quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Nívea Martins (Maringá Poético)


Nívea Martins – Nome artístico de Maria Nívea Cerqueira Cezar Pereira Martins. É atriz de teatro e poeta. Quando residia em Santos, atuou sob a direção de Plínio Marcos em A balada de um palhaço, da autoria do referido dramaturgo. Entre as diversas peças em que atuou em Maringá, sempre sob a direção de Newdemar de Souza (Grupo Quilombo), estão Ternura e sol (baseada no livro homônimo de Ary Jacomossy), E agora Drummond? e A dança do caos (criação coletiva).
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SEPARAÇÃO 

Desnudo-me
Proponho que me esqueças
Eu pararei nos portos da vida
Tu prosseguirás sem razăo
Então, vou cuspir ao vento
Minha fragilidade
Que se faz poesia
Rasgando o solo frio desse chão

ORGISOFIA

Quando te encontro
nada mais penso
quando te quero
de tudo me desfaço
quando me solto
seus lábios estremecem
quando desnudo-me
seu corpo enlouquece

Quando năo me encontro
vocę declama poesia
quando tento e penso
vocę cheira ressaca de maresia
quando eu mesma me faço
vocę me toca com olhar de magia
quando me visto e insisto
vocę me lembra de sua ideologia
pensa năo ter mais nada a falar
se encolhe 
me escolhe
e é só filosofia!

SER-VEJA 

Brinco em cada palavra
que na minha voz 
é pronome perfeito
meio sem jeito pulo o verbo
que de todo ato repulsa a fala
sem particípio
e participo do encontro em que foge a consoante
consciência que sei que tudo se fez.
Hiato, talvez um desacato ao sujeito eleito!
Ah! Tantos encontros consonantais que já não sei
se encaro ou páro!
Se corro com dois ou um r só 
esse desespero de regras!
Se já não posso decifrar
sílabas tônicas
verbalizo então
ser-veja 

ALGUM ALGUÉM 

Saiu de sua terra. Tão cedo!
Comeu o pão do diabo...
Tão inocente!

Amou o pecado... De leve!
Pisou nesse chão... Foi breve!
Deixou nada pra ninguém,
não queria marcas incuráveis,
não desejaria mal algum, mas... Foi a vida,
a vida que tão vivida não tinha nenhuma constância.
foi mais um sem fé!
Digo até que com muita razão...
não saboreou o pão, engoliu seco, sem sentidos!
Não bebeu o vinho,
não existia cálice, muito menos palavras!
Passou despercebido,
nada conta a sua existência!
Levou a pressa consigo
e devagar, sem nenhuma dor, desconheceu o amor...
desbravou a si mesmo
perfurou suas entranhas
quis a morte,
que de sorte estava por perto, 
deu-lhe um sinal aberto...
e se foi, sem biografia. 
Só uma poesia sem intenção,
só de passagem, sem ilusão!
Não me pergunte quando, 
como nem porquê.
É uma psicografia.

SAUDADES DE MIM!

Sou vida enlouquecida!
Sou lua ferida!

Sou ave incontida!
Sou nenhuma razão
sou sua fome de pão
sou cada passo no chão!

Ser o que nada pensa
e nunca existe

Ser o que desequilibra
fera enfurecida
orgástica saliva!

Nem eu mesma lembro!

Talvez fada esquecida...
orquídea amortecida
em um jardim
com cheiro de fim...

do princípio ao meio...
a saudade de mim

MUTAÇÃO 

em cada dose
de sentimentos...
pulsa sangue quente
ausência...
reencontro
notas suaves...
contam estrelas no firmamento
minha intuição aflorada
desabrocha pétalas indecisas
orquídeas desenfreadas
até que o mundo se cale
talvez ...

DEIXEI O VENTO ME LEVAR

Não quis voltar!

provei de uma fruta
e ninguém mais vai saborear...
conheci o segredo
não ouso desvendar...
trago comigo o paraíso
me viciei em sabores
me deliciei nos sumos
me embriaguei
estourei os cadeados
desfiz as correntes
parei nas esquinas...
é minha sina
amores irreais...
é alma menina
desse destino imortal
é essência cristalina
despir-se dos valores
ficar de bem com o mal

TUDO QUE SE PLANTA, DÁ.

Psicose, neurose, cirrose
no gole nosso de cada dia
distorção frontal
colhe-se delírios
hare, assim seja namstê
fim da massa cerebral.
Os pontos que interrogam...
cobram um porquê.
O grito não sai...
a fala tremida
a boca maldita!
É vácuo
o espaço da inerte criatura.
É assim que se fez o relatório humano.
No engano da história
a falta de memória!
Nenhuma saída...
voto obrigatório...
seja eleito então
vazio.

PROFILAXIA

Anoitece.

O vulto alegre se entristece. De pavor!
Imutáveis monstros,
delinquentes civis!
Voltando de onde quis...
com o horror que nunca quis!
E lá no fundo desse poço imundo... Mundo!
jazem os crânios
arânios
com suas minas de urânio
a pedir perdão!
Inteligentes,
comoventes como só eles são,
a ditar e interditar,
os atos loucos. 
entre muitos,
poucos com o coração!
Anoitece.
O corpo marcado de pus que se reduz!
E o sol?
O sol com seu brilho,
move no canto do espartilho.
a força esmagadora de amar com prazer!
O que fazer?
Se a noite beneficia...
e o golpe asfixia,
um nó...
sem profilaxia,
com marcas de bem estar!
É, no duro,
hoje...
eu já não pulo o muro 
pois eles se curvam 
com o meu olhar!

LOGOS EU?

Sem razão...
sem rótulos...

sem definições...
ou decretos...
sem sentido
ou lógica de tempo!

nenhuma ordem
ou articulação...

sem previsões
tato, olfato, paladar!

Sem previsões!
Meras especulações.
Irreparável...
irreconhecível...
sem divisão
nem subtração!

Nenhuma religião...
nada cronológico
sem código de DNA 

fora de linguagem
nunca posta em leitura!

Fora de padrão!
Nada que se cobre
nada que se pague!

Nunca...
sem tentativas...

nada retrata minha passagem pela vida...
tão absurda!
Algo informal demais
E?
Logos eu?

É SOFRIDA NOSSA AFINIDADE

É sofrida nossa afinidade.
Basta-me 
Os sonhos,

As lembranças
As lagrimas derramadas
Como sofri quando você se foi
Os meus olhos se entristeceram 
Minha alma adoeceu
O meu corpo 
Virou deserto 
E seco se tornou, sem nenhuma reação
Se antes estremava com o teu toque
Agora dormente jamais será explorado novamente.
Passada esta relação

Acordo para outra vida
Sacrifícios se fazem necessários
E as mudanças 
Promovem em mim
Aquilo que mais me renova

Um amor 
Sem sonhos
Idealizados nas mesmas nuvens 
Sem promessas de chuvas
Estou climatizado nas esperanças futuras
Terei uma longa viajem por outros universos
De você não espero retorno
O passado será demarcado como única saudade
Para ti minhas poucas lembranças
Nada mais...

DESPIDO DE CONCEITOS E ÉTICAS SENDO SIMPLESMENTE EU

sem ilusões pra fugas
espasmos 
tento pensar coerentemente
mas a mente melindrosa
remete-me constantemente a
sonhos mirabolantes
acordando recentemente
recordando sonolentamente
de sonhos reais da alma real
e o que acontece realmente
é que entre o real e o incerto
a linha fina e tênue
separa-nos insanamente
entre o real e a mente que mente

colocando-nos a máscara da incerteza
na loucura da vida bela
neste mundo paralelo
que me criei nesta vida
entre o certo e o errado
no dia que as máscaras caírem
e me mostrar limpo, inteiro
despido de conceitos e éticas
sendo simplesmente eu
nu, cru, despojado de tudo

despojado do deus que criaram
para eu crer no ser eterno
esqueço do presente que é dádiva
do eu natureza vivendo
eternamente no já...

agarrando-me às ideias
de eterno ser.

Fonte:
Revista JIOP (Jornada Interartes Outras Palavras). n.1. Maringá : Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Letras, 2010.

José Saramago (Objecto Quase)


Objecto quase, publicado pela primeira vez em 1978, é uma coletânea de seis histórias breves e tensas do escritor português José Saramago e evidenciam as raízes do maravilhoso messe autor. Em um gênero não muito praticado por ele, os climas são variados - podem ir do humor sarcástico ao lirismo romântico -, os personagens também, mas algo os une intimamente: o pessimismo, onde o autor espelhou não somente o presente, mas o futuro também. Vemos nesta obra o homem "coisificado" e as coisas, "humanizadas"... É simplesmente o reflexo de nossa sociedade, que se preocupa mais com a segurança dos pertences do que com o próprio cidadão!

Neste conjunto de contos, em Objecto Quase, há quase uma sequência, onde a história do homem é montada em painéis, que vão desde a sua alienação, com opressões internas e externas, até à sua própria natureza, espontânea, amoral, livre: o encontro do jovem e da jovem, no final, em que o silêncio renasce, identificado com a natureza, sobre as cinzas da palavra, que de todos os vírus se tornou portadora.

Traduzem um capitalismo em agonia, atmosfera de fim de linha, de sociedades em que os bens de consumo circulam às expensas da própria vida. Daí a escrita que se move em ciclos, emulando ritmos alternados de crise e prosperidade, parodiando a circulação também incessante, distanciada e sem sentido das mercadorias. E, apartada do mundo, a consciência elabora sua vingança. Talvez a maior de todas seja a linguagem, que se destina a ferir e referir as coisas a distância. Daí o permanente poder de crítica desses escritos, capazes de fundir, com extrema habilidade e conhecimento de causa, o poético, o político.

Em algum lugar no passado - ou seria no presente? - uma cadeira cai e em um breve momento o destino de um homem se desfaz; um outro se vê condenado a permanecer colado na poltrona do seu carro; um terceiro pretende reconstruir uma cidade, livrando-a de seus mortos… Esses e outros episódios fantásticos e alegóricos, cômicos e trágicos se encontram em uma narrativa carregada de metáforas que tenta desesperadamente denunciar uma certa condição (des)humana à qual se submetem o corpo e o cérebro quando esses não estão em harmonia. 

Nos contos de Objecto Quase há dois grupos de protagonistas. No primeiro, eles são o avesso do herói, quase objetos que têm a morte indigna por destino: é o empregado que se torna vítima do próprio automóvel em “Embargo”; em “Coisas” é o sujeito que covardemente se submete às normas do mundo; em “Refluxo” é o rei que como Minos, antípoda de Teseu, foge à aventura heróica; em “Centauro” é o ser dividido entre dois mundos e, por isso, sem possibilidade de transpor mundos. No segundo grupo há a luta entre herói e vilão: em “A cadeira” – metonímia do ditador - Salazar é derrotado por um metafórico cupim, que provoca o tombo e a ruína do regime, trazendo um benefício para a sociedade; em “Desforrra”, o protagonista adolescente descobre a força de Eros, ao recusar a repressão sexual representada pela castração de um porco. Nestes casos, há uma luta e a vitória da vida.

Personagens que não se entrelaçam em suas histórias particulares, mas partilham de um mesmo destino: o da vingança, alimentada às escondidas, longe dos olhos da sociedade e das condutas consideradas lícitas. Este pode ser o fio condutor dos seis contos do livro do escritor português. A vingança funciona como motor da trama, ainda que muitas vezes o motor se emperre no meio do caminho.

E aí entra o tônus satírico e crítico de Saramago, antigo detrator do Capitalismo, envolvido em política e membro do Partido Comunista Português. A incompletude dos contos é descrita no título do volume. Tais características ganham força de texto para texto. A começar pela história que inicia o livro, "Cadeira", a descrição de um móvel como se este pertencesse a um universo conspiratório. E assim por diante nos outros contos: "Embargo", "Refluxo", "Coisas", "Centauro" e "Desforra". É uma boa maneira de entrar no universo angustiante do escritor.

Com Objeto Quase, José Saramago denuncia o estado de animalização do homem e a materialização da violência como um capítulo comum, doloroso da história de um povo.

O autor de Objecto Quase, com a "libertinagem" da sua escrita cria potencialidades estéticas que podem passar desapercebidas. As divagações aparentemente fortuitas estão para o episódio como um coro para um solo: reforçam-no. O episódio adquire uma ressonância que o amplia, por ela se abrindo o espaço para a crítica, onde o humor e a sátira engordam, pela insinuação, pela ironia, pela afirmação, parecendo perder-se a pertinência em favor da loquacidade. A voz coloca-se numa direção para ser ouvida numa direção oposta.

A versatilidade de Saramago (verbal, imaginativa, observadora, refletiva) leva-o às raias do surrealismo, patente na roupagem dos "fatos", no conto "Coisas", onde os ingredientes da psicologia patológica, individual e coletiva, e da parapsicologia, são expropriados pelas palavras, cujo objetivo, constante no autor, é o homem, para a despir até à pele e deixá-lo nu na praça pública da história, em confronto com a história, que o mesmo é dizer consigo próprio, o que explica a sua toada sarcástica e a sua intenção pedagógica acerada.

COISAS

O conto "Coisas", o mais longo do livro, é uma espécie de chave para o conjunto da obra. É uma história de ficção científica. Passa-se numa sociedade futurista, dividida em castas. O que diferencia uma casta da outra é seu poder de consumo, determinado por letras que as pessoas trazem tatuadas na palma da mão. Os objetos são fabricados por um processo que lembra mais a reprodução orgânica do que a manufatura e, de fato, são dotados de personalidades e psicologia próprias. Esses objetos vão ficando cada vez mais temperamentais e, um dia, revoltam-se contra as pessoas. Começam a desaparecer misteriosamente. A princípio, são pequenos desaparecimentos, os donos não têm certeza, talvez tenham-nos apenas perdido. Mas os sumiços vão ficando progressivamente mais acintosos, passam a acontecer diante dos olhos de seus proprietários e em escala cada vez maior, de jarros e relógios a edifícios inteiros que simplesmente evaporam, deixando os moradores nus e mortos no terreno vazio. Ao final se descobre que os objetos rebeldes eram os verdadeiros humanos, convertidos em coisas pela sociedade rigidamente consumista:

Foi então que do bosque saíram todos os homens e mulheres que ali tinham se escondido desde que a revolta começara, desde o primeiro oumi desaparecido. E um deles disse:
— Agora é preciso reconstruir tudo.
E uma mulher disse:
— Não tínhamos outro remédio, quando as coisas éramos nós. Não voltarão os homens a ser postos no lugar das coisas.

O misterioso desvanecimento dos objetos, uma vez mais, parece ter tido Marx como inspirador:

A revolução constante da produção, os distúrbios ininterruptos de todas as condições sociais, as incertezas e agitações permanentes distingüiram a época burguesa de todas as anteriores. Todas as relações firmes, sólidas, com sua série de preconceitos e opiniões antigas e veneráveis, foram varridas, todas as novas tornaram-se antiquadas antes que pudessem ossificar. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e o homem é finalmente, compelido a enfrentar de modo sensato suas condições reais de vida e suas relações com seus semelhantes.

Neste conto, a cidade vai perdendo suas partes. Todas as suas materialidades, aos poucos, somem. Uma porta não precisa ser aberta, pois ali só está presente o vazio. Uma escada não se sobe nem se desce, porque não há pavimento superior, e, se tal tivesse, não existiriam mais degraus para subir. Uma calçada já não se diferencia do meio da rua, pois tudo é uma coisa só, um grande vazio. As ruas não aparentavam grandes prejuízos, mas notava-se, na cidade, uma geral deterioração, como se alguém tivesse andado a tirar pedacinhos aqui e além, como fazem aos bolos as crianças... (1998, p. 87)

A cidade de Saramago, paulatinamente, se desmaterializa, transformando-se em puro vazio. Não há mais espaço, só luz.

Onde antes havia espaço construído, agora, só o espaço do vazio.

Uma vez compreendido o ponto a partir do qual o autor fala, nos voltamos para os outros contos e percebemos que, de um modo ou de outro, são todos presididos por essa revolta dos objetos, homens coisificados, contra seus exploradores.

EMBARGO

No conto "Embargo", é um automóvel que adquire vida e autoconsciência, quando motivações políticas e econômicas ameaçam privá-lo de seu sustento básico, que é o combustível.

O embargo do petróleo traz à superfície histórica o homem como um dependente do carro, exposto que está às dependências criadas pela civilização. O episódio, aparentemente simples, é estirado sobre o patológico, e sob, onde um corpo se entala sem saídas, suportando as angústias de hábitos que estão ameaçados. A dilatação verbal do simples transforma-se em tensão dramática, em problema, em crítica e humor, numa anatomia humana em que o ridículo é bisturi. Tudo isto nos é dado por uma estrutura narrativa que se oculta nos planos sintagmáticos e paradigmáticos da palavra, como se a narrativa, enquanto comunicação, tivesse que subjugar-se às estruturações da palavra e não aos códigos narrativos.

CADEIRA

Em "Cadeira", o móvel roído por um inseto derruba um ditador e os próprios insetos. Neste conto identifica-se quatro componentes fundamentais da escrita do mais recente Saramago com que vinha trabalhando ao longo do texto: a prosa barroca, o discurso cinematográfico, a tendência a digressões e a postura comprometida.

O conto "Cadeira" é o que abre o livro e conta – guardando-se as devidas proporções de uma ficção e sua trama alegórica – a queda acidental do ditador Salazar de uma cadeira, fato ocorrido em 1968 e que foi (devido a impossibilidades cerebrais causadas pelo baque) a responsável pela queda dele do governo e posterior morte em 1970.

A narrativa contém várias citações históricas e profundamente irônicas que mostram a posição do narrador quanto a ditadura, parece óbvia a importância de saber que Portugal também passou por uma experiência de governo ditadorial. Ela ocorreu em 1928, quando Salazar foi convidado para organizar as finanças de República Portuguesa instalada em 1910. Salazar desenvolveu uma política apoiada no exército e na Igreja, e tinha por princípio defender "a civilização cristã" dos males da época: comunismo, internacionalismo, socialismo, etc.

A organização do Estado Novo, em 1933, seguiu as tendências fascistas: defendia o corporativismo, combatia a democracia e a atividade parlamentar.

O trabalho com a linguagem – que faz do conto uma verdadeira discussão da pluralidade da significação; a alegoria e a visão focal do narrador que convida o leitor a participar do momento exato da queda devem ser considerados na leitura.

O foco inicial é a CADEIRA, seu desabamento, sua madeira acessível ao inseto que a deteriorou por gerações, a perfeição de sua queda que acaba causando a QUEDA da ditadura, ou seja, a influência do objeto nos destinos humanos, mais especificamente nos destinos de Portugal. O que faz com que consideremos a faceta histórica do conto.

A linguagem, com traços barrocos, usada por Saramago permite-se o Ludismo, as digressões quanto as sinonímias e outros recursos de estilo, que não fazem a história “andar”, mas embelezam a sua construção, tudo partindo da significação de desabamento:

A cadeira começou a cair, a ir abaixo, a tombar, mas não, no rigor do termo, a desabar. Em sentido estrito, desabar significa caírem as abas. Ora, de uma cadeira não se dirá que tem abas, e se as tiver, por exemplo, uns apoios laterais para os braços, dir-se-á que estão caindo os braços da cadeira e não que desabam.

Ainda na brincadeira do estilo, o narrador aproveita para mostrar sua rejeição, que vai ser amplamente destacada, ao velho ditador:

Desabe, sim, quem nesta cadeira se sentou, ou já não sentado está, mas caíndo, como é o caso, e o estilo aproveitará da variedade das palavras, que afinal, nunca dizem o mesmo, por mais que se queira.

Logo depois discute o tipo de madeira que teria servido para confeccionar o objeto, aproveitando para criticar a dizimação expansionista, uma das bandeiras da ditadura de Salazar:

Qualquer árvore poderá ter servido, excepto o pinho por ter esgotado as virtudes nas naus da Índia e ser hoje ordinário, a cerejeira por empenar facilmente (...) Seja pois o mogno e não se fale mais no assunto. A não ser para acrescentar quanto é agradável e repousante, depois de bem sentados...

Em um segundo momento, bastante destacado, será a vez de mostrar o gênero do coleóptero que por gerações irá deteriorando a cadeira e porque não o trono, ou ainda,a ditadura. O narrador faz várias associações dele com heróis do povo, coincidentemente, mas nada é coincidência, heróis do oeste americano, como por exemplo Buck Jones. Mas a principal associação é com o “nobre povo luso”, citado até no hino do país:

Em algum lugar foi, se é consentida esta tautologia. Em algum lugar foi que o coleóptero, pertencesse ele ao gênero Hilotrupes ou Anobium ou outro (nenhum entomologista fez peritagem e identificação), se introduziu naquela ou noutra qualquer parte da cadeira, de qual parte depois viajou, roendo, comendo e evacuando, abrindo galerias ao longo dos veios mais macios, até ao sítio ideal de fractura, quantos anos depois não se sabe, ficando porém acautelado, considerando a brevidade da vida dos coleópteros, que muitas terão sido as gerações que se alimentaram deste mogno até o dia da glória, nobre povo, nação valente.

O caminho do Anobium nos veios da madeira é comparado, por isso a importância de saber que é uma representação, uma alegoria, a construção das pirâmides como túmulos dos faráos, parece, portanto pertinente, a alusão à morte, ao fim da ditadura e à irônia com que o narrador trata o ditador que se acha um rei.

Não estranhemos portanto que esta pirâmide chamada cadeira recuse uma vez e outras vezes o seu destino funerário e pelo contrário todo o tempo da sua queda venha a ser uma forma de despedida.

A ironia do narrador também se manifesta quando usa os principios ditatorais de Salazar como a religião e a neutralidade nos conflitos para se eximir de culpa de saber da queda e não fazer nada para evitá-la:

Enquanto vemos a cadeira cair, seria impossível não estarmos nós recebendo esta graça, pois espectadores da queda nada fazemos nem vamos fazer para a deter e assistimos juntos.

Depois de todas as associações do Anobium com heróis populares que derrotam os bandidos e se aconchegam nos braços da amada, inicia-se o momento da queda, detalhadamente descrito, quadro a quadro, com direito a parada para reflexões, observe também o tratamento irônico dado ao ditador:

Também agora se sentou este homem velho que primeiro saiu de uma sala e a travessou outra, depois seguiu por um corredor que poderia ser a coxia do cinema, mas não é, é uma dependência da casa, não diremos sua, mas apenas a casa em que vive, ou está vivendo, toda ela portanto não sua, mas sua dependência.

Mais um pouco do quadro a quadro, sempre irônico apontando os erros do governante:

Vê-a de longe o velho que se aproxima e cada vez mais de perto a vê, se é que a vê (...) e esse é que é o seu erro, sempre o foi, não reparar nas cadeiras em que se senta por supor que todas são de poder (...) O velho pensa que irá descansar digamos meia hora (...) que certamente não terá paciência de ler os papéis que traz na mão.

Mais detalhes e o comportamento de neutralidade do narrador que é estimulado para que seja também do leitor:

Ainda não se recostou. O seu peso, mais um grama menos um grama (...) mais vai mexer-se, mexeu-se, recostou-se no espaldar, pendeu mesmo um quase nada para o lado frágil da cadeira. E ela parte-se (...) podemos até exercitar o sadismo de que, como o médico e o louco, temos felizmente um pouco, de uma forma, digamos já, passiva, só de quem vê e não conhece ou in limine rejeita obrigações sequer só humanitárias de acudir. A este velho não.

O trecho a seguir mostra uma comparação em que fica muito clara a postura de rejeição do narrador em relação a ditadura e seu efetivador:

Deixemos porém este pó que não é sequer enxofre, e que bem ajudaria o cenário se o fosse, ardendo com aquela chama azulada e soltando aquele seu malcheiroso ácido sulfuroso(...) Seria uma ótima maneira de o inferno aparecer assi como tal, enquanto a cadeira de belzebu se parte e cai para trás arrastando consigo Satanás, Asmodeu e legião.

A queda se consuma e teremos então os comentários sobre a ajuda que virá, mas principalmente a comemoração de um desejo realizado:

Cai, velho, cai. Repara que neste momento tens os pés mais altos do que a cabeça (...) A cabeça como estava previsto e cumpre as leis da física, bateu e ressaltou um pouco, digamos, uma vez que estamos perto e outras meditações tínhamos acabado de fazer, dois centímetros para cima e para o lado. Daqui para a diante, a cadeira já não importa.

As comparações com a história de Portugal continuam: a morte do Conde de Andeiro e Leonor Teles assumindo como rainha, será essa a reação da esposa? Na história real, Salazar não morre, mas fica incapacitado a ponto de nos dois anos que lhe restarão de vida acreditar ainda estar no poder. O narrador continua a usar um recurso que mostra sua onisciência e onipresença, ele está lá e o leitor na “esteira”, tem o domínio até do tempo um dos elementos da história.

Este velho não está morto. Desmaiou apenas, e nós podemos sentar-nos no chão, de pernas cruzadas, sem nenhuma pressa, porque um segundo é um século, e antes que aí cheguem os médicos e os maqueiros, e as hienas de calça de lista, chorando, uma eternidade se passará.

O corte é pequeno, quase imperceptível, mas houve ruptura nos vasos interiores, a morte já pode entrar como outro coleóptero a consumar a queda:

Uma ligeiríssima equimose, como de unha impaciente, que a raiz do cabelo quase esconde, não parece que por aqui a morte possa entrar. Em verdade, já lá está dentro. Que é isto? Iremos nós apiedar-nos do inimigo vencido?

A ajuda chega, a fisiologia do baque é descrita, o narrador assume uma posição imparcial ou pelo menos indiferente ao terminar o conto, mas o tempo que virá é o novo e não apenas uma referência ao clima.

Já se ouvem passos no corredor(...) Sobre outra superfície, a do córtice, acumula-se o sangue derramado pelos vasos que a pancada seccionou naquele ponto preciso da queda(...) É lá que nesse momento se encontra o Anobium, preparado para o segundo turno(...) Vamos até a janela. Que me diz a este mês de Setembro? Há muito tempo que não tínhamos um tempo assim.

REFLUXO

No conto "Refluxo", são definidos como objetos quase: E o mais, com exceção talvez dos insetos, que só por metade são orgânicos (como era convicção muito firme da ciência do país e do tempo.) Nesse mesmo conto, são os mortos que servem de alegoria para as pessoas coisificadas, pois, o que é um cadáver senão um homem que, privado de vida, transformou-se em coisa?

Narrada em tom de fábula, "Refluxo" é a história de um rei que não suporta ser lembrado da existência da morte. Disposto a banir de sua vista todos os indícios da mortalidade humana, manda construir no centro do país um gigantesco cemitério, para onde devem ser transferidos os mortos de todos os outros cemitérios e onde doravante realizar-se-ão os enterros. Mas, previsivelmente, o projeto fracassa. Em torno do cemitério, desenvolve-se um intenso comércio ambulante, com toda sorte de mercadorias (os objetos, de novo) oferecidos às pessoas que vêm se despedir de seus entes queridos. Para abrigar os vendedores e mesmo os visitantes que não têm como voltar a suas casas no mesmo dia, surgem hospedarias, hotéis, casas. Logo, uma cidade ergue-se ao redor do cemitério. Mas a expansão do cemitério invade as ruas da cidade e o sonho megalomaníaco do rei de banir a morte de seu mundo redunda na promiscuidade entre os vivos e os mortos.

"Refluxo" é outro paradigma da escrita saramaguiana. Pelo seu "argumento", a construção de um cemitério, não passará pela cabeça de ninguém o conteúdo desse conto. Conserva a sua natureza episódica, o sonho de um monarca, mas as galerias abertas ao corpo da história, pela palavra, como o caruncho na madeira, dão uma elasticidade à dimensão do conto que o transferem dos seus limites para a procriação ilimitada da história. Tudo é inventado e tudo é verdadeiro, e neste tudo, diversificado e uno, a palavra liberta-se do seu estaticismo referencial para se tornar por si própria dinâmica, pela acumulação de material histórico reativado, pela simbologia quase, pela metáfora quase, pela sátira non-quase, feita a leitura na direção do fio de prumo. Tudo é mensurável neste conto, o exposto e o oculto, o que é suscetível de medida e o que o não é. História quase, este conto, que assim se inicia: Primeiramente, pois tudo precisa de ter um princípio, mesmo sendo esse princípio aquele ponto de fim que dele se não pode separar, e dizer 'não pode' não dizer 'não quer', ou 'não deve', é o estreme não poder, porque se tal separação se pudesse, é sabido que todo o universo desabaria, porque o universo é uma construção frágil que não aguentaria soluções de continuidade - primeiramente foram abertos os quatro caminhos.

CENTAURO

No conto "Centauro", uma nova nota é introduzida: é o desencantamento do mundo, associado à ascensão da ordem burguesa, conceito descrito inicialmente por Max Weber e posteriormente desenvolvido por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento. Em seu projeto de dominação da natureza, dizem esses autores, a ordem burguesa retira progressivamente todas as projeções que o homem primitivo fizera sobre o mundo. As montanhas deixam de ser moradia de deuses, as florestas perdem seus duendes, os mares não têm mais sereias. Saudado pela ideologia iluminista como um avanço do conhecimento sobre a superstição, esse desencantamento do mundo obedece a um imperativo preciso: o de tornar a natureza acessível à exploração humana. Para que as florestas sejam derrubadas, por exemplo, é preciso que elas sejam vistas como simples objetos (ei-los de novo, os objetos) e não como o lar de espíritos encantados aos quais se deve respeito. O mundo converte-se, dessa forma, em simples reservatório de matéria prima que o homem pode explorar como bem entender.

É essa a situação retratada no conto de Saramago. Seu personagem é o último centauro, que sobrevive escondido há milhares de anos e observa como, uma a uma, as criaturas fantásticas como ele mesmo vão sendo destruídas pelo homem, ao mesmo tempo em que os deuses retiram-se da Terra para se refugiar em alturas inacessíveis. Como não podia deixar de ser, chega o dia em que o próprio centauro deve morrer. Depois de seqüestrar uma mulher num frenesi erótico, sua existência é revelada ao mundo e o centauro torna-se um fato da mídia. Já não pode mais se esconder. Os homens o caçam, talvez para transformá-lo em espetáculo, talvez em cobaia. Por isso, querem-no vivo: Naquela noite, todo o país soube da existência do centauro. O que primeiro se julgara ser uma história inventa-da do outro lado da fronteira com intenção de desfrute, tinha agora testemunhas de fé, entre as quais uma mulher que tremia e chorava. Enquanto o centauro atravessava esta outra montanha, saía gente das aldeias e das cidades, com redes e cordas, também com armas de fogo, mas só para assustar. É preciso apanhá-lo vivo, dizia-se. O exército também se pôs em movimento. Aguardava-se o nascer do dia para que os helicópteros levantassem vôo e percorressem toda a região. Encurralado, o centauro despenca de um penhasco na tentativa de fuga e cai sobre uma pedra pontiaguda que o corta ao meio, separando o homem e o cavalo. É assim que, cindido em dois, dividido, o centauro se torna, ele também, um objeto quase, quase um homem: Então olhou seu corpo. O sangue corria. Metade de um homem. Um homem. E viu que os deuses se aproximavam. Era tempo de morrer.

O centauro é cavalo e é homem, é força e é sensibilidade, perseguido pelos deuses e pelos homens, até à morte na consciência dos olhos destes. Morte que nos deixa uma recordação amarga, pelo contraste com o amor, manifestado pelo homem-animal em duas páginas poéticas, em que a poesia não é a palavra, mas o acontecimento em si.

DESFORRA

Em "Desforra", último conto do livro, abre-se uma nota de esperança. A dominação da natureza é representada agora por uma cena brutal e chocante, em que um porco é castrado por homens que se deliciam em lhe dar de comer seus próprios testículos. Mas essa violência é contraposta a uma cena idílica em que, depois de verem uma rã mergulhar subitamente na água, como no célebre haikai de Bashô, um rapaz e uma moça reafirmam a capacidade humana de amar que, nem por negada na sociedade predatória em que vivemos, deixa de existir: Círculos que se alargavam e perdiam na superfície calma, mostravam o lugar onde enfim a rã mergulhara. Então, o rapaz meteu-se à água e nadou para a outra margem, enquanto o vulto branco e nu da rapariga recuava para a penumbra dos ramos.

"Desforra", apenas com três páginas, é a afirmação do amor, despido até à simplicidade da natureza, em contraste com a castração - a "desforra".

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/objecto_quase

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 762)



Uma Trova de Ademar  

Ninguém calcula essa dor 
no coração dos mortais... 
Quando a saudade é de amor, 
a dor é cem vezes mais ! 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Eu já me perdi no horário...
nas palavras, no caminho...
Mas, no meu imaginário,
só não perdi teu carinho! 
–Marisa Vieira Olivaes/RS– 

Uma Trova Potiguar  

A soledade é suspeita,
de sucumbir nossas mágoas,
em sintonia perfeita,
com as profundezas das águas. 
–Wellington Freitas/RN– 

Uma Trova Premiada  

1991   -   Belém/PA 
Tema   -   MÃO   -   M/H. 

A mão triste, vacilante, 
de porta em porta estendida, 
é o troféu mais humilhante 
que o pobre ganha na vida. 
–Fernando Câncio/CE– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Ferindo com seus espinhos, 
a saudade, sem clemência, 
deixa sempre em meus caminhos, 
vestígios... de tua ausência! 
–João Freire Filho/RJ– 

U m a P o e s i a  

A maior bênção divina 
é se ter o dom da vida, 
todo dia eu agradeço, 
essa graça recebida; 
a noite, ao me recolher, 
eu sinto o prazer de ver 
parte da missão cumprida. 
–Hélio Pedro/RN– 

Soneto do Dia  

CONTRADIÇÃO. 
–Maria Nascimento/RJ– 

Hoje, mais uma vez, desesperada 
por ser injustamente preterida, 
vejo que já nasci predestinada 
a amar sem nunca ser correspondida ... 

Mas o que mais me dói, na despedida, 
é saber que fui sempre desprezada 
porque foste o anjo bom da minha vida 
e eu da tua jamais pude ser nada. 

Se me pudesse ver da eternidade, 
chorando de tristeza e de saudade 
pelo amor que no tempo se perdeu, 

Carlos Drummond de Andrade me diria : 
“ E agora “, como vais viver Maria, 
sem o José que achavas que era teu ? !

Jornais e Revistas do Brasil (Diário Carioca)


Período disponível: 1928 a 1965
Local: Rio de Janeiro, RJ

Criado para fazer oposição ao governo Washington Luís e a seu candidato à sucessão presidencial, Júlio, o Diário Carioca (DC), desde os seus primórdios, participou de momentos decisivos da história da República, exercendo considerável influência na cena política brasileira. Seu fundador, José Eduardo de Macedo Soares, era natural de São Gonçalo (RJ) e descendia de influente família latifundiária na hoje denominada Região dos Lagos.

O primeiro jornal de Macedo Soares foi O Imparcial, periódico civilista, fundado por ele logo após deixar a Marinha, que fez dura oposição aos governos do marechal Hermes da Fonseca, Epitácio Pessoa e Artur Bernardes. Preso por ordens do primeiro, Macedo Soares promoveu, em O Imparcial e ao lado do Correio da Manhã, Época e A Noite (cujos diretores também haviam sido detidos), intensa campanha em favor da liberdade de imprensa. Em 1922, por ocasião da primeira rebelião tenentista (episódio conhecido como “Os 18 do Forte”), já no governo de Epitácio Pessoa, José Eduardo voltou a ser preso. Solto meses depois, seu jornal seria novamente fechado por ordem do novo presidente, Artur Bernardes, a quem também fazia oposição. José Eduardo então se exilou na Europa com a mulher e filhas para retornar alguns anos depois, já durante o governo de Washington Luís, e fundar o Diário Carioca. Uma de suas filhas, a urbanista e paisagista Lota (Carlota) Macedo Soares, se destacaria anos depois por administrar a construção, no Rio de Janeiro, do Parque do Flamengo, considerado o maior aterro urbano do mundo.

Logo que foi criado, o jornal apoiou a Aliança Liberal, liderada por Getúlio Vargas (e derrotada nas eleições de março de 1930) e o subseqüente movimento revolucionário de outubro de novembro desse mesmo ano. Uma apaixonada cobertura da Revolução de 30 exaltou, em sucessivas manchetes – “A redempção brasileira. Victoriosa, em todo o paiz, a Cruzada Santa da Libertação Nacional” (24 out.); “A maior epopea da historia brasileira” (27 out.) etc. – a ação “regeneradora” dos aliancistas, ao mesmo tempo em que fazia as mais duras acusações ao governo deposto, chamando Washington Luís de “o último tirano da República”.

Em 1932, porém, o Diário Carioca aderia à campanha pela Assembleia Constituinte, cuja convocação o governo provisório de Vargas retardava, sendo por isso empastelado por simpatizantes do presidente. Em 1935, o DC ficou do lado do governo na insurreição comunista de novembro e, em 1937, pareceu apoiar o golpe do Estado Novo, mas não sem antes manifestar preocupação com o perigo de suspensão das garantias constitucionais. Como no editorial “Pânico”, escrito por Macedo Soares no início de outubro de 1935, pouco mais de um mês antes do golpe:

Cabe inteira responsabilidade aos chefes do Exército e da Marinha da nova viagem que vamos empreender no túnel da suspensão das garantias constitucionais. Mas não esqueçam as ilustres autoridades militares que nos regimes discricionários é sempre muito mais fácil entrar do que sair. (...) No passado, as medidas excepcionais só haviam servido para jugular os jornais, ocultando escândalos e abusos administrativos, e para permitirem prisões injustas, brutalidades, extorsões, e outras imoralidades cometidas por funcionários subalternos.

O comportamento do jornal nos primeiros dias do Estado Novo é assim descrito por Cecília Costa, autora de rico estudo histórico sobre o jornal:

Foi exatamente em novembro (...) que o governo do Estado Novo impôs ao país a Constituição preparada por Francisco Campos, vulgo “A Polaca”, acabando com qualquer esperança dos dois irmãos [o irmão, diplomata José Carlos Macedo Soares, havia pedido demissão do cargo de ministro da Justiça] quanto a uma vindoura eleição. Sob o tacão da nova Constituição, José Eduardo de Macedo Soares escreveria menos editoriais, ou os teria integralmente censurados, com raríssimas exceções, como foi o caso de um artigo sobre a situação da imprensa no novo regime, escrito em dezembro, no qual denunciaria a triste volta da censura legalizada. Sendo obrigado a ficar mudo, suas primeiras páginas, nesses tensos dias de outubro e novembro de 37, seriam dedicadas quase que na íntegra à guerra interna no país, seus interventores, agentes de repressão e aos membros das Forças Armadas. O jornal, habitualmente brincalhão e combativo, ficaria funéreo e solene, como se vestisse uma armadura, mais parecendo um boletim editado pela Marinha ou pelo Exército.” (Costa, Cecília. Diário Carioca: o jornal que mudou a imprensa brasileira.Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2011.)

Foi nos últimos anos do Estado Novo que o DC, assim como outros jornais – muitos deles tendo sofrido a intervenção do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão de propaganda e censura criado por Getúlio Vargas – retomaram a luta contra o regime ditatorial, reconquistando o direito à liberdade de expressão.

A partir de 1945, quando os ares da liberdade voltaram a reinar no país, entraria em choque frontal com Vargas e com o getulismo, aproximando-se das forças nucleadas em torno da União Democrática Nacional (UDN), principal partido de oposição no Brasil até o golpe de 1964.

Em 1954, após noticiar em primeira mão o atentado, em Copacabana, no Rio de Janeiro, a Carlos Lacerda - furo casual do então jovem jornalista Armando Nogueira, que morava nas proximidades – o DC engrossou a campanha, movida pela oposição e boa parte da imprensa (O Globo, Tribuna da Imprensa, Estado de S. Paulo) exigindo a renúncia de Getúlio Vargas. Até se extinguir, em 1965, o pequeno jornal carioca nunca deixaria de exercer influência na política brasileira.

Foi em 1932, após o empastelamento do seu jornal, que Macedo Soares, já com 50 anos, decidiu abandonar a sua direção, passando a exercer apenas o cargo de editorialista, no qual se destacou pela coragem e contundência de seus textos. Tendo alçado ao cargo de diretor-executivo o amigo dileto Horácio de Carvalho Jr., neto do barão de Amparo, manteve-se, no entanto, como eminência parda do periódico. (Horácio de Carvalho, que esteve à frente do jornal até o seu fechamento, teve como esposa, durante 45 anos, a francesa Lily de Carvalho, miss Paris em 1937, posteriormente casada, após a viuvez, com o presidente das Organizações Globo, Roberto Marinho.)

O papel mais relevante daquele pequeno grande jornal, no entanto, e que o faz ser relembrado até hoje, foi o de ter iniciado a reforma do jornalismo carioca, a bem dizer jornalismo brasileiro, já que em 1950 o Rio de Janeiro, capital federal, era ainda a caixa de ressonância política e cultural do país.

Foi em no começo da década de 1950 que o DC pretendeu dar o seu maior passo, tornando-se um grande jornal de circulação nacional. Inaugurou, na ocasião, na avenida Presidente Vargas, seu novo e bonito prédio sobre pilotis projetado pelo notável arquiteto Afonso Eduardo Reidy, e também a gráfica Érica, com o que havia de mais moderno no mundo em matéria de equipamento. O novo DC saiu no dia 28 de maio de 1950, um domingo, com 72 páginas e cinco cadernos, como o Carioquinha, a cores, e a Revista do DC, para o público feminino, além de páginas literárias com colaboradores de alto nível, como Antonio Candido, Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Freyre, Manuel Bandeira e Sérgio Buarque de Holanda. Fizeram parte dessa reforma, que antecedeu em seis anos à do Jornal do Brasil, nomes que se consagraram na imprensa do país, como Pompeu de Souza, Luiz Paulistano e Prudente de Moraes, Neto.

Foi também o DC que criou o primeiro manual de estilo para seus redatores e repórteres e implantou o uso de lide e sublide no Brasil, acabando com o famigerado “nariz de cera” – texto longo (e dispensável) de introdução às reportagens, em voga na nossa imprensa desde o século XIX. Além disso, foi um dos grandes pioneiros de um jornalismo moderno e essencialmente carioca, destacando-se a cobertura com suíte, os títulos com siglas e até mesmo sem verbo, o que era uma revolução para a época.

Fonte:
http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/diário-carioca

Ruth Rocha (Meu Amigo Dinossauro)


Um pequeno dinossauro
Apareceu no jardim
Educado, inteligente,
O seu nome era Joaquim.
Nunca consegui saber
De onde foi que ele saiu
Quando a gente perguntou
Disfarçou e até sorriu...
Ficou muito nosso amigo
Fez tudo que é brincadeira.
Levou o Miguel pra escola
Levou a mamãe pra feira.
As pessoas espiavam 
Estranhavam um pouquinho
Onde será que arranjaram
Este dinossaurosinho?
Nessa tarde o papai trouxe
Um amigo bem distinto
Que se espantou e exclamou:
— Mas este bicho está extinto!
Há muitos milhões de anos
Ele já virou petróleo!
Ou já virou gasolina,
Ou algum tipo de óleo.
Meu dinossauro sorriu
— Estou vivo, "podes crer"!
Eu não virei querosene 
Como o senhor pode ver!
Antigamente diziam
Que o petróleo era formado
Por montes de dinossauros
Um sobre o outro empilhados.
Mas isso não é verdade!
Foram plantas e outros bichos
Que ficaram bem fechados
Entre buracos e nichos.
Sofreram muita pressão
Por muitos milhões de anos
Sofreram muito calor
No fundo dos oceanos.
— Mas então por que o petróleo
Até parece cigano?
Ora aparece na Terra,
Ora debaixo do oceano!
É porque o planeta Terra
Esteve sempre a mudar
Depois de milhões de anos
Tudo mudou de lugar
Todos ficaram espantados
De tanta sabedoria
E perguntavam: — Que mais
Sabe Vossa Senhoria?
— Sei ainda muitas coisas
Disse o amigo Joaquim
Para que serve o petróleo
E outras coisas assim.
Petróleo move automóvel,
Navio, trem, avião,
Ônibus e motocicleta,
Helicóptero e caminhão.
Com petróleo se faz pano,
Brinquedo, bolsas e mala,
Pele pra fazer salsicha,
Copos, pratos, nem se fala.
Se faz tinta, faz garrafa,
Material de construção,
Se fazem peças de automóvel
E se faz tubulação.
— Tenho mais uma coisinha
Pra dizer. — Pois então diga!
E o dinossauro puxou
O fecho em sua barriga.
E saíram lá de dentro
O Pedro mais o Raimundo
— Nós não somos dinossauro,
Enganamos todo mundo!

Fonte:
Revista Nova Escola

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 20 de maio: Um Incêndio


Domingo passado havia espetáculo no Teatro de São Pedro e no Ginásio Dramático.

Mais longe, num pequeno salão todo elegante, dançava-se e ouvia-se cantar Bouché, Ferranti, Dufrene e a Charton.

A harpa do Tronconi gemia, a flauta de Scaramella trinava como um rouxinol.

Seriam dez horas da noite.

Neste mesmo momento, e no meio desta alegria geral, uma grande catástrofe se consumava.

Uma faísca desprezada crescera, transformara-se em chama, e ameaçava devorar um quarteirão inteiro.

Os sinos dobravam, o povo apinhava-se em torno, a chama enroscava-se ao longo das paredes como uma serpente de fogo, e o incêndio lançava sobre toda esta cena um clarão avermelhado e sinistro.

Fizeram-se atos de heroísmo e de coragem, ações de bravura que passaram despercebidas no meio desta luta terrível do homem com o elemento.

Os ingleses portaram-se com o sangue-frio habitual; os franceses trabalharam com entusiasmo; alguns brasileiros sustentaram a honra do seu nome e os brios nacionais.

No dia seguinte apenas restava de tudo isto um acervo de ruínas ainda fumegantes, um epitáfio escrito pelo fogo, e que todos os passantes iam ler naquelas cinzas ardentes.

Durante dois oi três dias conversou-se sobre o incêndio, fizeram-se mil comentários, e entre muitas coisas que se disse apareceram algumas verdades bem tristes.

Asseguravam que as bombas do arsenal estavam desmanteladas, e que, depois de chegarem ao lugar do incêndio, descobrira-se que não tinham chaves, e portanto fora necessário esperar uma  boa hora para que elas pudessem prestar serviço.

Não sei até que ponto chega a verdade deste fato; mas para mim ele nada tem de novo.

Se se tratasse de uma regata, de algum passeio de ministro a bordo dos navios de guerra, naturalmente tudo havia de estar pronto, as ordens seriam dadas a tempo e se desenvolveria um luxo de atividade e de zelo como não há exemplo, nem mesmo na Inglaterra, o país clássico da rapidez.

Tratava-se, porém, de um incêndio apenas, de cinco casas reduzidas a cinzas, e por isso não é de estranhar que não houvesse a mesma azáfama que costuma aparecer naqueles outros ramos mais importantes do serviço público.

Depois do fogo veio a chuva, como era natural; tinha reinado um elemento, era justo que o outro lhe sucedesse. 

Toda a semana levou esta senhora a fazer-nos pirraças. Roubou-nos o belo divertimento da regata; e de vez em quando escondia-se atrás da porta, isto é, por detrás do Corcovado, e deixava que o sol brilhasse e que o céu se tornasse azul; e, apenas     pilhava um homem na rua, começava a divertir-se à sua custa.

O arsenal de marinha, que não dá grande importância à extinção dos incêndios, podia ao menos tratar de livrar-nos do contratempo da chuva, e fazer a experiência da teoria de Méry. É natural que as suas peças de artilharia estejam em melhor estado que as suas bombas.

Entretanto, apesar da chuva, tivemos esta semana uma noite de Trovador e outra de Sonâmbula.

O Dufrene fazia a sua quarta estréia nesta última ópera. Na ocasião em que se representava uma das cenas do primeiro ato, um amigo que estava no meu lado lembrou-me as seguintes palavras de Balzac:

“Um artiste qui a le malheur d’être pleindre la PASSION qu’il veut exprimer ne saurait la peindre, car il est la CHOSE même, au lieu d’en être l’image.”

O que é que Balzac e o meu amigo quereriam dizer com estas palavras? Não sei; um citou-as sem comentário; o outro escreveu-as sem segunda tenção.

Nesta mesma noite teve lugar a reunião da Sociedade Estatística na sala onde se achavam expostos os produtos industriais dos Estados Unidos, que o Sr. Fletcher oferecera a Suas Majestades e algumas corporações científicas desta corte.

Havia muita coisa a admirar naquela pequena exposição especialmente pelo que toca à fotografia, aos trabalhos de cromolitografia, e às cartas geográficas feitas pelo novo sistema da gravura sobre cera.

Vimos um busto de Webster, que o Sr. Fletcher nos afirmou ser feito com uma máquina, que por meio de um processo engenhoso copia os traços de um outro busto. A semelhança era completa, a julgar-se pelos retratos em fotografia que existiam na sala.

Aberta a sessão pelo Sr. Visconde Itaboraí, o Sr. Fletcher pronunciou um discurso em francês, no qual expôs as suas idéias e os projetos que o haviam animado a voltar ao Brasil. 

Depois de falar sobre a ignorância absoluta e recíproca que existe no nosso país e nos Estados Unidos sobre a organização política, a administração e o progresso de uma e outra nação, mostrou os desejos que tinha, de fazer conhecido o Brasil na sua pátria e de estreitar assim as relações comerciais e políticas dos dois povos americanos.

Se o Sr. Fletcher conseguir realizar esta idéia, pela qual parece trabalhar com tanto entusiasmo, fará um grande serviço à América. Talvez dessas relações que vão começar nasça um grande pensamento de política americana, que no futuro venha a dirigir os destinos do novo mundo e a por um termo à intervenção européia.

E, se é exata uma notícia que nos deram, então é muito natural que os projetos do Sr. Fletcher venham a efetuar-se mais breve do que se pensa.

O Sr. William Trousdale, Ministro Plenipotenciário dos Estados Unidos na nossa corte, é um dos candidatos à futura presidência da Confederação; e, à vista dos valiosos serviços prestados por ele na Guerra do México, é de crer que esta candidatura seja bem aceita pelos diversos Estados.

Quanto à política, é hoje esse terreno tão inclinado, que nele não nos queremos aventurar, quando os chefes deixam os seus soldados errantes e dispersos combatendo em guerrilhas, em saberem ao certo que bandeira defendem.

A Câmara dos Deputados tem aprovado algumas naturalizações de sujeitos que entendem que as leis do país não passam de  letra morta, e que reclamam, pela importância de seus nomes, dispensa naquelas leis.

Até reza a crônica que se deu o foro de cidadão brasileiro a um estrangeiro recomendado à polícia! Talvez que merecesse esse favor para poder ser empregado na espionagem da gente trêfega. 

Desejava bem dar-vos alguma notícia da oposição; porém creio que os oposicionistas modernos procedem de uma maneira muito diferente da que se usava outrora.

Em vez de atacarem o governo, defendem-no; e por isso contaram-me que, perguntando o presidente a um deputado que pedira a palavra na resposta à fala do trono se era pró ou contra, respondera que seria como quisessem

É verdade que lá de vez em quando surge um campeão que não dá quartel ao governo, como sucedeu ontem na discussão da fala do trono.

Que de verdades se descobriram! O país está à borda de um abismo! Nós caminhamos a passos de gigante para o mais completo absolutismo!

Quereis as provas?

As medidas sobre a limpeza da cidade, os regulamentos de instrução pública e de óbitos, o método Castilho, e talvez que a reprovação de alguns professores – tudo isto, na opinião do orador, são golpes profundos que se têm dado à constituição e à nossa organização política.

Pobre constituição! A quanto não estais sujeita! É verdade que, depois que te arrancaram as folhas para as lançarem por aí aos domingos e quintas-feiras, não tinhas mais que esperar.

Esquecia-me de dar-vos uma notícia importante. Um candidato à senatoria, que não teve a fortuna de ser escolhido, foi ultimamente promovido a tenente.

É um ato do governo que merece que merece elogios; é uma prova de que o ministério, apreciando em subido grau os serviços daquele prestante cidadão, não quis que ele entrasse no quartel dos inválidos, e habilitou-o para continuar em serviço ativo.

E o que é mais notável é que este favor foi feito a um deputado oposicionista! Que imparcialidade!

Já sabeis que as iguarias preparadas para a regata foram enviadas aos doidos do Hospício de Pedro II. Decididamente estavam predestinadas!

Seu primeiro destino era servir aos doidos, doidos de amor e de entusiasmo, que, depois das corridas dos escaleres e das amáveis conversas com as belas convivas, teriam de ir fazer um toast à rainha do dia em beleza e ao vencedor do páreo.

Mas tudo isto o tempo veio transtornar, e, em vez de uma regata, deu-se cinco ou seis, e bem regadas pela chuva, que a esta hora ainda cai a cântaros.

E por hoje, despedida à francesa; até o próximo domingo, em que é provável que esteja de melhor veia do que hoje.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.