quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 20 de maio: Um Incêndio


Domingo passado havia espetáculo no Teatro de São Pedro e no Ginásio Dramático.

Mais longe, num pequeno salão todo elegante, dançava-se e ouvia-se cantar Bouché, Ferranti, Dufrene e a Charton.

A harpa do Tronconi gemia, a flauta de Scaramella trinava como um rouxinol.

Seriam dez horas da noite.

Neste mesmo momento, e no meio desta alegria geral, uma grande catástrofe se consumava.

Uma faísca desprezada crescera, transformara-se em chama, e ameaçava devorar um quarteirão inteiro.

Os sinos dobravam, o povo apinhava-se em torno, a chama enroscava-se ao longo das paredes como uma serpente de fogo, e o incêndio lançava sobre toda esta cena um clarão avermelhado e sinistro.

Fizeram-se atos de heroísmo e de coragem, ações de bravura que passaram despercebidas no meio desta luta terrível do homem com o elemento.

Os ingleses portaram-se com o sangue-frio habitual; os franceses trabalharam com entusiasmo; alguns brasileiros sustentaram a honra do seu nome e os brios nacionais.

No dia seguinte apenas restava de tudo isto um acervo de ruínas ainda fumegantes, um epitáfio escrito pelo fogo, e que todos os passantes iam ler naquelas cinzas ardentes.

Durante dois oi três dias conversou-se sobre o incêndio, fizeram-se mil comentários, e entre muitas coisas que se disse apareceram algumas verdades bem tristes.

Asseguravam que as bombas do arsenal estavam desmanteladas, e que, depois de chegarem ao lugar do incêndio, descobrira-se que não tinham chaves, e portanto fora necessário esperar uma  boa hora para que elas pudessem prestar serviço.

Não sei até que ponto chega a verdade deste fato; mas para mim ele nada tem de novo.

Se se tratasse de uma regata, de algum passeio de ministro a bordo dos navios de guerra, naturalmente tudo havia de estar pronto, as ordens seriam dadas a tempo e se desenvolveria um luxo de atividade e de zelo como não há exemplo, nem mesmo na Inglaterra, o país clássico da rapidez.

Tratava-se, porém, de um incêndio apenas, de cinco casas reduzidas a cinzas, e por isso não é de estranhar que não houvesse a mesma azáfama que costuma aparecer naqueles outros ramos mais importantes do serviço público.

Depois do fogo veio a chuva, como era natural; tinha reinado um elemento, era justo que o outro lhe sucedesse. 

Toda a semana levou esta senhora a fazer-nos pirraças. Roubou-nos o belo divertimento da regata; e de vez em quando escondia-se atrás da porta, isto é, por detrás do Corcovado, e deixava que o sol brilhasse e que o céu se tornasse azul; e, apenas     pilhava um homem na rua, começava a divertir-se à sua custa.

O arsenal de marinha, que não dá grande importância à extinção dos incêndios, podia ao menos tratar de livrar-nos do contratempo da chuva, e fazer a experiência da teoria de Méry. É natural que as suas peças de artilharia estejam em melhor estado que as suas bombas.

Entretanto, apesar da chuva, tivemos esta semana uma noite de Trovador e outra de Sonâmbula.

O Dufrene fazia a sua quarta estréia nesta última ópera. Na ocasião em que se representava uma das cenas do primeiro ato, um amigo que estava no meu lado lembrou-me as seguintes palavras de Balzac:

“Um artiste qui a le malheur d’être pleindre la PASSION qu’il veut exprimer ne saurait la peindre, car il est la CHOSE même, au lieu d’en être l’image.”

O que é que Balzac e o meu amigo quereriam dizer com estas palavras? Não sei; um citou-as sem comentário; o outro escreveu-as sem segunda tenção.

Nesta mesma noite teve lugar a reunião da Sociedade Estatística na sala onde se achavam expostos os produtos industriais dos Estados Unidos, que o Sr. Fletcher oferecera a Suas Majestades e algumas corporações científicas desta corte.

Havia muita coisa a admirar naquela pequena exposição especialmente pelo que toca à fotografia, aos trabalhos de cromolitografia, e às cartas geográficas feitas pelo novo sistema da gravura sobre cera.

Vimos um busto de Webster, que o Sr. Fletcher nos afirmou ser feito com uma máquina, que por meio de um processo engenhoso copia os traços de um outro busto. A semelhança era completa, a julgar-se pelos retratos em fotografia que existiam na sala.

Aberta a sessão pelo Sr. Visconde Itaboraí, o Sr. Fletcher pronunciou um discurso em francês, no qual expôs as suas idéias e os projetos que o haviam animado a voltar ao Brasil. 

Depois de falar sobre a ignorância absoluta e recíproca que existe no nosso país e nos Estados Unidos sobre a organização política, a administração e o progresso de uma e outra nação, mostrou os desejos que tinha, de fazer conhecido o Brasil na sua pátria e de estreitar assim as relações comerciais e políticas dos dois povos americanos.

Se o Sr. Fletcher conseguir realizar esta idéia, pela qual parece trabalhar com tanto entusiasmo, fará um grande serviço à América. Talvez dessas relações que vão começar nasça um grande pensamento de política americana, que no futuro venha a dirigir os destinos do novo mundo e a por um termo à intervenção européia.

E, se é exata uma notícia que nos deram, então é muito natural que os projetos do Sr. Fletcher venham a efetuar-se mais breve do que se pensa.

O Sr. William Trousdale, Ministro Plenipotenciário dos Estados Unidos na nossa corte, é um dos candidatos à futura presidência da Confederação; e, à vista dos valiosos serviços prestados por ele na Guerra do México, é de crer que esta candidatura seja bem aceita pelos diversos Estados.

Quanto à política, é hoje esse terreno tão inclinado, que nele não nos queremos aventurar, quando os chefes deixam os seus soldados errantes e dispersos combatendo em guerrilhas, em saberem ao certo que bandeira defendem.

A Câmara dos Deputados tem aprovado algumas naturalizações de sujeitos que entendem que as leis do país não passam de  letra morta, e que reclamam, pela importância de seus nomes, dispensa naquelas leis.

Até reza a crônica que se deu o foro de cidadão brasileiro a um estrangeiro recomendado à polícia! Talvez que merecesse esse favor para poder ser empregado na espionagem da gente trêfega. 

Desejava bem dar-vos alguma notícia da oposição; porém creio que os oposicionistas modernos procedem de uma maneira muito diferente da que se usava outrora.

Em vez de atacarem o governo, defendem-no; e por isso contaram-me que, perguntando o presidente a um deputado que pedira a palavra na resposta à fala do trono se era pró ou contra, respondera que seria como quisessem

É verdade que lá de vez em quando surge um campeão que não dá quartel ao governo, como sucedeu ontem na discussão da fala do trono.

Que de verdades se descobriram! O país está à borda de um abismo! Nós caminhamos a passos de gigante para o mais completo absolutismo!

Quereis as provas?

As medidas sobre a limpeza da cidade, os regulamentos de instrução pública e de óbitos, o método Castilho, e talvez que a reprovação de alguns professores – tudo isto, na opinião do orador, são golpes profundos que se têm dado à constituição e à nossa organização política.

Pobre constituição! A quanto não estais sujeita! É verdade que, depois que te arrancaram as folhas para as lançarem por aí aos domingos e quintas-feiras, não tinhas mais que esperar.

Esquecia-me de dar-vos uma notícia importante. Um candidato à senatoria, que não teve a fortuna de ser escolhido, foi ultimamente promovido a tenente.

É um ato do governo que merece que merece elogios; é uma prova de que o ministério, apreciando em subido grau os serviços daquele prestante cidadão, não quis que ele entrasse no quartel dos inválidos, e habilitou-o para continuar em serviço ativo.

E o que é mais notável é que este favor foi feito a um deputado oposicionista! Que imparcialidade!

Já sabeis que as iguarias preparadas para a regata foram enviadas aos doidos do Hospício de Pedro II. Decididamente estavam predestinadas!

Seu primeiro destino era servir aos doidos, doidos de amor e de entusiasmo, que, depois das corridas dos escaleres e das amáveis conversas com as belas convivas, teriam de ir fazer um toast à rainha do dia em beleza e ao vencedor do páreo.

Mas tudo isto o tempo veio transtornar, e, em vez de uma regata, deu-se cinco ou seis, e bem regadas pela chuva, que a esta hora ainda cai a cântaros.

E por hoje, despedida à francesa; até o próximo domingo, em que é provável que esteja de melhor veia do que hoje.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Florbela Espanca (A Vida)


Efigênia Coutinho (Livro de Poesias)



SÚPLICA DE POETA

 Os Poetas vestem sua alma e seus
 sonhos, com Poesia. Em suas dimensões
 mais profundas, as do gozo de viver,
 da dor de Amar, chorar, e de Morrer... 

 Se for lei que à morte o corpo condena,
 Eu vos suplico que na alegre impressão
 de vossas penas, com sábia precaução envieis
 fora da cena , um meio de vida eterna ... 

 O Tempo vai, portanto, passar, num grito,
 o apelo enviado...Poetas das virtudes e 
 esperanças, para, com oferendas e 
 saudações, Ir habitar ao empíreo mundo.

DOCE PECADO

Nesta dança ardente fogo de alma
por onde serpenteias meu corpo elástico
com teu jogo incêndio corpo propenso
à exalação do incenso da paixão

O ardor em mim instalado de dor
vira um braseiro rubro dado à pele
às entranhas ardentes devora-me o peito
com beijos de desejos no fundo enleio

Agitação por ti em mim com fumo
a vida exala chama do meu íntimo
a busca do infinito exalta a paixão
crime ou denodo? Amando me envolvo.

AMOR É AMOR

 Dois corações sinceros, emoção e beleza
 Não há nada que impeça. Amor é Amor
 Não modifica ou teme a qualquer incerteza.
 Onde não encontra barreiras nem dor 

 Amor, é símbolo imutável, dominante,
 Que vivencia a procela com bravura;
 É corpo celeste no espaço fascinante
 Cujo sentir se aprimora, lá nas alturas.

 O Amor não oscila ao tempo, é plenitude
 Ao tropel da louca paixão que se arrasta
 O Amor transcende extremos de beatitude.
 Ah! cegueira que cria mistérios que se alastra. 

 Afirmando para eternidade fidelidade...
 Com paixão, seu coração, forte brasão...
 Há ardor mais forte que Amor e cumplicidade!?
 Esta alma que sedenta em si é só oblação.

TEMPO

Mesmo quando a vida
transcende o espaço
e o imensurável tempo,
mesmo quando toda dor
 toda saudade nos correm,
ainda assim é possível
sentirmos dentro de nós
a presença constante daqueles
que tanto amamos,
pois os corpos se separam
mas não os nossos corações!

JARDIM DA VIDA

Fiz da vida um belo jardim
Tendo Deus como lavrador
Ele cuidadoso sempre afim
Eu rodeada de belo jasmim.

Não basta derramar o viver
Para poder brilhar ou reflorir
Ervas daninhas que aparecer
É preciso com zelo extinguir.

Por este jardim muito feliz
Sou uma plebéia auferida
Não sendo uma Imperatriz
Tenho de Deus toda colhida.

Dentro dum sentir comedido
Ao fascínio de querer viver
Os sonhos vou consentido
Ao belo jardim reflorecer…

TERRAS DISTANTES

Andarei de sonho em sonho
De um lugar a outro lugar
O caminho não será bisonho.
Quero encontrar quem me fale
Alguém com quem possa falar
De Amor, mesmo diga que me cale.

Fatias de céu me ponho a colher
Para o caminho engrandecer
Teceria com algodão de nuvens
Ao leito para com Amor aquecer
Antes que os sonhos se turvem
Com poemas sonoros enriquecer.

Seja por fim o sonho envolvente
Ao longo deste árduo desejo
Num Sonho transcendente...
Transpus céus, montanhas cruzei
Dos tantos anseios que rumorejo
Em Terras Distantes me enamorei.

SONHADORA E POETISA
  
Os humanos  filósofos e eruditos
que dos fatos morais fazem pesquisa
afirmam, sem rebuço,em seus escritos,
que o cérebro é a porção que localiza
não somente os prazeres e aventuras,
como as desilusões e as amarguras.
  
Usando uma expressão menos correta,
porém , sendo muito mais sugestiva,
não se arreceia o Sonhador e Poeta
de proclamar que o coração arquiva
o sofrimento, a duvida, a alegria...
tudo que nos agrada ou contraria...
  
E, para retribuir tão nobre preito,
nas horas de doçura ou tormento
o coração sabe pulsar dentro do peito,
ou zangado e veloz ou sereno e lento,
e, apesar de pequeno e de disforme,
ativo e intemerato jamais dorme!…

AMOR ENLUARADO

 Aquela Lua murmurante
 De prata cristalina abanar
 Tem o dom de embriagar
 Com sua luz extasiante...

 Vezes e vezes alvejante
 Por este Luar passei
 Em sua beleza enamorei
 Sendo apenas caminhante.

 A mourejar melodiosa seresta
 Vem graciosa beijando a terra
 Sorvendo fragrâncias dela
 Vai espargindo pelas florestas

 Na imensidão do seu encanto
 Emergem soluços abaluartar
 Que se arrastam sem parar
 Qual recordações de seu canto.

 Debruçam brumas andandeiras
 Um acariciar com aluamento
 A invadir desejos e sentimentos
 Revelando apagas esteiras!

 Lá pelo infinito, muito além
 Desliza o Luar a se enamorar
 Respingando doce cochichar
 Levando meu Amor também!

MÁGICO ARCO-ÍRIS 

 Na magia de um doce sonhar,
 Em volta de um arco-íris me vejo
 Bebendo o néctar e acariciar,
 Aos sons de teu rumorejo!...

 Os meus olhos úmidos a magia fitou
 Alheia ao sonho bordado no coração,
 E os sentimentos na alma sublimou
 A mais pura e eufórica emoção!...

 Um sorriso vai deslizando adocicado,
 Nos meus lábios sensuais, triunfantes...
 Que pousou nos teus, enamorado,
 Deixando meu coração no peito arfante!

 O Arco-Íris com magia vai colorindo
 O meu ser, que de alegria vai inundando,
 E vou vivendo toda essa poesia florindo
 Com aromas que o ar vão perfumando!…

Fonte:
AVSPE- http://www.avspe.eti.br/coutinho/poemas_efigenia.htm

Rafael Castellar (“Patos”)


O Projeto:

Sob o título “Patos” este romance existencialista aborda diversos conflitos internos de um jovem que, agoniado e em busca de expansão, deixa a vida com sua família em uma propriedade rural para tentar uma nova na cidade grande. 

A obra narra toda sua trajetória desde a partida, passando pela chegada à capital, pela sua estabilização, estudos e ascensão profissional, e o convívio com diversas pessoas que se tornam partes importantes em sua vida. Todo este processo é salpicado pelos eventos psicológicos, pelas expectativas e descasos resultantes de suas convivências e culmina com a transformação do jovem e seus valores, que acaba se tornando mais uma personagem fabricada do mundo corporativo. E no ápice de sua carreira, ele é tomado novamente pelas lembranças e sensações do que realmente era. Ao constatar sua transformação, tenta reencontrar-se descontroladamente, mas, ao ser notado, é submetido à força pela família e pelos amigos a um tratamento psiquiátrico questionável, que o submete à pior e mais torturante fase da sua vida. Ao fim do tratamento, avariado, retorna à família e conclui-se o desfecho sobre toda sua história, onde se torna liberto da maneira que lhe conveio.

O autor disponibilizou algumas páginas do livro para leitura em http://www.bookess.com/read/13429-patos/

O Autor:

Rafael Castellar das Neves nascido em 26 de setembro de 1979 em Santa Gertrudes, interior do estado de São Paulo. Mudou-se para Santos em 1997 para cursar Engenharia de Computação e, em 2002, mudou-se para São Paulo em busca de trabalho, onde vive até o momento.

Em 2005, iniciou tentativas de elaboração de romances das quais “Patos” é a que foi a primeira finalizada e publicada em outubro de 2012. Outros romances foram concluídos e outros estão em andamento.

Desde 2008, mantém o blog “Desce Mais Uma!” (http://descemaisuma.blogspot.com), onde registra suas poesias, contos e crônicas, frutos de ideias que lhe tomavam durante a elaboração do romance. Algumas delas têm referências e exposição nacional e internacional. Em abril de 2010 publicou seu primeiro livro “Desce Mais Uma! – Primeira Rodada” que reúne vários de seus textos.

Fonte:
O Autor

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 5


Alexandre Fernandes          
(Alexandre José de Seixas Fernandes)
(Rio Grande/RS, 24 de julho de 1863 – Salvador/Bahia – 30 de março de 1907 )

" CORAÇÃO DE MULHER "

Vira o rosto se eu passo; e entretanto,
seu olhar a seguir meu vulto fica.
Que me estima, de certo não indica,
porque parece que me odeia tanto!

Se um dia não me vê, ligeiro espanto
quando me avista o seu olhar explica;
e, nessa alternativa, mortifica
minha alma, escravizada a seu encanto.

As vezes, eu também, rapidamente,
volto meu rosto, finjo, indiferente,
nem pensar que ela vive neste mundo.

Mas, vejo, de revés, que ela me segue,
que o seu olhar ansioso me persegue ...
Coração de mulher, como és profundo!
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Alphonsus de Guimaraens
Afonso Henriques da Costa Guimarães
(Ouro Preto/MG, 24 de julho de 1870 – Mariana/MG, 15 de julho de 1921 )

" AO POENTE "
            
Ficávamos sonhando horas inteiras,
com os olhos cheios de visões piedosas:
éramos duas virginais palmeiras,
abrindo ao céu as palmas silenciosas.

As nossas almas, brancas, forasteiras,
no éter sublime alavam-se radiosas,
ao redor de nós dois, quantas roseiras...
O áureo poente coroava-nos de rosas.

Era um arpejo de harpa todo o espaço;
mirava-a longamente, traço a traço,
no seu fulgor de arcanjo proibido.

Surgia a lua, além, toda de cera ...
Ai como suave então me parecera
a voz do amor que eu nunca tinha ouvido.

" SONETO "
                                                           
Encontrei-te. Era o mês... Que importa o mês? Agosto,
Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março,
Brilhasse o luar que importa? ou fosse o sol já posto,
No teu olhar todo o meu sonho andava esparso.

Que saudades de amor na aurora do teu rosto!
Que horizonte de fé, no olhar tranqüilo e garço!
Nunca mais me lembrei se era no mês de agosto,
Setembro, outubro, abril, maio, janeiro, ou março.

Encontrei-te. Depois... depois tudo se some
Desfaz-se o teu olhar em nuvens de ouro e poeira.
Era o dia... Que importa o dia, um simples nome?

Ou sábado sem luz, domingo sem conforto,
Segunda, terça ou quarta, ou quinta ou sexta-feira,
Brilhasse o sol que importa? ou fosse o luar já morto?

" SONETO XIX "
                                                           
Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.

As estrelas dirão — "Ai! nada somos,
Pois ela se morreu silente e fria.. .
" E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.

A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.

Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: — "Por que não vieram juntos?"
====================

Alphonsus de Guimarães Filho
(Afonso Henriques de Guimarães Filho)
(Mariana/MG, 3 de junho de 1918 – Rio de Janeiro/RJ – 28 de agosto de 2008)

"SONETOS DA AUSÊNCIA XII "
                                                        
Não te desejo mais pela amargura
nem pelas alegrias inconstantes:
quero beijar nas tuas mãos distantes
o amor que me alivia e transfigura.

Quero, sonhando a adolescência pura
no teu corpo febril, das mãos amantes,
colher nos ventos tudo quanto dantes
ambicionara em sedes de loucura.

Quero o teu riso, o teu silêncio, a graça
do teu vestido ao vento, o andar sereno
de ave marinha pelas madrugadas.

Quero colher em ti o que não passa
e pulsa em mim como o teu leve aceno
na distância impossível das estradas.

"SONETOS DA AUSÊNCIA XLII "
                                                           
O doce amor. As doces mãos da amada.
Seu corpo branco como luz macia
e a matinal pureza. e a graça e a fria
carícia da leve madrugada...

A rua humilde. A paz desta pousada.
A trepadeira, o alpendre... E, todo dia,
os risos das crianças, a alegria
descendo, clara, sobre a minha estrada.

Depois, a noite os sonhos dominando,
vozes veladas... Confissões a medo...
Gestos de quem parou na despedida

e há de ficar, por seu pesar, chorando,
vivendo o adeus que é como o seu segredo,
o adeus que encerra em si a própria vida.

Fonte:
J.G . de  Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Francisco Marques “Chico dos Bonecos” (Andarilhos)


Andava pela estrada, sozinho. Um sol de rachar e os dois andando, sem parar. E andando, resolvidos, iam os três desenxabidos. Os quatro não andavam à toa: buscavam uma terra boa.

Com os pés doendo de tanto andar, os cinco pararam para descansar.

E os seis se deitaram, dormiram, sonharam...

No meio da noite, os sete acordaram e se arrepiaram.

Dezesseis olhos arregalados, brilhando, viram o rio iluminado, o chão iluminado.

Cavando a terra, dezoito mãos traziam, com a respiração ofegante, dezenas de pedrinhas brilhantes.

Depois de muito cavar, contar e reunir, os dez começaram a discutir.

O centro da discussão era este: onze andarilhos podem suportar tantos brilhos?

Uma dúzia de idéias diferentes, uma ou outra interessante, mas nenhuma idéia brilhante.

Com as palavras doendo de tanto falar, os treze resolveram si-len-ci-ar. 

Deitados, silenciosos, os catorze buscavam uma nova rima, quando olharam para cima...

Boquiabertos, ao som de quinze admirações, descobriram estrelas cadentes, candentes em grandes porções e proporções.

E aquelas dezesseis imaginações tropeçaram nas mesmas conclusões...

"As pedras são farelos de estrelas", dezessete vezes pensaram e dezessete vozes exclamaram.

E declararam os dezoito andarilhos, acostumados a vagar de déu em déu: "Essa terra tem parentesco com o céu."

E dezenove caminheiros decidiram fincar o pé e se estabelecer: "De agora em diante, aqui vamos morar, aqui vamos viver."

Vinte vezes festejavam. Quando uma voz desfestejou: "Continuarei caminhando. Adeus. Já vou."

E este que se foi, ligeirinho!, posso dizer apenas que ele...
Andava pela estrada, sozinho.

Fonte:
Revista Nova Escola

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 761)



Uma Trova de Ademar  

Hoje na terceira idade, 
eu, de amores já vazio, 
voltei ao mar da saudade 
para ancorar meu navio. 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

O que mais queres, querida, 
se já te dei tudo, enfim? 
Até minha própria vida 
não pertence mais a mim. 
–Clênio Borges/RS– 

Uma Trova Potiguar  

Muitos serão invejados, 
poucos serão aplaudidos; 
vivendo são criticados,
morrendo são esquecidos.
–Prof. Maia/RN– 

Uma Trova Premiada  

2004   :   Petrópolis/RJ 
Tema   :   ÁGUA   :   1º Lugar. 

Nessas manhãs de invernadas, 
o orvalho, na rosa nua, 
põe gotas d'água roladas 
dos olhos triste da lua!.. 
–Hermoclydes S. Franco/RJ– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Esta saudade infinita 
do amor que a gente viveu, 
é a mensagem mais bonita, 
que o meu passado escreveu!... 
–Aloísio Alves da Costa/CE– 

U m a P o e s i a  

Não esqueçamos jamais 
que a meta de nossa vida, 
é trilharmos nossa estrada 
com a fé, então, devida, 
para, ao céu, então, chegarmos, 
depois da missão cumprida! 
Gislaine Canalles/SC– 

Soneto do Dia  

L U Z
–Divenei Boseli/SP– 

Se a vida fosse apenas um brinquedo 
e o medo fosse apenas ilusão, 
se o amor fosse despido de segredo 
e a dedo se encolhesse uma emoção, 

se a voz tivesse a força de um torpedo, 
a pena fosse um traço de união 
e as deusas, num telúrico bruxedo, 
tornassem verdadeira a compreensão, 

seriam não apenas operárias 
da indústria, do comércio e mesmo agrárias 
as tochas geradoras dessa luz 

que eu penso poder ver quando a mulher 
dispensa “Cirineus” e, como quer, 
carrega sem ajuda a própria cruz!

Machado de Assis (José de Alencar: Iracema)


A ESCOLA poética, chamada escola americana, teve sempre adversários, o que não importa dizer que houvesse controvérsia pública. A discussão literária no nosso país é uma espécie de steeple-chase, que se organiza de quando em quando; fora disso a discussão trava-se no gabinete, na rua, e nas salas. Não passa daí. em nos parece que se deva chamar escola ao movimento que atraiu as musas nacionais para o tesouro das tradições indígenas. Escola ou não, a verdade é que muita gente viu na poesia americana uma aberração selvagem, uma distração sem graça, nem gravidade Até certo ponto tinha razão: muitos poetas, entendendo mal a musa de Gonçalves Dias, e não podendo entrar no fundo do sentimento e das idéias, limitaram-se a tirar os seus elementos poético do vocabulário indígena; rimaram as palavras, e não passaram adiante; os adversários, assustados corri a poesia desses tais, confundiram no mesmo desdém os criadores e os imitadores, e cuidaram desacreditar a idéia fulminando os intérpretes incapazes.

Erravam decerto: se a história e os costumes indianos inspiraram poetas como José Basílio, Gonçalves Dias, e Magalhães, é que se podia tirar dali criações originais, inspirações novas. Que importava a invasão da turbamulta? A poesia deixa de ser a misteriosa linguagem dos espíritos, só porque alguns maus rimadores foram assentar-se ao sopé do Parnaso? O mesmo se dá corri a poesia americana. Havia também outro motivo para condená-la: supunham os críticos que a vida indígena seria, de futuro, a tela exclusiva da poesia brasileira, e nisso erravam também, pois não podia entrar na idéia dos criadores, obrigar a musa nacional a ir buscar todas as suas inspirações no estudo das crônicas e da língua primitiva. Esse estudo era um dos modos de exercer a poesia nacional; mas, fora dele, não está aí a própria natureza, opulenta, fulgurante, vivaz, atraindo os olhos dos poetas, e produzindo páginas como as de Porto Alegre e Bernardo Guimarães?

Felizmente, o tempo vai esclarecendo os ânimos; a poesia dos caboclos está completamente nobilitada os rimadores de palavras já não podem conseguir o descrédito da idéia, que venceu com o autor de "I-Juca-Pirama", e acaba de vencer com o autor de Iracema. É deste livro que vamos falar hoje aos nossos leitores. 

As tradições Indígenas encerram motivos para epopéias e para, églogas; podem inspirar os seus Homeros e os seus Teócritos. Há aí lutas gigantescas, audazes capitães, ilíadas sepultadas no esquecimento; o amor, a amizade, os costumes domésticos tendo a simples natureza Dor teatro, oferecem à musa lírica, páginas deliciosas de sentimento e de originalidade. A mesma pena que escreveu "IJucaPirama" traçou o lindo monólogo de "Marabá"; o aspecto do índio Kobé e a figura poética de Lindóia são filhos da mesma cabeça; as duas partes dos Natchez
resumem do mesmo modo a dupla inspiração da fonte indígena. O poeta tem muito para escolher nessas ruínas já exploradas, mas não completamente conhecidas. O livro do Sr. José de Alencar, que é um poema em prosa, não é destinado a cantar lutas heróicas, nem cabos de guerra; se há aí algum episódio, nesse sentido, se alguma vez troa nos vales do Ceará a pocema da guerra, nem por isso o livro deixa de ser exclusivamente votado à história tocante de uma virgem indiana, dos seus amores. e dos seus infortúnios. Estamos certos de que não falta ao autor de Iracema energia e vigor para a pintura dos vultos heróicos e das paixões guerreiras; lrapuã e Poti a esse respeito são irrepreensíveis; o poema de que o autor nos fala deve surgir à luz, e então veremos como a sua musa emboca a tuba épica; este livro, porém, limita-se a falar do sentimento, vê-se que não pretende sair fora do coração.

Estudando profundamente a língua e os costumes dos selvagens, obrigou-nos o autor a entrar mais ao fundo da poesia americana; entendia ele, e entendia bem, que a poesia americana não estava completamente achada; que era preciso prevenir-se contra um anacronismo moral, que consiste em dar idéias modernas e civilizadas aos filhos incultos da floresta. O intuito era acertado; não conhecemos a língua indígena; não podemos afirmar se o autor pôde realizar as suas promessas, no que respeita à linguagem da sociedade indiana, às suas idéias, às suas imagens; mas a verdade é que relemos atentamente o livro do Sr. José de Alencar, e o efeito que ele nos causa é exatamente o mesmo a que o autor entende que se deve destinar ao poeta americano; tudo ali nos parece primitivo; a ingenuidade dos sentimentos, o pitoresco da linguagem, tudo, até a parte narrativa do livro, que nem parece obra de um poeta moderno, mas uma história de bardo indígena, contada aos irmãos, à porta da cabana, aos últimos raios do sol que se entristece. A conclusão a tirar daqui é que o autor houve-se nisto com uma ciência e uma consciência, para as quais todos os louvores são poucos. 

A fundação do Ceará, os amores de Iracema e Martim, o ódio de duas nações adversárias, eis o assunto do livro. Há um argumento histórico, sacado das crônicas, mas esse é apenas a tela que serve Ido poeta; o resto é obra da imaginação. Sem perder de vista os dados colhidos nas velhas crônicas, criou o autor uma ação interessante, episódios originais, e mais que tudo, a figura bela e poética de Iracema. Apesar do valor histórico de alguns personagens, com Martim e Poti (o célebre Camarão, da guerra holandesa), a maior soma de interesse concentra-se na deliciosa filha de Araken. A pena do cantor d'O Guarani é feliz nas criações femininas; as mulheres dos seus livros trazem sempre um cunho de originalidade, de delicadeza, e de graça, que se nos gravam logo na memória e no coração. Iracema e da mesma família. Em poucas palavras descreve o poeta a beleza física daquela Diana selvagem.

Uma frase imaginosa e concisa, a um tempo, exprime tudo. A beleza moral vem depois, com o andar dos sucessos: a filha do pajé, espécie de vestal indígena, vigia do segredo da jurema, é um complexo de graças e de paixão, de beleza e de sensibilidade, de casta reserva e de amorosa dedicação. Realça-lhe a beleza nativa a poderosa paixão do amor selvagem, do amor que procede da virgindade da natureza, participa da independência dos bosques, cresce na solidão, alenta-se do ar agreste da montanha. 

Casta, reservada, na missão sagrada que lhe impõe a religião do seu país, nem por isso Iracema resiste à invasão de um sentimento novo para ela, e que transforma a vestal em mulher. Não resiste, nem indaga; desde que os olhos de Martim se trocaram com os seus, a moça curvou a cabeça àquela doce escravidão. Se o amante a abandonasse, a selvagem iria morrer de desgosto e de saudade, no fundo do bosque, mas não oporia ao volúvel mancebo nem uma súplica nem uma ameaça. Pronta a sacrificar-se por ele, não pediria a mínima compensação do
sacrifício. Não pressente o leitor, através da nossa frase inculta e sensabor, uma criação profundamente verdadeira? Não se vê na figura de Iracema, uma perfeita combinação do sentimento humano com a educação selvagem? Eis o que é Iracema, criatura copiada da natureza, idealizada pela arte, mostrando através da rusticidade dos costumes, uma alma própria para amar e para sentir.

Iracema é tabajara; entre a sua nação e a nação potiguara há um ódio de séculos; Martim, aliado dos potiguaras, andando erradio, entra no seio dos tabajaras, onde é acolhido com a franqueza própria de uma sociedade primitiva; é estrangeiro, é sagrado; a hospitalidade selvagem é descrita pelo autor com cores simples e vivas. O europeu abriga-se na cabana de Araken, onde a solicitude de Iracema prepara-lhe algumas horas de folgada ventura.

O leitor vê despontar o amor de Iracema ao contacto do homem civilizado. Que simplicidade, e que interesse! Martim cede a pouco e pouco à influência invencível
daquela amorosa solicitude. Um dia lembra-lhe a pátria e sente-se tomado de saudade: — "Uma noiva te espera?" pergunta Iracema.

O silêncio é a resposta do moço. A virgem não censura, nem suplica; dobra a cabeça sobre a espádua, diz o autor, como a tenra planta da carnaúba, quando a chuva peneira na várzea.

Desculpe o autor se desfolhamos por este modo a sua obra; não escolhemos belezas, onde as belezas sobram, trazemos ao papel estes traços que nos parecem caracterizar a sua heroína, e indicar ao leitor, ainda que remotamente, a beleza da filha de Araken. Heroína, dissemos, e o é decerto, naquela divina resignação. Uma noite, no seio da cabana, a virgem de Tupã torna-se esposa de Martim; cena delicadamente escrita, que o leitor adivinha, sem ver. Desde então Iracema dispôs de si; a sua sorte está ligada à de Martim; o ciúme de Irapuã e a presença de Poti, precipitam tudo; Poti e Martim devem partir para a terra dos potiguaras; Iracema os conduz, como uma companheira de via-em. A esposa de Martim abandona tudo, o lar a família, os irmãos, tudo para ir perecer ou ser feliz com o esposo. Não é o exílio, para ela o exílio seria ficar ausente do esposo, no meio dos seus. Todavia, essa resolução suprema custa-lhe sempre, não arrependimento, mas tristeza e vergonha, no dia em que após uma batalha entre as duas nações rivais, Iracema vê o chão coalhado de sangue dos seus irmãos. Se esse espetáculo não a comovesse, ia-se a simpatia que ela nos inspira; mas o autor teve em conta que era preciso interessá-la, pelo contraste da voz do sangue e da voz do coração.

Daí em diante a vida de Iracema é uma sucessão de delícias, até que uma circunstância fatal vem pôr termo aos seus jovens anos. A esposa de Martim concebe um filho. Que doce alegria não banha a fronte da jovem mãe! Iracema vai dar conta a Martim daquela boa nova; há uma cena igual nos Natchez; seja-nos lícito compará-la à do poeta brasileiro.

Quando Renê, diz o poeta dos Natchez, teve certeza de que Celuta trazia um filho no seio, acercou-se dela com santo respeito, e abraçou-a delicadamente para não machucá-la. "Esposa, disse ele, o céu abençoou as tuas entranhas."

A cena é bela, decerto; é Chateaubriand quem fala; mas a cena de Iracema aos nossos olhos é mais feliz. A selvagem cearense aparece aos olhos de Martim, adornada de flores de maniva, trava da mão dele, e diz-lhe:

— Teu sangue já vive no seio de Iracema. Ela será mãe de teu filho.

— Filho, dizes tu? exclamou o cristão em júbilo.

Ajoelhou ali, e cingindo-a com os braços, beijou o ventre fecundo da esposa.

Vê-se a beleza deste movimento, no meio da natureza viva, diante de uma filha da floresta. O autor conhece os segredos de despertar a nossa comoção por estes meios simples, naturais, e belos. Que melhor adoração queria a maternidade feliz, do que aquele beijo casto e eloqüente? Mas tudo passa; Martim sente-se tomado de nostalgia; lembram-lhe os seus e a pátria; a selvagem do Ceará, como a selvagem da Luisiana, começa então a sentir a sua perdida felicidade. Nada mais tocante do que essa longa saudade, chorada no ermo, pela filha de Araken, mãe desgraçada, esposa infeliz que viu um dia partir o esposo, e só chegou a vê-lo de novo, quando a morte já voltava para ela os seus olhos lânguidos e tristes.

Poucas são as personagens que compõem este drama da solidão, mas os sentimentos que as movem, a ação que se desenvolve entre elas, é cheia de vida, de interesse, e de verdade.

Araken é a solenidade da velhice contrastando com a beleza agreste de Iracema: um patriarca do deserto, ensinando aos moços os conselhos da prudência e da sabedoria. Quando lrapuã, ardendo em ciúme pela filha do pajé, faz romper os seus ódios contra os potiguaras, cujo aliado era Martim, Araken opõe-lhe a serenidade da palavra, a calma da razão. Irapuã e os episódios da guerra fazem destaque no meio do quadro sentimental que é o fundo do livro; são capítulos traçados com muito vigor, o que dá novo realce ao robusto talento do poeta.

Irapuã é o ciúme e o valor marcial; Araken a austera sabedoria dos anos; Iracema o amor. No meio destes caracteres distintos e animados, a amizade é simbolizada em Poti. Entre os indígenas a amizade não era este sentimento, que à força de civilizar-se tornou-se raro; nascia da simpatia das almas, avivava-se com o perigo, repousava na abnegação reciproca; Poti e Martim, são os dois amigos da lenda, votados à mútua estima e ao mútuo sacrifício.

A aliança os uniu; o contacto fundiu-lhes as almas; todavia, a afeição de Poti difere da de Martim, como o estado selvagem do estado civilizado; sem deixarem de ser igualmente amigos, há em cada um deles um traço característico que corresponde à origem de ambos; a afeição de Poti tem a expressão ingênua, franca, decidida; Martim não sabe ter aquela simplicidade selvagem.

Martim e Poti sobrevivem à catástrofe de Iracema, depois de enterrá-la ao pé de um coqueiro; o pai desventurado toma o filho órfão de mãe, e arreda-se da praia cearense. Umedecem-se os olhos ante este desenlace triste e doloroso, e fecha-se o livro, dominado ainda por uma profunda impressão.

Contar todos os episódios desta lenda interessante seria tentar um resumo impossível; basta-nos afirmar que os há, em grande numero, traçados por mão hábil, e todos ligados ao assunto principal. O mesmo diremos de alguns personagens secundários, como Caubi e Andira, um, jovem guerreiro, outro, guerreiro ancião, modelados pelo mesmo padrão a que devemos Poti e Araken.

O estilo do livro e como a linguagem daqueles povos: imagens e idéias, agrestes e pitorescas, respirando ainda as auras da montanha, cintilam nas cento e cinqüenta páginas da Iracema. Há, sem dúvida, superabundância de imagens, e o autor com uma rara consciência literária, é o primeiro a reconhecer esse defeito. O autor emendará, sem dúvida a obra, empregando neste ponto uma conveniente
sobriedade. O excesso, porém, se pede a revisão da obra, prova em favor da poesia americana, confirmando ao mesmo tempo o talento original e fecundo do autor. Do valor das imagens e das comparações, só se pode julgar lendo o livro, e para ele enviamos os leitores estudiosos. 

Tal é o livro do Sr. José de Alencar, fruto do estudo, e da meditação, escrito com sentimento e consciência. Quem o ler uma vez, voltará muitas mais a ele, para ouvir em linguagem animada e sentida, a história melancólica da virgem dos lábios de mel. Há de viver este livro, tem em si as forças que resistem ao tempo, e dão plena fiança do futuro. É também um modelo para o cultivo da poesia americana, que, mercê de Deus há de avigorar-se com obras de tão superior quilate. Que o autor de Iracema não esmoreça, mesmo a despeito da indiferença pública; o seu
nome literário escreve-se hoje com letras cintilantes: Mãe, O Guarani, Diva, Lucíola, e tantas outras; o Brasil tem o direito de pedir-lhe que Iracema não seja o ponto final. 

Espera-se dele outros poemas em prosa. Poema lhe chamamos a este, sem curar de saber se é antes uma lenda, se um romance: o futuro chamar-lhe-á obra-prima.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Paulo Vinheiro (Tremor)


Uma dose a mais, a última, a primeira do dia
 Um deslizar constante para onde não sei
 O quente e macio gesto do adeus demorado
 A sangria e o cheiro do mato cortado
 A chuva e uma tristeza que não sacia

 Descer a serra se faz fácil e rápido
 O destino não há, mas a vontade de se ir
 Assim, embriagado, mergulhado no fim
 De mim nem haverá lembranças
 Por certo não haveria de haver

O sonho de se sentir acordado
 A percepção de ser diferente
 Sinto o tempo encolhendo, vacilante
 Abro a porta de meus olhos
 E mudo as cores do espectro

Trocando as pernas pelas ruas
 Como quem anda, à toa, achando
 Já não sou mais o que pensei
 Isto é, não sei nada de mim
 Hoje ando mais tonto que ontem


Feliz e aceitando tudo que não entendo
 Abraço outros bêbados como fui e sou
 Acreditamos num mesmo deus
 Lutamos as mesmas guerras
 Somos imbecilmente apaixonados

O que me embriaga é de outra natureza
 Minha natureza foi a das choças
 Hoje não sei mais, por mais que busque
 O que anda por dentro é morno
 Acredito no que a maioria quer
 E não sei mais o que quero… de mim

Fonte:
http://entrementes.com.br/2012/11/tremor-27112012/