemas. Morreu no Rio de Janeiro, em 1974.

Em 1976, voltou aos braços do povo como tema da escola de samba Vai-Vai, com enredo elaborado por sua filha Raquel. Os versos do samba de Geraldo Filme ainda ecoam: “Canta meu povo, vamos cantar em homenagem ao poeta popular Vai-Vai é povo, está na rua saudoso poeta, a noite é sua.”

Palavras escritas num poema à filha Raquel se tornam proféticas: “Estou conservado no ritmo do meu povo Me tornei cantiga determinadamente, nunca terei tempo para morrer.”

Um de seus trabalhos mais famosos, intitulado "Tem gente com fome", foi musicado e gravado por Nei Matogrosso: Trem sujo da Leopoldina correndo, correndo, parece dizer tem gente com fome, tem gente com fome, tem gente com fome. O ritmo é o de um trem em movimento. No final, quando vai parando, a voz ouvida pelo poeta exige: se tem gente com fome, dá de comer. Solano também cantou continuamente o amor. - Fonte Márcio Barbosa

Em tempos de Beto Carneiro, o Vampiro Brasileiro, e Emílio Surita com seu Pânico na TV, vale a pena homenagear Solano Trindade:

Tem gente com Fome

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiiii

Estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuu

Fonte:
Revista Entrementes

Serafina Ferreira Machado (A Imagem do Negro na Poesia de Solano Trindade)


RESUMO: Este artigo se propõe a revisar o processo da formação da identidade do negro: da subalternidade à luta pelo reconhecimento, na esfera histórica e literária. Na obra de Solano Trindade, o poeta cede sua voz ao oprimido (o homem negro ou branco) para denunciar as injustiças sociais. O discurso de Trindade convida o leitor a uma revisão da condição do negro e, ao ressaltar o caráter humano em sua poética, questiona as imagens fixas, revestidas por estereótipos que estigmatizam. A obra deste poeta se propõe, pois, a uma (re)leitura das imagens impingidas ao negro na diáspora, confrontando-se com valores morais, políticos e sociais da elite, no intuito de reconhecer o caráter humano do negro.

PALAVRAS-CHAVE: poesia, negro, humanização.

Na produção literária brasileira, apesar da referência ao negro, é comum encontrar sua imagem marcada por preconceitos e estereótipos construídos numa tentativa de apagar sua representatividade cultural. E hoje, em pleno século XXI, as discussões em torno de medidas compensatórias para sanar as consequências comprovam o resultado desastroso desta lógica. Ou seja, embora o Brasil traga marcas de várias etnias, nota-se que o cânone literário fez sua opção pelo modelo europeu durante um longo tempo. Nesta opção, reconhece-se a tentativa de dominar o caráter humano do negro, retratando-o pelo crivo da inferioridade, a partir da lógica maniqueista que ora o apresenta como dócil, ora como selvagem e quase sempre zoomorfizado.

Portanto, muitas foram as formas de violências pelas quais o negro foi submetido. A sua verdadeira humanidade foi, aos poucos, sendo substituída por imagens que, com o passar do tempo, alicerçaram-se na cultura nacional. Imagens estas que refletiam as ideologias adotadas e cobravam do “sujeito brasileiro” uma “boa aparência”, isto é, assimilação dos modelos da sociedade branca europeia. Assim sendo, justifica-se a exclusão do negro, denunciada no poema “Civilização Branca”, de Solano Trindade:
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Lincharam um homem
entre os arranha-céus
(li num jornal)
procurei o crime do homem
o crime não estava no homem
estava na cor de sua epiderme...
(Trindade 1961: 37)

A ideologia branca, ao longo da história, tentou enfraquecer a participação do negro na vida social, por isso o poeta busca um verbo forte (lincharam) para definir a violência contra este homem que figura em seu poema. A “boa aparência” cobrada pela época representava o oposto da negrura da pele, dos cabelos pixains, do nariz achatado... Diante desta questão de “aparência”, observa-se que, embora a cultura negra seja, hoje, visível, tolerada, respeitada e integrada nos símbolos constitutivos da cultura nacional, os homens e as mulheres negras, produtores dessa cultura são “invisibilizados”, “linchados”.

Desta forma, diante da civilização branca, Trindade reconhece que a passagem de ser “o outro” apagado, para um “Eu”, requeria o resgate da experiência histórica do ser negro. Assim, ele utiliza a poesia como arma contra as opressões e marginalização social. Mantém um diálogo com a sociedade atual e se insere numa produção que busca incluir as classes marginalizadas.

A palavra foi a arma de Solano Trindade contra a opressão de seu tempo. No poema “Canto de Palmares” ele relata uma batalha onde muitos de seus irmãos foram mortos, mas o poema, arma do eu lírico, permaneceu. E ao revelar “meu poema é cantado através dos séculos/ minha musa esclarece a consciência” percebe-se ainda mais o poder da palavra que pode agir na consciência, como agiu na consciência dos mais jovens como Cuti, Oubi, Adão Ventura etc, que continuaram o canto simples de Trindade.

Através da poesia negra, em que a palavra poética configura-se como arma contra a opressão, pode-se reconhecer a resistência do escritor afro-descendente contra as formas de descriminação racial. Na obra de Solano Trindade, por exemplo, há a cobrança por um reconhecimento, na tentativa de visibilizar e re-apresentar esta categoria marginalizada. A escrita negra faz exatamente isto: rasura a identidade mumificada pela negação e faz emergir um “eu” que reivindica sua voz e seu lugar de agente de/no processo histórico.

Ter consciência de si mesmo é o processo necessário para que o negro efetivamente construa sua identidade. Ou seja, através da conscientização o afro-descendente pode negar os símbolos de estereotipias que foram anexadas a sua real imagem. Na poética é possível verificar o comprometimento do “eu” negro com sua própria identidade como pessoa, aceitando-se e assumindo a própria cor.

Solano Trindade, em diversos momentos, faz menção à tentativa da literatura canônica de “dilaceração” da produção do autor afro-brasileiro. A presença do opressor é, desta forma, constante em “Canto dos Palmares” e as armas são diversas: dinheiro, flechas, os ideais de escravagismo, o sadismo... Mas, a arte poética mostra-se superior a estas formas coercitivas: “...eu os faço correr”. O sangue foi derramado, amadas foram mortas, canta o eu lírico. No entanto, ressalta-se por diversas vezes “Ainda sou poeta e meu poema/ levanta os meus irmãos”. Reiterando, a resistência é marca constante na obra deste poeta pernambucano.

A poesia configura-se como uma oportunidade histórica para se aclamar a negritude, uma negritude que resistiu às diversas formas de coerção, e que agora, incendeia-se para o mundo, consumindo as imagens de negro mau, primitivo, submisso, invisível... Fica no leitor a visão de uma uma brecha por onde o afro-descendente pode atravessar e mostrar-se ao mundo, obrigar-se a ser visto e ouvido: a poesia. A obra de Trindade adquire este sentido e o eu lírico busca transformar o seu status social através do discurso poético. Roger Toumson, em “La littérature antillaise d’expression française”, define essa crise da consciência do sujeito dominado que exige a voz da seguinte forma: “Sua enunciação tem por objetivo arrancá-lo do nada em que a opressão o manteve por tão longo tempo, testemunhar sua presença no mundo e sua verdadeira experiência da história. Polêmico, o discurso afro-antilhano se propõe a restabelecer uma verdade até então deliberadamente abafada” (Bernd 1988: 29).

O olhar do eu lírico nas poesias de Trindade, assim, reconstrói a trajetória do homem, apreendendo um outro sentido nas “mercadorias humanas” trazidas da África, como se pode verificar no poema abaixo:

Lá vem o navio negreiro
Lá vem sobre o mar
Lá vem o navio negreiro
Vamos minha gente olhar...
Lá vem o navio negreiro
Por água brasiliana
Lá vem o navio negreiro
Trazendo carga humana...
Lá vem o navio negreiro
Cheio de melancolia
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de poesia...
Lá vem o navio negreiro
Com carga de resistência
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de inteligência...
(Trindade 1961: 44)

O poeta inicia uma luta pelo reconhecimento da história dos marginalizados, no entanto, convoca o povo para que se junte a ele, para que redescubra as verdades sufocadas pelo preconceito. Para isso, mergulha sem medo no passado histórico e encontra neste mergulho não múmias marcadas pelas ferrugens de um cárcere, ou por pedras de muralhas, mas o ser humano. E ao buscar o humano, ao invés de carga ou mercadoria a ser vendida, o poeta denuncia uma situação política e social que ainda não fora extinta: o afro-descendente continua psicológica e economicamente escravo, oprimido, sem chances reais de alcançar melhores condições de existência humana. Desta forma, é necessário retornar ao passado, visualizar o navio negreiro e perceber o que está contido neste símbolo que até então marcara a dor, o desenraizamento, o apagamento. E a primeira descoberta de Trindade é que neste navio havia carga humana: “Lá vem o navio negreiro/ Trazendo carga humana”. No entanto, o adjetivo “carga” é utilizado com um sentindo deliberadamente pejorativo, referindo-se à condição do transporte de escravo. Por isso, ele convoca todos para que olhem o navio, que redescubram o conteúdo destas embarcações: o negro e sua possível humanidade.

Logo à primeira leitura, o poema chama a atenção para o aspecto visual. A figura do navio negreiro se impõe ao leitor desde o início, como um objeto que deve ser observado: “Vamos minha gente olhar....” Ele é visualizado durante todo o poema, situado no espaço, apresentado por sua função geral (trazer carga humana), o interior do meio de transporte (“cheio de melancolia/ cheio de poesia”) e o interior de seus passageiros: a resistência e a inteligência.

A primeira referência do poeta em relação ao navio é o seu aspecto externo. Através deste ponto de vista destaca-se, no navio, a função de transporte de escravos; em seguida, é captado seu interior e os seres nele transportados. Sobressai a integração dos diferentes ângulos deste mesmo objeto, que se une numa idéia geral de resistência e inteligência. A última palavra, que finaliza o poema harmoniza-se com o vocábulo resistência. A inteligência é símbolo do homem que pensa, que resiste à condição de besta de carga. Por isso, a ausência de ponto final no poema é significativa para demonstrar uma luta iniciada, deixando uma ideia de continuidade.

O efeito geral do poema é de um quadro, mas um quadro que se movimenta de acordo como o olhar do poeta conduzindo o do leitor. Desta forma, é compreensível a insistência nos fonemas [m] e [n] devido o valor expressivo que possuem dentro do poema. Ao reiterar estes fonemas, assim como a frase “Lá vem o navio negreiro”, realiza uma operação ondeante que aproxima o movimento do poema ao movimento do mar. A repetição insiste no retorno, no olhar novamente. Mas, além disso, insiste no prosseguir, num novo passo, ou numa nova visão sobre o objeto que apresenta conteúdos que se diferenciam a cada olhar: carga humana, melancolia, poesia, resistência e inteligência. Cada novo verso equivale a um retorno, a uma retomada do olhar a partir de um ângulo novo sobre o mesmo navio, justapondo-se as faces deste objeto como um recomeço sempre nascente da percepção, até completar-se a imagem real do objeto: um navio que transporta pessoas que sofrem, sentem, se indignam e agem com discernimento.

Nota-se, pois, uma atração do apelo musical que parece vir do mar, do marulho das águas, do som sempre recomeçado das ondas, cujo movimento repetitivo vem representado pela reiteração do verso “Lá vem o navio negreiro”. Além disso, não se pode deixar de perceber a relação entre a música e a poesia, assim como o seu vínculo com a natureza, com a simplicidade.

O paralelismo traz de volta a frase de convocação, ao lado dos outros versos, todos livres, sem qualquer pontuação a não ser o ponto final da quadra. Esta liberdade permite classificar as quadras, do ponto de vista sintático, como uma construção paratática, ou seja, é composta por orações coordenadas absolutas, livres, sem qualquer vínculo conjuntivo ou mesmo sinal de pontuação.

O ritmo, apoiado pela construção paralelística, vincula os versos fazendo ondular, ao mesmo tempo, as ondas do mar e a subjetividade do sujeito que olha, mas, retoma o olhar, no desejo de partilhar a sua visão. As construções verbais, feitas com palavras corriqueiras e repetitivas, em ritmo encantatório, servem para mobilizar alguns elementos temáticos. São motivos tomados do espaço natural (o mar, a água) ou da interioridade humana (melancolia, resistência, inteligência).

A mobilidade fortifica o ritmo que, no poema, passa a ideia de retorno à origem (o verso e a unidade rítmica é uma forma de voltar). Ao mesmo tempo, o navio avança (sempre mais próximo do receptor, desnudando-se, mostrando-se internamente). Com um ritmo tão marcado, tão repisado, o poema parece preparar o leitor para uma dissolução da consciência.

Isto faz com que o poema se assemelhe a certas formas de músicas primitivas, de rítmica rebatida e incisiva, como é o caso, por exemplo, da música dos cultos afro-brasileiros e/ou da poesia lírica medieval. Verifica-se, no poema, a mesma força hipnótica da música popular. No movimento incessante do navio negreiro, um novo ponto de vista vai se revelando. O navio negreiro que se movimenta por águas brasileiras traz sim o sofrimento, a dor, a melancolia; mas, nesse passado de revolta, de exploração, de desaculturação, o poeta encontra a fonte de uma poesia de denúncia: denúncia de um passado de violência, denúncia de um presente de repressão camuflada.

Neste poema que imita o movimento do mar (retorno e avanço) o eu lírico retorna à época de tráfico de escravos. É o retorno necessário para a fonte da poesia e para sugerir um re-olhar. O navio negreiro não representa apenas a embarcação de transporte de carga para o trabalho escravo, perpetuando uma história de humilhação. Se olhado novamente, pode-se reconhecer no navio negreiro o expoente de resistência. O eu lírico, assim, convoca “sua gente” a se auto-reciclar, a se autodescobrir. E deste descobrimento, percebe-se que o navio negreiro trazia uma carga “cheinha de inteligência”, cheinha de história a ser contada, a ser retomada. No entanto, a inteligência a que se refere o eu lírico não é a inteligência racionalista e unilateral, mas, a inteligência ancorada em outros saberes e registros. A prova é que a história é para ser contada e não para ser imposta por leis da grafia.

A poética de Solano Trindade, como se pode perceber, torna-se uma convocação contra as diversas formas de opressão sofridas pelo afro-descendente. Além disso, expressa um convite para o ingresso a um outro universo de sentido, outra forma de apreender, significar e organizar o espaço/mundo. Em sua obra, busca o re-conhecimento do negro e propõe um olhar novamente. Para alcançar este re-conhecimento explicita a diferença entre cada pessoa. Uma diferença expressa nas palavras de Fanon: “Por que não a tentativa simples de tocar o outro, de sentir o outro, de explicar o outro a mim mesmo?... Na conclusão deste estudo, quero que o mundo reconheça, comigo, a porta aberta de cada consciência” (1983: 177).

Nas palavras acima se observa a despersonalização imposta pelo sistema colonial, fechado em seu narcisismo, reconhecendo apenas a sua imagem e negando o diferente. É preciso, no entanto, re-olhar o “outro” que se apresenta como o diferente, que mostra sua subjetividade. Ao olhar novamente o “outro”, pode-se reconhecer “a porta aberta de cada consciência”, a individualidade de cada agente social que detém um saber resultante de uma experiência. O poema aponta para a necessidade de olhar novamente a história desse povo tantas vezes ignorado e que tem muito a revelar. Por isso, em outro poema, “Canto da América”, o poeta pede que a América cante a verdadeira história, não a versão da supremacia de uns em detrimento dos outros, mas sim, o canto da liberdade.

Desta forma, reconhece-se, na obra de Solano Trindade, a resistência às formas de marginalização, valorizando a voz negra e, ao mesmo tempo, identificando-se com os oprimidos, sejam negros ou brancos. Este aspecto da poesia de Trindade pode ser reconhecido no poema “Cantiga”, onde é possível verificar a necessidade de o negro identificar-se com a Negritude a fim de dar valor a si mesmo e à sua produção cultural. Pois, a negritude – como tomada de consciência da descriminação e a busca de uma identidade negra - permite que o negro volte a ter orgulho do patrimônio africano que foi perdido no transporte para a América. Desta forma, no poema, ele assume com orgulho: “Negro bom que sou / que bom / Como noite sem lua sou / Negro bom! / ...que bom!”. O eu lírico sente-se feliz em ser negro e encontra o lado positivo dessa negritude, assumindo-se plenamente, como uma noite sem lua, totalmente escura, mas cuja presença ou ausência já não pode ser ignorada.

No desejo de transmitir as mensagens escondidas, ignoradas pela mentalidade vigente, forma-se a alma de poeta social. Assim, é com orgulho que ele também assumirá: “Poeta e negro sou”. Num processo de pleno acolhimento de si mesmo, o eu lírico reconhece-se como poeta, mas como um poeta negro, que não tem vergonha de enunciar-se como tal. Há, porém,uma procura de não se fechar em si mesmo e, por isso, a voz no poema declara que qualquer cor serve para a sua obra poética, para o assumir-se como pessoa capaz de amar o outro independente da cor da pele. Assim, de forma prognóstica o eu lírico conta que num mundo de igualdade, a cor não terá importância, não diferenciará as pessoas e nele servirá, portanto, qualquer cor. E quando este tempo chegar: “Que bom! / ... que bom!”

Há no poema um efeito admirável, pois Trindade aproveita-se dos valores fônicos, criando uma orquestração onomatopeica que traduz o som do batuque e simboliza também a intensidade do desejo do eu lírico em ver os homens unidos, ao mesmo tempo em que aponta para um fluxo vital de recuperação, recriação e reinterpretação de valores fundamentais para a afirmação da individualidade e da coletividade do afro-descendente.

Desenham-se contornos mais coerentes com as verdadeiras raízes históricas e culturais do Brasil. O negro passa por um processo em que ele descobre a própria história perdida e, nesta história, logrou preservar, reelaborar e sustentar sua cultura e desdobrar a herança africana. Com isso, Trindade restabelece em suas poesias uma identidade humanizada. É necessário, desta forma, reconhecer a particularidade de cada cultura, pois, ela faz parte do processo de afirmação do ser humano como agente social no mundo. Desta forma, o poeta imprime ao longo de sua obra o desejo de um projeto integrador de todas as culturas, sem perder de vista o reconhecimento da particularidade de assumir-se, como fica evidente no poema “Sou negro”.

Nesse poema, ele se refere à História, mas do ponto de vista de quem recupera a escravidão como condição de vida e não através da visão do senhor de engenho. É preciso destacar, igualmente, o valor da oralidade na literatura trindadiana: “Contaram-me que meus avós vieram de Loanda/ como mercadoria de baixo preço”. É a herança africana que não se perdeu totalmente.

O poeta, assim sendo, conta a história de seu povo, que também é sua: ele é negro, é descendente de africanos e herdeiro do som dos “tambores/ atabaques, gonguês e agogôs”. Todos estes instrumentos ligando o negro-escravo à sua terra origem, a África. O ritmo do tambor, ritmo de vida, torna mais estrondosa a voz de Trindade proporcionando um som forte, já que a obra do poeta deve alcançar outros ouvidos. O som dos instrumentos que ficam na alma do poeta atravessa o espaço, leva a mensagem de união entre os povos, o ritmo da fraternidade.

Pode-se perceber, ainda, que o eu lírico relata sobre a exportação forçada de homens para serem escravos, vendidos como mercadoria. O trabalho do negro para enriquecimento do senhor novo também não é esquecido: “plantaram cana pra senhor de engenho novo”. Mas, apesar de toda exploração humana, apesar de distantes do país de origem, os negros fundaram o primeiro Maracatu, uma dança dramática afrobrasileira.

O ritmo novo do povo negro resistiria em terra brasileira.

No avô, o eu poético destaca o reconhecimento da não alienação do homem negro, refutando a ideia de escravos totalmente submissos e até felizes em servir. De certa forma, o estereótipo do pai João foi construído na tentativa de encobrir esta luta negra pela liberdade. Mas Trindade une a imagem do avô à imagem de Zumbi, referencial de conscientização e resistência.

Sabe-se que a mulher negra e escrava, no período colonial, foi símbolo do mais baixo nível de poder e vontade própria. No entanto, a avó retratada pelo eu lírico também desmente esta visão de submissão. Sua atuação na guerra dos Malês, obscurecida pela oficialidade vigente, é exemplar para se perceber o papel de mulher consciente, guerreira, altiva, sofrida, e que nem todas as mulheres negras foram mucamas passivas.

Com uma história de luta, de resistência, de exemplos a serem seguidos, na alma do eu lírico fica não a marca do escravo, para sempre escravo, mas elementos simbólicos de sua origem, de sua identidade como homem negro: “o samba, o batuque e o desejo de libertação”.

No poema “Sou Negro” é possível perceber como o eu lírico rejeita a idéia de um negro servil, mas destaca e deposita na imagem dos avós o empenho em conquistar a humanização, a identidade apagada pela história, o desejo de serem livres. Através do conhecimento do passado o negro conhece a si mesmo e a sua cultura e, por isso, a cor da pele deixa de ser motivo de desonra e ele pode assumir com “Orgulho”:

Sou filho de escravo
Tronco
senzala
chicote
gritos
choros
gemidos
Sou filho de escravo
(Trindade 1961: 43)

Bernd afirma que a marca registrada da poesia de Solano Trindade é a “obsessão da reconstituição histórica” (1988: 89). Esta reconstituição do passado negro do ponto de vista de quem sofreu os efeitos da História tornou-se uma importante ferramenta para a sua produção, ao mesmo tempo que trazia o propósito de, ressignificando a História, valorizar aqueles a quem foram impostas as mais duras experiências. Através da reconstituição do passado, este homem passaria a ter um “espelho” no qual ele poderia reconhecer a sua cultura, assumindo um orgulho pelo passado africano que se perdeu com a chegada na América. A história de escravidão, desta forma, não o envergonha mais, ao contrário serve-lhe como arsenal de experiências e ele aprende, afinal, a se olhar como sujeito e reconstrói-se como homem. Assim, pode-se entender o reconhecimento: sou filho de escravo, fui violentado humana e historicamente, mas a humanização resistiu em mim e querendo ou não, faço parte desta sociedade. O eu poético primeiramente olha para si próprio e é este olhar que permite a identificação com a cultura, com a etnia e, por fim, com o continente em que está inserido.

Pode-se verificar, no projeto de Trindade, a necessidade de aceitação da participação histórica de todas as culturas, ou seja, a luta pelo fim do maniqueismo branco/negro, num processo essencial para o reconhecimento do Ser Humano que existe em cada ser. Teve, no entanto, que passar pelo olhar europeu sobre as culturas africanas para redescobrir-se e, a partir daí, com voz poética, recusar ser um tipo, para ser negro e homem. O resultado deste processo de reconhecimento pode ser notado em seu poema “Negros”:

Negros que escravizam
e vendem negro na África
não são meus irmãos
negros senhores na América
a serviço do capital
não são meus irmãos
negros opressores
em qualquer parte do mundo
não são meus irmãos
Só os negros oprimidos
escravizados
em luta pela liberdade
são meus irmãos
Para estes tenho um poema grande como o Nilo.
(Trindade 1981: 15)

A escolha do tema negro, além de encontrar-se em consonância com os ideais que o poeta defendeu, é um dos exemplos mais explícitos do processo de desumanização que se delineia ao longo da história oficial.

Na primeira estrofe do poema, com uma economia de recursos irretocável, o eu lírico traz para a sua poesia o passado. Assim, os dois primeiros versos dão conta de três séculos de escravidão na América. Há que se destacar que os dois verbos que indicam esse processo de exploração da força física do outro – “escravizam” e “vendem” – apontam como sujeitos os próprios negros. Fica evidente já nesta primeira estrofe a lucidez e o olhar isento do poeta quando identifica alguns negros com o senhor de escravos; negros servindo um sistema que, ao escravizar, desumanizou e transformou o homem negro em mercadoria a ser vendida e explorada.

Na segunda estrofe há um passado mais recente. O colonialismo cede lugar a outro tipo de exploração humana: o capitalismo. Os agentes são os mesmos: negros. Não se enfoca, porém, o negro operário, mas sim “negros senhores na América”. A crítica que se pode abstrair é que os próprios negros serviram a mercantilização do homem, favorecendo a exploração do trabalho humano a preços baixos. A desumanidade do sistema colonial é substituída pela desumanidade do sistema capitalista.

Na estrofe que se segue, o poeta sai do particular para alcançar uma visão universal da exploração e da opressão sócio-política do trabalhador. Através desta estrofe, há uma ligação de indivíduos oprimidos em qualquer parte do mundo. Os opressores novamente são alguns negros.

Ao longo das três primeiras estrofes, o poeta desmistifica a visão do negro vitimizado, identificando o negro ao senhor, ao capitalista e ao opressor. No entanto, ao final destas estrofes, a voz do eu lírico negará esses negros: “Não são meus irmãos”. É o gesto de recusa que se repete diante dos negros que servem às diversas formas de exploração. Tem-se, pois, ao final destas estrofes uma expressão direta e indignada.

O projeto de Solano Trindade consiste no amor incondicional pelo povo e pela vida, e na confiança no progresso da humanidade. Assim sendo, há no poeta uma íntima adesão aos problemas próprios de sua época, criticando a desumanidade da vida capitalista.

Em “Negros”, o poeta condena algumas atitudes individualistas que impedem o ser humano de se identificar consigo mesmo e com os outros. O poema é ordenado de modo a revelar a relação entre opressores e oprimidos, como consequência óbvia da superioridade de força de uns sobre os outros. No entanto, faz-se necessário replicar com uma indignação genuína: “Não são meus irmãos”. O eu lírico propõe uma ruptura com todos os negros que operam no nível da opressão humana, separando os negros (senhor, capitalista, explorador), dos negros (escravo, operário, explorado).

A quarta estrofe é iniciada com o advérbio “só”, com a finalidade de delimitar a relação com os homens negros do mundo, mas moldando esta relação de acordo com as as convicções marxistas do eu lírico: “só os negros oprimidos/ escravizados” que, como ele compartilham o mesmo ideal de liberdade, são seus irmãos. Esta identificação pode ser notada no uso do artigo “o” com um valor afetivo, aproximando o eu lírico destes negros que representam seu projeto de irmandade. Este desejo de que todos os homens sejam livres fica expresso no terceiro verso da quarta estrofe: “em luta pela liberdade”.

A liberdade que o poeta expressa vai além da condição de não ser mais escravo no sistema colonial. A liberdade expressa no poema é o uso dos direitos de homem livre e, principalmente, a condição de igualdade. No último verso da quarta estrofe, porém, a ideia de recusa expressa no advérbio “não” desaparece e o eu lírico reconhece os oprimidos e escravizados: “São meus irmãos”.

Esta identificação com o oprimido constitui uma das bases temáticas de Trindade, afastando-se momentaneamente do foco de afirmação do “ser negro”, a fim de buscar matizes universais. A opressão, desta forma, é o denominador comum de luta para os homens, brancos ou negros. E para estes homens, ligados ao eu lírico por um laço de irmandade, há um presente, que é também uma arma, um poema grande como o Nilo, rio extremamente simbólico para os africanos.

Ao longo do poema, desmistifica-se o estereótipo sociológico. Mussa define o estereótipo sociológico como a observação do comportamento do negro em relação ao branco: o negro bom e o negro ruim (1989: 24). A relação é excludente, ou o negro é fiel, submisso, ou é selvagem, fujão, vingativo, perigoso para a sociedade. O estereótipo sociológico se configura com uma grande violência, pois retira do negro a humanidade, marmorizando-o em uma pedra de apenas uma dimensão, (ou bondade, ou maldade) esquecendo que o ser humano é um ser contraditório, complexo, e que traz em si ambos sentimentos. É esta a verdadeira dialética da realidade humana que o poeta apresenta no poema “Negros”.

A negação, (não são meus irmãos), encontrada ao longo do poema, torna-se essencial para a compreensão do processo de humanização: o espírito negador transcende a indiferença narcísica. Ao negar, o eu lírico, que se identifica com o excluído, impõe a identidade destes marginalizados, desestruturando a forma fixa de ser visto.

Através da leitura do poema fica patente que o negro não foi apenas vítima e que serviu ao opressor. Assim fazendo, o poeta descongela as estereotipias em que foi plasmada a figura do negro. Como bem expressa Lacan, o “outro é uma matriz de dupla entrada” (Bhabha 1998: 87). Ou seja, o ser humano é ambíguo, antagônico em seus desejos e, por isso, jamais homogeneizado, fixo.

A leitura do poema revela, pois, uma crítica à obsessiva reconstituição de uma identidade supostamente estável, fixa, imobilizada como uma fotografia. A dinamicidade complexa é que deveria constituir o jogo necessário para uma distinção entre alteridade e diferença, uma vez que a cultura pós-colonial supõe extirpar as raízes únicas e deixar aflorarem as estratégias alternativas de representação para articular as diferenças históricas e os valores em construção. Através da explicitação da diferença entre os negros (irmãos e não-irmãos), recupera-se uma ordem identitária de representações ethoetnoculturais que expressam uma matriz contaminada pelo processo de assimilação colonial, mas possibilitando a afirmação da alteridade na diferença, cujo paradigma foi aberto por Frantz Fanon, Aimé Césaire e Léopold Senghor, como resposta identitária étnica ao excludente universalismo colonialista.

Através do poema “Negros”, o poeta evidencia que é necessário visualizar a diferença, a identidade heterogênica, a fim de perceber o entre-lugar da subjetividade pós-colonial, em que se evidencia a permanência do outro, a falta, a perda, a não coincidência dos sujeitos. Ao apresentar o negro em sua diferença, o poeta explicita o fato de o próprio negro optar por sua subjetividade, ou seja, ele escolhe servir ao opressor ou unir-se ao negro oprimido. Essa opção é o caminho e o meio para que o Negro se manifeste como um ser humanizado, desvelando-se e opondo suas várias faces diante da imagem fixa, estereotipada. No poema o eu lírico rejeita o olhar maniqueísta presente nas estereotipias na qual o negro era a vítima, ou o negro bestial, o selvagem fadado à extinção. Desta maneira o projeto poético de Solano Trindade se concretiza, ou seja, ele concede a sua ARMA poética um caráter humanizador.
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Obras citadas
ARAÚJO, Ari. 1986. “Por um pensamento negro-brasileiro; a reversibilidade do espelho”. Estudos afro-asiáticos (Rio de Janeiro) 12 (ago.): 63-79.
BERND, Zilá. 1988. Introdução à Literatura negra. São Paulo: Brasiliense.
BHABHA, Homi. 1998. O local da cultura. Tradução de Myrian Ávila et al. Belo Horizonte: Editora da UFMG.
FANON, Franz. 1983. Pele negra, máscara branca. Tradução de Adriano Caldas. Rio de Janeiro: Fator.
FONSECA, Maria Nazareth Soares, org. 2000. Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica.
GIACOMINI, Sônia Maria. 1988. Mulher e escrava: uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no Brasil. Petrópolis: Vozes.
MUSSA, Alberto Baeta Neves. 1989. “Estereótipos de negro na literatura brasileira: sistema e motivação histórica”. Estudos Afro-asiáticos (Rio de Janeiro) 16 (jan.-jun.): 70-87.
TRINDADE, Solano. 1944. Poemas de uma vida simples. Rio de Janeiro: [s.e.].
——. 1961. Cantares ao meu povo. São Paulo: Fulgor, 1961.
——. 1988. Tem gente com fome e outros poemas. Rio de Janeiro: Departamento Geral da Imprensa Oficial, 1988.


Fontes:
Revista de Estudos Literários Terra roxa e outras terras. volume 17-A . Londrina; UEL, dez. 2009

Imagem = Rede Cultura

Machado de Assis (Análise dos Contos de “Várias Histórias”: 2. Entre Santos)


analise realizada pelo Prof. Bartolomeu Amâncio da Silva. Bacharelado em Letras, pela USP , professor de literatura da rede Objetivo (colégios e cursos pré-vestibular).
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O conto Entre Santos, de Machado de Assis, trata-se de uma narrativa dentro de outra narrativa, que em determinado momento dá caminho para mais outra. Um discreto narrador em terceira pessoa abre, já no primeiro parágrafo, espaço para um narrador em primeira pessoa, testemunha de um acontecimento surpreendente.

Enquanto era capelão na igreja de São Francisco de Paula, pôde surpreender, numa noite, o diálogo entre santos que durante o dia eram estátuas no templo. Discutiam o caráter humano, deslindado nas pessoas que vinham rezar diante deles. S. João Batista e S. Francisco de Paula eram os autores dos comentários mais ácidos em relação ao gênero humano. Um deles faz questão de lembrar uma adúltera que vinha pedir ajuda para se afastar de tal relacionamento, mas que, enquanto orava, rememorava momentos ardorosos, o que diminuía a fé a ponto de fazê-la abandonar o recinto sem nem mesmo completar seu pedido. Tudo isso se contrapõe aos comentários de São Francisco de Sales.

Para reforçar a sua teoria de que não se deve perder a esperança no ser humano, conta a história de um avaro que cai no desespero quando sua esposa desenvolve erisipela (doença que se manifesta pela inflamação da pele). Apesar de o pensamento corrente de que a sua agonia seria provocada pelo receio de despesas funerárias, na verdade é movido por amor. E para conseguir a graça da salvação, pede a intermediação do narrador divino, oferecendo em troca uma perna de cera. No entanto, seu raciocínio rápido se transfere para a idéia da moeda que iria custar tal artefato. Passa então a pensar em pagar em espécie mesmo. Mas, sovina como era, tal contribuição seria por demais custosa. Apesar disso, é uma opinião que não chega a formular por completo, deixando-a no limbo de sua mente. Até que salta para um postulado um tanto cômodo: acredita, iludindo-se convenientemente, que o espiritual é mais importante do que o material, por isso se propõe a, no lugar da moeda, rezar 300 padres-nossos. Nesse ponto, o seu caráter materialista entranha-se com o espiritualista, pois imagina ser muito mais lucrativo rezar 300 padres-nossos e 300 ave-marias. De 300 passa para 1000, mas, ao invés de expressar e, portanto, efetuar sua promessa, perde-se, maravilhado, diante de cifra tão alta.

Note nesse conto o esquema da narrativa. Um narrador lembra uma história que foi contada por um padre e que acaba relatando a história narrada por um santo. Essa trama dentro de trama lembra um outro tipo de texto que também usava esse mesmo procedimento e que também apresentava histórias mirabolantes: As Mil e Uma Noites.

Repare também a postura dos santos, que se assemelha à de Machado de Assis, na medida em que são devassadores da alma humana. Tal atividade inspira ou o descrédito próximo da impaciência diante de nossas fraquezas, assim como uma atitude de tolerância misturada com esperança. Pode-se acreditar que Machado tenha, em sua carreira, assumido um pouco das duas. Finalmente, observe como o conto consegue apresentar o caráter dilemático da mente humana pela maneira como o avaro lida com sua promessa. Mostra extremo materialismo ao entregar-se ao fervor espiritualista, conseguindo, talvez cínica, talvez inconscientemente, conciliar esses opostos.
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Continua… análise do conto "Uns Braços"
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Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/v/varias_historias

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.105)

Trova em Sala de Aula
Uma Trova Nacional

Ao perder-se um grande amor
o coração dá um brado:
– Por favor, tire essa dor!
Oh, pranto! Fique calado!!!
(JOSÉ FELDMAN/PR)

Uma Trova Potiguar

Palhaço, visão querida,
dos meus tempos de criança...
velha saudade escondida,
no meu baú de lembrança!
(HELVÉCIO BARROS/RN)

Uma Trova Premiada

2009 > Cantagalo/RJ
Tema > SERTÃO > Vencedora

É na choupana esquecida
num cafundó no sertão,
que, em meio à terra batida,
também bate a solidão...
(EDMAR JAPIASSÚ MAIA/RJ)

Simplesmente Poesia

– Graça Graúna/RN –
ESCRITURA FERIDA

(à Florbela Espanca)

Atiram mil pedras
na charneca em flor.

Ossos do ofício:
no mais fundo do poço
retirar o poema
encharcado de mágoas.

Uma Trova de Ademar

Em dois países dei fé...
Cinco tesouros num só!
São: Maradona e Pelé,
lambada, tango e forró!...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Amargando a longa ausência,
a saudade aperta assim,
que a saudade é reticência
de um amor que não tem fim.
(ELTON CARVALHO/RJ)

Estrofe do Dia

Coisa tão simples... Deus cria,
dá de graça a qualquer pobre,
mas nenhum gênio descobre
os mistérios da poesia;
filha da noite e do dia,
tem luz de estrela e luar;
percorre os caminhos do ar
e nos bafeja; entretanto,
poesia vem de algum canto
que eu nunca soube explicar.
(JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN)

Soneto do Dia

– Otávio Venturelli/RJ –
NOITES DE FRIO.

Nos dias gelados do inverno na serra
o frio recita o Poema da geada,
a grama se veste de branco, enfeitada,
e o vento da noite segredos encerra.

A lua, pisando de leve na terra,
Invade a janela de vidros fechada,
a conta das horas de insônia não erra,
e as dores mantêm a minha alma acordada.

Imagens passeiam em minha memória,
são mágoas retidas ao curso da história,
vividas, sofridas e amadas em vão...

Então me levanto, e afastando a tristeza
acendo o meu quarto, e essa lâmpada acesa
apaga a saudade no meu coração!

Fonte:
Ademar Macedo

domingo, 23 de janeiro de 2011

Lendas Indígenas



O guaraná para o homem civilizado significa apenas uma simples bebida. Muitos o chamam até de boke-moko. Mas para os índios do vale dos rios Andirá e Maués (AM), tinha valor de um precioso tesouro. Servia de alimento e remédio. Como o bago do guaraná é parecido com o olho humano, surgiu a lenda que correu de boca em boca por toda a região amazônica.

Outrora, vivia na selva um casal de índios muito estimado pela tribo. Apesar da felicidade que o unia, faltava-lhe um filho para ser completamente feliz. Tupã (Deus supremo) com pena, deu ao casal um menino que logo passou a ser adorado pelos indígenas.

Um dia, Jurupari, o invejoso gênio do mal, ao ver o indiozinho brincando com os animais, ficou furioso, transformando-se numa grande cobra. Os animais, quando o notaram, fugiram apavorados. O garoto continuou na floresta sem perceber a presença do invisível Jurupari que mordeu o menino, matando-o imediatamente.

A tribo ficou aos prantos. De repente, um raio interrompeu as lágrimas. Em seguida, fez-se silêncio. Só a mãe do pequeno entendera o sinal:

— Tupã deseja que plantemos os olhos do meu filho. Deles brotarão uma planta milagrosa que dará muitos frutos e nos farão felizes para sempre!

Os índios enterraram os olhos da criança. Pouco depois, surgia o guaraná. Guará, na língua indígena significa o que tem vida, gente; e ná, igual, semelhante. A palavra guaraná, assim traduzida, quer dizer bagos iguais a olho de gente.

Fenômenos da natureza sempre atraíram a atenção dos indígenas que procuraram dar, a seu modo, as mais diversas interpretações, surgindo, assim, inúmeras lendas.

Os índios Cauaiua-Parintins, do Vale do Rio Madeira, contam uma história ingênua sobre o aparecimento da noite, mostrando o alto grau imaginativo do silvícola brasileiro.

Um velho querendo dormir perguntou à coruja:

— Como é que a gente dorme?

A coruja respondeu-lhe que só ela conhecia a noite e se ele a quisesse teria de arranjar-lhe milho preto.

O velho trouxe o milho preto, colocou-o numa cabaça e levou à coruja.

Esta, ao recebê-la, tratou de tapar a boca da vasilha com barro e cantou:

Nós andamos a noite toda, caçando
E de dia dormimos
Tu já viste coruja de dia?
Mas tu dormirás durante a noite
Acordarás de madrugada
E trabalharás todo o dia.

Quando acabou de cantar a cabaça partiu e a noite apareceu.

Cinco Cauaiua-Parintins foram viajar por terras desconhecidas. Iam munidos de arco e flechas, um atrás do outro.

Ao chegarem à beira de um lago, pararam para descansar. Um deles resolveu separar-se do grupo para ver como era a noite. Armou a rede e dormiu profundamente. No dia seguinte, os companheiros foram chamá-lo e lá estava ele morto no fundo da rede.

Os companheiros falaram:

— Bem feito. E continuaram a viagem.

Mais adiante viram uma árvore alta e ouviram vozes de mulheres banhando-se no porto e o toque-toque de pica-pau, mordendo o tronco de uma árvore.

Um dos companheiros disse:

— Ninguém deve espiar as mulheres e os pica-paus. Vamos de cabeça baixa, em fila.

Um deles quis espiar o pica-pau e as mulheres. Os outros continuaram andando. De repente, a árvore grande caiu em cima do curioso.

Os companheiros ouviram os gritos, entendendo o que acontecera.

— Bem feito, comentaram.

E continuaram a viagem. Mais à frente, ouviram o inhambu cantar. Um deles falou:

— Ninguém deve espiar o inhambu cantar.

O homem foi espiar e acabou ficando doido. Andava desnorteado de um lado para o outro até que morreu. O corpo dele ficou seco e de baixo da pele lhe saía um pó esbranquiçado, como o que tem a pele do inhambu.

— Bem feito, concluíram os outros.

A essa altura só havia dois Cauaiua-Parintins. Eles andavam sem parar, durante todo o dia.

À tardinha um disse:

Vamos buscar bastante lenha para fazer uma boa fogueira para espantar os bichos que este lugar deve ter. Foram para o mato. Mas apenas um trouxe paus para a fogueira. O outro só apanhou ramos e gravetos. Não queria fogueira grande porque fazia muito calor e ele queria ver como eram os morcegos do local.

O outro deitou-se sozinho, bem perto de uma grande fogueira.

Mais tarde vieram muitos morcegos-grandes. Apagaram o fogo e chuparam o sangue do pescoço do curioso.

No dia seguinte, bem cedo, o companheiro foi chamar o amigo, encontrando-o morto. Então, voltou sozinho para sua maloca.

Para esses índios, os curiosos deveriam morrer.

Havia três irmãos: dois solteiros e um casado, contam os índios makuchys, do território de Rio Branco, atual Roraima. Daqueles dois, um era feio e o outro, bonito. O casado e o bonito não gostavam do feio, sendo que o segundo procurava a todo custo matar o irmão feio. Em determinada ocasião, aguçou um pau, apontou-o bem e depois de preparar um plano, chamou o feio.

— Meu mano, vamos apanhar urucu (substância de tinta) para pintar nosso corpo?

— Vamos, respondeu o outro.

Eles foram ao urucueiro e o bonito falou:

— Sobe para apanhar urucu para nós.

O feio subiu e o irmão matou-o com o pau. Cortou as pernas, deixou o cadáver e foi embora.

Logo depois chegava a cunhada.

— Como estás, meu cunhado?

— Como hei de estar? Bem.

— Como está o outro meu cunhado?

— Está lá fora, passeando.

— Ah! Pode ser.

A cunhada indo passear atrás da casa, achou o corpo com as pernas cortadas e separadas.

Em seguida, apareceu o irmão bonito.

— Para que me servem estas pernas cortadas? Para nada. Agora só estão boas para os peixes comerem.

O irmão pegou as pernas e as colocou no rio. Elas viraram surubim (peixe). O corpo ficou na terra, mas a alma subiu ao céu. Chegando lá transformou-se em estrela. O corpo ficou no centro e as pernas postas uma de cada lado. O irmão assassino, por sua vez, transformou-se na estrela Caiuanon (Vênus) e o irmão casa na estrela Itenha (Sírius). Ficaram os dois fronteiros ao irmão morto por castigo, a fim de serem obrigados a olharem sempre o irmão.

Assim nasceu Vênus e Sírius.

Segundo os índios Tucuna e Uitoto (AM), antigamente havia um moço forte e bonito naquela região. Sua tia preparava o urucu para pintar os tucunas nos dias de festa de Moça-Nova.

O sobrinho partia a lenha para a fogueira, onde a velha punha a panela para ferver urucu.

A velha estava sempre aborrecida, pedindo ao sobrinho cada vez mais lenha. Um dia o rapaz trouxe muita muirapiranga (madeira parecida com o pau-brasil) e para acabar com aquele trabalho pediu a tia que o deixasse beber todo o urucu.

A velha pensando que ele morreria disse:

— Bebe, bebe logo.

O rapaz bebeu e foi ficando vermelho como o urucu e a muirapiranga. Depois subiu ao céu, meteu-se entre as nuvens, transformando-se no Sol, o índio vermelho.

Fonte:
Quatro séculos de lendas. Revista Petrobras, Rio de Janeiro, setembro/outubro de 1972.
Disponível em Jangada Brasil. Revista Almanaque. Abril 2010 - Ano XII - nº 135.

Fernando Sabino (A Mulher Vestida)



Eu estava num centro comercial de Copacabana e era sábado, pouco depois do meio-dia. Às tantas, comecei a ouvir uma martelação de ensurdecer. O dono de uma lojinha de sapatos para senhoras chegou-se à porta, assustado:

- Que será isso?

E saiu pelo corredor a investigar. Caminhávamos na mesma direção e logo descobrimos que o ruído vinha de uma sala fechada, um curso de ginástica. Batiam desesperadamente na porta, lá dentro - com um haltere, no mínimo.

- Que está acontecendo? - o sapateiro gritou do lado de cá.

Uma voz chorosa de mulher explicou que a porta estava trancada, que ela não podia sair.

- Quede a chave? - berrou o homem.

- O professor levou - respondeu a voz.

- Que professor?

- O professor de ginástica.

- Espere que eu vou buscar o zelador- arrematou o homem, solícito.

E se voltou para mim :

- O senhor podia fazer o favor de procurar o zelador para soltar a mulher? Não posso abandonar a minha loja sem ninguém.

Não tive outro jeito senão sair à procura do zelador.

Era delicado e solícito, mas infelizmente não podia fazer nada: não tinha a chave da sala.

Voltei ao corredor, vencendo a tentação de cair fora de uma vez, deixar que a mulher se arranjasse. A bateção recomeçara, ela parecia disposta a botar a porta abaixo:

- Abre essa porta! Pelo amor de Deus!

- Calma, minha senhora - berrei do lado de cá: - Vamos ver se a gente dá um jeito.

No corredor ia-se juntando gente, e várias sugestões eram aventadas: abrir um buraco na parede, chamar o Corpo de Bombeiros, retirá-la pela janela.

- Deve ser uma mulher forte.

- Eu se fosse ela aproveitava e quebrava tudo lá dentro.

Pensei em transferir a alguém mais a tarefa que o sapateiro me confiara, não encontrei ninguém que parecesse disposto a aceitar a responsabilidade: todos se limitavam a fazer comentários jocosos, estavam é se divertindo com o incidente. De súbito me ocorreu perguntar à mulher o número de telefone do professor. Foi um custo fazê-la cantar de lá a resposta, algarismo por algarismo.

Saí para a rua à procura de um telefone - tive de andar um quarteirão inteiro até uma farmácia, onde fiquei aguardando na fila. Chegou afinal a minha vez. Atendeu-me uma voz de criança, certamente filha do professor. Que ainda não havia chegado em casa, pelo que pude entender:

- Escuta, meu benzinho, diga para o papai que tem uma mulher trancada na sala lá do curso dele, está me entendendo? Repete comigo : uma mulher trancada...

Não havendo mais nada a fazer, resolvi tomar o caminho de casa - mas a curiosidade me arrastou mais uma vez até ao centro comercial.

O interesse conquistara todo o andar, espalhava-se aos demais, ganhava a rua : gente se acotovelava diante do prédio, agora era uma multidão de verdade que acompanhava os acontecimentos :

- Por que não arrombam a porta de uma vez?

- O que a mulher está fazendo lá dentro?

- Dizem que ela está nua.

A palavra mágica correu logo entre a multidão : nua, uma mulher nua! E cada vez juntava mais gente, ameaçando interromper o tráfego :

- Mulher nua! Mulher nua! - gritavam os moleques.

Dois soldados da polícia militar, passaram correndo, cassetete em riste, sem saber para onde se dirigir. A multidão se abriu, precavidamente. Um homem de ar decidido pedia licença e ia entrando pelo centro comercial adentro, como quem vai resolver o problema. Devia ser algum comissário de polícia.

Era o professor, que comparecia com a chave. Em pouco a porta do curso de ginástica se abriu e a mulher saiu, ressabiada - completamente vestida. Era baixinha e meia gorda, estava mesmo precisando de ginástica.

Fontes:
SABINO, Fernando, Deixa o Alfredo Falar. RJ: Record, 1976.
Imagem = http://www.plinn.com.br/

Carlos Drummond de Andrade (Poema das Sete Faces)


Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Fontes
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia. 1930.
Imagem = http://tk.files.storage.msn.com/

Carlos Drummond de Andrade (Análise do Poema das Sete Faces)


Publicado em seu primeiro livro, Alguma poesia, de 1930, no Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade, o poeta retoma a passagem bíblica referente à morte de Cristo. Ele fala de vários assuntos: da infância, do desejo sexual desenfreado dos homens, questiona sobre o seu próprio eu e faz uma cobrança a Deus. Ele mostra de modo metafórico uma só realidade, a sua visão desesperançada diante do mundo. Ele se via injustiçado diante do mundo e do abandono de Deus, firmando com isso a fala do anjo: “vai ser gauche na vida”.

As “setes faces” do título são trabalhadas nas sete estrofes que compõem esse primeiro texto, que pode ser lido como um perfil autobiográfico do poeta, como indicia o uso do próprio nome no verso 3. Ou seja, trata do indivíduo desajustado, gauche (palavra em francês; lê-se 'gôx'), em desacerto com o mundo. O EU em conflito com o mundo. No poema são apresentados tanto seu discurso quanto sua gênese, numa estrutura marcada pela ambivalência: a cada estrofe intercalam-se harmonia e desarmonia, ainda que a linguagem pretenda-se impessoal e casual. O tom do poema é o do observador e sua poética nos é apresentada como a do incomunicável.

Nas sete estrofes do poema exibem as sete faces da poesia de Drummond, nos tons e nos temas: a conversa quase prosa, a fala, o ritmo exato, a prece, o retrato falado, a caricatura, o humor, a oralidade. E o indivisível indivíduo que se multiplica fraco e forte, tímido e “voyeur”, irônico e solidário, confidente e mineiramente arredio. Não por acaso, o poema foi escrito no dia de natal, em 1928, o que pode explicar o anjo embora torto e a invocação bíblica da 5ª estrofe. Algumas dessas sete faces podem ser facilmente reconhecidas ao longo de sua obra.

O poeta se via como “gauche”, “torto”, “canhestro”, em face de si e do mundo, ele não consegue se situar em um contexto social. O seu referencial é o seu próprio eu insatisfeito, buscando, desejando, retraindo-se. Por isso ele cobra: “Meu Deus, por que me abandonaste/ se sabias que não era Deus/ se sabias que era fraco”. Ele é esquecido por Deus e termina o poema “comovido como o Diabo”, depois de beber e de relembrar sua triste realidade. No entanto, antes de finalizar ele afirma que apesar de se chamar Raimundo que significa: “protetor, poderoso, sábio, indica uma pessoa que tende a se isolar, pois é muito rigorosa consigo mesma e supervaloriza as virtudes dos outros. Mas, quando se conscientiza da sua própria importância, torna-se capaz de dar apoio e conselhos valiosos a todo mundo”, só serviria para rimar com o mundo, não para solucionar seu problemas.

Dá para entrever Drummond, no que se refere ao momento histórico em que se situa o Poema de Sete Faces, como um poeta conflituado com o mundo, buscando na própria dialética existencial a explicação do sem-sentido da vida. Seu drama começa ao ser lançado nos adversidades do mundo sob as ordens de um “anjo torto”: anjo que representa as desarmonias entre o poeta gauche e o mundo. Para o gauche visualista, o mundo é um espetáculo que passa, assim como o bonde citado no poema, à revelia de qualquer indagação ou explicação. Na oscilação entre o real e o irreal, na busca entre essência e aparência é que a cena se movimenta.

O poeta gauche é um contemplador orgulhoso que se considera maior que o mundo num mesmo momento em que se vê quebrantado pela realidade, pelo dualismo do Eu menor que o Mundo, sente-se fraco e não vacila em apelar: “Meu Deus, porque me abandonaste”.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.104)

Wanda de Paula Mourthé (MG) e Prof. Garcia (RN)
Uma Trova Nacional

Vida – viagem sem pressa
por estradas desiguais
– sabemos onde começa,
mas, quando acaba... jamais!
(CAROLINA RAMOS/SP)

Uma Trova Potiguar

A saudade é a tortura,
que amofina muitas vidas,
escravas das desventuras,
de algumas paixões perdidas.
(PEDRO GRILO/RN)

Uma Trova Premiada

2009 > Belo Horizonte/MG
Tema > DESPREZO > Vencedora

Desprezo eu senti de fato
ao ver em seus escaninhos
“aquele” nosso retrato
rasgado em mil pedacinhos.
(OLYMPIO COUTINHO/MG)

Simplesmente Poesia

DÉCIMA- (REDONDILHA MENOR)

É nossa missão
Fazer o reparte
Zelar nossa arte
Pensar no irmão
Agir com razão
Frear a ruptura
Da forte censura
Soltar as algemas
Vencer os problemas
Saudar a cultura.
(DJALMA MOTA/RN)

Uma Trova de Ademar

Descobri no envelhecer,
em meus momentos tristonhos,
que eu não tive, em meu viver,
nada mais além de sonhos!...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram
.

Meu túmulo, belo ou feio,
será pequeno, suponho,
para guardar tanto anseio,
para enterrar tanto sonho!
(LUIZ OTÁVIO/RJ)

Estrofe do Dia

O poeta é portador
das grandes mágoas da vida,
seu peito é uma ferida
que nunca se acaba a dor.
Sofre por causa de amor,
menosprezo e fingimento,
desgosto no casamento
e ingratidão de colega;
todo poeta carrega
um fardo de sentimento.
(JOSÉ ZILMAR/PB)

Soneto do Dia

– Rogaciano Leite/PE –
IMPOSSÍVEL.

Tudo findo. Deixaste-me e seguiste
o primeiro que veio ao teu caminho;
não pensaste sequer que fiquei triste,
preso à desgraça de viver sozinho!

Dois longos anos!...Nunca mais me viste!
Foram-se as aves, desmanchou-se o ninho!...
Hoje, me escreves: “Meu viver consiste
na mistura de lágrimas e vinho!”

E me imploras: “Perdoa-me e consente
que eu vá viver contigo novamente,
pois só contigo poderei ter paz!”

Eu te perdôo... mas o empecilho é este:
eu amava aquela alma que perdeste...
alma que nunca reconquistarás!...

Fonte:
Ademar Macedo

Enéias Tavares dos Santos (A Briga de Dois Cegos por Causa de uma Esmola)


Eu volto agora à poesia
com a mente aperfeiçoada
contando mais um gracejo
que o povo dar gargalhada...
uma briga de dois cegos
que eu achei muito engraçada.

Aconteceu em Rio Largo
no estado das Alagoas;
esta cena interessante
vista por muitas pessoas
pois eu só conto o passado
não conto coisas atoas!

De Maceió, em um trem
para Rio Largo rumei
quando saltei na estação
para a feira me encaminhei
e lendo livros para o povo
o dia todo passei.

Lá para as tantas da tarde
a feira já terminado
eu então fechei a mala
e fiquei assim, conversando
olhando o que se passava
e algum transporte esperando.

Nisso passaram dois cegos
um na frente o outro atrás
talvez um guiando o outro
por caprichos naturais
pararam assim adiante
junto à banca dum rapaz.

Imploraram uma esmola
ele calado ficou
eles tornaram a pedir
ele atenção não prestou,
os cegos iam saindo
quando o rapaz lhe falou:

— Esperem mais um pouquinho.
Onde vão nessa jornada?
Botem as mãos para cá
Que a banca está recuada
Tomem para vocês dois
Porém a nenhum deu nada.

Passando-se alguns segundos
um encolheu logo a mão
e disse ao seu companheiro:
— Anda para cá seu João,
se ele te deu foi trocado
me dá logo o meu quinhão.

O outro disse: Tá doido!
Já quer me lubridiar?
ele deu foi a você
Vá cuidar logo em trocar
Tire o seu e de cá o meu
para a gente viajar.

O outro um tanto alterado
logo respondeu: seu João;
ele deu foi pra nós dois
não quero tapeação
o senhor já é um cego
além de cego ladrão!

— Ladrão não! gritou o outro
repare bem quem sou eu,
o homem deu a esmola
você foi quem recebeu
agora quer tapear
só para não dá o meu.

Nessa altura os curiosos
Pra perto foram chegando
para ver o resultado;
e os dois cegos se alterando
o rapaz, um ar de riso
fazendo de vez enquando.

Um cego disse: É por isto
que gosto de andar sozinho
tanto que eu tenho rezado
mas meu destino é mesquinho,
só encontro com fantasma
cruzando no meu caminho.

Disse o outro: Essa é que é boa
você sim que é trapaceiro
veja bem que foi você
que encolheu a mão primeiro
então já está bem provado
que recebeu o dinheiro.

Disse o outro: Não senhor
eu só puxei minha mão
porque vi bem que o senhor
tinha melhor condição
de receber, porque estava
mais perto do cidadão!

O outro gritou eufórico:
Eu já sei que estou de azar,
você recebe o dinheiro
agora quer me enganar
ou você me dá o meu
ou o pau vai "trovejar".

— Eu tenho medo de pau?
Diz ele serrando o cenho,
de pau eu não tenho medo
porque pau eu também tenho
hoje aqui vai correr sangue
igualmente a mel de engenho.

Como é que um "cabra" deste
sai pela feira mais eu,
recebe aqui uma esmola
que eu vi quando o rapaz deu,
mete toda no bisaco
e diz que não recebeu!

O outro muito zangado
de raiva estava "cinzento"
Logo levantou o pau
e gritou: ladrão nojento
tome este na cabeça
para não ser avarento.

Perto estava uma mocinha
com uma panela na mão,
olhando a briga dos cegos
com tanta admiração
que chegava até fazer
toda gesticulação.

O cego com toda raiva
quando o cacete baixou
bateu foi a mão na moça
que a panela se quebrou
em mais de vinte pedaços
nisso o povo gargalhou!

A moça logo saiu
correndo pela calçada
foi para casa ligeiro
da feira não levou nada,
ficou com a mão doente
e a panela arrebentada.

Outro cego também
tempo nenhum não perdeu,
levantou logo o bastão
gritando, lá vai o meu...
bateu na testa de um velho
que o sangue logo desceu.

Um gritava: Tome pau
para não ser mais ladrão,
o outro então respondia
aguente lá meu rojão;
nisso rodava o cacete
com toda força da mão.

A meninada gritava
gente pulava e corria,
e os dois cegos danados
fazendo grande arrelia,
metendo o pau adoidado
sem saber em quem batia.

Um menino foi por trás
na calça de um puxou
ele rodou-lhe o cacete,
quando a pancada soou
foi num carro de refresco
todos os litros quebrou.

Os dois cegos enraivados
não escutavam razão,
metia o pau um no outro
como quem tinha visão,
porém sem enxergar nada
toda pancada era em vão.

Uma mulher foi pra perto
pra ver os cegos brigando,
foi na hora que um deles
o cacete ia baixando
bateu-lhe no pé do ouvido
que ela caiu espumando.

Com dez minutos de luta
já tinha banca virada
miudezas pelo chão
lona de corda rasgada
mangalho por toda parte
peça de barro quebrada.

Um cego dizia ao outro:
aguente lá meu "baião"
O homem deu a esmola
você roubou meu quinhão,
agora paga no pau
para não ser mais ladrão.

Aí meteu o cacete
como quem está roçando
foi nas pernas duma velha
que ela caiu lá gritando:
tá doido cego da peste
repare quem vai passando!

O outro cego gritava:
daqui pra noite eu lhe pego
o serviço que lhe faço
quem me perguntar eu nego
para você nunca mais
roubar esmola de cego.

O rapaz da banca viu
que era grande a confusão
chegou pra perto e gritou:
Epa, assim de faca não!
Eles soltaram os dois paus
correram sem direção.

Porém é que nessa altura
um cidadão educado
foi correndo ao distrito
e deu parte ao delegado
ele veio a toda pressa
trazendo mais um soldado.

O delegado chegou
no local da confusão
perguntou logo: quem foi
o autor desta questão
mostraram logo o rapaz
um sujeito brincalhão.

O delegado o prendeu
ele saiu escoltado
e lá dentro do distrito
levou de bolo um bocado
depois indenizou tudo
que os cegos tinham quebrado.

Passou a noite trancado
sem ver o clarão da lua
deitado no chão molhado
lastimando a sorte crua,
de manhã fez a faxina
para então sair para a rua.

Enquanto o mundo for mundo
Não falta "cabra de peia"
É desses que enganam cegos
Ilude a filhinha alheia,
Abusa o povo e no fim
Só vai parar na cadeia.

Fonte:
SANTOS, Enéias Tavares dos. A briga de dois cegos por causa de uma esmola. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 1970.

Machado de Assis (Análise dos Contos de “Várias Histórias”: 1. A Cartomante)


Publicado em 1896, Várias Histórias é um exemplo perfeito da maestria com a qual Machado de Assis desenvolveu o conto, produzindo tesouros que estão entre os mais preciosos da Literatura Brasileira. Antes de mergulhar em suas narrativas, portanto, necessário se faz entender um pouco da técnica do autor em tal forma artística.

Machado de Assis notabilizou-se por dominar a análise psicológica, dissecando a alma humana em busca de sua essência, que muitas vezes é dilemática, ou seja, expressa o conflito e muitas vezes a conciliação entre elementos opostos. É muito comum em suas narrativas depararmo-nos com ações que, mesmo tendo uma determinada inspiração, revelam também o seu oposto, como no caso do usurário (pessoa extremamente apegada a bens materiais, a lucro e a dinheiro) de Entre Santos, que, em pleno desespero por causa da possibilidade da perda de sua esposa, faz uma promessa fervorosa que tanto revela seu amor à mulher quanto seu apego à noção de lucro, pois se perde em delírios diante da cifra de orações que se propõe a rezar.

Dessa forma, a complexa visão machadiana sobre o homem vai muito além do que os seus contemporâneos faziam. Reforça essa superioridade a intensidade que imprime ao caráter psicossocial, entendendo a personalidade humana como fruto de forças da sociedade, principalmente aquelas que valorizam o status, o prestígio social. É um elemento ricamente abordado em obras-primas como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro.

Assim, os contos de Várias Histórias constituem rico material para um estudo da psicologia do homem e de como ele se comporta no grupo em que vive. Vemos neles a análise das fraquezas humanas, norteadas muitas vezes pela preocupação com a opinião alheia. Em inúmeros casos as personagens fazem o mesmo que nós: mentem, usam máscaras, para não entrar em conflito com o meio em que estão e, portanto, conviver em sociedade. O pior é que levam tão a sério essa máscara que chegam até a enganar a si mesmas, acreditando nela como a personalidade real.

Por causa desses elementos temáticos, notamos uma peculiaridade nos contos machadianos. Esse gênero, graças à sua brevidade, dá, por tradição, forte atenção a elementos narrativos. Não há espaço, pois, para digressões, tudo tendo de ser rápido e econômico. No entanto, no grande autor em questão o mais importante é o psicológico, o que permite caminho para características marcantes do escritor, como intertextualidade, metalinguagem e até a digressão, entre tantas, tornando a leitura muito mais saborosa.

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1. A Cartomante
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Este conto pode ser encontrado na íntegra em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/08/machado-de-assis-cartomante.html
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O conto A Cartomante, de Machado de Assis, mostra a visão objetiva e pessimista da vida, do mundo e das pessoas (abolição do final feliz). A autor faz uma análise psicológica das contradições humanas na criação de personagens imprevisíveis, jogando com insinuações em que se misturam a ingenuidade e malícia, sinceridade e hipocrisia.

Crítica humorada e irônica das situações humanas, das relações entre os personagens e seus padrões de comportamento. Linguagem sóbria que, entretanto, não despreza os detalhes necessários a uma análise profunda da psicologia humana.

Envolvimento do leitor pela oralidade da linguagem. A historia é repleta de "conversas" que o narrador estabelece freqüentemente com o leitor, transformando-o em cúmplice e participante do enredo (metalinguagem).

Citação de um autor clássico (shakespeare) intertextualidade; reflexão sobre a mesquinhez humana e a precariedade da sorte humana. Os aspectos externos (tempo cronológico, espaço, paisagem) são apenas pontos de referência, sem merecerem maior destaque.

Estilo

A Cartomante é um conto onde podemos observar características marcantes do estilo de Machado de Assis. O uso de metáforas constantes, o comportamento imprevisível dos personagens e seu valor filosófico, o uso de comparações superlativas, bem como a ambigüidade em seus personagens.

O autor usa intertextualizações literárias, e o recurso da narrativa onisciente, para dinamizar o relato da história acentuando os momentos dramáticos do texto. Usa este recurso que eleva e prolonga o suspensa da história, mantendo o leitor atento durante todo o desenrolar do conto.

Sem estes ingredientes, sem dúvida o texto não teria a mesma dinâmica e seu epílogo não teria a mesma ênfase. Sem os pretextos machadianos facilmente saberíamos o desfecho da história ao lermos suas primeiras linhas. O uso destes atributos faz com que a historia gire em torno de seu próprio eixo dramatical sem que percebemos o uso desta técnica literária.

Foco narrativo

A historia é narrada em terceira pessoa. Existe a presença onisciente do autor, que usa desta onisciência na narração e descrição dos fatos. O uso constante de uma voz onisciente é importante para dinamizar o relato da historia acentuando os momentos dramáticos do texto e conflitos internos dos personagens, fortalecendo seu epílogo.

Sem essas características o texto tornar-se-ia monótono, pois a primeira leitura saberíamos de antemão seu desfecho. Também através deste recurso, o autor vai situando o leitor durante o curso da historia, ilustrando fatos e intertextualizando a narrativa.

Personagens

Embora a trama gire em torno de 4 personagens principais Vilela, Camilo, Rita e a cartomante (incógnita), existem outros personagens que não participam diretamente na trama, mas suas participações são determinantes no enredo da história.

A morte da mãe de Vilela, que é uma personagem secundária tem papel fundamental no envolvimento amoroso dos personagens Camilo e Rita. O autor analisa e enfatiza psicologicamente todos os personagens preconizando seus conflitos internos bem como seus temores.

Enredo

Está o tema do triângulo amoroso e do adultério, já presente nas Memórias (Brás Cubas, Virgília, Lobo Neves). Os amigos de infância Camilo e Vilela, depois de longos anos de distância, reencontram-se. Vilela casara-se com Rita, que mais tarde seria apresentada ao amigo. O resto é paixão, traição, adultério.

A situação arriscada leva a jovem a consultar-se com uma cartomante, que lhe prevê toda a sorte de alegrias e bem-aventuranças.

O namorado, embora cético, na iminência de atender a um chamado urgente de seu amigo Vilela, atormentado pala consciência, busca as palavras da mesma cartomante, que também lhe antecipa um futuro sorridente.

Dois tiros à queima-roupa ao lado do cadáver de Rita o esperavam. A vitória do ceticismo coroa o episódio.

Conto que surpreende pela excelente estrutura narrativa, dividida em três partes.

Na primeira, introdutória, fica-se sabendo que Rita, dotada de espírito ingênuo, havia consultado uma cartomante, achando que seu amante, Camilo, deixara de amá-la, já que não visitava mais sua casa. Desfeito o mal-entendido, faz-se um flashback que vai explicar como se montou tal relação. Camilo era amigo, desde longínqua data, de Vilela. Tempos depois, este se casa com Rita. A amizade estreita a intimidade entre Camilo e Rita, ainda mais depois da morte da mãe dele. Quando sente sua atração pela esposa do amigo, tenta evitar, mas, enfim, cai seduzido. Até que recebe uma carta anônima, que deixava clara a relativa notoriedade da sua união com a esposa do seu amigo. Temeroso, resolve, pois, evitar contato com a casa de Vilela, o que deixa Rita preocupada.

Terminada essa recapitulação, vai-se para a parte crucial do conto. Camilo recebe um bilhete de Vilela apenas com a seguinte mensagem: “Vem já, já”. Seu raciocínio lógico já faz desconfiar que o amigo havia descoberto tudo. Parte de imediato, mas seu tílburi (espécie de carruagem de aluguel que equivaleria, hoje, a um táxi) fica preso no tráfego por causa de um acidente. Nota uma estranha coincidência: está parado justamente ao lado da casa da cartomante. Depois de um intenso conflito interior, decide consultá-la. Seu veredicto é dos mais animadores, prometendo felicidade no relacionamento e um futuro maravilhoso. Aliviado, assim como o tráfego, parte para a casa de Vilela. Assim que foi recebido, pôde ver, pela porta que lhe é aberta, além do rosto desfigurado de raiva de Vilela, o corpo de Rita sobre o sofá. Seria, portanto, a próxima vítima do marido traído.

Note neste conto sua estrutura em anticlímax, pois tudo nele (já a partir da citação inicial da famosa frase de Hamlet: “há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”) nos prepara para um final em que o misticismo, o mistério imperaria. No entanto, seu final é o mais realista e lógico, já engendrado no próprio bojo do conto. Reforça esse aspecto o ritmo da narrativa, que é lento em sua maioria, contrastando com seu desfecho, por demais abrupto. E não se esqueça da presença de um quê de ironia nesse contraste entre corpo da narrativa e o seu final.
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continua... Análise do conto "Entre Santos"