quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Monteiro Lobato (O Herdeiro de Si Mesmo)

O povo de Dois Rios não cessava de comentar a inconcebível “sorte” do coronel Lupércio Moura, o grande milionário local. Um homem que saíra do nada. Que começara modesto menino de escritório dos que mal ganham para os sapatos, mas cuja vida, dura até aos 36 anos, fora daí por diante a mais espantosa subida pela escada do dinheiro, a ponto de aos 60 ver-se montado numa hipopotâmica fortuna de 60 mil contos de réis.

Não houve o que Lupércio não conseguisse da sorte – até o posto de coronel, apesar de já extinta a pitoresca instituição dos coronéis. A nossa velha Guarda Nacional era uma milícia meramente decorativa, com os galões de capitão, major e coronel reservados para coroamento das vidas felizes em negócios. Em todas as cidades havia sempre um coronel: o homem de mais posses. Quando Lupércio chegou aos 20 mil contos, agente de Dois Rios sentiu-se acanhado de tratá-lo apenas de “senhor Lupércio”. Era pouquíssimo. Era absurdo que um detentor de tanto dinheiro ainda se conservasse! “soldado raso” – e por consenso unânime promoveram-no, com muita justiça, a coronel, o posto mais alto da extinta milícia.

Criaturas há que nascem com misteriosa aptidão para monopolizar dinheiro. Lembram ímãs humanos. Atraem a moeda com a mesma inexplicável força com que o ímã atrai a limalha. Lupércio tornara-se ímã. O dinheiro procurava-o de todos os lados, e uma vez aderido não o largava mais toda gente faz negócios em que ora ganha, ora perde. Ficam ricos os que ganham mais do que perdem e empobrecem os que perdem mais do que ganham. Mas caso de homem de mil negócios sem uma só falha, existia no mundo apenas um – o do coronel Lupércio.

Até aos 36 anos ganhou dinheiro de modo normal, e conservou-o à força da mais acirrada economia. Juntou um pecúlio de 45:500$000 como juntam todos os forretas. Foi por essas alturas que sua vida mudou. A sorte “encostou-se” nele, dizia o povo. Houve aquela tacada inicial de santos e a partir daí todos os seus negócios foram tacada prodigiosas. Evidentemente, uma força misteriosa passara a portegê-lo.
Que tacada inicial fora essa? Vale a pena recordá-lo.

Certo dia, inopidanadamente, Lupércio apareceu com a idéia, absurda para seu caráter, de uma estação de veraneio em Santos. Todo mundo se espantou. Pensar em veraneio, flanar, botar dinheiro fora, aquela criatura que nem sequer fumava para economia dos níqueis que custam os maços de cigarros? E quando o interpelaram, deu uma resposta esquisita:

- Não sei. Uma coisa me empurra para lá...

Lupércio foi para Santos. Arrastado, sim, mas foi. E lá se hospedou no hotelzinho mais barato, sempre atento a uma só coisa: o saldo que ficaria dos 500 mil réis que destinara à “maluquice”. Nem banhos de mar tomou, apesar da grande vontade, para economia dos 20 mil réis de roupa de banho. Contentava-se com ver o mar.

Que enlevo d’alma lhe vinha da imensidão líquida, eternamente a aflar em ondas e a refletir os tons do céu! Lupércio extasiava-se diante de tamanha beleza.

- Quanto sal! Quantos milhões de toneladas de sal! – dizia lá consigo, e seus olhos, em êxtase, ficavam a ver pilhas imensas de sacas amontoadas por toda a extensão das praias.

Também gostava de assistir à puxada das redes dos pescadores, enlevando-se no cálculo do valor da massa de peixes recolhida. Seu cérebro era a mais perfeita máquina de calcular que o mundo ainda produzira.

Num desses passeios afastou-se mais que de costume e foi ter à praia grande. Um enorme trambolho ferrugento semi-enterrado na areia chamou-lhe a atenção.

- Que é aquilo? – indagou dum passante.

Soube tratar-se dum cargueiro inglês que vinte anos antes dera à costa naquele ponto. Uma tempestade arremessara-o à praia onde encalhara e ficara a afundar-se lentissimamente. No começo o grande caso aparecia quase todo de fora – “mas ainda acaba engolido pela areia” – concluiu o informante.

 Certas criaturas nunca sabem o que fazem, o que são, nem o que leva a isto e não àquilo. Lupércio era assim. Ou andava assim agora, depois do “encostamento” da força. Essa força o puxava às vezes como cabreiro puxa para a feira um cabrito – arrastando-o. Lupércio veio para santos arrastado. 

Chegara até aquele casco arrastado – e era a contragosto que permanecia diante dele, porque o sol estava terrível e Lupércio detestava o calor. Travava-se dentro dele uma luta. A força obrigava-o a atentar no casco, e calcular o volume daquela massa de ferro, o número de quilos, o valor do metal, o custo do desmantelamento – mas Lupércio resistia. Queria sombra, queria escapar ao calor terrível. Por fim, venceu. Não calculou coisa nenhuma – e fez-se de volta para o hotelzinho com cara de quem brigou com a namorada – evidentemente amuado.

Nessa noite todos os seus sonhos giraram em torno do casco velho. A força insistia para que ele calculasse a ferralha, mas mesmo em sonhos Lupércio resistia, alegava o calor reinante – e os pernilongos. Oh, como havia pernilongos em Santos! Como calcular qualquer coisa com o termômetro perto de 40 graus e aquela infernal música anofélica? Lupércio amanheceu de mau humor, amuado. Amuado com a força.

Foi quando ocorreu o caso mais inexplicável de sua vida:

O casual encontro de um corretor de negócios que seduziu de maneira estranha. Começaram a conversar bobagens e gostaram-se. Almoçaram juntos. Encontraram-se de novo à tarde para o jantar. Jantaram juntos e depois... a farrinha!

A princípio, a idéia da farra tinha assustado Lupércio. Significava desperdício de dinheiro – um absurdo. Mas como o homem lhe pagara o almoço e o jantar, era bem possível que também custeasse a farrinha. Essa hipótese fez que Lupércio não repelisse de pronto o convite, e o corretor, como se lhe adivinhasse o pensamento, acudiu logo:

- Não pense em despesas. Estou cheio de “massa”. Como o negocião que fiz ontem, posso torrar um conto sem que meu bolso dê por isso.

A farra acabou diante de uma garrafa de whisky, bebida cara que só naquele momento Lupércio veio a conhecer. Uma, duas, três doses. Qualquer coisa levitante começou a desabrochar dentro dele. Riu-se à larga. Contou casos cômicos. Referiu cem fatos de sua vida e depois, oh, oh, oh, falou em dinheiro e confessou quantos contos possuía no banco!

- Pois é! Quarenta e cinco contos – ali na batata!

O corretor passou o lenço pela testa suada. Uf! Até que enfim descobrira o peso metálico daquele homem. A confissão dos 45 contos era algo absolutamente aberrante na psicologia de Lupércio. Artes do whisky, porque em estado normal ninguém nunca lhe arrancaria semelhante confissão. Um dos seus princípios instintivos era não deixar que ninguém lhe conhecesse “ao certo” o valor monetário. Habilmente despistava os curiosos, dando a uns a impressão de possuir mais, e a outros a de possuir menos do que realmente possuía. Mas in whisky, diz o latim – e ele estava com quatro boas doses no sangue.

O que se passou dali até a madrugada Lupércio nunca o soube com clareza. Vagamente se lembrava de um estranhíssimo negócio em que entravam o velho casco do cargueiro inglês e uma companhia de seguros marítimos.

Ao despertar no dia seguinte, ao meio-dia, numa ressaca horrorosa, tentou reconstruir o embrulho da véspera. A princípio, nada; tudo confusão. De repente, empalideceu.

Sua memória começava a abrir-se.

- Será possível?

Fora possível, sim. O corretor havia “roubado” os seus 45 contos! Como? Vendendo-lhe o ferro-velho. Esse corretor era agente da companhia que pagara o seguro do cargueiro naufragado e ficara dona do casco. Havia muitos anos que recebera a incumbência de apurar qualquer coisa daquilo – mas nunca obtivera nada, nem 5, nem 3 nem 2 contos – e agora o vendera àquele imbecil por 45!

A entrada triunfal do corretor no escritório da companhia, vibrando no ar o cheque! Os abraços, os parabéns dos companheiros tomados de inveja...

O diretor da sucursal fê-lo vir ao escritório.

- Quero que receba o meu abraço – disse. – A sua façanha vem pô-lo em primeiro lugar entre os nossos agentes.

O senhor acaba de tornar-se a grande estrela da companhia.

Enquanto isso, lá no hotelzinho, Lupércio amarfanhava o travesseiro desesperadamente. Pensou na polícia. Pensou em contratar o melhor advogado de Santos. Pensou em dar tiro – um tiro na barriga do infame ladrão; na barriga, sim, por causa da peritonite. Mas nada pôde fazer. A força lá dentro o inibia. Impedia-o de agir neste ou naquele sentido. Forçava-o a esperar.

- Mas esperar que coisa?

Ele não sabia, não compreendia, mas sentia aquela impulsão tremenda que o forçava a esperar. Por fim, exausto da luta, ficou de corpo largado – vencido. Sim, esperaria. Não faria nada – nem polícia, nem advogado, nem peritonite, apesar de ser um caso de escroqueria pura, desses que a lei pune.

E como não tivesse ânimo de regressar a Dois Rios, deixou-se ficar em Santos num empreguinho dos mais modestos – esperando... não sabia o quê.

Não esperou muito. Dois meses depois rebentava a Grande Guerra, e a tremenda alta dos metais não demorou a sobrevir. No ano seguinte Lupércio revendeu o casco do “Sparrow’ por 320 contos de réis. A notícia encheu Santos – e o corretor-estrela foi tocado da companhia de seguros quase a pontapés. O mesmo diretor que o promovera ao “estrelato” despediu-o com palavras ferozes;

- Imbecil! Esteve anos e anos com o “Sparrow” e vai vendê-lo por uma ninharia justamente nas vésperas da valorização. Rua! Faça-me o favor de nunca mais me pôr os pés aqui, seu coisa!

Lupércio voltou para Dois Rios com 320 contos no bolso e perfeitamente reconciliado com a força. Daí por diante nunca mais houve amuos, nem hiatos na sua ascensão ao milionarismo. Lupércio dava idéia do demônio. Enxergava no mais escuro de todos os negócios. Adivinhava. Recusava muitos que todos refugavam – e o que inevitavelmente sucedia era o fracasso desses negócios da china e a vitória dos de todos refugiados.

No jogo dos marcos alemães o mundo inteiro perdeu – menos Lupércio. Um belo dia deliberou “embarcar nos marcos”, contra o conselho de todos os prudentes locais. A moeda alemã estava a 50 réis. Lupércio comprou milhoões e mais milhões, empatou nela todas as suas possibilidades. E com espanto geral, o marco principiou a subir. Foi a 60, a 70, a 100 réis. O entusiasmo pelo negócio tornou-se imenso. Iria a 200, a 300 réis, diziam todos – e não houve quem não se atirasse à compra daquilo.

Quando a cotação chegou a 110 réis, Lupércio foi à capital consultar um banqueiro das suas relações, verdadeiro oráculo em finanças internacionais – o “infalível”, como diziam nas rodas bancárias.

- Não venda – foi o conselho do homem. – A moeda alemã está firmíssima, vai a 200, pode chegar mesmo a 300 – e só será o momento de vender.

As razões que o banqueiro deu para demonstrar matematicamente o asserto eram de perfeita solidez; eram a própria evidência materializada do raciocínio.

Lupércio ficou absolutamente convencido daquela matemática – mas, arrastado pela força, encaminhou-se para o banco onde tinha os seus marcos – arrastado como o cabritinho que o cabreiro conduz à feira – e lá, em voz sumida, submisso, envergonhado, deu ordens para a venda imediata dos seus milhões.

- Mas, o coronel – objetou o empregado a quem se dirigiu -, não acha que é erro vender agora que a alta está em vertigem? Todos os prognósticos são unânimes em garantir que teremos o marco a 200, a 300, e isso antes de um mês...

- Acho, sim, que é isso mesmo – respondeu Lupércio, como que agarrado pela garganta. – Mas quero, sou “forçado” a vender. Venda já, já, hoje mesmo.

- Olhe, olhe... – disse ainda o empregado. – não se precipite. Deixe essa resolução para amanhã. Durma sobre o caso.

A força quase estrangulou Lupércio, que com os últimos restos de voz apenas pôde dizer:

- É verdade, tem razão – mas venda, e hoje mesmo...

No dia seguinte começou a degringolada final dos marcos alemães, na descida vertiginosa que os levou ao zero absoluto.

Lupércio, comprador a 50 réis, vendera-os pelo máximo da cotação alcançada – e justamente na véspera de débâcle! O seu lucro foi milhares de contos.

Os contos de Lupércio foram vindo aos milhares, mas também lhe vieram vindo aos anos, até que um dia se convenceu de estar velho e inevitavelmente próximo do fim. Dores aqui e ali – doencinhas insistentes, crônicas. Seu organismo evidentemente de caía à proporção que a fortuna aumentava. Ao completar os 60 anos Lupércio tomou-se de uma sensação nova, de pavor – o pavor de ter de largar a maravilhosa fortuna reunida. Tão integrado estava no dinheiro, que a idéia de separar-se dos milhões lhe parecia uma aberração da natureza. Morrer! Teria então de morrer, ele que era diferente dos outros homens? Ele que viera ao mundo com a missão de chamar a si quanto dinheiro houvesse?

Ele que era o ímã atrator da limalha?

O que foi a sua luta com a idéia de inevitabilidade da morte não cabe em descrição nenhuma. Exigiria volumes. Sua vida ensombreceu. Os dias iam se passando e o problema se tornava cada vez mais augustioso. A morte é um fato universal. Até aquela data não lhe constava que ninguém houvesse deixado de morrer. Ele, portanto, morreria também – era o inevitável.

O mais que poderia fazer era prolongar a sua vida até os 70, até 80. Poderia mesmo chegar a quase 100, como o rockefeller – mas ao cabo teria de ir-se, e então? Quem ficaria com 200 ou 300 mil contos que deveria ter por essa época?

Aquela história de herdeiros era o absurdo dos absurdos para um celibatário de sua marca. Se a fortuna era dele, só dele, como deixá-la quem quer que fosse? Não... Tinha de descobrir um jeito de não morrer ou... Lupércio interrompeu-se no meio do raciocínio, tomado de súbita idéia. Uma idéia tremenda, que por minutos o deixou de cérebro paralisado. Depois, sorriu.

- Sim, sim... quem sabe? E seu rosto iluminou-se de uma luz nova. As grandes idéias emitem luz...

Desde esse momento Lupércio revelou-se outro, com preucupações que nunca tivera antes. Não houve em Dois Rios quem o não notasse.

- O homem mudou completamente – diziam. – está se espiritualizando. Compreendeu que a morte vem mesmo e começa a arrepender-se da sua feroz materialidade.

Lupércio fez-se espiritualista. Comprou livros, leu-os, meditou-os. Passou a freqüentar o centro espírita local e ao ouvir com a maior atenção as vozes do além, transmitida pelo Chico vira, o famoso médium da zona.

- Quem havia de dizer! – era o comentário geral. – Esse usuário que passou a vida inteira só pensando em dinheiro e nunca foi capaz de dar um tostão de esmola, está virando santo. E vão ver que faz como o Rockfeller: deixa toda a fortuna para o asilo de mendigos...

Lupércio, que nunca lera coisa nenhuma, estava agora se tornando um sábio, a avaliar pelo número de livros que adquiria. Entrou a estudar a fundo. Sua casa fez-se centro de reuniões de quanto médium aparecia por lá – e muitos de fora vieram Dois Rios a convite seu. Geralmente hospedava-os, pagava-lhes a conta do hotel – coisa inteiramente aberrante dos seus princípios financeiros. O assombrado da população não tinha limites.

Mas o dr. Dunga, diretor do centro espírita, começou a estranhar uma coisa: o interesse do coronel Lupércio pela metapsíquica centrava-se num só ponto – a reencarnação. Só isso o preucupava realmente. Pelo resto passava como gato por brasas.

- Escute, irmão – disse ele um dia ao dr. Dunga. – há na teoria da reencarnação um ponto para mim obscuro e que no entanto me apaixona. Por mais autores que eu leia, não consigo firmar as idéias.

- Que ponto é esse? – indagou o dr. Dunga.

- Vou dizer. Já não tenho duvídas sobre a reencarnação. Estou plenamente convencido de que a alma, depois da morte do corpo, volta – reencarna-se em outro ser. Mas em quem?

- Como em quem?

- Em quem, sim. Meu ponto é saber se a alma do desencarnado pode escolher o corpo em que vai novamente encarnar-se.

- Está claro que escolhe.

Até aí vou eu. Sei que escolhe. Mas “quando” escolhe?

O dr. Dunga não percebia o alcance da pergunta.

- Escolhe quando chega o momento de escolher – respondeu.

A resposta não contentou o coronel. O momento de escolher! Bolas! Mas que momento é esse?

- Meu ponto é o seguinte: saber se a alma de um vivo pode antecipadamente escolher a criatura em que vai futuramente encarnar-se.
O dr. Dunga estava tonto. Fez cara de não entender nada.

- Sim – continuou Lupércio. – Quero saber, por exemplo, se a alma de um vivo pode, antes de morrer, marcar a mulher que vai ter um filho em que essa alma se encarne.

A perplexidade do dr. Dunga recrescia.

- Meu caro – disse por fim Lupércio - , estou disposto a pagar até cem contos por uma informação segura – seguríssima. Quero saber se a alma de um vivo pode antes de desencarnar-se escolher o corpo da sua futura reencarnação.

- Antes de morrer?

- Sim...

- Em vida ainda?

- Está claro...

O dr. Dunga quedou-se pensativo. Estava ali uma hipótese em que jamais refletia sobre o que nada lera.

- Não sei, coronel. Só vendo, só consultando os autores – e as autoridades. Nós aqui somos bem poucos neste assunto, mas há mestres na Europa e nos Estados Unidos.

Podemos consultá-los.

- Pois faça-me o favor. Não olhe as despesas. Darei cem contos, e até mais, em troca de uma informação segura.

- Sei. Quer saber se ainda em vida do corpo podemos escolher a criatura em que vamos reencarnar-nos.

- Exatamente.

- E por que isso?

- Maluquices de velho. Como ando a estudar as teorias da reencarnação, lógico que me interessa pelos pontos obscuros. Os pontos claros esses já os conheço. Não acha natural a minha atitude?

O dr. Dunga teve de achar naturalíssima aquela atitude.

Enquanto as cartas de consulta cruzaram o oceano, endereçada às mais famosas sociedades psíquicas do mundo, o estado de saúde do coronel Lupércio agravou-se – e concomitantemente se agravou sua pressa pela solução do problema. Chegou a autorizar pedido de resposta pelo telégrafo – custasse o que custasse.

Certo dia, o dr. Dunga, tomado de vaga desconfiança, foi procurá-lo em casa.

Encontrou-o mal, respirando c esforço.

- Nada ainda, coronel. Mas a minha visita tem outro fim. Quero que o amigo fale claro, abra esse coração! Quero que me explique a verdadeira causa do seu interesse pela consulta. Francamente, não acho natural isso. Sinto, percebo, que o coronel tem uma idéia secreta na cabeça.

Lupércio olhou-o de revés, desconfiado. Mas resistiu. Alegou que era apenas curiosidade. Como nos seus estudos sobre a reencarnação nada vira sobre aquele ponto, viera-lhe a lembrança de esclarecê-lo. Só isso...

O dr. Dunga não se satisfaz. Insistiu:

- Não, coronel, não é isso, não. Eu sinto, eu vejo, que o senhor tem uma idéia oculta na cabeça. Seja franco. Bem sabe que sou seu amigo.

Lupércio resistiu ainda por algum tempo. Por fim confessou, com relutância.

- É que estou no fim, meu caro – tenho de fazer o testamento...

Não disse mais, nem foi preciso. Um clarão iluminou o espírito do dr. Dunga. O coronel Lupércio, a mais pura encarnação humana do dinheiro, não admitia a idéia de morrer e deixar a fortuna aos parentes. Não se conformando com a hipótese de separar-se dos 60 mil contos, pensava em fazer-se o herdeiro de si mesmo em outra reencarnação... seria isso?

Dunga olhou-o firmamente, sem dizer palavra. Lupércio leu-lhe o pensamento leu-lhe o pensamento nos olhos inquisitores. Corou –pela primeira vez na vida. E, baixando a cabeça. Abriu o coração.

- Sim, Dunga, é isso. Quero que vocês me descubram a mulher em que vou nascer de novo – para fazê-la em meu testamento, a depositária de minha fortuna.

Fonte:

Luís Vaz de Camões (Redondilhas)

AMOR QUE EM MEU PENSAMENTO (1595)

Glosa

a este moto seu (acróstico):
A morte, pois que sou vosso,
não na quero, mas se vem,
[h]a-de ser todo meu bem.

–––––
Amor, que em meu pensamento
com tanta fé se fundou,
me tem dado um regimento
que, quando vir meu tormento,
me salve com cujo sou.

E com esta defensão,
com que tudo vencer posso,
diz a causa ao coração:
não tem em mim jurisdição
A morte, pois que sou vosso.

Por experimentar um dia
Amor se me achava forte
nesta fé, como dizia,
me convidou com a morte,
só por ver se a tomaria.

E, como ele seja a cousa
onde está todo o meu bem,
respondi-lhe (como quem
quer dizer mais, e não ousa):
não na quero, mas se vem...

Não disse mais, porque então
entendeu quanto me toca;
e se tinha dito o não,
muitas vezes diz a boca
o que nega o coração.

Toda a cousa defendida
em mais estima se tem:
por isso é cousa sabida
que perder por vós a vida
ha-de ser todo meu bem.

AQUELA CATIVA (1595)

a uma cativa com quem andava de amores na Índia, chamada Bárbora
––––––––-
Aquela cativa,
que me tem cativo,
porque nela vivo
já não quer que viva.

Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que para meus olhos
fosse mais formosa.

Nem no campo flores,
nem no céu estrelas,
me parecem belas
como os meus amores.

Rosto singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.

Uma graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa.

Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.

Leda mansidão
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
mas Bárbora não.

Presença serena
que a tormenta amansa;
nela enfim descansa
toda a minha pena.

Esta é a cativa
que me tem cativo,
e, pois nela vivo,
é força que viva.

CAMPOS CHEIOS DE PRAZER (1595)
Glosa

a este mato alheio:
Campos bem-aventurados,
tornai-vos agora tristes,
que os dias em que me vistes
alegre são já passados.

––––––––––––
Campos cheios de prazer,
vós, que estais reverdecendo,
já me alegrei com vos ver;
agora venho a temer
que entristeçais em me vendo.

E, pois a vista alegrais
dos olhos desesperados,
não quero que me vejais,
para que sempre sejais
campos bem-aventurados.

Porém, se por acidente,
vos pesar de meu tormento,
sabereis que Amor consente
que tudo me descontente,
senão descontentamento.

Por isso vós, arvoredos,
que já nos meus olhos vistes
mais alegrias que medos,
se mos quereis fazer ledos,
tornai-vos agora tristes.

Já me vistes ledo ser,
mas depois que o falso Amor
tão triste me fez viver, .
ledos folgo de vos ver,
porque me dobreis a dor.

E se este gosto sobejo
de minha dor me sentistes,
julgai quanto mais desejo
as horas que vos não vejo
que os dias em que me vistes.

O tempo, que é desigual,
de secos, verdes vos tem;
porque em vosso natural
se muda o mal para o bem,
mas o meu para mor mal.

Se perguntais, verdes prados,
pelos tempos diferentes
que de Amor me foram dados,
tristes, aqui são presentes,
alegres, já são passados.

CORRE SEM VELA E SEM LEME (1595)

Corre sem vela e sem leme
o tempo desordenado,
dum grande vento levado;
o que perigo não teme
é de pouco experimentado.

As rédeas trazem na mão
os que rédeas não tiveram:
vendo quando mal fizeram
a cobiça e ambição
disfarçados se acolheram.

A nau que se vai perder
destrói mil esperanças;
vejo o mau que vem a ter;
vejo perigos correr
quem não cuida que há mudanças.

Os que nunca sem sela andaram
na sela postos se vêm:
de fazer mal não deixaram;
de demônio hábito têm
os que o justo profanaram.

Que poderá vir a ser
o mal nunca refreado?
Anda, por certo, enganado
aquele que quer valer,
levando o caminho errado.

É para os bons confusão
ver que os maus prevaleceram;
posto que se detiveram
com esta simulação,
sempre castigos tiveram.

Não porque governe o leme
em mar envolto e turbado,
quem tem seu rumo mudado,
se perece, grita e geme
em tempo desordenado.

Terem justo galardão
e dor dos que mereceram,
sempre castigos tiveram
sem nenhuma redenção,
posto que se detiveram.

Na tormenta, se vier,
desespere na bonança
quem manhas não sabe ter.
Sem que lhe valha gemer
verá falsear a balança.

Os que nunca trabalharam,
tendo o que lhes não convém,
se ao inocente enganaram
perderão o eterno bem
se do mal não se apartaram.

Fonte:
Portal São Francisco

Nilto Maciel (Como me Tornei Imortal)

A grande maioria dos seres humanos acredita na imortalidade. Cada um deles se diz constituído de corpo e alma. Aquele morre, se desfaz, vira pó. Esta permanece intacta – a pensar e sentir – e, após a morte de sua metade, voa para o céu, o paraíso, onde está Deus, ou para o inferno ou sabe-se lá para onde. Essa grande maioria é resignada, vive rindo, brincando, feito eternas crianças, por se crer regida por Deus ou o Destino. Mesmo quando choram – diante do corpo sem vida de filhos, pais, irmãos, amigos, ídolos – parecem rir: Deus quis assim, Deus quis agora.

A pequena minoria dos seres humanos ou desacredita na imortalidade ou desconfia dessa possibilidade. Cada um deles assim sofisma: Se não sou imortal, se meu corpo é minha única morada, só me resta inventar outra eternidade. E assim surgiram as agremiações de letras e artes.

Para alguns escritores há duas maneiras de se alcançar a duração perpétua: pelo ingresso numa dessas corporações ou com a publicação de suas obras por uma grande editora. Se as duas portas se abrirem, melhor ainda: A vida eterna estará garantida. Para os mais presumidos só serve a Academia Brasileira de Letras. Os institutos menores (estaduais) ficariam para os escritores impúberes ou mais pequenos. Os minúsculos (municipais) se reservariam aos escritores insignificantes. Há, porém, ainda outras distinções: A entidade paulista seria quase equipolente à federal; a acreana, a amapaense, a sergipana, por exemplo, se equivaleriam a sociedades municipais; a paulistana valeria por uma filial da ABL; a baturiteense não poderia se comparar à santista. Empossados nesta ou naquela academia, todos alcançariam a imortalidade, no final, embora alguns, logo após a morte do corpo, teriam a alma conduzida imediatamente ao céu, enquanto outros dilatariam a interminável fila que conduz ao ponto derradeiro do destino literário.

Publicar livros por grandes editoras é mais fácil do que ingressar numa casa de acadêmicos. Basta o sujeito ser famoso ou amigo (bajulador, dizem) de autoridades federais, de outros entes famosos, ter muito dinheiro, etc. Por editora se entenda empresa que edita livros, vende-os a livrarias, divulga-os para os meios de comunicação de massa e paga direitos autorais.

Lá pelo início de minha adolescência, compreendi que não tenho alma e, portanto, sou mortal. Consciente disso, mais me pus a ler e escrever. E mais cônscio fiquei de que não tenho alma e sou mortal. Apesar disso, passei a acreditar em mim mesmo, em poder ser lembrado por mais um tempinho após minha morte, se escrevesse bem. Minhas filhas, meus netos e seus contemporâneos poderiam se lembrar de mim e ler minhas histórias. Passei mais muitos dias a ler e escrever. Fui morar em Brasília, cidade de muitos imortais, a capital do futuro. Publiquei uns livrinhos por pequenas editoras, ganhei alguns prêmios literários, de pouca monta (nada comparado aos prêmios das loterias) e tinha sido um dos criadores da revista O Saco (que me dava certo prestígio no mundo das letras). Tudo isso junto deve ter atiçado a luxúria de alguns imortais da capital. Que certamente cochichavam, enquanto cochilavam, frases obscenas, quando me viam: A esse só falta ingressar na nossa hoste. Pois eis que no meio do caminho desta vida (eu deveria ter uns quarenta anos, supondo que viverei até os oitenta), me apareceu um desses seres eternos. Chamava-se Almeida Fischer, que queria ser mais imortal do que era, pois pertencia à Academia Brasiliense de Letras. Não se apresentou em corpo e alma, para não se fazer tão objetivo; mandou um seu colega me fazer comunicado quase letal: Eu fora escolhido para constituir a nova casa federal de letras, a Academia de Letras do Brasil. Tomei susto, mas não morri. Ora, eu não queria vestir fardão. Muito menos farda, que abominava e abomino militares. Bastavam-me calça e camisa. Recuperado do susto, ouvi o complemento da fala do emissário do futuro presidente do sodalício (assim eles, os imortais, gostam de chamar suas agremiações): Iria me visitar noutro dia, para melhores esclarecimentos. E foi. Era um sábado de muita preguiça (minha), depois de ter passado a noite em bebedeira, a ouvir chorinhos. Alcançou-me de chinelos e calção. Renovou os elogios a mim, explicou os motivos da nova arcádia, como se me fizesse grande louvor e favor. Mal o deixei concluir o discurso. Agradeci os gabos e disse duas ou três frases indecorosas: Não me sentia acadêmico, sabia-me em fase de crescimento (embora tardio, a arcádia dentária ainda em formação), despreparado para a vida (literária) adulta e não via nenhuma necessidade de novos institutos de letras. Ele parecia não acreditar no que ouvia. Talvez eu estivesse brincando. Ou delirando: Você bebeu muito ontem? Certamente me ocorria um surto de loucura. Ora, quem não quer ser imortal, quem não se sente excepcionalmente envaidecido (e comovido) de ser convidado a ingressar no círculo restrito dos imortais? Prometi escrever carta a Fischer. Explicaria as razões de minha recusa ao convite. O mensageiro saiu de minha casa como quem sai de um cinema de horror. Escrevi a carta-bomba e a enviei ao morubixaba. Dias depois eu soube da tragédia: O homem se tinha morrido. Ou tinha deixado de ser vivo. Eu continuei mortal.

Fortaleza, abril de 2010.

Fontes:
http://www.niltomaciel.net.br/node/59
Foto: http://literaturasemfronteiras.blogspot.com

Manoel Santos Neto (Universo Poético da Cidade de São Luís do Maranhão VI)

Ninguém se lembrou, até agora, de que transcorre neste mês de novembro o aniversário dos 30 anos do lançamento de Os Tambores de São Luís. Publicado em 1975, pela Editora José Olympio, este livro é um romance em duas marchas. Numa delas, a acelerada, o escritor Josué Montello tenta retratar os vários ciclos da História do Maranhão. Na outra marcha, a mais lenta, é que transcorre o texto em si: uma história que conta a saga do negro e o seu martírio sob a escravidão no Brasil. É, portanto, um extraordinário romance humano, ao estilo de uma impressionante novela de mistério, que começa com um episódio imprevisto – o encontro de um negro assassinado dentro de um bar, numa velha noite de 1915.

A partir daí, a narrativa avança como um vasto mural onde Josué Montello dispõe seu glorioso bando de filhos do povo. Damião, Benigna, Barão, o Padre Tracajá, Santinha, Genoveva Pia, Mestre Ambrósio, dona Calu, dona Bembém, a Comadre Ludovina, o Maneco Ourives – seres vivos da família literária de Montello, juntamente com as quatro centenas de personagens, nos quais o romancista procurou insuflar o alento da vida, como seres reais. Os Tambores de São Luís está consagrado como uma das grandes obras da ficção nacional. É um romance histórico que contextualiza, do ponto de vista social, cultural e político, o universo em que se desenvolveu a sociedade escravagista brasileira.

Aos 58 anos de idade, quando lançou o seu grande romance, Josué Montello procurou, com Os Tambores de São Luís, fixar sobretudo o problema do negro. Do negro e de suas lutas. Do negro e de suas tragédias. Do negro e de sua vagarosa ascensão social. Do ponto de vista técnico, no plano meramente narrativo, o romancista maranhense cruzou duas linhas básicas. Uma, representada pelo romance objetivo, que se resume no espaço de uma única noite, tendo como episódio central a caminhada de um negro de 80 anos. É quando surge Damião atravessando a cidade a pé (por não ter encontrado um carro que o levasse ao outro lado de São Luís), para conhecer o trineto que acabara de nascer. Essa caminhada é feita com o acompanhamento simbólico do bater dos tambores rituais, na Casa das Minas.

Com 483 páginas, Os Tambores de São Luís é a crônica de uma época, sem deixar de ser obra de ficção; é um relato romanesco de ordem histórica, onde também avultam os sobradões de azulejos, os portais de pedra, os mirantes, os balcões sobre a calçada de cantaria, as sacadas de ferro, o velho casario, as ruas, as praças, os becos da cidade. Nos seus Diários o próprio Montello confessa que, com Os Tambores de São Luís, conseguiu compor a sua maior obra, aquela que efetivamente sintetiza o seu talento e a sua operosidade de romancista. São palavras do escritor: De quantos romances escrevi até hoje, nesta minha língua transparente e objetiva, foram Os Tambores de São Luís, na sua concepção geral e na sua urdidura, aquele que me obrigou a uma atenção maior, como pesquisa, como rigor técnico, dada a circunstância de que nele a ficção se acha amalgamada à matéria rigorosamente histórica.

Numa das passagens do Diário do Entardecer, Montello revela que, ao escrever Os Tambores de São Luís, concentrou o melhor de si mesmo, como processo técnico e como linguagem, além de ter pago uma velha dívida para com a raça negra. Recompus-lhe o martírio, como talvez não o pudesse fazer um escritor negro, e demarquei-lhe a ascensão vertical, com a figura central de um preto de gênio, capaz de ombrear-se com um Teodoro Sampaio, um Cruz e Souza, um Juliano Moreira ou um Nascimento Moraes.


Embora sua ação romanesca componha uma jornada que se inicia às 22 horas de uma noite de 1915 para fechar-se às 9 horas da manhã seguinte, o relato retrocede aos vários ciclos da História maranhense, misturando presente e passado, com mais de 400 personagens, entre bispos, padres, governadores, boêmios, raparigas, estudantes, professores, oradores populares, negros de ganho, artistas, tipos de rua, tentando reconstituir toda a complexa vida de uma cidade.

O escritor Jorge Amado (1912-2001), autor de Gabriela Cravo e Canela, retrata em muitos de seus romances os negros do Recôncavo Baiano. Josué Montello dedicou Os Tambores de São Luís aos negros do Maranhão. À luz da experiência escravista brasileira, ele focaliza o árduo trabalho dos negros no campo, de manhã à noite, e que só se atenuava quando estrondavam as grandes chuvas.

Na amplidão de seu livro monumental, Montello retrata ainda o cenário, o ambiente cultural, o sistema político-econômico, o dia-a-dia das fazendas, as tensões e os enfrentamentos que marcaram as relações entre senhores e escravos. É um romance que evoca imagens dos tempos do cativeiro reconstituídas de maneira formidável pela imaginação do romancista.

Obra-prima - Tal é a identificação do autor com a sua obra maior que, num de seus artigos, Montello conta que, de início, ao compor a linha mestra de Os Tambores de São Luís, havia pensado num conjunto de oito romances, a que se consagraria pelo resto da vida, todos eles com um personagem negro central, com o mesmo nome, Damião, de modo a compor uma dinastia, sintetizando a mesma luta, a mesma comunhão fraterna, a mesma operosidade construtiva, a mesma dignidade exemplar, sem esquecer o espírito mágico que abre ao negro um caminho peculiar, como símbolo e síntese, na seqüência das narrativas conjugadas. Ocorre, porém, que ninguém sabe o limite da própria vida, e eu pretendia ressarcir uma dívida, no limite natural de minhas possibilidades. Daí ter preferido concentrar-me num único romance, denso, compacto, o quanto possível fiel à verdade dos fatos, dada a compreensão de que todo romance é história, sempre que se ajusta à moldura do tempo em que decorre a sua ação fundamental. Portanto, o mais longo romance de Josué Montello, Os Tambores de São Luís, passa-se, todo ele, numa noite, e é nessa noite que aparecem cerca de 400 personagens, condensando os três séculos da saga romanesca da escravidão no Brasil.

Dividido em 58 capítulos, o romance, nos seus lances fundamentais, recompõe episódios marcantes recolhidos no terreno dos usos e costumes do Maranhão. Em cenas capitais da narrativa, aparecem o famoso crime da Baronesa de Grajaú, de tanta repercussão na sociedade maranhense do tempo do Império; a paixão doentia do desembargador Pontes Visgueiro por sua amante Mariquinhas; os conflitos entre senhores e escravos; os rompantes de Donana Jansen, os voduns, as noviches e as nochês – Mãe Hosana, Mãe Maria Quirina e Mãe Andresa – da Casa das Minas, e Dom Cosme Bento das Chagas, tutor e imperador das liberdades bem-te-vis.

O escritor Dunshee de Abranches, autor de O cativeiro, livro inteiramente consagrado à escravidão maranhense, também entra como personagem do romance: é o João Moura (como ele se assinava), que aparece ao lado de Damião, nos comícios populares em favor da abolição.

Pouco antes da derradeira página do romance, o último capítulo do livro se volta para o adeus ao poeta Joaquim de Sousa Andrade, em cujo enterro avulta o ataúde envolto na bandeira do Estado, idealizada pelo próprio Sousândrade, com as listas branca, vermelha e negra, simbolizando a fusão das raças na formação do povo brasileiro, e mais a estrela branca sobre campo azul, representativa da unidade autônoma do Maranhão.

Antes de Montello, outro ficcionista maranhense, Coelho Neto (1864-1934), teve igual propósito, com O rei negro, considerado o seu melhor romance. Entretanto, Coelho Neto focalizou apenas um episódio do cativeiro. Montello entendeu que o tema comportava horizonte mais vasto, que abarcasse a escravidão no seu conjunto, com a luta, o instinto da raça, a singularidade, a discussão nacional em torno do problema, a superação dos argumentos de ordem econômica e a busca da prevalência dos ideais e princípios fundamentais da dignidade humana. À luz da interpretação do romancista maranhense, Os Tambores de São Luís faz sobressair a atuação dos jovens na campanha abolicionista, ressalta a participação dos militares e conclui a obra salientando a Abolição como a grande festa do povo unido e vitorioso.

Num romance como Os Tambores de São Luís, Montello quis infundir a verdade história – a partir de seu ponto de vista – como a própria substância ficcional. Também é importante ressaltar a narrativa em que o escritor procura fixar o outro lado do painel que compõe Os Tambores de São Luís. Ou seja: o esplendor e a decadência da aristocracia local, tanto no seu aspecto simbólico, como resumo de todo o processo de declínio da camada superior da sociedade brasileira, no tempo do Império, quanto no seu rigor histórico, baseado no testemunho dos depoimentos, nos textos escritos, na tradição maranhense.

Com Os Tambores de São Luís, confirma-se que Montello é uma das mais importantes figuras da ficção em Língua Portuguesa surgidas na primeira metade do século XX. E confirma-se, também, que as grandes obras literárias serão sempre fonte de deleite, conhecimento e de vida:

São Luís está coberta pelo negro manto de suas noites estreladas, sibila o vento nas ruas em ladeira, chiam os bicos de gás nos lampiões vigilantes, um carro estronda as rodas nas pedras do calçamento, enquanto retinem as ferraduras dos cavalos espicaçados pela taca do cocheiro, e eis que ressoam os tambores do querebetã da Rua de São Pantaleão, graves, nervosos, compassados, guardando intacto o seu batuque primitivo, e que hoje reúne os negros livres como outrora reunia os negros escravos. Sobretudo os negros escravos. E estes vinham aos dois, aos três, ou sozinhos, protegidos pelas sombras das ruas desertas, e ali reencontravam seus deuses, seus cantos e seus irmãos. Esqueciam-se do cativeiro, não tinham mais senhores nem feitores, e sim voduns, que os habitavam e protegiam. Pouco importava que trouxessem no corpo as marcas das cangas, dos libambos, dos vira-mundos, das gonilhas e das gargalheiras. Ou que ali entrassem com as mordaças e as máscaras de flandres. Os tambores retumbavam, e eles, os cativos, eram novamente os donos de suas horas, senhores de suas vontades.

Damião a ouvir o bater de tambores rituais, com a sua peregrinação pelos quatro cantos da cidade na companhia daqueles tantantãs compassados, tocados por mãos de negros. Era o mesmo batecum inconfundível, que todos os ouvidos podem ouvir, mas que só os negros realmente escutam, com as vivências nostálgicas de sua origem africana.

Fonte:
Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante
Edição 120. 20 de janeiro de 2006

Nilton da Costa Teixeira (Ano Novo, Acenos Novos)

Nilton da Costa Teixeira (Monte Alto/SP, 3 de maio de 1920 – Ribeirão Preto/SP, 5 de novembro de 1983) 
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Ano novo chegou,
o ano velho partiu,
a fé que vicejou
aonde a dor existiu.
doze meses se foram,
alegres, talvez não,
uns riem, outros choram,
dias que foram, que vão,
no fim de ano o espetáculo
da folhinha termina,
consulto o meu oráculo
E ele não desanima;
promete-me venturas,
dinheiro, amor, saúde,
O progresso, as farturas,
nada disso me ilude,
pois o último dia do ano,
passei em casa sozinho,
contando os desenganos,
pondo-os num papelzinho,
vi tantos e a última hora,
de contá-los demovo,
rezo à Nossa Senhora,
não os quero de novo;
e agora o ano se foi,
só espero o porvir,
pois, o passado dói,
com o futuro a sorrir...
alguém bate na janela,
levanto e vou abrir,
eu pensei que fosse ela,
vejo o vento a bramir;
hoje, do ano, primeiro,
deixo os meus desenganos,
estou fazendo planos,
que eu farei o ano inteiro,
a casa para morar,
boa saúde, animação,
são planos a exaltar,
constante o coração,
eu quero uma cabocla,
singela e recatada
que me tire a ânsia louca,
na louca caminhada;
pois a vida oferece
sonhos acolhedores,
quem seu caminho esquece,
magoado terá dores.
Eu indago o horizonte,
confio na imensidão,
encontro numa ponte,
vazio, desolação...
são os anos que passaram
na vida de cada um,
os sonhos que vicejaram,
sem proveito nenhum,
por isso começo o ano,
com o meu plano estudado,
não quero os desenganos,
iguais do ano passado.

Fonte:
Nilton Manoel

Machado de Assis (Magalhães de Azeredo: Procelárias)

EIS AQUI um livro feito de verdade e poesia, para dar-lhe o título das memórias de Goethe. Não são memórias; a verdade entra aqui pela sinceridade do homem, e a poesia pelos lavores do artista. Nem se diga que tais são as condições, essenciais de um livro de versos. Não contradigo a asserção, peço só que concordem não ser comum nem de todos os dias este balanço igual e cabal de emoção e de arte.

Magalhães de Azeredo não é um nome recente. Há oito para nove anos que trabalha com afinco e apuro. Prosa e verso, descrição e critica, idéias e sensações, a várias formas e assuntos tem dado o seu espírito. Pouco a pouco veio andando, até fazer-se um dos mais brilhantes nomes da geração nova, e ao mesmo tempo um dos seus mais sisudos caracteres. Quem escreve estas linhas sente-se bastante livre para julgá-lo, por mais íntima e direta que seja a afeição que o liga ao poeta das Procelárias. Um dos primeiros confidentes dos seus tentâmens literários. estimou vê-lo caminhar sempre, juntamente modesto e ambicioso, daquela ambição paciente que cogita primeiro da perfeição que do rumor público.

Já nesta mesma Revista, já em folhas quotidianas, deu composições suas, de vária espécie, e não há muito publicou em folheto a ode A Portugal, por ocasião do centenário dos Índias, acompanhada da carta a Eça de Queirós, a primeira das quais foi impressa na Revista Brasileira.

Este livro das Procelárias mostra o valor do artista. Desde muito anunciado entre poucos, só agora aparece, quando o poeta julgou não lhe faltar mais nada, e vem apresentá-lo simplesmente ao público. Desde as primeiras páginas, vêem-se bem juntas a poesia e a verdade: são as duas composições votivas, à mãe e à esposa. A primeira resume bem a influência que a mãe do poeta teve na formação moral do filho. Este verso:
Não me disseste: Vai! disseste: Eu vou contigo!

conta a história daquela valente senhora, que o acompanhou sempre e a toda parte, nos estudos e nos trabalhos, onde quer que ele estivesse, e agora vive a seu lado, ouvindo-lhe esta bela confissão:

Tu é tudo o que bom e nobre em mim existe,

e esta outra, com que termina a estrofe derradeira da composição, a um tempo bela, terna e bem expressa:

Duas vezes teu filho e tua criatura!
Eis por que me confesso, enternecidamente,

Ao pé de tais versos vêm os que o poeta dedicou à noiva: são do mesmo ano de 1895. O poeta convida a noiva ao amor e à luta da existência. Nestes, como naqueles, pede perdão dos erros da vida, fala do presente e do futuro, chega a falar da velhice, e da consolação que acharão em si de se haverem amado.

Ora, o livro todo é a justificação daquelas duas páginas votivas. Uma parte é a dos erros, que não são mais que as primeiras paixões da juventude, ainda assim veladas e castas, e algumas delas apenas pressentidas. O poeta, como todos os moços, conta os seus meses por anos. Em 1890 fala-nos de papéis velhos, amores e poesias, e compõe com isso um dos melhores sonetos da coleção. Já se dá por um daqueles que "riem só porque chorar não sabem". Certo é que há raios de luz e pedaços de céu no meio daquela sombra passageira. A sinceridade de tudo está na sensibilidade particular da pessoa, a quem o mínimo dói e o mínimo delicia. Uma das composições principais dessa parte do livro é a "Ode Triunfal", em que a comoção cresce até esta nota:

Ah! como fora doce
Morrer nesse delírio vago e terno,
Em teu seio morrer, — morrer num trono;
E ter teus beijos, como sonho eterno
Do meu eterno sonho...
E até esta outra, com que a ode termina:
Deixa-me absorto, a sós contigo, a sós!
Lá fora, longe, tumultua o mundo,
Em baldas lutas... Tumultue embora!
Que vale o mundo agora?
O mundo somos nós!

As datas, — e alguma vez a própria falta delas, — poderiam dar-nos a história moral daquele trecho da vida do poeta. Os seus mais íntimos suspiros antigos são de criança, como Musset dizia dos seus primeiros versos; assim temos o citado soneto dos "Papéis Velhos" e outras páginas, e ainda aquela dos "Cabelos Brancos", uns que precocemente encaneceram, cabelos de viúva moça, objeto de uma das mais doces elegias do livro. Há nele também várias sombras que passam como a do Livro Sagrado, como a da menina inglesa (Good Night), que uma tarde lhe deu as boas noites, e com quem o poeta valsara uma vez.

Um dia veio a saber que era morta, e que a última palavra que lhe saiu dos lábios foi o seu nome, e foi também a primeira notícia do estado da alma da moça; a sepultura é que lhe não deu, por mais que a interrogasse, senão esta melancólica resposta:

E eu leio sobre a sua humilde lousa:
Graça, beleza, juventude .... e Nada!

Cito versos soltos, quisera transcrever uma composição inteira, mas hesito entre mais de uma, como o "Carnaval", por exemplo, e tantas outras, ou como aquele soneto "Em Desalento", cuja estrofe final tão energicamente resume o estado moral expresso nas primeiras. Podeis julgá-lo diretamente:

Ando de mágoas tais entristecido.
Por mais que as minhas rebeldias dome ...
Tanta angústia me abate e me consome,
ue do meu próprio senso ora duvido.
Tudo por causa deste amor perdido,
Que a ti só, para sempre, escravizou-me;
Tudo porque aprendi teu caro nome,
Porque o gravei no peito dolorido.
Vês que eu sou, dizes bem, uma criança,
E já de tédio envelhecer me sinto,
E a mesma luz do sol meus olhos cansa;
Pois, como absorve um lenho o mar faminto,
Um corpo a tumba, a morte uma esperança,
Tal teu ser absorveu meu ser extinto.

Belo soneto, sem dúvida, feito de sentimento e de arte. Todo o livro reflete assim as impressões diferentes do poeta, e os versos trazem, com o alento da inspiração, o cuidado da forma. Fogem ao banal, sem cair no rebuscado. As estrofes variam de metro e de rima, e não buscam suprir o cansado pelo insólito. A educação do artista revela-se bem na escolha e na renovação. Magalhães de Azeredo dá expressão nova ao tema antigo, e não confunde o raro com o afetado. Além disso, — é supérfluo dizê-lo, — ama a poesia com a mesma ternura e respeito que nos mostra naquelas duas composições votivas do intróito. Pode ter momentos de desânimo como no "Soneto Negro", e achar que "é triste a decadência antes da glória", mas o espírito normal do poeta está no "Escudo", que
andou pela Terra Santa, e agora ninguém já pode erguer sem cair vencido; tal escudo, no conceito do autor, é o Belo, é a Forma, é a Arte, que o artista busca e não alcança, sem ficar abatido com isso, antes sentindo que, embora caia ignorado do vulgo, é doce havê-los adorado na vida.

Aqui se distinguem as duas fontes da inspiração de Magalhães de Azeredo, ou as duas fases, se parece melhor assim. Quando as sensações, que chamarei de ensaio, ditam os versos, eles trazem a nota de melancolia, de incerteza e de mistério, alguma vez de entusiasmo; mas a contemplação pura e desambiciosa da arte dá-lhe o alento maior, e ainda quando crê que não pode sobraçar o escudo, a idéia de havê-lo despegado da parede é bastante à continuação da obra. Será preciso dizer que esse receio não é mais que modéstia, sempre cabida, posto que a reincidência do esforço traz a esperança da vitória? E será preciso afirmar que a vitória é dos que têm, com a centelha do engenho, a obstinação do trabalho, e conseguintemente é dele também? Assim, ou pelas sensações do moço ou pela robustez do artista, este livro "é a vida que ele viveu" —como o poeta se exprime em uma página que li com emoção. Na composição final é o sentimento da arte que persiste, quando o poeta fala à musa em fortes e fluentes versos alexandrinos, tão apropriados à contemplação longa e mística da idéia.

Não quero tratar aqui do prosador a propósito deste primeiro livro de versos. De resto, os leitores da Revista Brasileira já o conhecem por esse lado, e sabem que Magalhães de Azeredo será em uma e outra forma um dos primeiros espíritos da geração que surge. Neste ponto, a ode A Portugal com a carta a Eça de Queirós, publicada em avulso, dão clara amostra de ambas as línguas do nosso jovem patrício.

Felizes os que entre um e outro século podem dar aos que se vão embora um antegosto do que há de vir, e aos que vêm chegando uma lembrança e exemplo do que foi ou acaba. Tal é o nosso Magalhães de Azeredo por seus dotes nativos, paciente e forte cultura.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Clássicos do Cancioneiro Popular (A Nau Caterineta)

Aquarela de Tiago Taron (Portugal)
Colhida em Sergipe
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Faz vinte e um anos e um dia
Que andamos n’ondas do mar,
Botando solas de molho
Para de noite jantar.

A sola era tão dura,
Que a não pudemos tragar,
Foi-se vendo pela sorte
Quem se havia de matar,
Logo foi cair a sorte
No capitão-general.
"Sobe, sobe, meu gajeiro,
Meu gajeirinho real,
Vê se vês terras de Espanha,
Areias de Portugal.

— Não vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal,
Vejo sete espadas nuas
Todas para te matar.
Arriba, arriba, gajeiro,
Aquele tope real,
Olha pra estrela do norte
Para poder dos guiar.

— Alvistas, meu capitão,
Alvistas, meu general,
Avisto terras de Espanha,
Areias de Portugal.

Também avistei três moças
Debaixo dum parreiral,
Duas cosendo cetim,
Outra calçando o dedal.
"Todas três são filhas minhas,
Ai! Quem mas dera abraçar!
A mais bonita de todas
Para contigo casar."

— Eu não quero sua filha
Que lhe custou a criar,
Quero a nau Caterineta
Para nela navegar.

"Tenho meu cavalo branco,
Como não há outro igual;
Dar-te-lo-ei de presente
Para nele passear."

— Eu não quero seu cavalo
Que lhe custou a criar;
Quero a nau Caterineta
Para nela navegar.

"Tenho meu palácio nobre,
Como não há outro assim,
Com suas telhas de prata,
Suas portas de marfim."

— Eu não quero seu palácio
Tão caro de edificar;
Quero a nau Caterineta
Para nela navegar.

"A nau Caterineta, amigo
É d’El-Rei de Portugal,
Mas não serei mais ninguém,
Ou El-Rei te há de dar.

Desce, desce, meu gajeiro,
Meu gajeirinho real,
Já viste terras de Espanha,
Areias de Portugal…"

Fonte:
Jangada Brasil
Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Mitos e Lendas (O que os Sapos Dizem)

Quando, pelas noites serenas os sapos coaxam à beira das lagoas, muita gente pensa que eles apenas coaxam, sem razão.

Mas não é assim.

Os sapos velhos dizem:

— Quando eu morrer... Quem vai comigo?

Os sapos novos ficam bem caladinhos. Depois, o sapo velho torna a coaxar:

— Quando eu morrer... quem fica com a minha mulher?

E aí, toda a saparia nova grita:

— Eu, eu.

— Eu, eu.

— Eu, eu.

É isso que os sapos coaxam à beira das lagoas. Todas sabem.

Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

João Anzanello Carrascoza (Um Encontro Fantástico)

Todos os anos eles se reuniam na floresta, à beira de um rio, para ver a quantas andava a sua fama. Eram criaturas fantásticas e cada uma vinha de um canto do Brasil. O Saci-Pererê chegou primeiro. Moleque pretinho, de uma perna só, barrete vermelho na cabeça, veio manquitolando, sentou-se numa pedra e acendeu seu cachimbo. Logo apontou no céu a Serpente Emplumada e aterrissou aos seus pés. Do meio das folhagens, saltou o Lobisomem, a cara toda peluda, os dentes afiados, enormes. Não tardou, o tropel de um cavalo anunciou o Negrinho do Pastoreio montado em pêlo no seu baio.

– Só falta o Boto – disse o Saci, impaciente.

– Se tivesse alguma moça aqui, ele já teria chegado para seduzi-la – comentou a Serpente Emplumada.

– Também acho – concordou o Lobisomem. – Só que eu já a teria apavorado.

Ouviram nesse instante um rumor à margem do rio. Era o Boto saindo das águas na forma de um belo rapaz.

– Agora estamos todos – disse o Negrinho do Pastoreio.

– E então? – perguntou o Boto, saudando o grupo. – Como estão as coisas?

– Difíceis – respondeu o Saci e soltou uma baforada. – Não assustei muita gente nessa temporada.

– Eu também não – emendou a Serpente Emplumada. – Parece que as pessoas lá no Nordeste não têm mais tanto medo de mim.

– Lá no Norte se dá o mesmo – disse o Boto. – Em alguns locais, ainda atraio as mulheres, mas em outros elas nem ligam.

– Comigo acontece igual – disse o Negrinho do Pastoreio. – Vivo a achar coisas que as pessoas perdem no Sul. Mas não atendi muitos pedidos esse ano.

– Seu caso é diferente – disse o Lobisomem. – Você não é assustador como eu, o Saci e a Serpente Emplumada. Você é um herói.

– Mas a dificuldade é a mesma – discordou o Negrinho do Pastoreio.

– Acho que é a concorrência – disse o Boto. – Andam aparecendo muitos heróis e vilões novos.

– Pois é – resmungou a Serpente Emplumada. – Até bruxas andam importando. Tem monstros demais por aí...

– São todos produzidos por homens de negócios – disse o Saci. – É moda. Vai passar...

– Espero – disse o Lobisomem. – Bons aqueles tempos em que eu reinava no país inteiro, não só no cerrado.

– A diferença é que somos autênticos – disse o Negrinho do Pastoreio. – Nós nascemos do povo.

– É verdade – disse o Boto. – Mas temos de refrescar a sua memória.

– Se pegarmos no pé de uns escritores, a coisa pode melhorar – disse a Serpente Emplumada.

– Eu conheço um – disse o Saci. – Vamos juntos atrás dele! – E foi o primeiro a se mandar, a mil por hora, em uma perna só.
Fonte:
Revista Nova Escola

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 12

Benedita de Melo 
(Vicença/ PE, 1906 – Rio de Janeiro, 1991)

" CONFUSÃO "

Pretendeste deixar-me... Que loucura!
Acaso pode a luz deixar o dia ?. . .
E o ser deixar a forma, poderia? . . .
E pode o fel deixar sua amargura? . . .

Vivemos separados, de mistura,
o meu ser no teu ser em harmonia...
Se tu me abandonasses, criatura,
de ti, em ti, já nada restaria.

Não me deixaste a mim, deixaste a casa.
Temo-nos desenhados na alma em brasa.
Somos um coração íntegro e nu.

Não podias deixar-me... que no mundo,
de tal sorte contigo me confundo,
que nem sei se eu sou eu, ou se eu sou tu.

" MUITO OBRIGADA "

Muito obrigada pelo bem de outrora
que me faz recordar-te no presente,
muito obrigada pelo mal de agora
que me ensinou a amar-te tanto, ausente..

Muito obrigada porque de hora em hora
mentiste um pouco mais, sinceramente;
porque sabes mentir para quem chora,
porque mentindo me fizeste crente.

Muito obrigada pela falsidade
que me veio acordar o instinto inerte
contra os espinhos da infidelidade. . .

Muito obrigada porque posso ver-te
dentro do negro mundo da saudade
que eu não teria nunca, sem perder-te.

" VERGONHA "

- "Menina!" -- disse alguém, no grande instante
em que era dividido em dois um ser. . .
E essa palavra, pelo mundo avante,
foi o meu Santo orgulho de viver...

Ser menina. Ser moça. Ser constante.
Ser caráter. Ser honra. Ser dever.
Por mais tropeços que encontrasse adiante,
nunca me entristeci de ser mulher.

Mas veio o amor. Veio a traição ferina
e todo o orgulho meu de ser menina,
roubou-o a sorte malfadada a crua.

E veio a dor. E veio a mágoa, o tédio...
E a vergonha escaldante e sem remédio
de ter sido mulher para ser tua.
–––––––––––


Benedito Nogueira Tapeti
(Benedito Francisco Nogueira Tapeti)
(Oeiras/PI, 30 dezembro 1890 – Oeiras/PI, 18 janeiro1918)

" CAMONEANO "


Eu sei, Senhora, que vos não mereço
e que, por vossa graça e formosura,
vós podeis cobiçar mais alto preço
do que minha afeição simples e pura.

Mas se eu vivo por vós, e não me esqueço
de toda a vossa angélica doçura,
é porque, no desterro em que padeço,
somente em vos lembrar tenho ventura.

Meu destino, por serdes vós quem sois,
põe tamanha distancia entre nós dois,
que me mata a esperança e a paz de outrora.

Mercê, porém, de vós, de vosso nome,
e gozo a dor que aos poucos me consome;
tanto me apraz sofrer por vós, Senhora.
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Benjamim Silva
(Cachoeiro do Itapemirim/ES, 20 julho 1886 – Rio de Janeiro, 10 junho 1954)

" ROMPIMENTO "


Entre nós dois está tudo acabado.
Está tudo acabado entre nós dois:
tu partirás agora para um lado,
para outro lado eu partirei depois.

Que desse nosso amor desventurado
a que um destino mau se contrapôs,
nada fique que o faça relembrado
que tudo, enfim, desapareça, pois!

As nossas camas, da última à primeira;
as flores a os retratos que guardamos;
queimemos tudo numa só fogueira!

Destruídas todas as recordações,
só nos resta - de tudo que trocamos
queimar também os nossos corações!
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Bento Ernesto Junior
(Itapecerica/MG, 25 agosto 1866 – São João Del Rey/MG, 9 janeiro 1943)

" SONETO "


A vida, meu amor, que hoje passamos
só pode ser com lágrimas descrita,
tão grande a dor que o peito nos habita,
tão amargo este fel que hoje provamos.

Tão nublados de lágrimas levamos
os olhos, sob o peso da desdita,
que tudo que ante nos vive a palpita,
tudo inundado em lágrimas julgamos.

E todo esse lutuoso mar de pranto,
que vemos em nossa alma e em tudo vemos,
nasce de havermos nos amado tanto!

Porém, embora, a amar tanto soframos,
cada vez mais, amada, nos queremos,
cada vez mais, querida, nos amamos.
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Bernardo de Oliveira
(Irmão do poeta Alberto de Oliveira)
(Saquarema/RJ, 1861 – 1943)

" ESTRELA MATUTINA "


Negros olhos belíssimos, rasgados,
como os das águias, vivos, penetrantes,
na paz - serenos, meigos, - mas, irados,
podem fundir rochedos e diamantes.

Também negros cabelos ondeantes;
boca pequena, lábios nacarados;
alvos dentes; de mármore talhados
os braços são, e os seios, ofegantes.

E o corpo inteiro; as faces purpurinas.
É uma formosa matutina estrela,
fulgurando entre as névoas matutinas.

E' uma deusa de Rubens sobre a tela,
tem a morte e o amor sob as retinas . . .
E eu tenho a vida nos olhares dela!
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Bonfim Sobrinho
(José da Silva Bonfim Sobrinho)
(Fortaleza/CE, 19 março 1875 – 22 junho 1900).

" NOIVADO FÚNEBRE "


Negra tristeza meu semblante encova
ó noiva amada, lírio meu fanado.
Por que não vamos na mudez da cova
em círios celebrar nosso noivado?

Nos sete palmos desse leito amado,
ao frio bom de uma volúpia nova
há de embalar o nosso amor gelado
o coveiro a cantar magoada trova.

E os nossos corpos gélidos, inermes,
em demorados e famintos beijos
serão depois roídos pelos vermes...

E do leito final que nos encerra
em plantas brotarão nossos desejos
e o nosso amor, em flores, sobre a terra.
Fonte:
– J.G . de Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963