quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (Cabo Verde – 2. Narrativa)

2.     NARRATIVA

Embora o primeiro texto ficcional da moderna literatura cabo-verdiana se deva a Manuel Lopes («Um galo que cantou na baía» in Claridade, n.° 2, excerto do conto mais tarde inserido no livro, sensivelmente com o mesmo título (1959), é com o romance Chiquinho (1947) de Baltazar Lopes que se abre a série da ficção cabo-verdiana. Narrativa a todos os títulos importante como expressão do mundo insular e ainda pela reinvenção da escrita   que   se   organiza,   em   parte,   a   partir   da incorporação na linguagem de signos, expressões ou formas sintácticas dialectais. Longe, é certo, da ruptura abissal que o brasileiro Guimarães Rosa ou o angolano Luandino Vieira mais tarde levariam às últimas consequências.

É legítimo, no entanto, considerá-lo pioneiro na busca de processos para a construção de novas línguas no espaço africano de expressão portuguesa; e, para melhor se poder avaliar deste mérito, há que ter em conta que a sua experiência data de 1938, altura em que aquele romance foi acabado. Isto se pode aplicar enquanto contista disperso por revistas, incluindo Claridade. E se é legítimo adiantar-se que a ruptura iniciada por este narrador é ponto corrente em quase toda a narrativa cabo-verdiana, não menos legítimo é dizer que nenhum outro autor logrou ir tão longe nem tão conseguida pesquisa foi obtida em qualquer outro como em Baltazar Lopes. Alguns, mesmo, preferiram a utilização do português fundamental, com o recurso normal a signos dialectais, embora os diálogos das personagens de extracção social popular (são a maioria) se construam de harmonia com a sua fala e, neste caso, as interferências do dialecto crioulo sejam notáveis e constantes.

Não nos esqueçamos de que se trata de um espaço bilingue e que o dialecto crioulo pode ser considerado uma língua novi-latina (a língua cabo-verdiana) de léxico na sua quase totalidade (noventa e sete por cento) oriundo da língua portuguesa, e naturalmente a reapropriação (com tudo quanto a palavra implica: reelaboração fonética, morfológica, sintáctica e semântica) continuada de palavras (sintagmas) portuguesas por parte do dialecto crioulo que são depois devolvidas, já modificadas, à escrita em português. Eis assim um português cabo-verdianizado onde, inclusive, por vezes, o eixo sintagmático é alterado. Quer a narrativa quer a lírica se enriquecem pelos mais variados processos de reconstrução linguística: convivência, hibridismo, neologismo s e daí a novidade, a invenção permanentemente revelada do insupeitado lastro de uma linguagem de recursos inesgotáveis.

Com obra ficcional publicada, além dos autores assinalados, são António Aurélio Gonçalves, Teixeira de Sousa, Teobaldo Virgínio, Luís Romano, Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Onésimo Silveira, Nuno Miranda, João Rodrigues (Montes Verde-Cabo, 1974), Artur Carvalho (Um natal em S. Miguel, 1975), Orlanda Amarilis. Isto sem a exclusão de outros nomes, como Virgílio Pires, estreado em 1958 (n.° 8 de Claridade) e tido como revelação incontestável; Maria Margarida Mascarenhas, que participou em «Sèló» e com larga colaboração no Cabo-Verde e Presença crioula (Lisboa), evidenciando qualidades de mérito real; Pedro Duarte, Francisco Lopes, Manuel Serra, Leitão Graça, Aydeia Avelino Pires, mas estes últimos quase episodicamente, através do Cabo Verde, sem terem dado a medida exacta do seu talento; e também a recente amostra de Oswaldo Osório (vide excertos de romance in Voz di Povo, 1976), demasiado exígua para que possamos formular um juízo consciente.

Já há largos anos, Oscar Lopes, a propósito da Antologia de ficção cabo-verdiana contemporânea (1960) [94] e de outras obras da ficção cabo-verdiana, pronunciava-se nestes termos: «Eu agradeço à literatura de autoria ou temática cabo-verdianas umas horas de leitura vivamente interessada: o prazer de tantas pequenas ou grandes obras (refiro-me a dimensões gráficas) surpreendentemente bem consumadas» [95].

Com efeito, os narradores cabo-verdianos a partir de Claridade souberam centrar-se no mundo específico insular e procederam a uma denúncia muito viva da sociedade a que pertenciam. Nesta primeira fase era natural que estivessem todos eles sensíveis aos dramáticos problemas do Arquipélago: a seca, a fome, a emigração. (Pode mesmo dizer-se que a fome, é a grande personagem da narrativa cabo-verdiana). São elas algumas das grandes linhas temáticas da ficção cabo-verdiana. Mas na certeza de que a partir dessas motivações se desencadearia e, por vezes, de modo seguramente logrado, o tratamento de muitos dados e aspectos da vida social, económica, cultural. Níveis de vida, níveis de língua, níveis de cultura, personagens várias, populares ou não, de miséria ou grandeza, ali se fixaram, mercê da capacidade de análise social e psicológica, capacidade criadora, diríamos invulgar. Se a uma literatura do terceiro mundo buscarmos a expressão da sua própria mundividência, a expressão do seu universo específico, a resposta cabo-verdiana é positiva.

Baltazar Lopes abriu o caminho e como que muitas das propostas dos escritores que vieram depois por ele tinham já sido postuladas. Mas os segmentos sociais foram-se alargando, desenvolvendo, enriquecendo. Ao mundo da fome, da tragédia, de germinação da consciência política e da miséria social — à emigração, por exemplo, e ao mundo mítico que a envolve, com incidência na ilha de São Nicolau da parte de Baltazar Lopes — sucede o mundo epopaico de Manuel Lopes (Chuva brava, 1956; os contos O galo que cantou na baía, 1959; Os flagelados do vento leste, 1960) na ilha de Santo Antão, atravessado também pela fome, mas colocando o grande dilema de ter necessidade de partir, querendo ficar, terminando por ficar, o que contraria a tese da radicalização do evasionismo atribuído a Claridade.

Pretendeu-se, infundadamente, acusar de «paisagística» (e de muitas outras coisas más) a ficção cabo-verdiana subscrita pelos «claridosos», não sabemos se, em grande parte, com o pensamento em Manuel Lopes. Acusação estranha e injusta, chegando a dar a impressão de que Onésimo Silveira, autor de Consciencialização na literatura cabo-verdiana (1963), onde o fenómeno foi desencadeado, teria falado daquilo que não conhecia ou conhecia mal, pelo menos naquela altura. Os romances de Manuel Lopes constituem uma inserção vigorosa no real cabo-verdiano, profundamente desagregado em tempo de fome provocada pela estiagem. Podemos lamentar que aos seus romances faleça uma perspectiva aberta ao futuro. O drama cabo-verdiano surge, por assim dizer, como uma fatalidade e por isso limitado na visão estática do autor-narrador. Mas, de um ou de outro modo, é inegável a sua significação literária e a importância capital que preenche na ficção cabo-verdiana.

Luís Romano (Famintos, 1962) vem situar a acção também na ilha de Santo Antão, juntando ao mundo destruído pela fome o mundo da repressão administrativa e laborai. Pensamos, no entanto, que um certo verbalismo, na fala das personagens funciona como interferências longas do narrador que prejudica o equilíbrio da estrutura romanesca. Documento generoso e libelo acusatório, virtude é, certeza, o largo recurso do léxico dialectal, inesgotável em Luís Romano. Onésimo Silveira da sua permanência em S. Tomé trouxe a experiência do homem cabo-verdiano em tempo de fome emigrado para as roças daquele Arquipélago, de que e testemunho o conto longo Toda a gente fala: sim senhor (1960).

Teobaldo Virgínio, irmão de Luís Romano, situando o desenvolvimento das suas narrativas no espaço social da mesma ilha de Santo Antão, primeiro em Distância (1963) e Beira do Cais (1963), inclui naquele uma expressão telúrica, sensual, em que os elementos líricos e romantizados se fundem na coexistência de um humor irreverente, ao mesmo tempo que uma aderência ao drama real do homem cabo-verdiano se desenvolve no dom da invenção de uma linguagem de carácter poético, muito viva. Em Vida crioula (1967), escrito em Luanda, transita para uma visão de apelo teórico e sentimental às raízes da crioulidade e para a adesão universal, um tanto como aconteceu com a sua última poesia. Ovídio Martins (Tcòucòinòa, 1962) procede à abordagem da amorabilidade e do sentimento profundo do envolvimento lírico e social da terra, abandonando, depois, pelos vistos, a narrativa.

Gabriel Mariano (O rapaz doente, 1963) acaba, porém, de reunir em volume (Vida e morte de João Cabafume, 1977) a quase totalidade dos seus contos dispersos por várias publicações, com relevo para o Cabo Verde. Agora sujeitos a cuidada revisão, dão-nos a medida inteira de um contador de histórias grudado ao real significativo do homem cabo-verdiano. Narrador, personagens, ambientes se identificam através de uma linguagem cabo-verdianizada, sabiamente estruturada para a expressão da epopeia quotidiana feita de sofrimentos, anseios, frustrações, desencontros e grandezas, e onde também o drama da subalimentação crónica tem a sua fala expressiva. Avança por vezes na exploração de comportamentos sociais diversificados, incluindo a pequena burguesia cabo-verdiana residindo em Iisboa. O picaresco se introduz neste espaço textual não como intenção gratuita, mas relevando de um campo semântico autêntico. Além do mais, o drama da emigração para S. Tomé, a tradução oral colada à intimidade social cabo-verdiana, figuras moduladas na corajosa dignidade de afrontar os abusos e as prepotências. Com este Vida e morte de João Cabafume (um título e raiz) de Gabriel Mariano a narrativa cabo-verdiana continua a revelar-se na sua inegável originalidade.

Em Nuno Miranda (Gente da ilha, 1961; Caminho longe, romance, s/d [1975]), de há muito radicado em Iisboa, a escrita verte uma certa nostalgia da terra de origem e do passado. Mas ele é um exemplo acabado de como um autor, à partida dotado, não alcança ultrapassar o jogo de contradições que ele em si próprio criou e assumiu. Isto se aplica sobretudo em relação a alguns contos e se insinua em muitas páginas do romance que reflectem a angústia do desencontro numa identificação do narrador com o autor. No romance, de estrutura um tanto ou quanto desequilibrada, há momentos de real interesse que são aqueles em que o narrador se concilia numa linguagem adequada. Mas certos diálogos por demais artificiosos, sobretudo quando se pontua filosoficamente, empobrecem o texto caracterizado por um estilo pretensioso e visivelmente untuoso que torna a leitura penosa. É nossa convicção que o autor pode, se quiser, no futuro, vencer as debilidades através de uma severa auto-crítica (de autor e de narrador). Ao cabo, «o que é preciso é coragem!» como diz o narrador no fechamento do romance.

Teixeira de Sousa, nos anos quarenta ligado aos neo-realistas portugueses e, deste modo, um dos pioneiros da ficção cabo-verdiana, só recentemente reuniu os seus contos em Contra mar e vento (1972). Histórias centradas no quadro da ilha do Fogo, lá onde se tornaram resistentes conflitos e tensões decorrentes de uma estrutura social sedimentada sob o signo do latifúndio. A infância, certos aspectos da confrontação social de classes, a desesperada luta pela sobrevivência, o heroísmo quotidiano, a honradez, ressonâncias da labuta aventurosa do cabo-verdiano pela América, são alguns dos segmentos incisivos que estruturaram esta obra. Picaras, dramáticas, poéticas, ou impregnadas de um certo humor ou de uma certa ironia, ou ainda às vezes de uma fina melancolia, mas sempre profundamente significativas, num estilo caracterizado pela limpidez, incisivo, com este discurso, Teixeira de Sousa dá-nos um dos enunciados mais equilibrados e autênticos da narrativa cabo-verdiana, revelando um fôlego de narrador excepcional.

Em meio deste panorama, encontramos o nome de António Aurélio Gonçalves. Uma espécie de outsider. De um tempo anterior aos homens de Claridade, uma larga permanência em Iisboa, onde conviveu com alguns intelectuais africanos (Castro Soromenho, Viana de Almeida) e portugueses (Castelo Branco Chaves e Álvaro Salema que tem dedicado, através do seu longo exercício da crítica, entusiastas e excelentes palavras à literatura cabo-verdiana) regressa à ilha de S. Vicente e aí partilha da aventura do grupo de Claridade na qual se estrearia como novelista. Alguns dos seus textos, que faz e refaz, e sempre arrancados das suas mãos à força, aparecem no Cabo Verde e, entretanto, espaçadamente, são-lhe editadas quatro noveletas (a designação é sua): Pródiga (1956); O enterro de nha Candinha Sena (1957); Noite de vento (197 0);Vitgens loucas (1971).

O tempo histórico é o dos nossos dias; o espaço, exclusivamente o da ilha de S. Vicente. Dotado de uma capacidade notável para a análise subjectiva e elaboração dos diálogos, organiza o seu espaço literário numa relação muito íntima entre o aprofundamento psicológico e o meio social em que as personagens estão concretamente inseridas. Com um conhecimento firme e atento do micro-universo da cidade do Mindelo, revela um raro dom de manipulação de ingredientes, aparentemente ínfimos, para uma significação larga desse real, não raro num trajecto mítico. No gosto da exploração de parábolas bíblicas (filho pródigo: Pródiga; virgens imprudentes: Virgens loucas) «sóbrio e sucinto, o texto toca o lírico, o dramático e o trágico, apresentando uma galeria de tipos caboverdianos que nos chegaram cheios de vida e de verdade», nas palavras de Maria Lúcia Lepecki [97]. Textos abertos que surpreendem e fazem o leitor participar e continuar o desenvolvimento do seu processo inventivo.

A última revelação vem com o livro de contos Caes-do-Sodré té Salamansa (1974) de Orlanda Amarilis, que esteve ligada ao grupo de Certeza. Orlanda Amarilis sagra-se como a primeira narradora cabo-verdiana com livro publicado. Histórias tecidas de uma experiência cabo-verdiana e ecuménica, o espaço literário repartido entre a ilha de S. Vicente e a cidade de Lisboa, é assim um pouco também sobre a diáspora cabo-verdiana. De um lado, um certo «desencanto» (título de um dos contos), ou a mal contida amargura, ou a nostalgia no exílio em terra onde aos protagonistas fazem sentir que são estranhos; por outra, a inserção no mundo de carências da terra natal ou o reencontro possível com as raízes e uma penetração no fantástico adequado a certos níveis mentais do arquipélago. Texto de excelentes recursos estilísticos, uma reapropriação do lastro dialectal de inegável rigor e sugestivo efeito, eis-nos na fruição (barthiana) de uma linguagem cabo-verdianizada, das mais bem conseguidas da ficção crioula. Sensibilidade marcadamente feminina, cativa dos gestos, das falas, das apetências quotidianas, o seu discurso alarga o tecido de análise social e psicológica e aprofunda a perspectiva do drama na narrativa cabo-verdiana.
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Notas

94 Antologia da ficção cabo-verdiana contemporânea, selecção e notas de Baltasar Lopes, introdução de Manuel Ferreira e comentário de António Aurélio Gonçalves. Praia, Cabo Verde, 1960.

95    Oscar Lopes, Lm- e depois. Porto, Editorial Inova, 1969. Recolha de críticas publicadas no suplemento «Cultura e Arte» de O Coméráo do Porto.

96    Um dos tópicos da literatura cabo-verdiana é a «partida». Teria cabido a Eugênio Tavares glosar pela primeira vez o drama da emigração no poema «Hora di bai»: hora da partida, hora   da   despedida,   «hora   di   dor».   Partida   que   é   uma consequência da seca, da fome: emigração. Paralelamente, há uma outra atitude que se insinua e depois se define: o desejo de partir pela necessidade de ver outras terras, outras gentes. Necessidade    de    compensar,    em   meios    de    acentuado desenvolvimento social e intelectual, a vida estreita das ilhas. Estado de espírito este de natureza cultural e sentimental. E às vezes mais «literário» do que real. A isto se chamou, depois, evasiomsmo.   Querendo-se  significar a fuga,  o  abandono,  a desresponsabilização. O nosso esquema seria este:
emigração:      origem      económica      — motivação real
Terralongismo — evasionismo:      origem      intelectual      — motivação real ou não Onésimo da Silveira, no ensaio citado, desencadeou um ataque directo à literatura cabo-verdiana subscrita pelos homens da Claridade e de alguns outros que vieram depois, acusando-a de vários males e um deles seria o de «evasionismo». Isto levar-nos-ia longe. Mas desejaríamos aqui deixar consignado o seguinte:
a) — Nos anos 30-40, de um modo geral, os escritores sentiam a necessidade de alargar os seus horizontes e isso não pressupunha de modo nenhum um desenraizamento;
b) — No discurso da «evasão» não estava explícito o abandono e sim implícito o regresso;
c) — Se virtude possui a literatura cabo-verdiana dessa época é exactamente a do elevado grau de responsabilização que os autores demonstraram no empenhamento de se inserirem no centro do universo crioulo, rompendo, de vez, com um passado de alienação literária.

97   Maria  Lúcia  Lepecki  —   crítica   a   Virgens  loucas  in COLÓQUIO /Letras, n.° 11. Lisboa, janeiro de 1975, p. 77.

Continua…3. Drama

Fonte:
Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa I Biblioteca Breve / Volume 6 – Instituto de Cultura Portuguesa – Secretaria de Estado da Investigação Científica Ministério da Educação e Investigação Científica – 1. edição — Portugal: Livraria Bertrand, Maio de 1977

Cândida Vilares Gancho (Como Analisar Narrativas) Parte 10: Machado de Assis (Pai Contra Mãe)

       A seguir você pode aplicar o roteiro de análise ao conto de Machado de Assis.

Pai contra Mãe

       A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos se não por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.

       O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também, à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.

       Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram mui tos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.

       Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia da gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: “gratificar-se-á generosamente”, —ou “receberá uma boa gratificação”. Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoitasse.

       Ora, pegar escravos fugidos era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.

       Cândido Neves, - em família, Candinho,- é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza quando adquiriu o ofício de pegar escravos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao ministério do império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos.

       Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara alguma lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender de pressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.

       Contava trinta anos, Clara vinte e dois. Ela era órfã, mora com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mira-la cheira-la, deixa-la e ir a outras.

       O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi - para lembrar o primeiro ofício do namorado, — tal foi a Página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas.

       -Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto.

       - Não, defunto não; mas é que...

        Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade.

       - Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.

       - Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara.

       Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.

       A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma coisa e outra; não tinha emprego certo.

       Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia, porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.

       - Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.

       A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajuda é certo, ainda que de má vontade.

       - Vocês verão a triste vida, suspirava ela.

       - Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara.

       - Nascem, e acham sempre alguma coisa certa que comer, ainda que pouco...

       - Certa como?

       - Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem, gasta o tempo?

       Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero, mas muito menos manso que de costume, e lhe pergunto se já algum dia deixara de comer.

       - A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau...

       - Bem sei, mas somos três.

       - Seremos quatro.

       - Não é a mesma coisa.

       - Que quer então que eu faça, além do que faço?

       - Alguma coisa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu, é vaga. Você passa semanas sem vintém.

       - Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo.

       Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.

       Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo segura-lo, amarra-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de coisas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.

       Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelos aluguéis.

       Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez- se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem.

       - E o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe- se disso; Candinho; procure outra vida, outro emprego.

       Cândido quisera efetivamente fazer outra coisa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.

       A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos.

       - Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!

       Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dois jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjunta da, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio:

       - Titia não fala por mal, Candinho.

       - Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês de vem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é cerro morrer, se viver à míngua Enfim...

       Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já isinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor, - crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dois foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.

       - Quem é? perguntou o marido.

       - Sou eu.

      Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.

       - Não é preciso...

       - Faça favor.
      
O credor entrou e recusou sentar-se; deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo, o dono da casa não cedeu mais.

       - Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo

       Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios Achou vários alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário não alcança mais que a ordem de mudança.

       A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma Senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dois, para que Cândido Neves, no desespero da crise, começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem.

       Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dois dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança á Roda. ‘Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à rua dos Barbonos.” Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte.

       Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela rua e largo da Carioca, rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata.

       Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do me nino; seria maior miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu o pai pegou dele, e saiu na direção da rua dos Barbonos.

       Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é cerro; não menos certo é que o agasalha muito, que o beijava, que lhe cobria o rosto para preserva-lo do sereno. Ao entrar na rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo.

       - Hei de entrega-lo o mais tarde que puder, murmurou ele.

       Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar á direita, na direção do largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Uni adjetivo basta; diga enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou achou o farmacêutico pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta.

       - Mas...

       Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximouse dela. Era a mesma era a mulata fujona.

       - Arminda bradou, conforme a nomeava anúncio.

       Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la ao contrário. Pediu entào que a soltasse pelo amor de Deus.

       - Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei sua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!

       - Siga! repetiu Cândido Neves.

       - Me solte!

- Não quero demoras; siga!

Houve aqui luta, Porque a escrava, gemendo arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoites, — coisa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoites.

       - Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves.

       Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes coisas. Foi arrastando a escrava pela rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.

       - Aqui está a fujona, disse Cândido Neves.

       - É ela mesma.

       - Meu senhor!

       - Anda, entra...

       Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, leva da do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.

       O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqüências do desastre.

       Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo, com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-reis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.

       - Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.

Continua…

Fonte:
Cândida Vilares Gancho . Como Analisar Narrativas. 7. Ed. Editora Ática. http://groups.google.com.br/group/digitalsource/

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 628)

Uma Trova de Ademar 

Se não vês mais a saída,
se estás perdido e sozinho...
É nos atalhos da vida
que a gente encontra o caminho!
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


Num egoísmo profundo
penso ao sentir os teus mimos,
que Deus só fez esse mundo
porque nós dois existimos.
–Geraldo Amâncio/CE–

Uma Trova Potiguar 


Me ajudem por caridade,
meu caso está se agravando!
Se eu não matar a saudade
ela finda me matando!
–Luiz Xavier/RN–

Uma Trova Premiada 


1985  -  Nova Friburgo/RJ
Tema  -  BRINQUEDO  -  1º Lugar


Infância é um brinquedo usado,
que um dia a vida resolve;
tomar um pouco emprestado
e nunca mais nos devolve!
–Arlindo Tadeu Hagen/MG–

...E Suas Trovas Ficaram 


Zerando ofensas e afrontas,
o beijo é o mago auditor
que faz o ajuste de contas
depois das brigas de amor!
–Waldir Neves/RJ–

Uma  Poesia 


Duas mãos face a face dando adeus
bem após tantas somas de carinhos,
uma estrada aberta em dois caminhos
fez a subtração dos sonhos meus.
Meu pesar muitas vezes mais que os teus,
tantos risos movidos por meus ais
não renderam a mim nada capaz
de propor um sorriso pra depois;
dividi a saudade pra nós dois
mas parece que a minha doeu mais.
–Lima Júnior/PE–

Soneto do Dia 

RASCUNHO.
–Benedicta de Mello/PE–


Eu fui papel que te serviu de prova...
Tu eras estudante e eu me prestava
a ser a humilde folha que gravava,
cada exercício da matéria nova.

Jamais lançaste em mim canção ou trova...
Eram notas de moço que estudava.
Julgando bem servir-te, eu não pensava
em ter na cesta de papéis, a cova.

Olhei-me um dia e achei-me mal escrita...
Caligrafia assim de quem hesita.
Não parecia do teu próprio punho.

E quando vi depois a tua escolha,
tive ciúmes sem fim da outra folha,
eu que fora somente o teu rascunho...

sábado, 4 de agosto de 2012

Sexteto em Sextilhas (Parte 10, final)

271 – Assis
Neste domingo, que é o dia,
das mamães, a todas elas
envio beijos e versos,
e ainda as rosas mais belas,
rogando a Deus e aos seus anjos
que estejam do lado delas.

272 – Ademar
Que Deus possa dar a elas,
amor e resignação,
para suportar a dor
da mais triste ingratidão 
de um filho ausente que nega
a sua própria benção.

273 – Delcy
Faz  doer  o coração
da mãe, que fica sozinha,
que o filho não a coloca
no  seu  trono  de  rainha,
pois por pobre que a mãe seja,
com ela, o céu  se  avizinha!
 
274 – Prof. Garcia
A grande tristeza minha
nesta loucura moderna,
é ver no filho clonado
a triste ausência paterna,
e o mundo adotando um filho
já na orfandade materna!

275 – Gislaine
Toda mãe é jóia eterna,
mesmo se o filho a renega;
do fundo do coração,  
seu perdão a ele entrega,
e ora mais por ele a Deus,
pois amor, mãe, nunca nega!

276 – Zé Lucas
Minha mãe foi toda a entrega
de um amor puro e sem fim;
protegeu-me, aqui na terra,
como nunca vi assim,
e eu creio que, aos pés de Deus,
ainda reza por mim!

277 – Assis
O céu deve ser assim:
um jardim onde as avós
e as mães e os anjos do bem,
em coro, numa só voz,
pedem mil bênçãos a Deus
todo o tempo para nós.

278 – Ademar
Elevo aos céus minha voz
para mamãe me escutar,
e pedir ao nosso Deus
proteção para Ademar;
que dos seus vinte e um filhos,
nunca deixou de lhe amar.

279 – Delcy
Vinte e um filhos para amar,
merece  nosso  louvor!
Minha  mãe teve só cinco
e amou-os com o mesmo ardor;
e  eu  tenho  somente  três
a  quem  dei  e  dou amor!

280 – Prof. Garcia
Toda mãe divide a dor
das dores do filho ausente;
amor de mãe, é tão forte,
dos outros, tão diferente,
que este amor sagrado e santo
só coração de mãe sente!

281 – Gislaine
Sinto minha Mãe presente,
sempre a dar-me proteção!
De sangue, tive dois filhos,
e duas, do coração...
Amo os quatro por igual.
Filhos são realização!
         
282 – Zé Lucas
Com a globalização,
nosso país-continente
tornou-se sócio do mundo,
mas não sei se é conveniente,
porque até gripe suína
já estão mandando pra gente!

283 – Assis
Sociedade, certamente,
algo bem melhor seria,
se em vez de trocar doenças
se trocasse mais poesia,
como a gente vem fazendo
nesta nossa parceria.

284 – Ademar
Tem muita gente hoje em dia
com essa gripe danada,
nunca mais eu como porco,
nem mesmo na feijoada;
prefiro comer galinha
e carne de bode assada.

285 – Delcy
Essa gripe tão falada,
que nosso mundo atacou,
faz com que nos preocupemos,
pois entre nós se alastrou
e esperemos , com confiança,
que parta como chegou!

286 – Prof. Garcia
Quando essa peste atacou
os pobres dos mexicanos,
me agarrei logo com os santos
e a proteção dos arcanos,
para não ver meus irmãos
na garra dos desenganos.

287 – Gislaine
Deixemos a gripe e os danos
continuemos nosso verso,
contaminando com ele ,
a luz do poema imerso,
graças a tecnologia
que uniu o nosso Universo!

288 – Zé Lucas
Para enriquecer meu verso,
pedi aos deuses do Olimpo
as ideias mais felizes,
os pensamentos mais limpos
e a pedraria mais rara
nos veios de meu garimpo.

289 – Assis
Nas grimpas do Olimpo agrimpo,
qual as gralhas nos pinheiros,
em busca de uma sextilha
à altura dos meus parceiros
neste instante em que partimos
para os versos derradeiros.

290 – Ademar
Faltam só DEZ, companheiros
para o rojão se acabar;
eu já fiz as minhas contas,
quem quiser pode anotar:
foi Assis quem começou...
Zé Lucas vai terminar.

291 – Delcy
Pois só podia  acabar
com o nosso Professor,
Zé Lucas,  o  nordestino,
que  desbordou em valor,
seguindo o exemplo de Assis
numa  apoteose  de  amor!

292 – Prof. Garcia
Nosso mestre e professor
dará o golpe fatal,
vai encerrar o debate
de forma fenomenal,
fazendo de cada verso
um poema universal!

293 – Gislaine
Foi numa emoção legal
que as sextilhas escrevemos.
Unimos o Sul e o Norte,
do nosso Brasil -  extremos
e usamos, então, os versos
tal fossem os nossos remos!

294 – Zé Lucas
Nessas emoções que temos,
quando as Estrela D'Alva brilha
eu começo a caminhar,
beijando as flores da trilha,
e entrelaçando nos dedos
as seis pontas da sextilha.

295 – Assis
Vejam só que maravilha,
pela qual muito agradeço:
sulistas e nordestinos,
amigos desde o começo,
chegamos ao fim da estrada
como irmãos em sonho e apreço.

296 – Ademar
Nem mesmo sei se mereço
De Deus tanta inspiração.
Pos isto agradeço aos céus
de todo meu coração;
pelas cinquenta sextilhas
que eu fiz com tanta emoção!...

297 – Delcy
Falando em inspiração,
olho os pagos e flechilhas,
e, agradeço  emocionada,
entre  tantas  maravilhas,
o  fato  de  ser  parceira
na  feitura  das sextilhas!

298 – Prof. Garcia
Ante tantas maravilhas
feitas com tanto carinho;
cada irmão cantou seu hino
qual mais feliz passarinho,
que abrindo o bico bem cedo
faz um repente no ninho!

299 – Gislaine
Foi bom e grande o carinho
de escrever em parceria
com tais poetas de escol, 
minha alma vive a alegria
dessa beleza envolvente
que nasce da poesia!

300 – Zé Lucas
Ao calor da parceria,
produzimos, como irmãos,
três centenas de sextilhas,
num trabalho a doze mãos,
mostrando que a poesia
floresce em todos os chãos. 

Ademar Macedo (O Trovadoresco n. 86 - agosto de 2012)

Trovas Potiguares

Sem riqueza e sem estudo,
mas firme em cima dos trilhos,
meu pai para mim foi tudo
que tento ser pra meus filhos!
–José Lucas de Barros–
O retrato na moldura,
da corrosão, dá sinais!
mesmo assim, guarda a candura
da graça de nossos pais!
–Prof. Garcia/RN–

O meu Pai fez minha estrada
asfaltou e plantou flores,
também em cada palmada
calejou-me para as dores.
–Severino Campêlo–

Olhos fundos; enfadonhos,
tez crestada, mão ferida...
Só você, pai, por meus sonhos,
foi capaz de dar a vida...!
–Manoel Cavalcante–

Adotando bons conselhos
das faculdades morais,
os filhos serão espelhos
da retidão de seus pais.
–Djalma Mota–

Meu Pai, com nervos de aço,
tudo fez, por mim lutou;
por isso inda hoje eu faço
tudo o que ele me ensinou!
–Zé de Sousa–

Papai era tão sereno,
e seu afeto era tanto,
que até seu falar ameno
me soava um acalanto.
–Ubiratan Queiróz–

Meu pai era um homem pobre
quanto ao sentido do ter,
mas foi sempre muito nobre
quanto às virtudes do ser.
–Tarcísio Fernandes/RN–

Ser pai, é ter na verdade,
um pouco de amo e tutor,
é ter além da hombridade,
ingênuos gestos de amor.
–Fabiano Wanderley–

Nem dor, nem desesperança,
senti ao Papai morrer.
Eu era assim... tão criança,
que nem sabia sofrer!...
–Ademar Macedo–

Trova-Riso

Explicava, minha amiga,
os muitos filhos que tem:
- De dia o marido briga,
de noite... fica de bem...
(Izo Goldman/SP)

Quando um pinguço gagueja
e não se firma nos pés,
diz: tomei uma cerveja,
mas já tomou mais de dez...
(Maria Nascimento/RJ)

Sua trova – uma obra-prima –
não tem se classificado!?
Quando ele acerta na rima,
o verso é de pé quebrado!
(Arlindo Tadeu Hagen/MG)

Quem sempre conta lorota,
fica marcado e na mira:
verdade que dele brota
vale igual a uma mentira.
(Milton Souza/RS)

Meu marido é um “veranista”.
Adora uma “temporada”...
“Comparece”.. igual turista..
uma vez por ano e...”nada”!
(Jaime Pina da Silveira/SP)

Devo-te oitenta! Mas quero
pagar-te em nota de cem...
- Me empresta mais vinte! Espero
devolver no mês que vem!
(Renato Alves/RJ)

- Ó, Maria, eu vim cobrar
uma dívida! É o padeiro!
- Você vai ter que esperar,
estou pagando ao leiteiro!
(Marina Bruna/SP)
"Limpou" o supermercado
e desculpou-se ao ser presa:
- Não é roubo, delegado,
é mania de limpeza!
(Maria Dolores Lopes/MG)

Regeu a banda o Divino
mas agora, aposentado,
seu famoso bombardino
já se encontra enferrujado !
(Elen de Novais Felix/RJ)

Ao perder a direção,
quis o instrutor da Roberta
fugir de uma contramão
e entrou numa curva aberta.
(Doralice Gomes da Rosa/RS)

Simplesmente Trovas…

Ficou mais lento o meu passo?
Caminharei mesmo assim.
Só temeria o cansaço
se me cansasse de mim...
–(Newton Vieira /MG )

Sob a mesma nostalgia,
a saudade, sem pudor,
sobrevive, todo dia,
à ausência do teu amor!
–(Mara Melinni/RN )

Ela tem carisma e o porte
que uma rainha revela;
e eu tenho mais: tenho a sorte
de reinar ao lado dela!
(José Ouverney/SP)

Em festa que se renova
– plena de Fraternidade –
a verdade se comprova:
a trova não tem idade.
(Almira Guaracy Rebêlo/MG)

Ah! Jesus, que maravilha
se em Ti se inspirasse o rei!
e a paz, o amor, a partilha
enfim se tornassem lei!
(A. A. de Assis/PR)
Torno-lhe a cruz mais pesada,
mais espinhosa a coroa,
e, sem reclamar de nada,
tudo Jesus me perdoa...
(Darly O. Barros /SP)

O prêmio que eu mais queria
- e pelo qual peço a Deus –
é viver a fantasia
de unir teus sonhos aos meus!
(João Freire Filho/RJ)

A caridade amplifica
o sentimento Cristão
que tão bem se multiplica
quando é feita a divisão.
(Eliana Ruiz Jimenez/SC)

Quando pela vida passas,
displicente e linda assim,
o mundo, sem tuas graças,
perde a graça para mim.
(Gabriel Bicalho/MG)

Antes que nada mais sobre,
deixa-me ser, por favor,
ao menos a rima pobre
num de teus versos de amor!
(Vanda Fagundes Queiroz/PR)

A Saudade em Quatro Versos

Disse Deus à humanidade:
“Crescei e multiplicai”,
é nesta cumplicidade
que o homem se torna pai.
(Francisco Macedo/RN)

Herdei de ti, pai querido,
essa força de condor
que te fez, sendo um vencido,
ter ares de vencedor.
(Lilinha Fernandes/RJ)

A cadeira que, na sala,
num balanço vem e vai...
acorda a saudade e fala
das lembranças de meu Pai..
–Lucy Sother Rocha/MG–
Com a luz, pai, que me deste,
do teu meigo olhar profundo,
eu vejo - no mundo agreste,
toda a beleza do mundo.
(Anis Murad/RJ)

O Cantinho da Poesia

A bíblia explica com classe
a quem lê de vez em quando,
mesmo na face apanhando
deve dar a outra face,
toda pessoa que nasce
Deus quer que pratique o bem,
disse o pastor de Belém
o messias prometido:
eu mesmo sendo ferido
não devo ferir ninguém.
(Nonato Costa/CE)

Casinha à beira da estrada
com chão de terra batida,
fiz do teu portão de entrada
o meu portão de saída,
parti morto de saudade
tangendo os sonhos da idade
pelas estradas da vida!
(Prof. Garcia/RN)

COMPADECIDO...
–Oscar Macedo/RN–


Não tendo a quem contar as minhas dores,
ao velho mar me dirigi um dia.
Para aumentar porém meus dissabores,
reconheci que ele também sofria.

Confidente dos homens sofredores,
cobriu-se, ao ver-me, de uma espuma fria
e num gesto de quem confidencia
pôs-se a escutar tranquilo os meus clamores.

Contei-lhe tudo , confessei as mágoas,
mais profundas, talvez, que suas águas,
mostrei-lhe enfim meu coração dorido.

E o mar que até então ficara mudo,
ouvindo a triste narração de tudo,
pôs-se a chorar de mim compadecido.
–––––––––
APOIO: GRÁFICA PADRE JOÃO MARIA - Tel: 3207-5862
EMAIL: aleixograficapejoaomaria@gmail.com

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Francisco José Pessoa (Caderno de Trovas)

À minha mulher confesso:
“- Na atual encarnação,
para apressar teu progresso
sou a tua expiação!”

À tardinha, todo dia,
assisto o chegar do trem,
esperando por Maria
só que Maria não vem.

A poça d’água na rua
de repente se prateia...
espelho tosco da lua
em noite de lua cheia.

As estrêlas não fenecem
perante à luz que encandeia,
mas docemente adormecem
se a noite é de lua cheia.

Eis o grande desafio
para quem se diz cristão:
ter que dizer, renuncio,
em favor de um outro irmão!

Esta vidinha da gente
tal a serra é mesmo assim...
ora subida ou vertente
num sobe e desce sem fim.

“Faça-se a luz”! e ao fazê-la
com muito amor e carinho,
Deus colocou uma estrêla
a clarear meu caminho.

Homem com muitos trejeitos,
mulher com muita feiúra
para mim são dois defeitos
que nem com reza tem cura!

Mãe é palavra seleta
por si só uma obra prima,
pois mesmo o maior poeta
procura e não acha rima!

Mesmo que lhe desagrade,
dentre os sabores prefira
o amargo de uma verdade
ao doce de uma mentira.

Minha mãe, quanta lembrança,
quem me dera tal jaez...
eu voltar a ser criança
começar tudo outra vez.

Na solidão com frequencia
escutamos uma voz...
deve ser nossa consciência
querendo falar por nós!

Nas veredas tortuosas
dessa vida em desalinhos,
nas retas eu colho as rosas
nas curvas tiro os espinhos.

Noitinha volto da roça
e Rosa com seu pudor,
apaga a luz da palhoça
pra gente fazer amor.

Nos quatro dias de momo
ante tanta bebedeira,
eu estarei, não sei como,
quando chegar quarta-feira!

Nossas faces, pergaminho,
rastro do tempo que, algoz,
não apagou o carinho
que ainda existe entre nós!

Nos trigais do sentimento
que contra o vento eu transponho,
cozi o pão sem fermento
no forno quente de um sonho.

O amor seria fecundo
como tal se espalharia,
se toda mãe que há no mundo
tivesse um nome...Maria!

O intenso amor que nos une
e nos completa, querida,
faz a nossa vida imune
às incertezas da vida.

O meu amor quis safar-se
de mim, então me escondi;
de rosa era seu disfarce...
fui, sorrateiro, e a colhi!

O nosso amor passageiro
tal orvalho evaporou...
nasceu e morreu ligeiro,
que nem saudade deixou.

O pó que emana do giz
e o salário sem valor,
tornam bem mais infeliz
a vida do professor!

Os gritos de liberdade
abafados por censuras,
viram ecos de piedade
nos porões das ditaduras.

O sol, gigante centelha,
torna-se mais colossal,
quando nascendo se espelha
nas águas do pantanal.

Por mais que em ti não pensasse
uma lágrima escorria,
irrigando a minha face,
onde eu plantei nostalgia.

Quando o sol arquiva o dia
e o expediente se encerra,
ecoa a Ave-Maria
nos escritórios da serra!

Quantos banquetes regados
a vinho, trufa e salmão...
quantos irmãos relegados
sem água, sem luz, sem pão!

Quem diz ter brilho e alardeia
desdenhando o semelhante,
esqueçe que a lua cheia
tem seus dias de minguante!

Quem faz da vida um disfarce
e finge viver a esmo,
de tudo pode safar-se
mas não engana a si mesmo!

Sem usar pincel ou tinta
apenas com seu clarão,
a lua cheia repinta
as veredas do serttão.

Todo indivíduo que é tolo
mas que de sábio se arvora,
é tal um pão sem miolo...
só tem a casca por fora!

O Autor

Sexteto em Sextilhas (Parte 9)

241 – Assis
Que bom quando a gente amarra
num feriado um domingo...
Domingo que pede cama,
ou pede da pinga um pingo;
domingo que quase rima
com  pé de cachimbo... bingo!

242 – Ademar
Eu sempre passo o domingo
sentindo e dando alegrias,
visitando meus amigos
que não vejo há vários dias;
e caçando inspiração
pra fazer minhas poesias...

243 – Delcy
Contemplo o  passar dos dias
com  alegria  e  saudades,
abrindo meus dois e-mails
para  ler as  novidades,
e  agradecer a  ventura
de crescer em amizades!

244 – Prof. Garcia
Não creio nas vaidades
dos sobejos sociais;
prefiro a contemplação
dos mistérios divinais
de um Cristo crucificado
ao mundo pedindo paz!

245 – Gislaine
O ser humano é capaz;
me encanta o mundo virtual,
que aumentou meu rol de amigos
de maneira atemporal!
Eu considero a Internet
invenção  fenomenal.    

246 – Zé Lucas
Com a internet, afinal,
o mundo está diferente,
as distâncias encolheram,
permitindo até que a gente
faça um debate de longe
tal se fosse frente a frente.

247 – Assis
Distância, modernamente,
é simples virtualidade.
Podemos, via internet,
bater um papo à vontade,
como se a gente estivesse
os seis na mesma cidade.

248 – Ademar
A Internet na verdade,
é uma grande maravilha,
mas perde para o poeta
pois não segue a nossa trilha;
ela pode fazer tudo
mas não faz uma sextilha!

249 – Delcy
Nem sextilha,  nem  septilha,
a  Internet,  nós  sabemos,
apesar  de  fazer  tudo
não faz o que nós fazemos,
e,  por  isso, nós  poetas,
ao  Senhor,  agradecemos!
 
250 – Prof. Garcia
Nós internautas, sabemos,
que a NET encurta os caminhos;
mas não gorjeia do jeito
do canto dos passarinhos
ao despertar da alvorada
no aconchego dos seus ninhos!
 
251 – Gislaine
Podemos trocar carinhos
por e-mails todo dia,
e podemos divulgar                                               
mensagens, versos, poesia,
repartindo com o mundo
a nossa eterna alegria!

252 – Zé Lucas
Quando eu não fizer poesia
para a mulher preferida
nem sair pra ver a Lua
brilhando em minha avenida,
estarei fora do mundo,
ou mesmo fora da vida.

253 – Assis
Jamais será interrompida
a nossa vida, jamais,
pois que a teremos eterna,
já que somos imortais,
e em nosso canto a faremos
sempre linda, mais e mais.

254 – Ademar
Nos nossos jogos florais
eu encontro um certo enlevo,
embora fique indeciso
se participar eu devo;
e só encontro as respostas
nas trovas que eu mesmo escrevo.

255 – Delcy
Será que devo ou não devo,
dos  Florais,  participar?
Há trovadores  famosos
que, por certo, irão ganhar!...
Mas, nesta minha humildade,
eu  quero, apenas,  trovar!

256 – Prof. Garcia
Eu passo a vida a cantar,
pois, cantar, faz muito bem;
o poeta quando canta
espanta os males que tem,
afasta as mágoas do peito
e os pesadelos não vem!

 257 – Gislaine
Gosto de cantar também,
cantando espalho os meus sonhos,
plantando suas sementes
tento tornar mais risonhos
os dias tristes do mundo,
que pesam porque , tristonhos! 

258 – Zé Lucas
Os momentos mais risonhos
eu desfruto quando canto
pra transmitir alegria
a quem sofre o desencanto
de não conseguir, sozinho,
afastar a dor do pranto.  

259 – Assis
A vida é dura, no entanto
vale a pena ser vivida.
E vale bem mais ainda
quando a gente faz da lida
um modo de, amando o irmão, 
dar-lhe a mão para a subida.
 
260 – Ademar
Pra ir ao fim da subida
estou de marcha engatada,
sou poeta conhecido
por ter a mão calejada;
sou retirante da seca,
um peregrino na estrada.

261 – Delcy
Chego a ficar agoniada,
quando sigo o meu caminho,
e encontro, logo a  seguir,
um irmão triste e sozinho,
que anda à procura de alguém,
que o entenda e dê  carinho!
 
262 – Prof. Garcia
Eu sou feliz passarinho
na copa das verdes matas,
sou menestrel das estrelas
em noites de serenatas,
sou colcheias latejantes
dos gemidos das cascatas!

263 – Gislaine
Relembro antigas fragatas
percorrendo o mar sem fim,
aos ventos, se aventurando,
enfrentando algum motim,
que muitas vezes parece
o que sinto dentro em mim!

264 – Zé Lucas
Dentro do mundo sem fim,
saí a buscar espaços,
onde a sorte me sorrisse,
afastando os embaraços;
encontrei muitos caminhos
e Deus aprumou meus passos.

265 – Assis
Enlaçado nos meus laços
de amizade e de afeição,
vou seguindo vida afora
numa alegre comunhão
em que a cada amigo trato
qual se fosse um meu irmão.

266 – Ademar
Quero você como irmão,
ao lado dos irmãos meus,
eu fazendo aqui meus versos
e você fazendo os seus;
trilhemos pois, o caminho
determinado por Deus!

267 – Delcy
Não sejamos  fariseus,
procuremos  ajudar
àquele que mais precisa
e junto, a nós, quer estar,
pois  somos  todos irmãos,
que precisam se amparar!

268 – Prof. Garcia
No rojão de versejar
todos nós somos estetas,
traçamos os nossos planos,
cumprimos as nossas metas,
deixando em cada sextilha
o murmúrio dos poetas!

269 – Gislaine
São as estradas completas
com versos cheirando a flor,
e a nossa terna amizade
é bem maior do que o amor,
pois unindo os corações
tem um novo brilho e cor!

270 – Zé Lucas
Há fortes doses de amor
nesta nossa poesia,
fruto de uma interação
de amizade e simpatia,
por isso Deus abençoa
os versos que a gente cria.

continua... final