terça-feira, 20 de novembro de 2012

Ana Maria Machado (Lenda grega recontada: A Tapeçaria de Aracne)


Há muito, muito tempo, na Grécia Antiga, contavam que Palas, a deusa da sabedoria (que mais tarde os romanos chamariam de Minerva), ensinava todos os segredos de fiação e tecelagem a uma moça chamada Aracne. 

Aracne era de origem humilde, mas se tornou tão habilidosa com fios e tramas que até as ninfas dos bosques e dos rios vinham vê-la trabalhar. Não só porque os tecidos que fazia eram incomparáveis, mas até porque a graça de seus movimentos tinha a beleza de uma arte, desde que puxava os chumaços de lã ou cânhamo até quando fazia novelos e meadas. E, principalmente, depois, quando a linha macia e longa se convertia em belos panos num tear ou era ricamente bordada em desenhos divinos. Divinos, sim. Pois todos os que viam o trabalho de Aracne logo concluíam que ela aprendera seu ofício com Palas, e cobriam a deusa de louvores.

Ora, quanto mais atenção atraía, mais Aracne se ofendia com os elogios a Palas e negava qualquer mérito à deusa. Até que certo dia acabou exclamando:

Sou muito melhor tecelã que Palas! Se ela viesse competir comigo, todos iam ver isso. E, se me vencesse, poderia fazer comigo o que quisesse. 

Antes de aceitar o desafio, a deusa se disfarçou e veio visitar Aracne sob a forma de uma velha, aconselhando-a a respeitar a experiência e a sabedoria dos anciãos e a reconhecer a superioridade dos deuses.

— Se você se arrepender de suas palavras e pedir perdão, tenho certeza de que Palas a perdoará — disse.

— Você está é de miolo mole, sua velha. Quer dar conselho? Vá procurar suas netas... Eu me defendo sozinha. Palas tem medo de mim. Se não tivesse, já teria vindo me enterrar.

A velha deixou cair o disfarce e se revelou em todo o seu esplendor:

— Pois Palas veio, sua tonta!

As ninfas e todas as mulheres se prostraram diante da deusa, mas Aracne manteve seu desafio. 

Sem perder tempo, cada uma das duas foi para um canto do enorme salão, com seus novelos, meadas, fios e seu tear. 

Durante muito tempo, uma belíssima tapeçaria foi surgindo em cada tear. Palas fez questão de ilustrar em seu bordado todas as histórias de mortais que tinham desafiado os deuses e os terríveis preços que tiveram de pagar por isso. Aracne, por outro lado, mostrou em sua tapeçaria os inúmeros crimes que os deuses já tinham cometido, recriados com exatidão e minúcia de detalhes. Cada uma, ao final, rematou seu trabalho com uma preciosa moldura tecida.

Ninguém se surpreendeu com a perfeição da obra de Palas. Mas quem ficou surpresa foi a deusa, pois, por mais que procurasse o mínimo defeito na obra de Aracne, não conseguiu encontrar uma única falha. Com raiva, bateu várias vezes com seu bastão na testa da tecelã. 

Não suportando a dor, Aracne passou um fio no pescoço para se enforcar. Mas Palas teve pena e a segurou, suspensa no ar, dizendo:

— Você tem má índole e é vaidosa, mas tenho que respeitar sua arte. Não admito que morra. Porém, você e seus descendentes viverão sempre assim, suspensos o tempo todo.

E, ao partir, borrifou-lhe uma poção que fez o cabelo da moça cair, a cabeça e o corpo encolherem, os dedos crescerem, e a transformou para sempre numa aranha, condenada a fabricar fio e teia até o final dos tempos. Sempre com perfeição incomparável. 

Fonte:
Revista Nova Escola

Mário Quintana (Entrevista concedida à Edla Van Steen)


Arte: Arradium
Entrevista concedida à Edla van Steen e publicada no livro: Viver & escrever. V. 1. Porto Alegre: L&PM, 2008. 

 - Você se lembra de como ou quando descobriu que podia ou queria fazer versos?

Ser poeta não é uma maneira de escrever. É uma maneira de ser. O leitor de poesia é também um poeta. Para mim o poeta não é essa espécie saltitante que chamam de Relações Públicas. O poeta é Relações íntimas. Dele com o leitor. E não é o leitor que descobre o poeta, mas o poeta é que descobre o leitor, que o revela a si mesmo. O poeta que "me descobriu" foi o Antônio Nobre do Só. Tínhamos lá em casa aquela bela edição ilustrada por Antônio Carneiro, e não sei em que mãos estará agora. A propósito, o jornalista e poeta Egydio Squeff comprou num sebo um exemplar do Só onde estava escrito: "Este é o quarto exemplar do Só que eu compro. Os outros todos me roubaram." E vinha assinado em baixo: Álvaro Moreyra. Em meu primeiro livro, A Rua dos Cataventos, tenho, por dever e devoção, um soneto a ele dedicado e mais uma referência em outro poema. Isto bastou para acusarem em mim a influência de Antônio Nobre. Protesto: não há influência - há confluência, pois a gente só gosta de quem se parece com a gente. Porém, mais remota do que a presença de Antônio Nobre, está, entre as recordações da infância, a voz grave e pausada de meu pai a recitar-me o episódio do Gigante Adamastor. Aquele ritmo severo ensinava-me a profundidade da poesia e até hoje me assombra aquele verso: "Que o menor mal de todos seja a morte". Em compensação minha mãe, educada no Uruguai, recitava-me Espronceda e Becquer: "Ya se van las oscuras golondrínas". A par disso aprendi a ler muito cedo, sem quase saber que estava lendo. E ouso afirmar que as verdadeiras influências na minha formação foram Camões e O tíco-tico.

- Tentou alguma vez escrever conto ou romance?

Aos vinte anos ganhei o primeiro prêmio num concurso estadual de contos, entre duzentos e tantos concorrentes, promovido pelo Diário de Notícias, de Porto Alegre. Depois de algumas outras tentativas, reconheci que os meus contos só tinham um personagem: eu mesmo. Desisti.

- Conte um pouco de sua infância ou adolescência.

Não sei se tive infância. Fui um menino doente, por trás de uma janela. Creio que foi a ele que eu dediquei depois um soneto de A Rua dos Cataventos. O meu "elemento" era a poesia. Comecei a ser poeta como um cachorro que cai n'água e não sabia que sabia nadar. (Sabia.) E o meio familiar ajudou. Tanto meu pai e minha mãe, como meus irmãos Milton e Marieta, a quem dediquei meu primeiro livro, gostavam de poesia. Nunca tive a clássica incompreensão da família, de que tanto se vangloriam alguns poetas. Aliás, foi meu próprio irmão Milton, quinze anos mais velho do que eu, quem me ensinou a metrificar. Como tive a infância muito presa, devido à precariedade da saúde, quando pude soltei-me no mundo. Um choque. Fui criado num aviário e solto num potreiro. Daí talvez a explicação da minha posterior e prolongada boemia.

- De quem herdou os olhos azuis?

De meu bisavô holandês Van Ryter, morto num naufrágio como bom holandês.

- Seu primeiro livro - A Rua dos Cataventos - saiu publicado em 1940, quando você tinha 34 anos. Por que tão tarde?

Preguiça e consciência. Tudo o que prejudica a minha preguiça prejudica o meu trabalho. Consciência, porque eu sempre quis fazer uma coisa muito conscienciosa.

- Depois de A Rua dos Cataventos você publicou mais nove livros. Em São Paulo, durante a "Semana do Escritor Brasileiro", em 1979, você afirmou numa entrevista que o livro de que mais gosta é exatamente o primeiro. Explique a preferência, por favor. Eu disse, ou creio que disse, que "era dos livros de que mais gostavam". É o livro de que mais gosta o público em geral. Augusto Meyer e Manuel Bandeira preferiam O Aprendiz de Feiticeiro. Carlos Drummond também (ele até fez um poema sobre O Aprendiz, intitulado "Quintana's Bar"). Por outro lado, Guilhermino César e os meus colegas poetas daqui acham que o meu melhor livro é Apontamentos de História Sobrenatural. Isto é ótimo, pois eu o escrevi, na maior parte, depois dos sessenta anos.

- Muitos poetas e escritores tiveram de pagar a edição dos seus primeiros títulos (alguns ainda são obrigados a isso). Fale do que aconteceu com você.

Como disse, eu ia deixando, adiando ... Erico Verissimo, então secretário da Editora Globo, pôs-me contra a parede. Meu irmão Milton disse-me que eu ia ficar como aquela personagem do Eça, muito gabado, muito louvado ... e nada! Reynaldo Moura, poeta e amigo, pôs-me em brios: "Se você não publicar nada vão achar que você é um boêmio. Se publicar, dirão: É um escritor! Meio extravagante ... " Ora, como eu tivesse escrito também sonetos e como o soneto era uma forma meio desmoralizada, eu fiz questão de estrear com um livro de sonetos para provar que os sonetos também eram poemas. (Provei.) Provei-o muito antes de outros fazerem "a descoberta do soneto".

- "Eu nada entendo da questão social. Eu faço parte dela, simplesmente... " Gostaria de comentar algo sobre a poesia de cunho social e político?

A poesia engajada? Eis aí uma questão com que, em certas épocas, costumam ser assaltados os poetas. Impossível não levá-la em conta quando se pensa no que fez pela abolição da escravatura um poeta como Castro Alves. Mas querer obrigar todos a serem Castro Alves é forte. E, convenhamos, uma boa causa jamais salvou um mau poeta. Essa gente poderá fazer mais pelo povo candidatando-se a vereadores. É muito de estranhar essa campanha contra o lirismo, isto é, contra 95% da poesia de todos os tempos. Nem se pense que o poeta lírico está fora do mundo. Os sentimentos que ele canta pertencem a todo o mundo, a toda a humanidade, são de todos os tempos e não apenas os de sua época - independentes de quaisquer restrições de nacionalidades, raças, crenças ou partidos políticos. Se não é assim, depois de resolvidos os problemas, o que seria dos poetas? Ficariam simplesmente sem assunto.

- Alguns autores escrevem a lápis, outros têm necessidade de ouvir o teclado da máquina. Quais são os seus hábitos para escrever? Costuma carregar algum caderninho no bolso?

Não sei pensar à máquina. Escrevo a lápis. Depois, com o queixo apoiado na mão esquerda, passo a coisa a limpo com um dedo só, na máquina. Não uso caderninhos.

- Em geral os poemas saem prontos, ou você tem apenas uma frase poética e constrói o poema em torno dela?

Às vezes a frase nem é poética. Certa vez, por exemplo, disse-me um companheiro ao observar um nosso amigo, desses do tipo "mosquito elétrico", gesticulante, etc.: "Fulano parece um boneco de engonço". Pois bem, fui para casa e escrevi um dos meus poemas mais realizados, aquele que assim começa: "Os mortos são ridículos como bonecos de engonço a que cortassem os fios". Por outro lado, meu poema O Morituro, em Apontamentos de História Sobrenatural, saiu ali publicado na sua quarta versão. E olhe lá!

- O que gosta de ler atualmente (ou gostava antigamente)? Prefere prosa ou poesia?

Leio de tudo, noite adentro, intercaladamente, novelas, ensaios, poesia. Mas, para ser sincero mesmo, parece que já passei da idade de ler coisas sérias. Em minha adolescência devorei todo o Dostoiévski (como os adolescentes liam naquele tempo, antes da era analfabetizante das histórias em quadrinhos!). Abominava Camilo, embora gostasse de Herculano. Os meus colegas adoravam Vargas Vila e Coelho Neto, que eu detestava. Pois a minha principal característica foi sempre o bom senso. Foi esse mesmo bom senso que me afastou das questões metafísicas da adolescência, pois se nem Pia tão e outros craques da Antigüidade, se ninguém, em trinta séculos de pensamento, conseguiu decifrar o significado da vida - muito menos eu! Fiquemos com o mistério da poesia. Nem foi por outro motivo que dei ao meu penúltimo livro o titulo de Apontamentos de História Sobrenatural. Há pouco você me perguntou se bastava "uma frase poética", etc. A conquista da poesia moderna é a transfiguração, acabaram-se os temas poéticos. Antes só se podia falar em cisne, agora fala-se em pato e sapato. O cotidiano, escrevi eu no Sapato Florido, o cotidiano é o incógnito do mistério. Existe a lenda do Rei Midas, que conta que tudo quanto ele tocava se transformava em ouro. O verdadeiro poeta, tudo quanto ele toca se transforma em poesia. Há poetas que sempre leio, quero dizer, aos quais sempre volto: Cecília Meireles, GarcÍa Lorca, Guillaume Apollinaire.

- "Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam apócrifos", você disse na Carta a um Jovem Poeta. O que vem a ser esse medo?

Tenho medo de ceder a injunções que não sejam a da pura expressão. Pois a gente sente necessidade é de expressão. A badalada comunicação é apenas uma decorrência disso. Um poeta deve escrever como se fosse o último vivente sobre a face da terra. - Então, para que escrever? - Por isso mesmo! Como o último vivente, ele não tem de pensar no que pensarão os outros. Às vezes - às vezes? - muita vez o poeta é induzido a modas, quando na verdade não há nada tão ridículo como os figurinos da última estação. Só nunca sai da moda quem está nu.

- Entre outros autores você traduziu Proust e Virginia W oolf. Foi amor pelas obras ou alguma necessidade financeira que o teriam levado à tradução?

Traduzi Proust por amor à dificuldade da tradução. Quando soube que Proust estava incluso no programa editorial da Globo, pedi para traduzi-lo, por medo que caísse em outras mãos. Retirei-me do quadro de funcionários da Globo quando, por ocasião de um aumento de salário, eu não fui contemplado, sob a alegação de que me demorava muito na tradução de Proust. Traduzi da primeira até a quarta parte (Sodoma e Gomorra). Por felicidade, o restante foi cair em excelentes mãos (Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade). E Virginia Woolf? Pois foi isso mesmo: eu não tive medo de Virginia Woolf! Mrs. Dalloway é um denso, belo, misterioso poema. Brito Broca julgou a minha tradução à altura do autor. Fiquei contente de ter sido o outro livro de Virgínia (Orlando) traduzido por um poeta como Cecília Meireles. Em tempo: quem me introduziu na vida literária foi Cecília Meireles. Lembro que ela publicou a Canção do Meio do Mundo no suplemento do Diário de Noticias, com uma bela ilustração de Correia Dias. Outro que sempre fez muito por mim foi Augusto Meyer, o nosso último humanista. O que mais me admira em Augusto Meyer é a admiração que eu tenho por ele. Embora apenas quatro anos mais velho do que eu, sempre o considerei um mestre. A saudação que ele me fez de improviso na Academia Brasileira de Letras em 1966, o Aurélio Buarque de Holanda me confessou que era uma obra-prima, com o perdão da palavra. Não sei se foi gravada.

- No seu entender, o que é uma boa tradução?

Aquela que segue o estilo do autor, e não o do tradutor. Os períodos de quadra e meia de Proust (sim, o período dele dava volta na quadra) não poderiam ser divididos em pedacinhos, por amor da clareza ou coisa que o valha, como acontece às vezes na tradução castelhana. Mas a maior alegria que tive como tradutor foi quando a minha tradução dos Romans, Voltaire, um calhamaço enorme. Com jóias como Cândido e A princesa da Babilônia, foi remetida à apreciação de Paulo Rónai, especializado em literatura clássica francesa. Ele devolveu os meus originais com a seguinte nota: “É preciso ortografar”. A tradução de Voltaire foi também a meu pedido. Você há de espantar-se que eu, assombrado com Camões, envolto de Virginia Woolf, tenha me comprazido na luz mediterrânea de Voltaire. A culpa foi também de meu pai, que adorava La Fontaine e me fez decorar algumas de suas fábulas antes que eu as pudesse ler. Assim as névoas e perigos do Cabo Tormentório eram varados pelo riso claro e simples do bonhomme fabulista. Não admira, pois, que, mais tarde, eu adorasse Racine, a par de Shakespeare. Cheguei a começar por conta e risco uma tradução da Ifigênia, de Racine, e do Sonho de uma noite de verão, as quais infelizmente se perderam. Ou felizmente, nunca se sabe. Bem, eu estava falando nas minhas atuais leituras. Há uma época de ler e uma época de reler, como diria o Eclesiastes. Agora, para descanso, estou na época de desler. E, como continuo insone (uma vez escrevi que não tenho medo do sono eterno, mas da insônia eterna), agora leio principalmente para adormecer. É uma leitura de fora para dentro, como quem olha distraidamente a televisão. As outras leituras, as leituras de dentro para fora, excitam o cérebro e não são recomendáveis no meu caso. Leio ficção científica, uma espécie de volta a O tico-tico. A falar verdade, o que de melhor e pior se publica atualmente nos Estados Unidos são as novelas de ficção científica. Entre elas, descobri as de um grande poeta, Ray Bradbury. É dessas obras que a gente gostaria de ter escrito.

- Você gosta da literatura norte-americana?

Gosto de Scott Fitzgerald, o que não é de admirar porque ele pertence à minha geração: o mesmo caldo de cultura, a mesma sensibilidade. Gosto de Edgar Poe, e eu não compreendo como é que ele foi aparecer por lá. Deve ter havido um engano de país ou de planeta. Gosto de Gertrude Stein (Três Vidas eu já li outras tantas vezes).

- Só?

Só. Não esquecer que minha infância se passou na belle époque, quando até os americanos sabiam falar francês. Tenho uma amiga que foi para a Alemanha apenas sabendo francês. Como eu lhe observasse que era pouco, ela respondeu: "Não vale a pena conhecer alemães que não saibam francês". Aproveito a ocasião para lançar o meu protesto contra essa idéia de tirarem a língua francesa do currículo escolar. O que devemos à França não é a cultura francesa, é a cultura universal. Toda obra, para universalizar-se, teria de passar pelos tradutores franceses. Se não fosse a França. o mundo ocidental teria perdido Dostoiévski. Imagine você o que teríamos de conhecimento da alma humana se não conhecêssemos Dostoiévski. Nada. Ou quase nada. Pois me lembrei agora de Shakespeare. Mas a minha queixa é contra os americanos. Já disse e repito que, se há males que vêm para bem, há bens que vêm para mal. Exemplo: os Estados Unidos ganharam a guerra. Resultado: o povo, em geral, só lê os best-sellers americanos que eles nos impingem. São tão ruins que chego a acreditar que sejam apenas literatura de exportação. Enquanto isto, os livros brasileiros bons não são reeditados. Nem são reeditadas as traduções de bons livros estrangeiros. Onde está, por exemplo, a minha tradução de Poeira, de Rosamond Lehman, o meu Sparkenbrook, de Charles Morgan?

- Você tem sido bastante estudado pela crítica brasileira? O que pensa?

Nem tanto. Transcrevo aqui o final do meu verbete no Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira, de José Paulo Paes e Massaud Moisés: ( ... ) "O enganoso ar 'passadista' de boa parte da obra de M. Q., marginalizando-a no contexto da poesia brasileira posterior a 22, fez com que a crítica negligenciasse, as mais das vezes, o que há de refinadamente original no seu humor sutil e na sua diáfana melancolia". Dos que disseram bem do autor, isto é, dos que compreenderam e sentiram o autor, cito, por um dever de gratidão, o belíssimo estudo, com antologia crítica, de Fausto Cunha, em Leitura Aberta, quase uma terça parte do volume, e os estudos de Augusto Meyer em A Forma Secreta, Paulo Mendes Campos em O Anjo Bêbado. É muito significativo o meu verbete no Dicionário da Literatura Brasileira e Portuguesa, de Celso Pedro Luft.

- O trabalho crítico tem algum efeito sobre você ou na sua obra?

Nenhum.

- Quem teria sido o crítico mais sensível à sua poesia?

Augusto Meyer e Fausto Cunha. Os outros, os doutrinários, em vez de me julgarem pelo que eu sou, julgam-me pelo que eu não sou. É como quem olhasse um pessegueiro e dissesse: "Mas isto não é um trator!" Em todo caso, tive "o amor dos grandes", como escreveu Gustavo Corção a meu respeito: Cecília, Drummond, Augusto Meyer, Bandeira...

- Aliás, se não me engano, foi no prefácio dos Apontamentos de História Sobrenatural que você disse que nunca evoluiu. Que foi sempre o mesmo. Não acredita no aprimoramento técnico etceterá e tal?

No fundo, sou sempre o mesmo. Só acredito em poema escrito de dentro para fora, e não de fora para dentro, isto é, os que são como redações, que até podem tirar grau 10, mas não passam de temas escolares. Aliás, um tema é sempre um ponto de partida e nunca um ponto de chegada, da mesma forma que as bem-amadas são um pretexto para o amor. Quanto à técnica do poema, isto já é outra coisa. O poeta tem de criar ele mesmo a sua arte poética. Mas não se cristalizar nela. Aí seria então um poeta satisfeito. E um poeta satisfeito não satisfaz. Tenho tratado sempre de despojar-me. Muita vez sacrifiquei uma bela imagem em prol da unidade e do equilíbrio do conjunto. Em suma, para cada poema urna arte poética. É preciso evitar o excesso de inspiração. Ah, as associações de imagens! Elas vêm vindo, vêm vindo, até que o poema parece um desses altares barrocos, tão cheios de anjinhos que a gente não enxerga o santo. Mas escrevo tudo. Depois guardo. Deixo passar o tempo. Até esquecer o poema. Quando vou relê-la é como se fosse de outra pessoa. Aí vou cortando, para só deixar o que julgo essencial.

- Que critério deve ter um poeta ao selecionar poemas para uma antologia? O cronológico, como o adotado por você em Apontamentos de História Sobrenatural?

Ao compor a edição de meus outros livros, dividindo os poemas por afinidades entre eles, ao reuni-los depois num volume só, aconteceu que os críticos apressados, ao ler Poesias, julgaram o todo pela primeira parte. Quando adotei em Apontamentos a ordem cronológica, descobri, pela reação dos leitores, que era a melhor. Pois bem se pode dizer dos poetas o que disse dos ventos Machado de Assis: "A dispersão não lhes tira a unidade nem a inquietude a constância".

- O que significam na sua obra os livros infantis?

Fazem parte do menino que faz parte de mim. O Pé de Pilão creio que é uma história que eu contei mais para mim mesmo. Foi escrito à maneira da poética infantil, porque as crianças gostam muito de rimar. As brincadeiras delas são rimas em parelhas. Assim: "Olha a Gabriela cuma cara de panela. Olha o João cuma cara de feijão." Coisas assim. Nada mais que duas linhas. Eu consegui escrever uma história dentro dessa poética infantil: duas linhas, ponto, duas linhas, ponto, duas linhas, ponto. E parece que não perdeu a naturalidade, porque as crianças gostaram. Já vai para a quinta edição. A propósito, na década de 20 vi Monteiro Lobato num famoso sebo do Largo da Sé (não sei se ainda existe). Disse-lhe que adotava os seus livros infantis. Resposta de Lobato: "Isto é que me deixa com a pulga na orelha: eu escrevo para criança e barbado é que gosta". Respondi-lhe que tinha "uma imundícia de sobrinhos" (vi que ele gostou da expressão, não sei se tomou nota), e que os meus sobrinhos eram doidos pelas suas histórias. De modo que eu comprava os livros para eles, mas antes os devorava (os livros). Ora, uns dez anos depois estava eu na minha cidade natal (Alegrete) e lá eram publicados, mais ou menos mensalmente, os Cadernos do Extremo Sul. Pediram-me colaboração. Tinha eu uns pensamentos. Mas achei que umas sentenças isoladas pareceriam algo pedante e ridículo, como se eu quisesse bancar o Marquês de Maricá. Resolvi enquadrá-los em quartetos. Eram dez ao todo. O diretor da publicação enviou-a a Monteiro Lobato. Monteiro Lobato leu e gostou. Entregou à UJB, que os distribuía pelos jornais do interior (pelo mundo, disse Lobato), e pediu-me em carta que arranjasse mais, para serem publicados em livro. Entreguei-me então esportivamente à luta com as palavras. Essa luta parece que não termina nem no outro mundo. É pelo menos o que está escrito no último soneto de A Rua dos Cataventos:

Hei de levar comigo uns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão.
Que lindo a Eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da expressão!

Por falar em conhecimentos ilustres, fui ao Rio em 1966 para lançar a minha Antologia Poética a pedido expresso de Manuel Bandeira, o qual me escreveu instando-me que fosse, pois não podia viajar porque já estava com oitenta anos e queria dar-me um abraço antes. Escrevi-lhe: "Isto não é um pedido. É uma ordem. Irei. Mas você não imagina como eu sou chato no intervalo dos poemas." A primeira vez que vi Manuel Bandeira foi no Rio, em 35, quando Egydio Squeff e eu estávamos sentados num banco do Passeio Público, ocultos por umas palmas. Bandeira passou, lento, cabisbaixo, mãos às costas. Gritamos: "Manuel!" Ele virou-se, olhou para o busto de Castro Alves e continuou imperturbável o seu caminho. A última vez que falei com Manuel Bandeira, por assim dizer não falei com ele. Era num almoço da Editora José Olympio e quem falou todo o tempo foi Ivan Pedro de Martins, que estava à nossa frente e nos fez uma preleção sobre poesia, aliás belíssima.

- Sei que você não gosta de dar entrevistas ...

Poeta lírico, falo do meu eu, nos poemas, como ser humano. Mas acho incorreto estar falando sobre minha pessoa. Creio que a minha vida íntima nem a mim interessa. Quando a gente fala sobre si mesmo é para se gabar ou para se queixar. No primeiro caso, ainda passa. Mas, no segundo, ninguém gosta de despertar piedade. Disse que minha infância transcorreu na belle époque, mas isso implica uma disciplina vitoriana em matéria de educação. Como eu era o caçula, todos me observavam, me aconselhavam, me dirigiam. Havia um mundaréu de coisas que não se podia dizer, que não se podia fazer. A tragédia dos da minha geração é que nascemos e fomos criados numa casa de intolerância.

- Mas aquele ambiente familiar de poesia a que você se referiu ...

Era um mundo paralelo. Meus pais, embora lhes agradassem meus poemas, temiam a "vida de poeta". Seria bom você ler, em Apontamentos de História Sobrenatural, "O Velho e o Espelho", em que se nota a comovente tragédia pai-filho. Mesmo depois que vim para um internato em Porto Alegre, notei que certo bedel se interessava muito pelo que eu fazia. Desconfiei. Preguei-lhe algumas mentiras. E, nas férias seguintes, meu pai me falou naqueles inocentes pecadilhos inventados. Na adolescência, como eu sempre fui eu mesmo, queriam saber de onde é que eu tirava "aquelas idéias". Tempos depois, vim a saber que meu pai fora à Biblioteca Pública do Estado informar-se sobre que livros eu lia. Consultado o fichário, verificou-se que as minhas leituras, feitas nas tardes e noites de sábado, eram os novelistas russos, os poetas simbolistas franceses, as revistas de arte européias. Dessas e de outras leituras formativas, falo eu a páginas tantas de A Vaca e o Hipogrifo, creio que para desculpar-me de certas acusações de europeísmo. Puxa! É o diabo ser diferente! Certa vez, numa redação, escrevi eu: "Vasco da Gama transportou as Colunas de Hércules para a Índia". Creio que o professor morreu sem acreditar que a imagem fosse minha mesmo.

- Então a poesia só lhe trouxe transtornos!

A poesia só pode trazer alegria, a alegria criadora que, como no ato genésico, apaga tudo o mais. Em todo caso, os tempos mudaram. O fato de a Câmara de Vereadores conceder-me unanimemente, na passagem de meus sessenta anos, o título de Cidadão Honorário de Porto Alegre, pelo simples motivo de ser poeta, é uma prova de que outros ventos estão soprando. Tanto que, na minha fala de agradecimento, aliás brevíssima, disse eu: "Antes, ser poeta era um agravante. Depois, passou a ser uma atenuante. Vejo agora que ser poeta é uma credencial." Outra coisa que achei extraordinária - e no mesmo sentido - foi que Alegrete, minha terra natal, resolveu gravar um poema meu em praça pública: a principal da cidade. Fiquei numa situação terrível, aquilo já tinha sido votado, mas como é que eu ia escolher um poema? Se eu achava que não poderia escolher, muito menos outros poderiam. Mas eu não podia cometer a grosseria de recusar. Em discussões que tive com o prefeito e o presidente da Câmara, disse-lhes que não podia escolher um poema porque um engano em bronze (- um engano eterno. Discutiu-se, discutiu-se, e ficou assentado que ficaria apenas isto na placa: "UM ENGANO EM BRONZE É UM ENGANO ETERNO". MARIO QUINTANA (palavras com que o poeta se eximiu a que fosse gravado um poema seu, nesta praça, como justa homenagem de seus conterrâneos). ALEGRETE 1968. Acho que este é um monumento único no mundo - foi uma grande solução. E, depois disto, no caso de não sobrar nada do que fiz, eu lavo as mãos, Alegrete lava as mãos e a posteridade toma um banho de corpo inteiro nas águas do Ibirapoitã.

- Tenciona escrever, já escreveu um livro de memórias!

Se você conhecesse o meu eletroencefalograma... Bem, temo o perigo das falsas recordações. Embora não acredite na observação direta, acontece que tenho tal poder de visualização que às vezes não sei se aquilo que evoco eu vi mesmo ou foi algo que me contaram, ou apenas imaginei. Mas há muito descobri que a mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer. Como vê, nada disto leva a um livro de memórias, só pode levar a um livro de poemas.
o poema,

essa estranha máscara,
mais verdadeira do que a própria face ...

- Você falou nas homenagens oficiais que lhe valeu a poesia. Que me diz da Academia?

As homenagens que recebi foram espontâneas, não partiram de mim ou dos meus empenhos. Quanto aos prêmios literários, tanto o Fernando Chinaglia, 1966, para o melhor livro do ano, como o Prêmio Pen Clube de Poesia, 1977, para os Apontamentos de História Sobrenatural não dependiam de inscrição. Para a Academia é preciso o próprio candidatar-se, mexer os pauzinhos. Ainda mais, eu tenho a coragem de não animar-me a solicitar pessoalmente o voto a cada um dos acadêmicos, como é de praxe obrigatória. A vida do acadêmico, por outro lado, é dispersiva. As Academias são uma espécie de sociedades recreativas e funerárias. Você sabe como é, não precisa explicar mais. Nada como o silêncio e o recolhimento para a criação. Antes, nas histórias da literatura, vinha assim: "No Rio Grande, Érico Verissimo, Augusto Meyer, Alcydes Maya, Eduardo Guimarães e outros". Nesses outros eu me sentia orgulhosa e anonimamente incluído. Agora passei para os citados. O que importa em entrevistas, tevês, homenagens ... Isso é também uma vida dispersiva. Você não imagina a inveja que eu tenho de mim mesmo quando eu era os outros. Não gosto de estar sendo exibido como um macaco sábio. Sei que me acusam de introversão. Se eu fosse de fato um introvertido, não faria poemas. Pelos poemas sinto-me compensado, especialmente por causa do público jovem. Pois isso prova que, tendo eu atravessado umas três gerações, conservo leitores em todas elas, inclusive a minha. Portanto, deve haver algo de permanente na minha poesia.

- Aos 73 anos de idade, Mario, valeu a pena ser poeta?

Valeu e vale.

Fonte:
Escritores do Sul
(este site foi desativado)

Mário de Carvalho (Vaudeville)


(Foi mantida a grafia original)

Como de costume, à hora do almoço, Gilberto entrava no gabinete de Isabel, a directora de serviços, com papéis graves na mão, ávidos de boa ponderação e despacho, e logo fechava a porta à chave, atrás de si. Isabel recebia-o com um brando sorriso e indicava-lhe o grande sofá, forrado de napa castanha.

O edifício estava vazio, zumbiam as moscas, o pessoal almoçava, e os dois amantes iniciavam o seu ritual, rápido, às vezes tumultuoso, sempre com o travo picante da transgressão e o risco de escandaloso processo disciplinar, no caso de serem reduzidos a auto os rumores que já circulavam em todo o departamento.

Gilberto tinha a suspeita insidiosa de que partilhava Isabel pelo menos com metade da população masculina ao norte do Tejo, e a consciência do carácter caprichoso e efémero daquela relação. Mas o que havia começado de um modo um tanto indiferente, descontraído e relaxado, absorvia-o neste momento por completo, com o sabor da passagem triunfal dos limites. Durante aquela hora em que prevaricavam, Isabel queimava pauzinhos de incenso, cujos vapores tinham depois de expulsar pela janela aberta, numa azáfama divertida e excitada. Pelo resto do dia, tratavam-se com um «senhor doutor», «senhora doutora», cerimonioso e distante, a propósito de assuntos de serviço. Ao fim da tarde, partia cada qual para seu cônjuge, na fila dos funcionários em regresso.

E, assim, imperceptivelmente, mais e mais se fora firmando o empenho de Gilberto naquela ligação, estimulado pela sua própria escassez, celeridade e incompletude.

Mas Gilberto mostrava-se hoje tenso e enervado. Não fechou a porta à chave, recusou o sofá grande, atirou com os papéis para uma cadeira, aplicou ambas as mãos sobre a secretária e exclamou, dramaticamente:

«Estamos perdidos!»

Isabel não se alterou. Com uma suave compostura de gestos, acendeu um cigarro, deu um jeito ao cabelo e perguntou, num tom levemente zombeteiro:

«Credo! Então?»

«Já sabes quem vem substituir o Emanuel?7»

«Já... É uma tal Elsa Gonçalves, das Contribuições e Impostos. Tenho para aí o processo em qualquer lado...»

«É que, minha querida, a Elsa é a melhor amiga da minha mulher. E, sobre isso, a maior coscuvilheira e contadeira de coisas da Função Pública.»

«Hum...», inquietou-se Isabel.

«Se ela suspeita de alguma coisa vai logo a correr contar à minha mulher. E agora?»

«E agora é preciso sangue-frio, meu querido», sussurrou Isabel, sorrindo. E aproximou-se, depois de esmagar o cigarro no cinzeiro.

No dia seguinte, Elsa já ocupava, alegremente, a sua secretária, frente à de Gilberto. Em sinal de posse, instalara sobre o tampo uma caixa de lápis, uma moldura com fotografias e um relógio de calendário. Por parte de Isabel a recepção foi reservada e cortesmente distante, como era de esperar do desnível hierárquico. Já Gilberto foi expansivo e ruidoso nos cumprimentos e colaborou, zelosamente, com o meticuloso arrumar das gavetas de Elsa.

«Onde é que almoças?», perguntava Elsa às tantas.

«Ah, fico até mais tarde e depois talvez vá almoçar com uns tipos conhecidos, da Associação dos Amigos dos Castelos. Não esperes por mim. Olha, há por aqui uns restaurantes baratos, do tipo come-em-pé...»

Foi desesperado que, uma hora depois, Gilberto entrou no gabinete de Isabel com as pastas costumadas na mão:

«É o fim... Imagina que agora até quer almoçar comigo. Inventei uma desculpa, mas, bem vês, a situação é embaraçosa...»

«De facto, preferia não me envolver em mexerufadas», respondeu Isabel, tranquilamente, enquanto ia sublinhando a vermelho os períodos mais significativos de um longo documento em papel pautado. «Imagina que a tua mulher vinha aí fazer-me uma cena... ou que o meu marido acabava por saber ê àparecia a pedir-te contas... Desagradável, hem? Burlesco...»

Isabel arrumou cuidadosamente o papel azul e só então levantou os olhos para Gilberto:

«Quer-me parecer, meu querido, que vais ter de usar de muita diplomacia...»

«E se nos passássemos a ver mais tarde, depois do serviço? À noite, sei lá... Sempre tenho a desculpa dos Amigos dos Castelos...»

«Bem sabes que é impossível. Então, e o Raul?»

Compenetradamente, ambos estudaram a situação. Isabel serenamente sentada à secretária, e Gilberto medindo o gabinete a grandes passadas e expelindo túrgidas baforadas de fumo. Dessa vez, ninguém se lembrou dos pauzinhos de incenso.

«Há só um processo», acabou por dizer Isabel com alguma hesitação. «Rouba-lhe a amizade da tua mulher. Trata-a bem, liga-a a ti, enfim, corteja-a...»

Gilberto irritou-se. Falou alto:

«Mas cortejar, como? Aquela voz áspera, aquele corpo desengonçado... Minha querida, é seduzir a Olívia Palito, é namorar um gafanhoto...»
«Não se pescam tmitas a bragas enxuitas», replicou Isabel secamente. «Amanhã vais almoçar com ela. Depois, veremos...»

Elsa, durante o almoço, falou, falou... Tinha um assunto predilecto: a família e os filhos; e um inimigo favorito a quem chamava «as pessoas»: «as pessoas» eram tão ruins, «as pessoas» eram tão maledicentes, «as pessoas» eram tão incompreensivas.. .

Gilberto notou que ela vestia com um gosto apurado e que não era de todo deselegante aquele gesto de cigarro abando nado entre os dedos, com a mão descaída.

Já de volta, dizia-lhe Elsa:

«Ah, creio que me vou dar bem por aqui...»

E, durante a tarde, assediou a secretária de Gilberto, pedindo informações, pedindo dados, pedindo documentos... Por várias vezes Gilberto teve que esconder com a mão o bilhete, destinado a Isabel, em que dava conta de algum desespero, muita impaciência e sofredoras saudades.

A mensagem terminava com um post-scriptum imperativo: «E vê se consegues remetê-la para uma reunião, para um encontro, para um congresso, de preferência no estrangeiro...»

À saída, em resposta, Isabel passou por ele e segredou-lhe, com um sorriso:

«Vamos, vamos, porta-te bem...»

Mas no dia seguinte, a meio da manhã, Elsa perguntava-lhe, muito jovialmente:

«Então, almoça-se?»

Gilberto, sem levantar os olhos dos papéis, resmoneou que não dava jeito, que tinha de ir a despacho com a chefe.

«Não faz mal, eu espero.»

«Olha que posso demorar e, depois, sabes, os restaurantes ficam cheios...»

«Não tem importância, eu espero. Sempre é melhor que almoçar sozinha.»

Isabel estendeu-lhe a cara, quando entrou no gabinete, à hora habitual, mas Gilberto ficou-se por um beijo silencioso e fugaz:
«Ela está lá fora à minha espera...»

«Irritante, hã?»

«Ouve, temos de arranjar maneira de nos vermos noutro lado. Podíamos, talvez, uma destas tardes...»

«Impossível, com este serviço. O director-geral não me larga. Estás a ver?» E Isabel apontava as resmas de papel, em cima da secretária. «Além disso, não quero, nem de longe nem de perto, que o Raul desconfie de nada, percebes?»

Gilberto deixou-se cair no sofá com irritação: «Bolas! »

Com alguma impaciência, Isabel arrumou os óculos-de-ver-ao-perto, dispôs o pesa-papéis, figurando a Vitória de Samotrácia, sobre um monte de ofícios e voltou-se, maternalmente, para Gilberto:

«É como te disse: só há uma solução. Tens de lhe ganhar a confiança, ou melhor, a cumplicidade, entendes? A cumplicidade.»

«Mas olha, Isabel, por que não ganhas tu a cumplicidade dela? És a directora, podias, enfim, convidá-la para almoçar, chamá-la mais ao teu gabinete...»

«Ingénuo, meu pobre ingénuo...», sorria-se Isabel, «mas as razões são mais que óbvias... És tu quem pode defender esta relação, não eu.»

Foi de sobrolho derribado que Gilberto partiu para aquele almoço. A frustração, o sentimento de injustiça por ter deixado Isabel mais uma vez sozinha (mas ficaria mesmo sozinha?) amarguravam-no e induziam-lhe nas réplicas um sarcasmo contumaz.

Mas Elsa era totalmente invulnerável à ironia e indiferente a semblantes sombrios. Aparentava, contra todas as evidências, uma exuberante felicidade por se encontrar de novo em companhia de Gilberto:

«A tua mulher? E os miúdos?», perguntava. «Pensar que somos vizinhos, que nos conhecemos há tantos anos e que praticamente não nos vemos. Não tarda, vamos fazer-vos uma visita, está bem?»

«Com todo o gosto», respondia Gilberto. «Assim eu esteja em casa. Sabes, há aquelas reuniões dos Amigos dos Castelos...»

Mas já Elsa, mordiscando uma azeitona, faceiramente, mudava de assunto e inquiria:

«Olha lá, a nossa chefe, que tal?»

«Que tal, o quê?»

«Parece-me que não gosta muito de mim. Trata-me com rispidez, com secura. E eu ainda mal cheguei...»

«É isso, tu mal chegaste. São imaginações tuas. Ela é uma excelente pessoa, trabalhadora, justa... Não ligues, vais ver que não há-de ser nada...»

Elsa encarava-o agora, a face pousada nas palmas das mãos, o olhar penetrante:

«Mais uma gotinha de vinho?», queria saber Gilberto.

, «Só um tudo-nada», respondia Elsa. «É que depois posso ficar tonta...»

Mas Gilberto já pedia para dentro mais um jarro de branco, bem fresco.

Estavam ambos muito animados, à sobremesa. Gilberto despejou um imenso repertório de histórias vagamente brejeiras. Elsa ria, ria. Em dado momento, como para pedir tréguas, pousou a mão na de Gilberto, que achou a pressão magneticamente vibrátil.

«Ai, as horas que são!», assustou-se Elsa.

Fingiram que se apressavam, no caminho para o serviço.

Gilberto brincava: ora estugava o passo, ora o abrandava, com uma moleza indolente, ora parava numa montra, ora dava corridinhas breves. EIsa ralhava e ria.

Já à porta, Elsa estacou e empurrou-o, muito faceira: «Sabes, não é por nada, mas estou convencida de que a nossa chefe gosta muito de ti...»

Quando Gilberto reagiu, já Elsa tinha fechado a porta do elevador e subia, fora de alcance.

Ao outro dia, Elsa faltou.

Eram dez horas, onze, onze e meia, não tinha ainda chegado.

Gilberto foi esperando e retardando o momento de entrar no gabinete de Isabel com um pretexto qualquer, sempre sobraçando um molho de documentos:

«A Elsa falta! Podemos ver-nos à hora do almoço?»

«Não és obrigado! », respondeu Isabel com rispidez, sem despegar olhos dos papéis.

Gilberto mostrou-se estupefacto. Quis protestar. Tossiu e ia replicar quando Isabel o despediu:

«Até mais logo, meu querido, até logo, agora tenho que trabalhar...»

Mas à hora do almoço desarmava toda a fúria acumulada por Gilberto com uma exuberante demonstração de ternura. Queimaram incenso, nessa tarde. E dispersaram os cheiros, infantilmente, aos gritinhos.

Mas Isabel amuou, de repente, de braços cruzados sobre o peito, sentada no sofá. Que tinha?

«Oh, nada», respondeu. E, depois, abraçando-se a Gilberto: «Por favor, não estragues esta relação, toma cuidado...»

Quando Gilberto, um pouco mais tarde, de mente confusa, saía do gabinete de Isabel, já Elsa trabalhava à secretária, muito atenta, alinhando números com a máquina de calcular.

Durante largo espaço, Elsa foi lidando com os seus papéis. Volta e meia, atardava-se, de lápis na boca, a procurar ideias nas volutas do cigarro, e logo mergulhava na elaboração frenética de um relatório.

Desta vez, nada perguntava a Gilberto, contra os hábitos já instituídos. Afectando uma distracção distante, este não a perdia dos olhos, um tanto impaciente, na espera de ser, enfim, interpelado.

Considerava uma vez mais a graciosidade daquele gesto de cigarro desamparado entre os dedos e, sobretudo, admirava a vivacidade do belo vestido cor de cereja que EIsa trazia naquela tarde.

Superficial? Um pouco desengonçada? Talvez... mas um gafanhoto... era exagero. E, depois, aquele voltear da mão...

Só muito tarde, próxima a saída, Elsa rompeu o atarefado silêncio:

«Esta manhã fui buscar o carro à garagem. O meu marido vai para a Holanda e eu quis o carro afinado antes de ele se ir embora. Dou-te boleia?»

Quando Elsa, nesse fim de tarde, o ajudou a abrir a porta do carro do seu lado, Gilberto não se distraiu do corpo dobrado sobre o seu, nem do perfume silvestre, nem da maciez da pele. Durante o percurso, manteve-se imperturbável, conversando serenamente sobre banalidades. Mas, mais tarde, pela noite fora, aquele vestido cor de cereja veio-lhe repetidamente àideia.

«Bom, ao fim e ao cabo tenho instruções a cumprir: devo seduzi-la», ria-se de si para si. Mas não tinha muito a certeza de estar a brincar...

No dia seguinte, Isabel mostrava-se ocupadíssima, enervadíssima:

«O índice de preços? Põe aí...»

Depois, suspendendo o gesto:

«A tua nova conquista, como vai?»

«Preciso urgentemente de estar contigo.»

«Bem queria eu... Mas olha», e volteava as páginas da agenda, «vê bem, às dez com o director-geral, às onze e meia com os tipos de Trás-os-Montes, às duas, outra vez com o director-geral. Hoje é impossível, meu querido.»

«E depois do serviço?»

«Nada a fazer. Tenho de estar no emprego do Raul às seis. Jantamos hoje em casa dos meus sogros.»

E ao dizer isto, já Isabel se levantava, arrepanhando papéis de cima da mesa.

Sentado agora sozinho em frente de Elsa, Gilberto sabia que Elsa dava por estar a ser observada. O silêncio era apenas roçado pelo leve sinal da máquina de calcular dela. O cigarro sempre abandonado na mão, um ar de serena reflexão, um vestido amarelo, não tão vistoso como o de cor de cereja, mas, ainda assim...

Num sorriso intercalado entre duas baforadas de fumo: «Almoçamos?», perguntou Elsa.

«Decerto...»

E durante o resto da manhã continuaram enfronhados nas suas rotinas.

«Vamos?», interpelou Gilberto, olhando para o relógio: «Meio-dia e meia...»

Mas Elsa, debruçada do parapeito da janela, olhava agora o Tejo:

«Já viste já a luminosidade deste rio? Chega a ser agressiva...»

Gilberto aproximou-se, considerou que o Tejo corria, de facto, luminoso, mas, agressivo, seria exagero... E, sem perceber como, viu-se enlaçado com Elsa que exclamava, com voz alterada:

«Não sei, não sei como isto pôde acontecer...»

EIsa, ao almoço:

«Temos de arranjar um tempo e um espaço só para nós. Estou farta de te ver entre papéis.»

«Mas só lá vão três dias...»

«Não importa, estou farta! Quero ter-te só para mim. Faltamos uma destas tardes, está bem?»

«E a chefe?»

EIsa sorriu, dobrou e alisou o guardanapo, hesitou, titubeando um pouco, e disse:

«Não leves a mal o que vou dizer, mas... há ocasiões em que é preciso agir com tacto. Tu sempre és homem, percebes? Tens de procurar insinuar-te mais, seduzi-la um pouco. Enfim, obter-lhe a cumplicidade. A cumplicidade, estás a compreender?»

Fonte:
Mário de Carvalho. Contos Vagabundos. Lisboa: Editorial Caminho, 2000.

Teatro de Ontem e de Hoje (Besouro Cordão de Ouro)


O espetáculo se baseia na história de um mestre capoeirista do início do século XX para recriar o clima e a cultura dos rituais afro-brasileiros.

Manoel Henrique Pereira, nascido em 1885 e conhecido como o capoeirista Besouro Mangangá, ou simplesmente Cordão-de-Ouro, é citado no livro Mar Morto, de Jorge Amado. O interesse pela personagem faz o compositor e letrista Paulo César Pinheiro empreender uma pesquisa que leva ao texto teatral e à composição de dez músicas para o espetáculo, cada uma delas homenageando um toque de berimbau da capoeira.

'A peça busca preservar o caráter lendário, fazendo a história de Besouro desfilar ao sabor dos relatos de outros célebres capoeiristas, que levaram adiante o seu legado de arte e irreverência', diz o texto do programa. A história do capoeirista não é contada em forma de uma biografia linear, mas por meio de pequenas narrativas, causos, cantos e dança.

João das Neves, é ex-integrante do Grupo Opinião e um dos símbolos do teatro de resistência ao regime militar nos anos 1960. Ele dirige o espetáculo que, por intermédio do protagonista, dá voz à cultura brasileira de origem africana. A sonoplastia ao vivo utiliza um violão e instrumentos de percussão - berimbau, atabaque, pandeiro, agogô e apito.

Com um subtítulo que afirma que o espetáculo é 'um dos mais emocionantes e bonitos da temporada', a crítica Barbara Heliodora do jornal O Globo comenta: "A direção de João das Neves (com assistência de Bya Braga) tem o grande mérito de preservar o talento inato de seus intérpretes, com marcas que favorecem a imagem do espontâneo e um contato próximo porém não invasivo com o público, que se sente a todo momento provocado a acompanhar o ritmo com palmas. Nada poderia ilustrar tão bem a disseminação do mito de Besouro quanto o momento em que todos os elementos do enredo masculino contam, ao mesmo tempo, diferentes histórias de sua vida. É um trabalho excepcional. (...) Besouro Cordão-de-Ouro é um momento precioso do teatro e da descoberta do Brasil..." [1]

Notas
[1]HELIODORA, Barbara. Uma Preciosa Descoberta do Brasil, O Globo, Rio de Janeiro, 21 dez. 2006.

Fonte:

Peregrino (O Louco)


Era tarde, o sol já estava se despedindo depois de mais um dia exaustivo de calor.  Labutando em seu céu esplêndido e vasto. Comecei a refletir sobre o sol. Vendo-o em sua rotação, mas quem estava em rotação era a terra não o sol. Mas da forma como eu via era o sol quem girava, isso basta. Era tarde já trocando de cor para noite. Mas o sol ainda me deixava em estado de reflexão. Meu pai deveria ser um sol. Brilhando em nossa família, alimentando-nos e nos dando o colo quente de um fim de noite, após a janta. Meu pai não poderia ser um sol à noite. Entretanto como no universo era escuro parecendo noite perene, e brilhava o sol na intensidade dos seus 5000 graus, ainda posso concluir que meu pai era um sol, para mim e meus irmãos, mesmo no escuro. Ele nos aquecia e nos alimentava, como o sol aquecia a terra e alimentava as plantas.

Meu pai sendo o sol, minha mãe poderia ser a lua. Sim, a lua. Refletindo a luz dele para nós, pois ela era seu espelho. A lua girando ao redor de nós, na sua rotação rotineira, cotidianamente sem se importar com sua imagem, sempre ali para nós. Ficava ali, eternamente inerte.

Mas voltando ao sol, que é o ponto...esquece o sol.

Vejo-me num plano. São meus olhos castanhos me vendo no material que apresenta um eu que não condiz com o que penso. Esse aqui em frente não sou eu. Essa barba não é minha, essas rugas não são minhas, esses dentes amarelos não são meus. Eu sou jovem. A imagem que vejo é somente um sonho, ou talvez uma mensagem do futuro. Se eu tiver um. Abro a boca, a imagem faz o mesmo. Cerro as sobrancelhas, idem. Olho bem a imagem, fixo os olhos, chego perto, encarando-a.

- Quem é você?

- O tempo.

- Como chegou aqui?

- Cientificamente ou quer uma poesia pra abrandar o choque?

- Não abri a porta pra você.

- Não é necessário. Sempre há lugar para se entrar na vida de alguém. 

- Me recuso a acreditar que você é algo que não comando.

- Se assustaria com as respostas que dou às pessoas.

- Me surpreenda.

- Eu venho como um vento, suave para uns, violento para outros. Passo invisivelmente, sem nem perceberem que estive lá. Como garotinhos perdidos culpam outras coisas. São os problemas pessoais, acidentes, brigas, discussões, felicidade demais, sofrimento em excesso, programas de entretenimento, músicas, filmes, jogos. Posso transpor rapidamente, ou muito lentamente. Depende do que vocês estão fazendo. Esperar numa fila, devagar; numa boate com os amigos, rápido; num bate-papo na internet, rápido; esperando o fim de uma cirurgia, devagar. 

- Então é assim que você trabalha?

- Desde o princípio. Nunca mudei nada. Você também não percebeu, mas estive sempre aqui. Desde o dia que nasceu até agora.

- Mas estou num manicômio, você deve ser uma alucinação.

- Um louco ciente de sua loucura? Interessante. Você somente está mais sensível ao mundo. Vi que pintou as rosas brancas de azul.

- Eu gosto de azul.

- Sua memória está torta e seu raciocínio está ferido. Isso é bom.

- Minha família não acha isso.

- Você não tem família.

- Claro que sim, tenho mulher e um casal de crianças lindo.

- Foi isso que você criou para si. Você veio para cá quando tinha 14 anos.

- Isso é um absurdo. Estou olhando meu reflexo no espelho e vejo um homem de meia-idade.

- Sua mente está criando isso, você hoje tem 22. E cada dia piora.

- Não é possível. Estou melhor. Em poucos dias vou sair. O doutor Almeida disse que eu estava quase recebendo alta.

- Ninguém vem te ver há dias, homem.

- Não entendo. E meu casamento? O nascimento dos meus filhos? Eu vi tudo isso, está aqui guardado. Lembro-me do perfume da minha mulher.

- A mente humana é capaz de fabricar até os odores. Ela fabrica o medo, a dor, alegria. 

- Não acredito, isso tudo é somente um sonho.

- Você nem percebe mais onde está. Essa é uma defesa sua para tentar esconder o medo que está chegando.

O Medo chegou perto de mim e disse que não sairia dali do meu lado. Disse que eu o chamei para perto de mim. Agora estávamos eu, o Tempo e o Medo juntos numa reunião particular. Comecei a sentir o Medo me abraçando, o Tempo continuou o seu discurso barato.

- Pois hoje é o dia. Chegou o momento de fechar o ciclo. Assim como quando iniciamos a leitura de um livro, chegamos ao final. O fim do livro não é o esperado pra você, eu sei. Mas final de contos de fadas só nos livros de fantasia. O seu livro tá mais para cotidiano. 

- Queria ter mais tempo.

- Já te dei o bastante. A areia chegou ao fim. Não posso virar a ampulheta novamente. 

- Então me diga uma coisa.

- Sim?

- Pode me contar como foi minha vida de verdade?

- Bem, você nasceu num dia de chuva. Sua mãe morreu no parto. Aos 12 anos você viu seu pai se matar, e sua vida foi um inferno. Você imaginariamente criou uma família feliz e calorosa, terminou os estudos e encontrou uma garota. Apaixonaram-se, casaram-se, tiveram dois filhos e você acha que aqui é uma sessão de psiquiatria, pois crê que está estressado ao extremo. E que quando soar um sino você vai acordar, curado e voltar para sua família feliz. 

- E se isso for verdade?

- Não é. Isso se chama esperança, mas ela está muito longe daqui, não pode ajudá-lo.

- E se eu quiser crer?

- Tente, de nada vai adiantar.

- Esperança, eu te convido a aparecer em nosso meio.

E eis que surge uma mulher [não vou me ater a descrições de aparência ou roupa] dizendo ser Esperança, mas não pode me ajudar fisicamente. Apenas me dar um alento. Mas eu precisava de algo real pra me livrar daquilo. O Tempo disse:

- Mais alguém para a reunião, senhor?

- Eu chamo uma garota.

- Quem?

- Realidade.

O espelho se quebrou. As paredes se desfizeram e comecei a cair. Vi o universo, estrelas, planetas, comecei a ver a terra crescendo, ou era eu caindo nela? Fui caindo, caindo, caindo. Vi que estava caindo em cima de um prédio. Ultrapassei o teto, até que caí num divã. Fechei os olhos. Será que morri? Um sino tocou.

- Acorde, senhor. Acabou a sessão.

- Como assim? Onde estou?

- É natural que o senhor se assuste depois de uma hipnose. Logo passa.

Aquilo era um sonho? Realidade? Não sabia dizer o que era real.

- Já pode sair, senhor, sua família está esperando aí fora.

- Minha família?

- Sua esposa e seus dois filhos.

- O senhor está certo disso?

- Claro. Saia e veja o senhor mesmo.

Minhas pernas tremiam. O que era verdade? Aquilo também me parecia bem real. Abri a porta lentamente, desfazendo o nó da garganta. Havia uma mulher linda folheando uma revista e duas crianças sentadas olhando a secretária digitando rapidamente um texto. A mulher me olhou.

- Oi, amor, como foi?

- Está falando comigo?

- Você sempre fica meio perdido, né?! Crianças, vamos.

As duas crianças vieram e seguraram minhas mãos. Eu acreditei que fosse real. Dirigimo-nos para o elevador. Estava incrédulo ainda. A porta se abriu, entraram primeiro. Eu por último ainda visualizando minha família. Entrei. A porta começou a se fechar, o doutor apareceu no fim do corredor e disse:
- Tenha um bom tempo, senhor.

Fontes:
http://multiversodecontos.blogspot.com.br/2012/04/conto-o-louco.html
Imagem = www.dolcevita.prosaeverso.net 

Jornais e Revistas do Brasil (A Noite)


Período disponível: 1911 a 1964 
Local: Rio de Janeiro, RJ 

O vespertino A Noite foi fundado em 18 de julho de 1911 por Irineu Marinho, no Rio de Janeiro (RJ), logo depois que este jornalista deixou a Gazeta de Notícias, onde era secretário-geral. Acompanhado de treze antigos funcionários, Irineu Marinho instalou o novo periódico no sobrado de nº 14 do Largo da Carioca, com impressão feita na rua do Carmo.

Considerado um dos primeiros jornais populares do Rio de Janeiro – fora lançado a preços baixos, com circulação diária e grandes tiragens – o jornal teve várias donos e fases, a mais importante das quais nas décadas de 1920 e 1930. Foi em A Noite que Lima Barreto publicou, de março a julho de 1915, em folhetos, o romance satírico Numa e a Ninfa. O jornal também emprestou seu nome ao moderno edifício de 24 andares, construído em 1928 na Praça Mauá, no Rio de Janeiro. No “prédio d’ A Noite” também funcionou a Rádio Nacional.

A Noite trazia principalmente assuntos políticos, assuntos locais e forte noticiário policial. Costumava dar o resultado do jogo do bicho na primeira página, o que cessou a partir do momento que a direção do jornal decidiu iniciar campanha contra jogos e cassinos clandestinos. Já no seu primeiro ano de vida, o diário promoveu o voo do piloto francês Edmund Planchut em 22 de outubro de 1911, realizado no Rio de Janeiro (na sua redação, aliás, foi inaugurado o Aero Clube do Brasil).

No início, o primeiro jornal de Irineu Marinho adotou a causa civilista da candidatura de Rui Barbosa nas eleições presidenciais de 1910. Com a derrota dos civilistas, A Noite ficou na oposição ao governo de Hermes da Fonseca. Crítico e severo, o diário combatia o autoritarismo do presidente e a chamada política de "salvações" (intervenções militares em alguns estados com fins de moralizar costumes políticos oligárquicos, mas que, no fim, levaram à simples substituição de oligarquias no poder). Tal postura ocasionou a suspensão da circulação do jornal e a prisão temporária de seus diretores. 

Nas eleições presidenciais de 1918, A Noite voltou a apoiar a candidatura Rui Barbosa, desta vez derrotado por Epitácio Pessoa. Mantendo-se na oposição, o jornal viveu bons momentos na década de 1920. Um deles foi a cobertura favorável às revoltas tenentistas de 1922 e 1924, o que lhe valeu a dura repressão dos governos de Epitácio Pessoa e Artur Bernardes e a prisão de Irineu Marinho. 

A direção passou a Antônio Leal Costa e a Herbert Moses, vice-presidente da empresa, a Sociedade Anônima A Noite. Também preso Leal da Costa, em 1825, assume o seu lugar Vasco Lima, antigo sócio de Marinho. Libertado nesse mesmo ano e com problemas de saúde, Marinho deixa o país, não sem antes caucionar a maioria de suas ações na sociedade anônima em favor de Geraldo Rocha. Este, em uma reunião com os acionistas do jornal, rompe os vínculos que ainda prendiam A Noite ao controle de Marinho e constitui uma nova diretoria, formada por Eustachio Alves (presidente), Vasco Lima (gerente) e Castellar de Carvalho (secretário). .

Nessa nova fase, o jornal deixou a oposição, passando a apoiar o governo de Washington Luís, e iniciou a construção de sua nova sede, o moderno prédio de 23 andares na praça Mauá. Com a mudança para lá em 1929 e a compra de novas impressoras (linotipos), também se modernizou o aspecto gráfico do jornal. Em setembro de 1930, lançava a revista semanal Noite Illustrada, impressa em rotogravura. 

Nas eleições presidenciais de 1930, depois de ensaiar possível neutralidade, o jornal, ainda sob o comando de Geraldo Rocha, aderiu à candidatura governista de Júlio Prestes. As denúncias de fraude na vitória de Júlio Prestes não abalaram o alinhamento do jornal, que chegou a publicar entrevistas e pronunciamentos de líderes moderados da Aliança Liberal contra a solução armada. Um exemplo é o texto "Pela ordem", de Antônio Augusto Borges de Medeiros, que conclamava a aceitação dos resultados eleitorais.

Com a vitória do movimento liderado por Getúlio Vargas, os revolucionários empastelaram o jornal e prenderam Rocha. A sede foi depredada e incendiada, e o jornal deixou de ser editado por alguns dias. Ao voltar a circular, em 4 de novembro, a empresa se defrontaria com o desgaste político resultante do apoio às oligarquias derrotadas e, principalmente, com as dívidas originárias da construção do prédio da praça Mauá e da compra de novas máquinas. Sem ter como saldar os compromissos financeiros com o grupo do empresário norte-americano Percival Farquhar, proprietário da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, Geraldo Rocha, já livre, assinou uma confissão de dívida, que o levou a perder todos os seus bens e a totalidade das suas ações do jornal. Curiosamente, no entanto, desde a eclosão da Revolução, a São Paulo-Rio Grande esteve ocupada por tropas revolucionárias, o que acabaria determinando o futuro do periódico.

Nessa terceira fase, agora como propriedade de grupo estrangeiro representado no Brasil por Guilherme Guinle, o jornal passou a direção de Manoel Cardoso de Carvalho Netto e adotou linha política mais amena, livre de ataques pessoais. Adotou também uma disposição gráfica mais arrojada, com destaque para fotos e manchetes. Também foi mantido o suplmento Noite Illustrada. 

No processo de reerguimento da sociedade editora de A Noite, Vasco Lima, que continuou na empresa, criou duas revistas – Carioca e Vamos Ler – ambas dirigidas por Raimundo Magalhães Júnior. Dedicada sobretudo ao cinema, rádio e teatro, e com farta ilustração, Carioca foi sucesso absoluto, rendendo tiragens de mais de 150 mil exemplares. Em 1936, o grupo, cuja ferrovia ainda era controlada indiretamente pelo governo federal, inaugurou uma emissora de radio, a Rádio Nacional. No dia 8 de março de 1940, o Decreto-Lei nº 2.073 legalizou o controle do governo sobre a Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, passando à União todas as empresas a ela filiadas a esta, entre as quais o jornal A Noite e a Rádio Nacional, que assim passaram a pertencer às denominadas Empresas Incorporadas ao Patrimônio Nacional. Iniciava-se a quarta fase do vespertino.

A partir de 13 de março de 1940, o jornal foi dirigido por José Eduardo de Macedo Soares, tendo Cipriano Lage como redator-chefe. A administração ficou a cargo do coronel Luís Carlos da Costa Neto, superintendente das Empresas Incorporadas ao Patrimônio Nacional, que não aparecia no expediente. Apesar do respaldo do governo, o jornal entrou em grave crise ocasionada por problemas administrativos, baixa receita, empreguismo e perda de leitores, cada vez menos atraídos por um órgão sob controle oficial 

Com o fim do Estado Novo e a eleição de Eurico Dutra, e depois de uma curta experiência de arrendamento do jornal, em 1946, pelos funcionários, A Noite adentrou a década de 1950 sem solucionar seus problemas administrativos. Em 27 de dezembro de 1957 interrompeu sua circulação, para ressurgir, por iniciativa de seus funcionários, dois anos depois. E, ao que parece, por alguma razão jurídica, em apenas uma edição. Boa parte dessa edição, muito pobre, era tomada pela transcrição de uma ata da sociedade anônima. Organizados em sociedade anônima capitaneada por Manoel Cardoso de Carvalho Netto, os funcionárioa haviam adquirido seu título em hasta pública. Seria a quinta fase do periódico. 

O jornal foi relançado em 26 de dezembro de 1959 em edição de apenas quatro páginas. Era então propriedade da Empresa Jornalística Castellar (o nome homenageava um antigo funcionário já falecido) e se apresentava como "equidistante de governo e oposição – compromissos apenas com a comunidade social, para resguardar a justiça de seus julgamentos". O redator-chefe era Lincoln Massena, e a administração do jornal continuava, provisoriamente, no prédio da praça Mauá, enquanto as oficinas ficavam no nº 114 da rua do Riachuelo. O ressurgimento, novamente, durou apenas uma edição. A Noite só voltaria a circular quase um ano depois, em 20 de dezembro de 1960. O novo diretor era Celso Kelly e a redação agora funcionava na sobreloja do nº 2 da rua Francisco Serrador, na Cinelândia.

Em 16 de maio de 1963, o vespertino passou a ser dirigido por Eurico de Oliveira e tinha sucursais em Brasília, em São Paulo e Niterói. O novo diretor, que já já havia trabalhado em outros jornais, como o Correio da Noite, A Pátria, Jornal do Brasil e O Imparcial, tendo sido ainda colaborador na fundação da revista Pela Pátria e fundador do Diário Trabalhista em 1946, desde 1950 havia ingressado na política, elegendo-se, por diversas vezes, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) ou pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN). Em 1962, foi eleito suplente de deputado federal pela Aliança Socialista Nacionalista, formada pelo PTB e pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Em abril de 1964, com as cassações feitas pelo governo militar, assumiria uma cadeira de deputado federal. 

A Noite circulou provavelmente até 31 de agosto de 1964, data da última edição existente no acervo da Biblioteca Nacional. Uma das razões de seu fim, além da fragilidade financeira da empresa, pode ter sido o início do mandato de Oliveira. O deputado viria a se destacar pela tentativa de implementação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que investigasse acordos ilícitos entre a TV Globo, fundada em abril de 1965, e o grupo de mídia americano Time-Life.

Fonte:
http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/noite

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 733)



Uma Trova de Ademar  

Em busca de ser feliz, 
e em prol do amor de nós dois, 
quantos atalhos que eu fiz... 
Mas só chegava depois! 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Na manjedoura o menino 
estende os braços e a luz 
projeta em sombra o destino 
sob a forma de uma cruz. 
–Conceição A. de Assis/MG– 

Uma Trova Potiguar  

A lua muito vaidosa,
costuma se refletir
elegante, bem charmosa
no espelho do Potengi.
–João Alfredo/RN– 

Uma Trova Premiada  

2007   -   UBT-Natal/RN 
Tema   -   TEMPO   -   M/E 

Diz-me esta ruga esculpida, 
entalhe que o tempo fez, 
que a primavera da vida 
só nos floresce uma vez. 
–Jaime Pina da Silveira/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Esperança e, simplesmente
um sentimento perjuro:
são mentiras no presente... 
desenganos no futuro...
–Lectícia Rangel Coelho/RJ– 

U m a P o e s i a  

Meu sertão onde o homem agricultor
uma arma que usa é a inchada,
uma calça que veste é remendada
quando sai é num burro corredor;
se adoece também não quer doutor
faz promessa com Deus e reza um hino, 
quando almoça não quer comer grã fino,
come é fava com charque couve e fato;
vou falar no sertão pra ver se mato
a saudade do povo nordestino. 
Biu Salvino/PB– 

Soneto do Dia  

DESEJO PÓSTUMO. 
–Reginaldo Albuquerque/MS– 

Nunca esqueci a pá contra o tijolo 
sobre o esquife no qual nos separamos, 
quando fugia o sol murchando os ramos 
e triste ave soltava um mesto arrolo. 

Entre as preces que fiz, em desconsolo, 
plantei dúzias da flor que mais amamos, 
fiando que à estação, que então sonhamos 
virás, e este amor hás de recompô-lo... 

Quisera ter poderes, dons enormes, 
e crer que, tal qual Lázaro, querida, 
não estás morta, em paz, apenas dormes, 

e, extático, abraçar-te com ternura, 
como te bem fizera outrora em vida, 
depois de te livrar da sepultura!