domingo, 24 de abril de 2011

José Faria Nunes (O Culpado)


Paulo acorda no meio da noite, os olhos como se lhes tivesse pingado colírio de pimenta. Havia dormido com o televisor ligado. Fora do ar a TV, a tela emite um brilho azulado, agride-lhe os olhos.

Por que quando se está acordado, ainda que por horas seguidas com os olhos fixos na programação eles não ardem? Sem nada entender do assunto Paulo imagina que, ao dormir, todos os sentidos se relaxam, inclusive a visão, tornando-se vulnerável, mais susceptível à agressão dos raios de luz, pelas ondas emitidas pela TV.

Pega o controle remoto, coloca o televisor em stand by, vira para o canto, procura dormir novamente.

Não dorme. Vem-lhe à memória o telefonema do dia anterior: Juvenal havia pulado no rio, de cima da ponte. Na Avenida Beira Rio turistas viram quando o corpo se projetou da ponte sobre o rio. A chegada dos bombeiros despertou a curiosidade de turistas e de moradores das proximidades. Quem viu? Quem era? Homem ou mulher? Por que será que fez isso?

Perguntas várias, respostas vagas, até controvertidas, não raras maldosas.

Aos poucos era montado o quebra-cabeça:

Um homem que parecia chorar caminhava como quem nada quisesse, sem pressa, distraído. Na ponte quase foi atropelado por um carro, de onde o motorista gritou algo ininteligível. Um xingamento? O homem parou, olhou para cima, para baixo, fez um gesto como se se benzesse, subiu no corrimão da ponte e saltou.

A princípio, Paulo não se importou com a notícia. Juvenal sabia nadar como ninguém. Muitas pessoas praticavam aquela aventura. Um esporte arriscado, mas do agrado de quem pulava e de quem assistia. Adrenalina pura. Paulo mesmo já havia feito isso muitas vezes, quando adolescente. Só que da outra ponte, a Afonso Pena, pênsil, metálica, mais baixa. A atual, de cimento armado, é alguns metros mais alta. Ainda assim muitos saltam de lá. Os desencorajados apenas admiram. Batem palmas. Os que consumam a aventura retornam vitoriosos, cheios de si, prontos para novos saltos. Saltavam em equipe. Uma canoa motorizada fazia guarda um pouco abaixo, para eventual emergência. Houve casos em que a polícia intervinha, por fim deixou de se importar com o que qualificou de insensata atitude. Brincadeira de louco. Um dia o rio ainda haveria de levar algum aventureiro.

Premonição ou argumento matemático?

De fato, muitas vidas já se foram no seio daquelas águas. Por negligência, descuido, imperícia, conseqüência de embriaguez, fatalidade. Ene causas.

O caso de Juvenal foi diferente. Ele saltou deliberadamente para a morte. Muitos do bairro de Juvenal já sabiam do caso. Paulo deveria ter sido o último a saber.

A família de Juvenal, em prantos, as filhas mais velhas descabelavam-se. A criança pequena não entendia o acontecido. A esposa, inconsolável, buscava motivos de sua parte para se culpar pela morte do marido. O que teria feito de tão ruim para ele tomar essa atitude tão radical? Procurava ser boa esposa, embora tivesse um segredo que ele não podia saber. Será que vazou? Por que não contou para ninguém o que se passava na cabeça dele? Tudo poderia se explicar, reconsiderar. Afinal, não há mal que sempre dure, assim como também não há bem que nunca acabe. Tudo é transitório, um dia se rema contra a maré, outro dia a favor, e assim é vivida a vida.

As pessoas mais íntimas sabiam que ele tinha surtos de depressão, mas... quantos não padecem desse mal e nem por isso se matam?

Paulo se lembra de que, enquanto os familiares de Juvenal padeciam na fúnebre angústia, a crônica da maldade desfilava motivos para o fato. Culpa foi da esposa que tinha um romance secreto? Culpa de alguma figuraça cujo nome não poderia ser dito. Teria sido alguma mulher de marido importante? Seria a verdade temerária? Haveria um iminente escândalo de proporções inusitadas? Problema no emprego? Intolerância de chefes? Exigências excessivas no trabalho?

Nada além de conjecturas.

Não faltaram os discursos da esquerda: o caso é que as empresas ainda não se conscientizaram de que os empregados também são gente, que o lucro não deve ser obsessão que justifique opressão do trabalhador. Serviço sempre mais, salário sempre menos, além da constante ameaça de corte nos quadros de pessoal. No ar sempre uma nuvem a anunciar: vai rolar cabeça. Uns e outros motivos desfilavam na boca dos plantonistas do diz que diz. Outra causa do suicídio? Dívidas impagáveis, patrimônio exaurido, nome na Serasa, cartões de crédito cancelados, crédito não extinto... inferno de vida. Melhor a morte.

Paulo não dorme, por mais que tente. Perdeu o sono.

Levanta-se, quer espantar aquelas lembranças que lhe atormentam a alma. Liga o televisor, troca de canais como se procurasse trocar de pensamentos, um fora do ar, outro também, em outro a imagem não presta. Prefere o canal local, repetidora de uma rede sensacionalista de programas tragicômicos, mas de boa imagem. Afinal não quer ver nada. Só quer um motivo a mais para não ficar pensando na tragédia do dia anterior. Mas pensa. Na tela da TV a imagem vai se apagando. Paulo vai criando uma imagem própria em sua mente. Atormenta-lhe a idéia de o corpo de Juvenal ainda não ter sido encontrado. Se o tivesse, pelo menos poderia estar ao lado do caixão. Numa hora dessas ninguém se incomodaria. Ele poderia fazer um último carinho no rosto de seu amado, que dentro de poucas horas haveria de partir para a cidade eterna.
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Conto publicado na Antologia de Contos de Autores Contemporâneos - vol.2
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Sobre o autor : http://singrandohorizontes.blogspot.com/2010/01/jose-faria-nunes-1948.html
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Fontes:
Colaboração de José Faria Nunes.
Imagem = Historinhas Beatitudes

Antonio Botto (O João Pateta)


Era uma vez uma pobre viúva que tinha um filho bastante pateta. Tudo quanto lhe mandava fazer fazia, mas fazia mal.

- Valha-me Deus, com este rapaz!, queixava-se a pobre mãe.

- Porque não o habitua mais à vida?, perguntava uma vizinha. Obriga-lo a trabalhar em qualquer coisa; tudo, menos esta mandriice...

- Tem razão. Vou ver se ele é capaz de pôr em prática uma ideia...

E aproximando-se do filho:

- Tu saberás vender uma peça de linho sem fazer algum disparate?

- Sei sim, minha mãe.

- Então, ouve com atenção: Vais por aí fora e não cortas, nem à direita nem à esquerda. Vais sempre a direito, ouviste?

- Ouvi, minha mãe.

- Pedes tanto pela peça de linho e não a vendas por menos seja a quem for. Evita fazer negócio com mulheres porque, em geral, falam muito e oferecem pouco. Sim: procura uma pessoa que esteja só. Farás negócio mais rendoso.

O rapaz ouviu, atentamente, prometeu obedecer-lhe e lá se pôs a caminho. Passou por várias encruzilhadas pelas quais chegaria mais depressa a um ou outro povo ali perto e onde poderia vender facilmente a formosa peça de linho, mas, como sua mãe lhe dissera que fosse sempre a direito, entendeu que não devia cortar - nem à direita nem à esquerda.

Ao cabo de uma grande caminhada encontrou a mulher do farmacêutico que conversava com duas raparigas à porta de sua casa. Reconhecendo-o, e vendo a peça de linho, perguntou-lhe num sorriso:

- Esse linho é para vender? E quanto custa, ó João?

- Não me entendo com mulheres, respondeu ele andando sempre. E por mais que ela tentasse demovê-lo daquele firme propósito oferecendo-lhe até uma quantia maior, nada pôde conseguir...

Pouco depois chegou a um pequeno largo onde havia uma pequena estátua de um benemérito da terra.

- Ora até que enfim que encontrei a pessoa com quem vou fazer negócio.

E dirigindo-se para a estátua, acrescentou, convencido:

- Queres comprar esta peça de linho?

Naturalissimamente, a estátua não respondeu.

- Não dizes nada? Está bem. O preço é tanto. E enquanto contas o dinheiro vou ali comprar uma melancia com uns tostões que aqui tenho.

Entretanto, alguém que passou, levou a peça de linho. Ao regressar com a melancia, disse com certo azedume:

– Agora dá cá o dinheiro.

A estátua não respondia.

- Vá, não me faças perder tempo nem penses que posso voltar para receber o que é meu: o meu rico dinheirinho.

A estátua continuava naturalmente impassível.

- Se não me dás o dinheiro agarro naquele pau e esfrangalho-te a cabeça.

Cumpriu a dura ameaça. A estátua era oca, mas tinha dentro da cabeça umas moedas de ouro.

- E não me querias pagar, gritava o pateta apanhando as moedas e guardando-as num bolso da calça.

- Venha ver, minha mãe, venha ver! Vendi a peça de linho por este dinheiro todo!

A mãe abriu os olhos surpreendida e concluiu que o filho encontrara certamente, por acaso, aquele dinheiro em ouro e que por completo ignorava o seu verdadeiro valor. Pensou em guardá-lo debaixo de um tijolo da lareira, mas, lembrando-se de que o filho podia dizer aos vizinhos complicando a sua vida de mulher simples e pobre, guardou-as dentro de um cântaro de barro e disse-lhe disfarçando o grande contentamento:

- Enganaram-te, pateta! Isto não presta para nada. Deram–te dinheiro falso. Contudo, para outra vez, espero que sejas mais esperto.

E saiu; foi para a missa. Daí a momentos passou um velho trapeiro.

- Olhá lá, diz-lhe o pateta, tu queres comprar estas moedas? São falsas, mas talvez te sirvam para alguma coisa...Ora vê, tem paciência.

E despejou o cântaro à entrada da porta. O trapeiro viu logo que eram moedas de ouro e verdadeiras.

- Pois sim; ofereço por todas elas doze moedas de cobre.

- Venham elas, disse o rapaz; está o negócio fechado.

E o trapeiro deu-lhe as doze moedas e foi-se apressadamente.

- Acabo de fazer negócio, mãe, disse o João, vendo-a entrar. Vendi aquela porcaria por doze moedas de cobre!

- Vendeste as moedas de ouro por doze moedas de cobre? Ai, filho, que grande asneira!

- Então a minha mãe não me disse que aquilo não prestava para nada porque era dinheiro falso?

Fonte:
Os Contos de Antonio Botto. Marginalia, s/d

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) XVII – O Caçula


Havia um homem com três filhos: João, o mais velho; Manuel, o do meio: e José, o caçula. Um dia os dois mais velhos se revoltaram contra o pai e fugiram de casa. O caçula foi e disse: "Não se amofine, meu pai; sairei pelo mundo em busca de meus irmãos."

E saiu. Foi andando, andando, até que chegou à casa duma velha.

— Que anda fazendo aqui por estas alturas, menino? — perguntou a velha.

— Saí a correr mundo, em procura de dois irmãos fugidos de casa.

— Pois vou te ajudar, menino, disse a velha. Entras e dormes aqui. Amanhã conversaremos.

No outro dia a velha disse:

— O que tens de fazer é o seguinte. Irás ao reino das Três Pombas, porque é lá que se acham os teus irmãos. Encontrarás a cidade num grande rebuliço de festas, porque o rei vai escolher o desencantador das três pombas que estão no fundo do mar. Dou-te esta varinha de condão, toma-a. E também esta esponja. Mas muito cuidado para que ninguém te veja com estes objetos, porque vai acontecer o seguinte: teus próprios irmãos vão caluniar-te perante o rei, dizendo que te gabas de seres capaz de descer ao fundo do mar, quebrar uma pedra que há lá e desencantar as três pombas, que são três princesas.

Bem. O rei vai te chamar à sua presença e te perguntará se isso é verdade. Responderás que é mentira, mas que és capaz de fazer o desencantamento.

E então irás para a praia do mar e lançarás na água a esponja: a esponja irá flutuando e tu a acompanharás a nado até encontrares uma pedra. Baterás nessa pedra com a varinha de condão; a pedra se abrirá e aparecerá uma serpente. Baterás na serpente e a serpente adormecerá. Entrarás pela rachadura da pedra e encontrarás bem no fundo uma caixa, dentro da qual existe um ovo. É um ovo de três gemas. Quebrarás esse ovo e darás a clara à serpente. Feito isso, os teus trabalhos estarão terminados. As três gemas são as três princesas.

A velha abençoou-o e José se dirigiu para o reino das Três Pombas. Encontrou o reino das Três Pombas. Encontrou o palácio em grandes festas e também viu seus irmãos. Falou com eles, mas os malvados fingiram não conhecê-lo — e foram intrigá-lo com o rei, dizendo que havia aparecido um grande gabola com prosa de que era capaz de desencantar as princesas.

O rei chamou José à sua presença e interpelou-o.

— Saiba Vossa Majestade que é mentira, mas apesar disso estou pronto para desencantar as princesas.

O rei ficou admiradíssimo da segurança com que o rapazinho afirmava tal coisa, e mandou que lhe pusessem um navio à disposição. José respondeu que não era preciso — que iria a nado, e o rei riu-se, porque era o absurdo dos absurdos.

No dia seguinte foi José à praia do mar e lançou à água a esponja, que não afundava como fazem todas as esponjas. E a esponja foi indo em certa direção e ele atrás, nadando, até que chegou à pedra. Tirou a varinha da cintura e bateu. A pedra abriu-se e apareceu a serpente. José bateu na serpente e a serpente adormeceu. Entrou então pela rachadura da pedra e descobriu a caixa. Abriu-a e tirou o ovo. Partiu o ovo; deitou a clara na boca da serpente e recolheu as gemas no chapéu.

Feito isso, lançou-se de novo no mar e veio nadando até à praia. Quando chegou, bateu com a varinha nas gemas, que se transformaram nas três moças mais bonitas do mundo.

Foi um grande assombro no reino, mas os maus irmãos levantaram outro aleive contra José, dizendo que ele andava se gabando de ser capaz de trazer até a serpente. O rei perguntou-lhe se era verdade. "É mentira, mas sou capaz de trazer a serpente" — e lançando-se ao mar foi à pedra e trouxe a serpente.

Os maus irmãos tentaram levantar um terceiro aleive, mas desta vez José danou com a maldade deles e com a burrice do rei — e, dando-lhes umas varadas, adormeceu-os.

Quando o rei voltou a si, não quis mais saber de histórias. Casou José com a mais bonita das três princesas e mandou expulsar do reino os maus irmãos. E acabou-se o caso.
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— Bom — disse Emília — esta história é das tais de virar. Eu já tive comigo a varinha de condão que Cinderela esqueceu cá no sítio, no tempo daquela festa , e brinquei de virar uma coisa noutra até não poder mais. É facílimo e não há mérito nenhum nisso. Prefiro as histórias em que o freguês vence à custa de esperteza, isto é, de inteligência. Com varinha mágica tudo se torna extremamente simples.

— Também acho bastante boba esta história — disse Narizinho — além de que há muita repetição de coisas de outras. Os tais três irmãos, o tal do mais novo sair pelo mundo, a eterna velha, o tal reino das Três Pombas, os tais três aleives — tudo três, três, três. Isso até cansa. E os nomes? Não há história em que não apareça um João. Agora variou um pouco e veio um José...

— Eu, o que mais me admiro — disse Pedrinho — é a burrice desses reis, pais de três princesas. Nesta história, por exemplo, houve o primeiro aleive dos maus irmãos, mas José deu conta do recado muito bem, indo à pedra è desencantando a princesa. Que mais queria o rei? No entanto o palerma novamente deu ouvidos aos dois perversos que vieram com o segundo aleive. Isso nem é ser rei; é ser camelo.

— O negócio dos três — disse Emília — é coisa que só serve para maçar as crianças. O contador faz isso para espichar a história. Bem se vê que quem as inventa é gente do povo, de pouca imaginação e cultura.

— Bom — disse dona Benta. — O que estou observando é que as crianças de hoje são muito mais exigentes do que as antigas. Eu, quando era pequenina, ficava deslumbrada quando ouvia histórias como esta. Hoje está tudo diferente. Em vez de meus netos deslumbrarem--se, metem-se a criticar, como se fossem uns sabiozinhos da Grécia...

Emília ficou muito admirada de saber que dona Benta já havia sido criança.

— Mas então a senhora também já foi criança, das pequenininhas? — perguntou.

— Está claro, Emília. Que pergunta!

— E tia Nastácia também?... Que interessante! Está aí uma coisa que nunca me passou pela cabeça.

E ficou pensativa, imaginando como seriam as duas velhas quando criancinhas.
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Continua… XVIII – A Cumbuca de Ouro
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 194)


Uma Trova Nacional

Por amor a humanidade,
tendo a cruz do mundo às costas.
Cristo, com sua humildade,
deu-nos todas as respostas!
–AMÁLIA MÁX/PR–

Uma Trova Potiguar


Quem conta muita vantagem,
pelo pouco que produz,
não pensa naquela imagem
de Cristo morto na cruz.
–MARCOS MEDEIROS/RN–

Uma Trova Premiada

1996 - Barra do Piraí/RJ
Tema: LÁGRIMA - M/H

O céu não chora... eu dizia,
olhando o Cristo na Cruz...
Pois se Deus chorou um dia,
verteu lágrimas de luz!...
–FÁBIO HENRIQUE CABRAL/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram

Pregado naquela cruz,
o Cristo morreu de pé.
Seu sangue jorrando em luz,
fez sementeira de fé!
–BRANDINA ROCHA LIMA/PE–

Simplesmente Poesia

A mãe, pelo filho amado,
sofre um milênio num dia...
a dor dos pregos da cruz
que o Nazareno sofria
doía menos que a dor
do coração de Maria.
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Estrofe do Dia


Jesus Cristo um ser onipotente
Soberano da paz e da justiça,
Que abomina a guerra e a cobiça
Tem amor ao herege e ao descrente,
Só pregou a bondade pra essa gente,
Mesmo assim morreu crucificado;
Perecendo na cruz foi vergastado
Mas não deixa de amar a todos nós,
Se Jesus perdoou o seu algoz
Quem sou eu pra querer vê-lo malhado.
–HÉLIO CRISANTO/RN–

Soneto do Dia

–RAYMUNDO DE SALLES BRASIL/BA–
A Lágrima de Deus

Como se fosse a lágrima pingente,
que rolasse dos olhos marejados
de Deus, a estrela pálida cadente
que eu vi descer dos céus estrelejados,

fez-me pensar na dor de um Deus clemente,
que viu, na cruz, os membros lacerados
do filho amado, único e inocente,
para salvar os homens dos pecados.

E penso que, depois de dois mil anos
de tanta espera e tantos desenganos,
seu coração está cheio de mágoa,

vendo o homem pecando sem limite,
maculando o seu mundo, e Ele permite,
mas fica com os olhos rasos d’água.

Fonte:
Colaboração de Ademar Macedo

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Paulo Leminski (Atraso Pontual)


Ontens e hojes, amores e ódio,
adianta consultar o relogio?
Nada poderia ter sido feito,
a não ser o tempo em que foi lógico.
Ninguém nunca chegou atrasado.
Bençãos e desgraças
vem sempre no horário.
Tudo o mais é plágio.
Acaso é este encontro
entre tempo e espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que faço?

Trova 190 - Lisete Johnson (Porto Alegre/RS)

Montagem da trova sobre foto obtida em http://weheartit.com/

Fábio Rocha (O Canto da Noite)


Ouvia a brisa gelada fazer sons estranhos nos becos, entre as casas antigas. Costumava chamar aquele som etéreo, poético de "O Canto da Noite" quando era mais novo. Quanto tempo ele morou ali? Não lembrava ao certo... Uns cinco, dez anos? Deitou-se e pôs as mãos atrás da cabeça. Lembrou do quanto gostava de subir naquele telhado bem tarde da noite, observar o céu, o silêncio cortado apenas pelos sons do vento, sentir o sereno frio na pele... Quando deu por si, já estava subindo as escadas. Lá em cima de novo, tanto tempo depois... E... O que tinha de errado? Já não era a mesma coisa...

Lembrou do que ele sempre pensava quando subia ali: "Tudo pode mudar, mas sempre haverá estrelas no céu." Mas ele nunca imaginou tanta mudança em sua vida. Que voltaria ali adulto, e não mais ouviria o canto de sua mãe ecoar pelas paredes agora descascadas da velha casa. Uma lágrima escorreu pela face, mas ele não teve ânimo pra secá-la. Deixou-a correr até a boca e sentiu seu gosto salgado. Jamais pensou que teria que vender aquela casa, outrora tão cheia de vida, agora tão vazia. Que saudades da época mágica da infância... Das brincadeiras de esconder com seu avô no quintal, da paz na sua casa na árvore, do beija-flor que vinha beber a água com açúcar que ele pendurava na goiabeira... Foi a melhor época de sua vida. Duvidou que algum dia fosse tão feliz de novo.

Viu um meteoro e lembrou dos versos que fazia, já adolescente. Falava sempre do céu... Adorava os ares noturnos. Muitos versos ele fez para conquistar sua esposa. Ela não ligava muito pra poemas, mas gostava. E sempre agradecia com um beijo. Um singelo sorriso cortou a tristeza. Mas por pouco tempo... Lembrou que os anos de convivência deles juntos não deram certo. Não conseguiam ter os filhos que ela sempre quis, mas isso não foi o pior. Os dois erraram, e o amor foi se transformando num veneno. Raiva, ciúmes, vingança... Maldito seja o tempo... Seria ele o culpado? Estavam enjoando um do outro? Os dois sabiam que estavam a um passo do divórcio. Ele lembrou da sua teoria das estrelas e pensou que ela estava incompleta: "Tudo pode mudar pra pior, mas sempre haverá estrelas no céu."

Aquela era uma noite sem lua. Ele adorava noites sem lua. As estrelas pareciam brilhar mais. Sentou-se no telhado. Dali ele via quase toda a rua... Todas as casas antigas, os jardins maltratados, os terreno baldios. Não era assim antigamente. Pelo menos o lugar sagrado onde se passa a infância devia ser proibido de mudar. Já não passava ninguém àquela hora. As ruas cheias de crianças jogando bola e soltando pipa agora estavam sem viva alma. Nem os velhinhos varrendo as folhas das calçadas e fazendo fogueiras, enfumaçando as casas vizinhas, apareciam àquela hora. Só alguns cães de rua ainda estavam acordados, vagando soberanos no silêncio quase total... E um gato miava distante, como o choro de um bebê faminto.

Então sentiu as telhas sob ele estalarem... Viu que estavam molhadas com o orvalho, e ele já não era mais tão leve quanto nos velhos tempos de vigílias noturnas. Sentiu o jato de adrenalina invadir suas veias. Mais estalos... Qualquer movimento agora e ele afundaria no telhado. O que fazer? Só faltava essa... Um morcego passou bem perto. Mas ele nem se moveu. Achou que se deitasse de novo o peso se espalharia melhor e ele poderia ir rolando até a escada por onde subiu. As telhas cederam e os planos dele foram interrompidos pelo tombo.

Na laje empoeirada, sentiu uma dor imensa na perna. Não dava pra ver o que era, então procurou com as mãos. Sentiu o calor do seu sangue e que tinha algo cravado, atravessado na sua coxa direita. Estava quase desmaiando... Mas se isso acontecesse, ia sangrar até a morte. Que final idiota! Gritou por socorro e lembrou que ia ser muito difícil alguém ouvir. A única casa mais próxima que não estava abandonada era a da dona Amélia, que já era mais surda do que uma porta quando ele era um menino! Mas ele continuou gritando. Era a única coisa que podia fazer mesmo... E, por mais que se esteja reclamando da vida, nessas horas todos nós tiramos forças de não sei onde para continuar... Nessas horas, a vida se torna o bem mais precioso imaginável. Todas as preocupações e problemas parecem menores.

O pânico começava a dominá-lo. A sensação era a mesma que ele tinha quando criança, no escuro do quarto, acordava apavorado após um pesadelo e via faces medonhas nas paredes. Sentia aquele suor gelado pelo corpo, mas, mesmo assim, se cobria com o lençol para se proteger. O coração batia tão forte que parecia estar no seu pescoço. E ele, sem aguentar mais, gritava pela ajuda paterna. Queria gritar de novo, mas seu corpo não respondia. Olhava através das telhas quebradas para a casa vizinha com esperança. Sentiu que ia desmaiar. Seus sentidos quase se apagavam e voltavam. Viu uma luz se acender na casa da velha surda e alguém pequeno aparecer na janela. Alucinação? Foi seu último pensamento.

Só acordou, todo enfaixado, sendo levado pra uma ambulância. Procurou por seu salvador e viu, na porta da casa da dona Amélia, uma moça bonita, abraçada com uma garotinha, acenando. Vai ver a velhinha tinha morrido ou se mudado... Se mudado... Se não fossem as mudanças das quais ele sempre reclamava, ninguém ouviria seus gritos. Que alívio... Sentiu vontade de rir e de sentir o abraço de sua esposa de novo. Com certeza, ela o visitaria no hospital. Talvez ainda houvesse uma chance para eles.

Fonte:
A Magia da Poesia.

Fábio Rocha (1976)


FABIO José Alfredo Santos da ROCHA vive no Rio de Janeiro, onde nasceu, em 04 de junho de 1976. Cursou Engenharia Elétrica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (mas não concluiu o curso)* e se formou em Administração de Empresas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Hoje, estuda Filosofia também na UERJ e é funcionário público. FABIO é FABIO mesmo - como MARIO, o Quintana, é MARIO - sem acento, o que ele explica em versos:

ESCOLHA
(Para Drummond)

O meu Fábio é Fabio.
Nem nasci, tropeçavam em mim.

Tive então duas escolhas:
Ser pedra ou poeta.
-

Fora isso, é muito pouco o que ele diz de si mesmo:

"Quanto a falar de mim, é a parte mais difícil (sorri, disfarçando). Acho que comecei a escrever por dois motivos: sempre gostei demais de ler e admirava os escritores (de prosa ou verso) que conseguem transmitir pros leitores algo que inspire, emocione ou faça pensar. O outro motivo é que falo pouco (sorri, certo de que está justificado). Então, alguns anos depois de começar a escrever poemas, comecei a fuçar na Internet e aprendi a fazer páginas. E como não tinha nada melhor para colocar na homepage, pus uns poemas. Eu não esperava, mas deu certo. Hoje já são mais de um milhão de visitantes no total, com uma média de quase cinco mil visitas diferentes por dia. Além disso, o site ganhou vários prêmios. Foi o que me estimulou a escrever mais e participar de concursos. Também tive várias surpresas boas e conheci pessoas maravilhosas e cheias de talento, graças a ele. Pessoas que, infelizmente, a mídia em geral não mostra, mas que estão a apenas um clique de distância".

Deu certo mesmo. Ao longo de um tempo historicamente curto - ele começou a escrever em 1994, aos 18 anos de idade - FABIO ROCHA publicou vários livros e juntou um monte de premiações em concursos. Seus poemas estão nos seus livros (de papel e eletrônicos), em vários sites de língua portuguesa, são notícia de jornal e até andam de ônibus. Como foi o caso do seu poema "A Magia da Poesia" que circulou no Busdoor colocado na traseira dos veículos de Blumenau, no período de outubro a dezembro de 2000. Foi este poema que deu nome ao seu primeiro livro, publicado em janeiro de 2001. Depois, vieram mais vários, eletrônicos, todos disponíveis gratuitamente para leitura no seu site pessoal [ www.fabiorocha.com.br ]. Em 2004, lançou seu mais novo livro em papel "Corte - 10 anos de poesia". Em 2010, foi um dos 46 poetas considerados como mais representativos da poesia nacional, na década de 2000 (a 2010), sendo selecionado para fazer parte do volume "Anos 2000" da coleção "Roteiro da Poesia Brasileira", da Global Editora. Também teve alguns poemas selecionados para livros escolares e outros traduzidos para o russo. Atualmente o autor publica pelo menos um poema inédito por dia no seu blog [ www.dabusca.blogspot.com ].

Fonte:
A Magia da Poesia

Fabio Rocha em Xeque


Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão em 2002. Revista Eletrônica Balacobaco (http://intermega.globo.com/seomario/index.htm)

1. Em Drummond você diz: "Ser Pedra/Ou ser poeta". Por que escolheu ser poeta?
(OBS: O nome do poema é "Escolha", dedicado a Drummond, e é "Ser pedra ou poeta" num só verso - o último)

Na verdade, não sinto que um belo dia decidi ser poeta... Foi algo que começou meio por acidente, depois eu insisti no erro e gradualmente cheguei a isso que sou hoje: nada, uma pedra no caminho. Sempre gostei de fazer as pessoas tropeçarem em suas certezas.

2.Qual influência tem de Quintana?

Acho que o que mais aprendi com Quintana é que podia escrever de modo simples, sem hermetismos, na linguagem e no conteúdo... E que um pouco de ironia e humor não vão mal na poesia. Para mim, a obra-prima dele é o "Poeminha do contra" (Todos estes que aí estão / Atravancando o meu caminho, / Eles passarão. / Eu passarinho!). É belo, conciso, simples e com uma mensagem forte.

3.Como foi ganhar o prêmio do site POEMAS AZUIS?

Sem dúvida foi o meu prêmio mais importante, porque além de eu ter conseguido o primeiro lugar, foi julgado por um poeta consagrado, a quem aprecio muito, o Affonso Romano de Sant'Anna. Foi uma satisfação dupla.

4.Quem é o poenauta brasileiro?

É o poeta vivo e atuante, que consegue ser lido sem gastar um dinheirão. E, geralmente, não se perde no hermetismo, que é quase a regra da poesia não virtual contemporânea.

5.Qual poema seu personifica melhor a sua obra? Fale sobre.

Realmente não sei responder a essa pergunta. Eu escrevo muito, quase um poema por dia, e mudo muito também, juntamente com o que escrevo... Hoje adoro um poema, amanhã acho horrível. Aí fica difícil ter um poema único que consiga personificar tudo o que escrevo.

6.Como é manter o site A MAGIA DA POESIA?

É um prazer tão grande que vicia... É muito bom ter alguém me lendo,mandando comentários e trocando idéias... Saber que é possível emocionar pessoas, mesmo as muito distantes, é algo precioso. A net é o melhor instrumento que conheço para isso. Um livro editado custa muito caro, com público reduzido e, pra completar, a distribuição em livrarias é uma droga. Por isso acho que a internet é a mídia mais eficiente para divulgar trabalhos escritos para autores novos. Pensando nisso é que lancei o concurso de poesias do site, onde o primeiro prêmio ganha uma página sob medida para divulgar seus trabalhos, feita por mim mesmo.

7.Qual é a magia da poesia?

Misturar palavras, rimas, imagens, lógica e emoção de modo diferente em cada um que lê. O poema se transformar de leitor para leitor é o que acho mais mágico na poesia.

8.Tem algum mote?

"Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive." Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa) - 14/2/1933

9.Qual o aspecto mais importante dentro de um poema? Fale-me de um aspecto teórico e um aspecto teórico ou não que faça ou seja característica da sua poesia?

Para mim ainda é o conteúdo o mais importante. Minha poesia não tem uma base teórica, vai saindo. Às vezes dou uma aparada aqui e ali, às vezes deixo como vem originalmente. Quem sabe, se eu tiver sorte, anos após a minha morte, não haverá teses de mestrado ou doutorado nas faculdades de Letras do país explicando detalhadamente os porquês do que escrevo hoje? :)

10.Qual o papel do escritor na sociedade?

Escrever de modo a fazer o leitor sentir algo novo ou velho de modo diferente. Emocioná-lo, chocá-lo, desafiá-lo, fazê-lo duvidar de si mesmo e do mundo, inspirá-lo.

Fonte:
A Magia da Poesia.

Ialmar Pio Schneider (Soneto para Hilda Hilst – In Memoriam)


(no dia do aniversário de nascimento da poeta: 21.4.1930)

Ao conhecer Vinícios de Moraes,
no tempo que era jovem sedutora,
quem sabe, lhe escreveu madrigais,
e teve uma paixão abrasadora...

Nada, porém, a vida lhe desdoura,
nos conciliábulos sentimentais,
porquanto a linda musa inspiradora,
fiel aos seus princípios ideais...

Ela vê dois Vinícius no poeta:
um sensível, mas outro já nem tanto,
nem se comove ao choro de um carneiro...*

Hilda Hilst, tão romântica e discreta,
procura discernir um doce encanto,
de um amor eternal e verdadeiro !

Porto Alegre – RS, 21 de abril de 2011-04-21, às 12h28min. olhando as águas do Rio Guaíba, em manhã ensolarada.

*cfe O livro O POETA DA PAIXÃO – Uma Biografia – de José Castello, 1994 – pgs. 298, 300

Fonte:

Colaboração de Ialmar Pio Schneider
Imagem
Centro Literario de Piracicaba.