terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Contos do Folclore Brasileiro (A Bota)

 Meus senhores, eu sou a bota
 Meus senhores, eu sou a bota
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou a porta
 Meus senhores, eu sou a porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou a corda
 Meus senhores, eu sou a corda
 Que marre a bota e botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o sebo
 Meus senhores, eu sou o sebo
 Que passe na corda, que marre a bota
 Que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o rato
 Meus senhores, eu sou o rato
 Que roeu o sebo, que passe na corda
 Que marre a bota, que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o gato
 Meus senhores, eu sou o gato
 Que comeu o rato, que roeu o sebo
 Que passe na corda, que marre a bota
 Que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o cachorro
 Meus senhores, eu sou o cachorro
 Que comeu o gato, que matou o rato
 Que roeu o sebo, que passe na corda
 Que marre a bota, que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o pau
 Meus senhores, eu sou o pau
 Que matou o cachorro, que comeu o gato
 Que matou o rato, que roeu o sebo
 Que passe na corda, que marre a bota
 Que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o facão
 Meus senhores, eu sou o facão
 Que cortô o pau, que mata o cachorro
 Que comeu o gato, que matou o rato
 Que roeu o sebo, que passe na corda
 Que marre a bota, que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou a mulher
 Meus senhores, eu sou a mulher
 Que pega o facão, que cortô o pau
 Que matou o cachorro, que comeu o gato
 Que matou o rato, que roeu o sebo
 Que passe na corda, que marre a bota
 Que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o homem
 Meus senhores, eu sou o homem
 Que vou dar na mulher, que pegou o facão
 Que corto o pau, que mato o cachorro
 Que comeu o gato, que matou o rato
 Que roeu o sebo, que passe na corda
 Que marre a bota, que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

Fonte:
Lima, Rossini Tavares de. Abecê do folclore. 4ª ed. São Paulo, Ricordi, sd.

Ivan Jaf (A Gata Apaixonada)

 Gato sentado (Aldemir Martins)
Quando perguntam como é que eu consegui sair com a Carla, eu respondo que foi por causa do Aldemir Martins. O pintor famoso.

Eu estava, tranqüilo, estudando. Juro.

Lá pelas 3 da tarde o telefone tocou. Era ela, a vizinha da casa 3.

A mãe morreu há uns quatro anos.
O pai é superciumento, não a deixa sair de casa nunca.

– Oi, Rodrigo... Você tem um gato grande, malhado?

– Tenho. O nome dele é Sorvete.

– Sorvete?

– Quando a gente encosta a mão, ele se derrete todo.

– Ele briga com a minha gata, a Tati.

– Já aconteceu várias vezes. Acho que é ciúme.

– De outro gato?

– Não. De um quadro. Uma pintura. Do Aldemir Martins.

Dez minutos depois eu estava na sala da casa dela. Só nós dois.

– Você vai ver ela disse.

– É sempre na mesma hora. Já ouviu falar do Aldemir Martins?

– Já. É um pintor famoso pra caramba. Mora aqui em São Paulo.

– Morava. Morreu há pouco tempo. Minha mãe era apaixonada pela pintura dele. Ele ilustrava livros, revistas, jornais... Pintava cangaceiros, galos, passarinhos, peixes...

– Tô sabendo. Desenhava até rótulos de maionese, de vinho...

– Minha mãe comprava tudo que podia.

– A gente comia em pratos desenhados por ele, tinha lençóis, tapetes, cortina de banheiro...

Carla me levou pra um canto da sala. Em cima de uma imitação de lareira, havia uma tela do Aldemir Martins, pequena, com o desenho de um gato. Um gato gordo, vermelho e azul, um focinho enorme, mostrando as garras, sedutor, os olhos verdes calmos, hipnóticos.

– Minha mãe adorava esse quadro.

Então ela me puxou pra trás de uma cortina pesada, que cobria a vidraça que dava pro jardim.

Tati entrou na sala. Pulou pro beiral da falsa lareira e parou em frente ao quadro, olhando pro gato pintado. Ficamos assim uns 20 minutos, escondidos, calados. Até que ele apareceu. O velho Sorvete.

O gato mais descolado do pedaço. Veio gingando, passou entre os móveis, parou na frente da lareira, olhou pro alto, e não gostou nada do que viu.

Carla segurou no meu braço.

Sorvete pulou pro beiral.

Briga de gato é mais rápido que videogame. Tati pulou, atravessou uma janela aberta e fugiu pro jardim, com o Sorvete atrás.

– Minha mãe dizia que um artista é capaz de recriar a vida. Se Deus existe, com certeza é um artista. Mas acho que você vai ter de trancar o Sorvete em casa, Rodrigo.

– Não gostei daquilo.

– Não, Carla. A gente encontra outro jeito. Pra mim as pessoas, os bichos, qualquer coisa que se mexa... têm de ter liberdade. Têm de ter uma janela aberta.

– Mas o Sorvete é meio selvagem...

– Isso. É assim que eu gosto dele. Eu também sou meio selvagem. Sabe o que eu faço?

– Eu como o tomate inteiro. Eu não fico esperando a minha mãe partir e colocar na salada!

Ela riu. Não sei de onde eu tirei essa história do tomate. Aí me empolguei, e ia dar mais exemplos de como eu era selvagem, mas a cortina abriu de repente e o pai dela apareceu.

O cara ficou nervoso, quase chamou a polícia, mas depois a gente explicou, ele se arrependeu e acabou até deixando a filha sair comigo.

Eu e a Carla estamos namorando. Juro.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Cláudia Dimer (O Segredo)


Artur Azevedo (O Liberato)

Comédia

Oferecida ao Excelentíssimo Senhor Doutor Joaquim Nabuco

Representada pela primeira vez no Teatro Lucinda do Rio de Janeiro, em 16 de setembro de 1881.


 PERSONAGENS

 GONÇALO
 DOUTOR LOPES
 RAMIRO
 MOREIRA
 DONA PERPÉTUA
 ROSINHA

 A cena passa-se na cidade do Rio de Janeiro, em 1880.

O teatro representa uma sala. Duas janelas ao fundo, duas portas de cada lado, quatro cadeiras e uma poltrona, consolos.

Cena I

Rosinha, debruçada a uma das janelas; Dona Perpétua, entrando da esquerda, primeiro plano; logo depois Gonçalo, da direita, segundo plano.

  DONA PERPÉTUA (Entrando de muito mau humor, com um vergalho na mão.) - Ora valha-me Deus! Não me faltava mais nada!...

 ROSINHA e GONÇALO (Descendo ao proscênio.) - O que foi?

 DONA PERPÉTUA - O diabo do negro - Deus me perdoe! - agora é que se lembrou de cair doente! Como até estas horas não saía do quarto, fui buscá-lo preparada com este vergalho, e encontrei-o ardendo em febre. Desavergonhado!

 GONÇALO (Timidamente.) - O Liberato?

 DONA PERPÉTUA - O Liberato, sim senhor Pois quem havia de ser? É surdo? Que inferno! Esta só a mim acontece!

 ROSINHA - É coisa de cuidado?

 DONA PERPÉTUA - Um negro nunca tem coisa de cuidado! E este diabo, se não fosse valer uns oitocentos mil réis...

 GONÇALO - Vou chamar o médico?

 DONA PERPÉTUA - Vá, homem de Deus, vá! Mexa-se, com todos os demônios! Parece estar a dormir!

 GONÇALO (Vai buscar o seu chapéu sobre o consolo que deve estar entre as duas janelas, e dirige-se para a esquerda, segundo plano. A Rosinha, que se dirige à porta da esquerda, primeiro plano.) - Onde vai?

 ROSINHA (Naturalmente.) - Vou ver o Liberato;

 DONA PERPÉTUA (Com autoridade.) Fique! (Rosinha volta e vai para a janela.) Por causa destas e de outras confianças, é que o demônio do negro...

 GONÇALO (Quase a sair, parando.) - Adoeceu?

 DONA PERPÉTUA - Cale-se. (Gonçalo desaparece) Agora vá lá ficar o dia inteiro, como é seu costume! Que marido! (Sai pela direita, segundo plano.)

 Cena II

Rosinha, só

[ROSINHA] (À janela. Ouvindo dar horas tem um gesto de impaciência e desce ao proscênio.) - Duas horas, e primo Ramiro nada de aparecer! A que será devida esta demora? É o primeiro domingo em que não aparece logo depois do meio dia! Estará doente? (Aplicando o ouvido.) Parece que sobem a escada... Deve ser ele... É ele, é, não me engano... (Aparece Moreira da esquerda, segundo plano.- Vendo-o, despeitada.) - Ora!

Cena III

Rosinha, Moreira

 MOREIRA (Entrando.) - Licença para um. (Dirigindo-se a Rosinha, com muita amabilidade.) Como tem passado, Dona Rosinha? Tem passado bem?

 ROSINHA (Secamente.) - Bem, obrigada.

 MOREIRA (Sentando-se na poltrona. Tem deixado o seu chapéu sobre o consolo que estará entre as duas portas da esquerda.) - Eu vou indo conforme Deus é servido. (Tomando uma pitada de tabaco, movimento este que repete quatro ou cinco vezes durante a peça.) Mamãe está boa?

 ROSINHA - Boa, obrigada. (Vai à janela, a ver se chega o primo.)

 MOREIRA - Não lhe pergunto por papai, porque o encontrei ali na esquina. Disse-me que ia chamar o médico para ver o negro, que caiu doente. Isto de negros, põem-se finos com duas lambadas. Lá na fazenda,
tenho o Doutor Bacalhau que faz milagres!

 ROSINHA (Voltando da janela.) - O senhor viu por aí primo Ramiro?

 MOREIRA (Muito sério.) - Vi, minha senhora, e também vi seu tio!

 ROSINHA (Interessada.) - Onde?

 MOREIRA - Na tal conferência!

 ROSINHA - Que conferência?

 MOREIRA - Pois não sabe que se trama entre nós uma grande conspiração contra a propriedade particular?

 ROSINHA - Uma grande conspiração?

 MOREIRA - Que meia dúzia de rapazolas inconseqüentes, que nada tem que perder, que não possui um moleque ou uma negrinha para remédio, arvorou-se em defender a emancipação dos escravos, empunhando o facho da discórdia, e anda a proclamar urbi et orbi - pelos botequins, pelas gazetas e até pelos teatros - a dilapidação da fortuna particular?!

 ROSINHA - Deveras?

 MOREIRA - Em outra qualquer parte que não fosse o Rio de Janeiro, isto seria uma quadrilha de ladrões; aqui chama-se a isto o Partido Abolicionista! (Erguendo-se percorrendo a cena, de muito mau humor.) Pois não! Uma gente sem eira nem beira, nem ramo de figueira: uns pobres diabos, carregados de esteiras velhas, que se ralam de inveja, quando vêm um cidadão prestante como eu, que possuo cinqüenta escravos, ganhos com o suor do meu rosto! (Surpreendendo um sorriso de Rosinha.) Sim, senhora: ganhei-os com o suor do meu rosto, a trabalhar, (Gesto como se tirasse suor da testa com o polegar.) e não a dizer baboseiras no teatro...

 ROSINHA - E foi no teatro que se encontrou com primo Ramiro?

 MOREIRA - No teatro, sim, senhora: agora há comédias também de dia. E seu primo dava palmas e gritava: — Bravo! - àquela caterva de desmiolados que desejam a ruína do país!

 ROSINHA - Oh!

 MOREIRA - Do país, sim, que depositou na grande lavoura as suas esperanças. — E seu tio, o Doutor Lopes, um homem formado, que deve ter juízo, nem sequer repreendia o filho!

 ROSINHA - Modere-se, Senhor Moreira!

 MOREIRA (Esbravejando.) - A ruína do país ainda não é nada!... Mas o aniquilamento da riqueza particular? E o meu dinheiro?

 ROSINHA - Vejo que o senhor é um patriota...

 MOREIRA - Patriotismo é isto (Bate no ventre.) e isto. (Sinal de dinheiro.) Já não bastava a famosa lei de 28 de setembro, que me obriga a educar moleques que não são meus filhos, e que, se são meus filhos, não são meus escravos! Canalha! (Muito exaltado, e ameaçando, com os punhos cerrados, a porta da rua.) Canalhas!

 ROSINHA - Modere-se.

 MOREIRA - Tem razão; o melhor é não dar-lhes importância. (Põe-se de novo a passear pela sala, proferindo frases entrecortadas. Acalma-se pouco a pouco. Rosinha, durante este passeio, vai de novo à janela ver se chega o primo, e volta. Pausa.)

 ROSINHA - Com que então, o senhor tem cinqüenta escravos, hein?

 MOREIRA (Muito amável, pegando-lhe na mão.) - Cinqüenta escravos que serão seus no dia em que consentir que eu peça a seus pais esta mãozinha.

 ROSINHA (Admirada.) - Que a peça? Mas... para quem?

 MOREIRA - Para mim mesmo; pois para quem há de ser?

 ROSINHA (Retirando-lhe a mão, sorrindo.) - Neste caso, desconfio, meu caro senhor, que os seus escravos nunca serão meus.

 MOREIRA (Desabridamente.) - Veremos.

 ROSINHA - Hein?

 MOREIRA - Pois não é tão bom possuir cinqüenta escravos? Cinqüenta e um, porque eu serei o mais humilde, o mais cativo de todos os seus cativos.

 ROSINHA - Se julga que os meus pais disponham de mim com a mesma facilidade com que o senhor pode dispor de seus escravos...

 MOREIRA - Mas, Dona Rosinha...

 ROSINHA - O senhor bem sabe que meu coração já está dado, e vamos e venhamos - muito bem
dado.

 MOREIRA - Ora o seu coração! Sei que a namora o tal primo Ramiro; mas entre o namoro de um rapaz estabanado, que vai dar palmas a discursos de demagogos de meia tigela, e o amor calmo e refletido de um homem de senso prático, deputado provincial, proprietário agrícola e senhor de cinqüenta escravos, não me parece que haja hesitação possível!

 ROSINHA (À parte.) - É divertido!

 MOREIRA - E depois, nunca ouviu falar das desastrosas conseqüências de matrimônios entre parentes consangüíneos? Quer ter filhos idiotas?

 ROSINHA (Baixando os olhos.) - Senhor Moreira..

 MOREIRA - E eu... como não sou seu primo...

 ROSINHA - Não é meu primo... (Rindo-se.) mas podia ser meu avô...

 MOREIRA - Não exagere: eu tenho apenas cinqüenta anos.

 ROSINHA - Justamente o número de escravos. Nada: prefiro ter filhos idiotas a ter um marido velho. Demais, Deus é bom e misericordioso: não há de permitir que eu seja mãe de idiotas.

 MOREIRA - Se tiver filhos perfeitos, onde irá buscar meios para educá-los? Seu primo é um simples praticante de secretaria...

 ROSINHA - Amanuense, aliás.

 MOREIRA - Ou isso. Eu tenho talvez o dobro da idade dele, não nego; mas gozo de uma posição social definida. Tenho influência política... Não sou amanuense. Ser lavrador é tudo...

 ROSINHA (Atalhando.) -... neste país essencialmente agrícola, já sei... Vou prevenir mamãe de sua visita... (Vai a sair pela direita, segundo plano, e volta-se.) Diga-me cá, Senhor Moreira: seus pais eram
primos? Ah! Ah! Ah!... (Sai)

Cena IV

Moreira, só

[MOREIRA] - Ri-te, ri-te, minha sirigaita. Eu cá farei a cama a teu primo, que é o único obstáculo que se levanta entre nós. Era o que me faltava ver! Ser vencido por amanuense, eu, que sou senhor de trinta escravos...sim, porque, cá entre nós, só tenho trinta escravos. — Ao pai já falei... Mas o Gonçalo nada resolve por si... Felizmente a velha não morre de amores pelo tal priminho... Hei de falar-lhe hoje mesmo... (Depois de uma pequena pausa.) Ah, Major Gaudêncio! Major Gaudêncio! você é que é a causa destas declarações inoportunas de um amor que não sinto. — O caso é este; o Major Gaudêncio, o padrinho desta pequena, é um velho octogenário, que quebrou relações com o compadre por via das impertinências da comadre, e retirou-se para Maricá. Ora, aqui há coisa de mês e meio, o Major Gaudêncio disse-me em confiança que fizera o seu
testamento e, não tendo parentes, instituíra a afilhada herdeira universal de todos os seus bens, que hão de orçar por trinta ou quarenta contos. — Estou, por conseguinte, empregando meios e modos para apanhar esta sorte grande... O diabo é que isto de primos...

Cena V

Moreira, Rosinha, depois Gonçalo

ROSINHA (Da direita, segundo plano.) - Mamãe pede-lhe que faça o favor de ir ter com ela; espera-o na sala de jantar.

 MOREIRA - Lá vou. (Vai saindo pela direita, segundo plano, e para.) Reflita bem: com seu primo, a miséria dos amanuenses; comigo, uma bela fazenda de café, cinqüenta escravos, meia dúzia de apólices de conto de réis e, quando quiser, um título de baronesa. (Sai.)

 ROSINHA (Só.) - Nem todo o ouro da terra, nem todos os títulos do mundo me fazem esquecer do meu Ramiro. (Aplicando o ouvido.) Sobem a escada... Oh! desta vez não pode deixar de ser ele! (Vendo entrar o pai da esquerda, segundo plano, despeitada.) Ora!

 GONÇALO - Já chamei o médico. Onde está mamãe?

 ROSINHA - Lá dentro, na sala de jantar. (Gonçalo vai saindo.) Está lá também o Senhor Moreira.

 GONÇALO (Parando.) - Ah, está lá o Moreira? (Coçando a cabeça.) Este Moreira... (Resolutamente, depois de uma pequena pausa.) Olha, minha filha, tu sabes como é tua mãe... Se ela quiser, não queiras!

 ROSINHA - O quê?

 GONÇALO - Não queiras senão teu primo. Bate-lhe o pé! Se eu estiver do lado da tua mãe, não faças caso: bate-me o pé também a mim...

 ROSINHA - Mas...

 GONÇALO - Aí vem teu primo. Amem-se à vontade. (Sai.)

 ROSINHA - Ele! Finalmente!... (Corre ao encontro de Ramiro, que entra como um raio, pela esquerda, segundo plano, e conserva o chapéu na cabeça.)

Cena VI

Rosinha, Ramiro

RAMIRO - Prima!

 ROSINHA - Por que não vieste há mais tempo?

 RAMIRO - Hoje quase morri!

 ROSINHA - Credo!

 RAMIRO - De entusiasmo!

 ROSINHA - Respiro.

 RAMIRO - Que talentos! que idéias! que eloqüência! que mocidade!

 ROSINHA - Nunca te vi assim!

 RAMIRO - Pudera! Se eu nasci hoje! Até agora, tu, só tu enchias o meu coração; doravante tens uma rival: a liberdade! É que nunca me lembrei de que um milhão e meio de homens amargam neste país a sorte mais bárbara, o mais horrível destino! (Passando.) Oh! viva a liberdade, formosa deusa que ilumina o mundo!

 ROSINHA - Que entusiasmo! Não me faças tu ter ciúme da liberdade!

 RAMIRO - Onde está teu pai!

 ROSINHA - Está lá dentro, mas dize-me...

 RAMIRO - Onde está tua mãe?

 ROSINHA - Lá dentro. Mas... o que tens tu?

 RAMIRO - E o Liberato?

 ROSINHA - Está doente.

 RAMIRO - Vai chamar teu pai, vai chamar tua mãe, vai chamar o Liberato!

 ROSINHA - Mas se te acabo de dizer que o Liberato está doente?

 RAMIRO (Com piedade.) - Doente! doente!... (Outro tom.) Quero aqui reunido um conselho de família!

 ROSINHA - Um conselho de família! Mas o que será, meu Deus!

 RAMIRO - Vai, Rosinha, vai... Trago no coração um peso enorme! Meu pai não pode tardar aí. A sua presença também é indispensável.

 ROSINHA - Mas como estás hoje! Tira o chapéu, dá cá a bengala. (Ramiro obedece. Triste.) Nem sequer me perguntaste como passei.

 RAMIRO (Tomando-lhe as mãos.) - Perdoa, Rosinha, perdoa. Amo-te muito, muito, muito! És um anjo, e eu só me considerarei digno de ti, depois deste conselho de família! - vai chamar teus pais.

 ROSINHA - Vou já. (Sai pela direita, segundo plano, depois de ter posto a um canto a bengala e o chapéu do primo. Ramiro vai ao encontro de Lopes, que entra da esquerda, segundo plano.)

Cena VII

Ramiro, Doutor Lopes

 RAMIRO - Ah, meu pai! Chega em boa ocasião! Mas por que não veio comigo?

 LOPES - Tinha que ir à casa consultar a lei e arranjar os quinhentos mil réis. (Batendo na cabeça.) Cá está a lei (Batendo na algibeira do peito.) e cá está o dinheiro.

 RAMIRO - Compreendo: o pecúlio do escravo.

 LOPES - Já lhes falaste?

 RAMIRO - Ainda não. Convoquei-os a um conselho de família, aqui na sala.

 LOPES - Entusiasmou-me o teu entusiasmo, e a tua humanitária lembrança me encheu de orgulho de ser teu pai. És o homem que eu sonhava, quando te acalentava ao colo. No período abolicionista que atravessamos, ser escravagista já não é mau nem absurdo: é ser ridículo.

 RAMIRO (Olhando para a porta da direita, segundo plano.) Eles aí vem... Eles e... e o Moreira, se não me engano.

 LOPES - O Moreira? Má notícia.

Cena VIII

Ramiro, Lopes, Rosinha, Dona Perpétua, Moreira, Gonçalo

DONA PERPÉTUA (Com impertinente volubilidade, enquanto Rosinha toma a benção a Lopes, e Gonçalo e Moreira, cumprimentam Lopes e Ramiro.) - Viva lá, senhor meu sobrinho! Então Vossa Excelência não se quis dar ao trabalho de entrar? Se nos queria falar, por que não foi lá ter, senhor fidalgo? Quem tem a dor de dentes é que vai ao barbeiro. Tão longe era de cá lá como de lá cá! (Vendo o Doutor Lopes) Olé! também aí está, senhor meu mano? Viva! Como vai de saúde o senhor advogado? Há de fazer o favor de me explicar que farsa é esta de conselho de família, que a Rosinha não soube dizer. Estamos todos reunidos. Diga lá o que pretende, senhor meu sobrinho das dúzias!

 LOPES (À parte.) - É uma máquina Marinoni a falar!

 MOREIRA - Perdão, mas ao que parece, sou aqui demais.

 LOPES (Com desembaraço.) - Na realidade, uma vez que se trata de um conselho de família...

 RAMIRO (Idem) - E não pertencendo o senhor Moreira à família...

 LOPES (Idem) - Que nos conste...

 DONA PERPÉTUA - Não pertence à família, mas... quem sabe? O mundo dá tantas voltas...

 MOREIRA - Isso é verdade, minha senhora: as voltas que o mundo dá! (Indo buscar o seu chapéu à esquerda.)

 DONA PERPÉTUA - Fique. (Toma-lhe o chapéu, e coloca-o onde estava.) O Senhor Moreira é pessoa de nossa amizade; pode assistir ao conselho; pode mesmo tomar parte dele.

 MOREIRA - Nesse caso, peço licença para representar aqui o Major Gaudêncio, que é um quase parente.

 DONA PERPÉTUA - Bem lembrado: representa o compadre Gaudêncio. (Moreira senta-se.)

 LOPES - A falar no Major Gaudêncio. Aqui tem, mano Gonçalo, uma carta de Maricá... Entregou-ma o carteiro, no corredor, quando eu subia.

 DONA PERPÉTUA (Tomando a carta que ia ser entregue ao marido.) - Dê cá. Nesta casa sou eu que abro as cartas. Lerei logo mais, não tenho aqui meus óculos. (Fica com a carta fechada na mão.)

 MOREIRA (Passando perto de Rosinha.) - Este mundo dá tantas voltas!

 RAMIRO (Que observou.) - O que lhe diria ele?

 LOPES - Bem, sentemo-nos. (Colocando a poltrona no centro da cena.) Este é o ligar de honra; deve ficar aqui o dono da casa, para presidir o conselho.

 DONA PERPÉTUA (Sentando-se na poltrona.) O dono da casa sou eu.

 LOPES - Perdão, mana, mas a casa é de Gonçalo.

 DONA PERPÉTUA (Repoltreada.) - Por isso mesmo.

 LOPES - A... mana manda mais que o galo.

 DONA PERPÉTUA (Erguendo-se de um salto.) - Observo-lhe, senhor meu mano, que eu não sou galinha.

 LOPES - Bem! Não val’zangar-se. (Colocando duas cadeiras de cada lado da poltrona.) Senta-te aqui Ramiro. (Fá-lo sentar-se na primeira cadeira a começar da esquerda.) Rosinha, tu aqui. (Na segunda.) O Senhor Moreira ali. (Na quarta.) e eu aqui. (Na terceira. - Estão todos sentados na seguinte ordem, a começar da esquerda: Ramiro, Rosinha, Dona Perpétua, Lopes, Moreira.)

 GONÇALO (De pé.) - E eu?

 DONA PERPÉTUA - Fica onde quiseres. Enquanto deliberamos, vai lá dentro, pega numa agulha e cose. (Gonçalo procura com a vista uma cadeira, e, não a encontrando, vai debruçar-se na sacada ao fundo, ficando de frente para a cena.)

 DONA PERPÉTUA - Está aberto o conselho de família.

 RAMIRO (Erguendo-se.) - Tomo a palavra. Reuni-os para comunicar-lhes uma idéia grandiosa que há duas horas me anda dançando no cérebro.

 LOPES (A uma cara de Dona Perpétua.) - Não se assuste com essa coreografia, mana.

 RAMIRO - Nós possuímos um escravo.

 DONA PERPÉTUA - Um só, infelizmente. Meu pai, teu tio, morreu sem testamento.

 LOPES - Ab intestato.

 DONA PERPÉTUA - Deixou por única herança um escravo. (Lopes ergue-se. Ramiro senta-se.)

 LOPES - Não houve composição entre os herdeiros: o escravo não foi à praça... Como o negro, apesar de ser coisa, não era coisa que se dividisse, sim, porque afinal de contas, eu não podia ficar com a cabeça, ali a mana com uma perna, etc., resolvemos fazer o que em direito se chama uma partilha amigável. O escravo veio prestar serviços à mana, sem deixar, ipso facto de nos pertencer a todos. (Senta-se. Ramiro levanta-se.)

 RAMIRO - Muito bem. Este pobre Liberato, que assim se chama o escravo...

 LOPES - Paradoxo batismal;

 RAMIRO - Esse pobre Liberato há vinte anos que nos presta muito bons serviços.

 DONA PERPÉTUA (Erguendo-se.) Muito bons serviços? Ora, sou sua criada, senhor meu sobrinho! Muito bons serviços! Um desavergonhado! Um preguiçoso! Um beberrão!

 RAMIRO (Com violência.) - Desavergonhado! E quer que tenha vergonha um miserável escravo!

 LOPES (Idem.) - Preguiçoso! E quer que seja ativo quem nunca viu a recompensa do seu trabalho!

 RAMIRO (Idem.) - Beberrão! Nunca se constou que o Liberato bebesse! (Todos se erguem e falam ao mesmo tempo. Gonçalo desce ao proscênio. Confusão geral.)

 RAMIRO - É uma injustiça! Sugar-lhe o sangue durante vinte anos, e, ao cabo, tratá-lo desta sorte!
Isto brada aos céus!

 LOPES - Com isto já contava eu! E então quando a mana souber da idéia do Ramiro! O melhor é tratar já do depósito!

 DONA PERPÉTUA - É um preguiçoso, um beberrão, repito! Não presta para nada! Não me tem dado senão desgostos o maldito do negro!

 ROSINHA - Mas, meu Deus! o que é isto? Fale cada um por sua vez! Assim não se podem entender! Silêncio!

 MOREIRA - E então! Estamos na Assembléia Provincial? Entendam-se!

 GONÇALO - Isto parece mais a Praia do Peixe! Silêncio! Olhem os vizinhos!

 RAMIRO (Conseguindo falar mais alto que os outros, que se calam.) - Há dez anos, em 1870, penetrou um ladrão nesta casa. A senhora, minha tia, viu-o e deu um grito! O ladrão avançou, e matá-la-ia com um punhal, se o Liberato, interpondo-se, não o tivesse subjugado.

 LOPES - A mana deve a vida a esse desavergonhado, a esse beberrão!

 DONA PERPÉTUA - Grande coisa! Pois se o diabo tinha visto o ladrão, e se me ouvira gritar, não fez mais que o seu dever, que era salvar sua senhora!

 RAMIRO - Em que código está prescrito este dever?

 DONA PERPÉTUA - E sabe Deus se o negro não se achava ali com as mesmas intenções do ladrão...

 RAMIRO - Oh!...

 DONA PERPÉTUA - Os negros são capazes de tudo!

 LOPES - Você, mana, é um Clube da Lavoura... de saias...

 DONA PERPÉTUA - E você é um malcriado!

 RAMIRO - Bem, já vejo que perco o meu latim! A minha proposta está prejudicada.

 DONA PERPÉTUA - Mas o que nos queria propor este espirra-canivetes?

 RAMIRO - O quê? Ouça, mas não desmaie!

 LOPES - Tens razão. São necessárias certas precauções. Espera. (Batendo nas mãos.) Um... dois... e..

 RAMIRO - A liberdade do Liberato.

 DONA PERPÉTUA (Saltando.) - O quê?...

 RAMIRO e LOPES - A liberdade do Liberato.

 DONA PERPÉTUA - Isso nem resposta tem. Sabem que mais? Não sejam tolos, seus pedaços d’asnos! (Falam todos a um tempo. Confusão geral.)

 DONA PERPÉTUA - Era o que me faltava! Alforriar o Liberato! mas por que cargas d’água, seus idiotas?

 ROSINHA - Mas que palavras são essas, mamãe? Veja que está aqui o Senhor Moreira.

 RAMIRO e LOPES - O que queremos é justo, justíssimo! Um pobre diabo que trabalha de graça há vinte anos, e não nos custou um real!

 MOREIRA (Caindo na poltrona, às gargalhadas.) - Ah! Ah! Ah!... Só esta agora me faria rir! Ora estes abolicionistas que querem abolir o que não é seu! Ah! Ah! Ah!

 GONÇALO (À parte.) - Eles não arranjam nada como Dona Perpétua. Oh! com quem se vieram meter! Logo com ela! Boas!...

 LOPES (Dominando com sua voz as demais.) - Bem, agora falo eu! A mana quer receber em dinheiro a parte que lhe toca e a sua mulher... Oh! quero dizer: a seu marido? (Moreira ergue-se.)

 DONA PERPÉTUA (Encarando-o com desdém e encolhendo os ombros.) - Vou lá dentro buscar os meus óculos, para ler esta carta. (Sai pela direita, segundo plano, abrindo a carta. Rosinha vai para a janela.)

 LOPES (A Gonçalo.) - O que diz você, mano Gonçalo?

 GONÇALO (Coçando a cabeça.) - Eu?... Eu?.... Olhe, eu vou ver o Liberato... O médico ainda não veio e... (Sai pela esquerda, primeiro plano.)

 LOPES (A Ramiro, enquanto Moreira vai conversar com Rosinha, à janela.) - Esta casa é hoje a imagem perfeita do país em que vivemos. Cada instituição tem hoje aqui o seu emblema. Nós somos os filantropos: a utopia, o direito; aquele fazendeiro pedante, a lavoura, uma força; a mana e a Rosinha, a representação nacional: imposição, sofisma, sujeição; Gonçalo, o povo, indiferença e pusilanimidade.

 RAMIRO - E lá está o pobre Liberato, para simbolizar a escravatura.

 LOPES (Indo gritar à porta, por onde saiu Dona Perpétua.) - Ah! é assim que nos trata a mana? Pois é uma questão de capricho! Daqui a uma hora o Liberato está livre! (Descendo ao proscênio.) Toma!

 DONA PERPÉTUA (Voltando, com a carta aberta na mão.) - Hein? Como é lá isso? (A Moreira, que desce ao proscênio.) Nem me deram tempo de procurar os óculos!

 LOPES - É isso mesmo! Lei número 2040 de 28 de setembro de 1871. Artigo quarto, parágrafo primeiro. pecúlio do escravo. Quinhentos mil réis! Não lhe digo mais nada! (A Ramiro.) Vamos, meu filho, vamos buscar a guia ao juízo de órfãos, para fazer o depósito no Tesouro.

 RAMIRO - Vamos! (Tomam os chapéus, e saem, arrebatadamente, pela esquerda, segundo plano.)

 Cena IX

 Dona Perpétua, Moreira, Rosinha, à janela

 DONA PERPÉTUA (Atônita, de braços cruzados, depois de uma pausa.) - O que me diz a isto, Senhor Moreira?

 MOREIRA (Muito calmo.) - Digo, Senhora Dona Perpétua, que nunca vi coisa que me surpreendesse tanto! É o resultado das tais conferências abolicionistas! Só servem para semear a discórdia no seio das famílias! Mas que o Senhor Ramiro tenhas estas idéias, vá; até certo ponto merece desculpa... Mas seu irmão, minha senhora, o Senhor Doutor Lopes, um homem que me parecia tão bom, propor a alforria de um negro! Estou perplexo. Ter um negro, um só, e pretender libertá-lo! Eu cá, tenho sessenta e não liberto nem meio!

(Aproximando-se muito dela e baixinho.) E é ao Senhor Ramiro que vão dar a mão daquele anjo? (Aponta para Rosinha, que se tem conservado na janela.) Ao Senhor Ramiro?! Mas pelo amor de Deus, Senhora Dona Perpétua! o procedimento de seu sobrinho autoriza-me a reiterar o pedido que formalmente lhe fiz ainda há pouco, lá na sala de jantar.

 DONA PERPÉTUA (Muito alto.) - É sua a mão de minha filha, Senhor Moreira. (Rosinha volta-se subitamente e desce ao proscênio.) Não há mais que discutir. (Com autoridade, a Rosinha.) Está ouvindo, menina? O Senhor Moreira vai ser teu marido.

 ROSINHA (Naturalmente) - Isso não é comigo, mamãe. (Gesto de satisfação de Moreira.)

 DONA PERPÉTUA - Bem sei, é comigo.

 ROSINHA - Também não é com vossemecê.

 DONA PERPÉTUA - Queres dizer que é com teu pai. Neste casa só se faz o que eu quero.

 ROSINHA - Não duvido, mas eu não pretendo casar nesta casa e sim na igreja.

 DONA PERPÉTUA - Menina!

 MOREIRA (A Rosinha.) - Mas, minha senhora, se isto não é com a senhora, nem com seu pai, nem com sua mãe, com quem é então?

 ROSINHA - É com primo Ramiro.

 DONA PERPÉTUA e MOREIRA - Hein?

 ROSINHA - Certamente. Eu dei o meu coração a primo Ramiro. Para dá-lo a outro homem, é preciso que ele mo restitua.

 DONA PERPÉTUA - Pois tem o descoco de falar desse modo em presença de tua mãe?

 ROSINHA - Quero a minha liberdade. Parece-me que não sou o Liberato! (Vai de mau modo para a janela.)

 DONA PERPÉTUA - Não é o Liberato! Senhor Moreira, segure-me, senão, deito-me a perder.

 MOREIRA (Segurando-a.) - Minha rica senhora, o mundo está perdido. A liberdade anda agora como Salsaparrilha de Bristol.

 DONA PERPÉTUA - Uma menina educada no colégio da Baronesa de Geslin!

 MOREIRA (Segurando-a sempre.) - Já ouvi dizer que é o melhor colégio da corte!

 ROSINHA (Voltando da janela.) - Primo Ramiro aí vem, Senhor Moreira. Peça-lhe que ceda o meu coração. Ofereça luvas. (Vai encostar-se a um consolo da direita.)

Cena X

Dona Perpétua, Moreira, Rosinha, Doutor Lopes, Ramiro

LOPES (Entrando com Ramiro pela esquerda.) - Sai, num estado de tal excitação que me não lembrei de que hoje é domingo e o juízo de órfãos não funciona.

 MOREIRA (Sorrindo.) - Mesmos nos dias úteis, a estas horas já deve estar encerrada a audiência.

 RAMIRO - Vimos ainda uma vez propor-lhes uma conciliação. Recebam os quinhentos mil réis.

 DONA PERPÉTUA (Vai como responder, mas arrepende-se.) - Vou lá dentro buscar os meus óculos para ler esta carta. (Saindo.)

 LOPES - A mesma impertinência de ainda agora.

 MOREIRA - Não é preciso incomodar-se, Senhora Dona Perpétua: se me der licença, eu leio a carta.

 DONA PERPÉTUA - Por favor. (Passa-lhe a carta e Ramiro vai ter com Rosinha.)

 LOPES (Passeando pela sala, à parte.) - Nunca vi homem mais metediço.

 MOREIRA (Depois de ler a assinatura.) - A carta vem de Maricá, mas não é do Major Gaudêncio.

 DONA PERPÉTUA - De quem é então?

 MOREIRA - É do vigário da freguesia. (À parte.) O que será?

 DONA PERPÉTUA - Ah! o vigário é conhecido velho de meu marido. Leia.

 MOREIRA (Lendo.)- “Amigo e Senhor Gonçalo. Vou ter o pesar e ao mesmo tempo o prazer de dar a Vossa Senhoria duas notícias, uma boa e outra má.” (Aproximam-se todos com curiosidade. Grupo.) “Deus foi servido chamar à Sua presença o Senhor Major Gaudêncio”. E esta!

 DONA PERPÉTUA - Pois morreu o compadre?!

 TODOS (Consternados.) - Ah!

 MOREIRA (Continuando a leitura.) - “Abri hoje mesmo o seu testamento. Deixou tudo quanto possui à sua afilhada Dona Rosa, filha de Vossa Senhoria. Os escravos, porém, ficaram livres.”

 ROSINHA - E se o não ficassem, eu libertá-los-ia.

 RAMIRO - Muito bem, Rosinha!

 DONA PERPÉTUA - Era o que havíamos de ver! - Continue, Senhor Moreira.

 MOREIRA (Que tem lido para si o resto da carta, disfarça, fecha-a e entrega-a a Dona Perpétua.) - É só.

 LOPES (Que se acha ao lado do Moreira, e tem também lido.) - Perdão, mas o senhor não leu tudo.

(Toma a carta e abre-a.)

 MOREIRA - Ah! É verdade! Esquecia-me que tenho de jantar com um amigo político à Rua de São Clemente. Minhas senhoras e senhores, passem bem! (Toma o chapéu e sai.)

 ROSINHA - Na verdade, o Senhor Moreira era aqui demais: morreu meu padrinho, já não tinha a quem representar.

 LOPES (Que tem aberto a carta, lendo.) - “O testador impôs apenas uma condição: Dona Rosa só poderá aceitar a herança, casando com seu primo, o Senhor Ramiro Lopes.!

 RAMIRO e ROSINHA - Ah! (Corre um para o outro.)

 RAMIRO - Minha tia, agora não peço: exijo a liberdade do Liberato. A felicidade de sua filha está nas minhas mãos,

 Cena XI

 Dona Perpétua, Rosinha, Ramiro, Doutor Lopes e Gonçalo

GONÇALO (Entrando, fora de si.) - Sabem?... Sabem?... O Liberato...

 TODOS - O que tem?!

 GONÇALO - Morreu!

 TODOS - Morreu?!

 GONÇALO - De repente. Quando entrei no quarto, exalava o último suspiro.

 DONA PERPÉTUA (Desabridamente, depois da muda estupefação geral.) - E eu, que recusei os quinhentos mil réis!...

 LOPES - Com esse dinheiro far-lhe-emos um enterro decente. (A Ramiro.) Disseste que o Liberato simbolizava a escravatura; vês? Decididamente a morte é o único meio eficaz de emancipação.

[Cai o pano]

FIM

Adonias Filho (O Largo da Palma) 5. O Enforcado

 Embasamento histórico: Revolução dos Alfaiates (1798).

Foco narrativo - Narrativa em 3ª pessoa, mas enquadrada à ótica de um personagem: o ceguinho da Palma.

 Presente narrativo: “dia dos enforcados” – “quatro homens, um quase menino, todos mulatos”: A “execução, um espetáculo exemplar”.

Personagens - Ceguinho da Palma e Valentim.

Crítica sócio-histórica - “o governo e os graúdos”, a opressão, o terror, o medo, a insegurança.

Ambiente - Largo da Palma, Piedade.

Linguagem - Uso dos mesmos recursos expressivos que se fazem presentes nas outras novelas: metáforas, comparações, frases nominais, enumerações etc.

 Inversão (explorando o valor expressivo do adjetivo): Inúmeros os que passavam por ele, todos apressados, alguns como que corriam.” “E porque grande era o silêncio e ouviu o barulho dos grilhões de ferro, soube que se arrastavam os que caminhavam para a morte.”

Linguagem coloquial - Adequada ao personagem central (o ceguinho), encontramos expressões e palavras de linguagem coloquial. Palavras como: “birosca”, “porrete”, “estrebuchavam”. Expressões como “quero um gole da melhor” “engolir a aguardente” “boa pinga!” “é de arrebentar o coração” “exemplo de merda”; e o uso do pronome sujeito como complemento verbal: “Que a Senhora da Palma ajude eles”.

RESUMO

O ceguinho da Palma, como todos os chamavam, era um home que de tão magro e pequeno era quase um anão. Morava em umas estrebarias abandonadas junto com índios, negros libertos, ladrões e mendigos. Nas noites quentes dormia pela rua mesmo, mas quando chovia abrigava-se dentro da igreja. Estava sempre ali no Largo da Palma a pedir esmolas.

Diziam que ele havia ficado cego por ter falado mal da Santa da Palma e agora estava ali cumprindo castigo há anos, certo de que um dia a Santa o perdoaria e ele voltaria a enxergar. Talvez isso fosse mesmo verdade, já que ele se salvava de todas as pestes, tais como tifo e a varíola, que assombravam a Bahia às vezes, como se a Santa o quisesse vivo para pagar a penitência.

Em um certo dia, quando João-o-Manco, vigia da região, veio acordá-lo logo cedo, disse que aquele seria o dia em que iriam enforcar uns condenados no Campo da Piedade. A missa daquele dia tinha apenas umas dez pessoas, e ninguém negou esmola ao ceguinho como se todos temessem alguma coisa. O ceguinho da Palma sentia uma dor no coração, não de sua tristeza, mas de uma tristeza que nascia da cidade a esperar as mortes.

O ceguinho da Palma juntou-se ao povo que caminhava em direção ao Campo da Piedade. Parecia que naquele dia a Bahia havia parado para acompanhar os enforcamentos. Perto do Convento das Freiras, ele parou na birosca do Valentim e pediu uma bebida. Valentim era um filho de escrava liberta e pai desconhecido, que havia conseguido juntar dinheiro sabe-se lá como e comprado casa, terreno e montado essa bodega. Apesar das muitas especulações que haviam em torno dele, o certo é que Valentim tinha amigos na cidade de Salvador inteira.

Então os dois seguiram juntos rumo ao Campo da Piedade para acompanhar os enforcamentos. Para o cego a cidade parecia triste, mas para Valentim a Bahia nunca fora alegre, pois uma cidade que tem escravos não pode ser alegre. Aqueles enforcamentos serviriam para que o povo aprendesse a lição, pois D. Fernando José de Portugal e Castro, governador da Bahia, poderia perdoar ladrões e assassinos, mas não os inimigos do Rei.

Já se encontravam no Campo da Piedade, frente à grande forca de madeira da lei, grande o suficiente para que nem mesmo um anão deixasse de ver o espetáculo. E assim, os condenados foram chegando e sendo enforcados rapidamente um a um: Manuel foi o primeiro, depois Lucas, Luís e, por fim, João.

O ceguinho da Palma não sabe que fim levou Valentim perdido no meio da multidão. Foi retornando devagar, passo a passo em direção ao Largo da Palma, que reconheceu com os pés descalços ao pisar nas pedras ásperas e a grama macia. Sentiu o cheiro do incenso e imaginou que naquele momento já estariam a cortar as cabeças e mãos dos enforcados para deixar em exposição no Cruzeiro de São Francisco ou na Rua Direita do Palácio. Então o ceguinho ajoelhou-se com as mãos na porta da igreja e essa foi a única vez em toda a vida que agradeceu à Santa da Palma por ter ficado cego.

Fontes:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/o_largo_da_palma
http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/literatura/largo-palma-resumo-obra-adonias-filho-701985.shtml

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Amélia Luz (Crônica: Catatau)


Amélia é de Pirapetinga/MG
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(Para Paulo Leminski)

A noite era pequena para os seus sonhos eletrizantes. Caía a madrugada e ele perdido entre letras e metáforas trabalhava no seu ofício com servidão. Às vezes ele parecia calmo, outras ele parecia agitado e inquieto no seu processo de criação. Gênio, não se cansava nunca! Dedilhava com entusiasmo e arte o velho violão, companheiro fiel da sua solidão de poeta.

A palavra era a sua lâmina sangrando veias de onde escorriam mananciais de versos conferidos de polêmicas vitórias.

Sua existência não foi vã, embora incompreensível, vazou a lápide no canto imortal, cristal transparente, além da tumba...

- “Catatau”, saia debaixo do braço do autor, chegue mais perto, chegue... Permita-nos entendê-lo na sua complexidade léxica! 

Peleja criativo o poeta no seu verso universal buliçoso e alvissareiro na “Metamorfose” da vida que o fez assim, célebre escritor!

Sinaleiro de uma geração sem rumo seguiu trafegando nas veredas da contramão, ditador de um tempo, persistente que era nas suas certezas...

Vestimos hoje o colorido alegre das suas idéias (in)questionáveis.

Somos uns bandos de inocentes galopando irreverentes em suas trilhas, multiplicadores das suas verdades, sucedâneos vigilantes da sua memória. 

Sem gravatas e honrosas pompas lambuzamos nossas mãos na matéria prima que para nós deixou argila fresca com a qual construímos silêncios, vozes e manifestos transbordados em copos de essências puras.

Embebedamos a nossa consciência numa eterna alvorada, “Sintonia para pressa e presságio”.

Dos seus lábios não há mudez de morte. Há um grito poderoso a ecoar levando-nos a velar sempre pela preciosa obra literária que herdamos das suas mãos de mestre.

“Paulo, tu és pedra” Paulo,
filosofal, literária ou poética,
“sobre ti edificaremos”
nosso castelo de sabedoria... 

Fonte:
A Autora

Trova Ecológica 87 - Wagner Marques Lopes (Pedro Leopoldo/MG)


Artur da Távola (Eu Canto a Mulher Sofrida )


Sofrida é mulher por quem a vida passou machucando uma sensibilidade menina, feita de dádiva, confiança no próximo, esperança de melhorar o mundo.

Sofrida é a mulher que não viveu em vão, na delicia burguesa de ser objeto de sexo, admiração fácil ou mimo, preferindo o caminho penoso da independência, a procura honrada da própria dimensão pessoal, existencial, política.

Sofrida não é a pessoa derrotada ou apenas sofrente, fonte de dores e masoquismo sem fim: sofrida é a pessoa que tem energia e nervos para enfrentar na carne todas as disposições e contradições necessárias a viver e a conquistar o direito à vida, à liberdade, à solidão, ao afeto dos seus.

Sofrida é a pessoa que olha ao seu lado a miséria social e humana e não fica impassível ou indiferente, apenas porque se supõe livre de idêntico perigo.

Sofrida é a mulher de uma geração que assistiu à castração de seu sonho político, embora o veja crescendo, melhorando e se transformando pelo mundo a fora.

Sofrida é a mulher que viveu varias décadas em cada uma das três ultimas. É a pessoa que soube incorporar ao seu viver todas as dores necessárias à libertação: dos preconceitos próprios e alheios; dos atrasos ancestrais; da dor de viver adiante no tempo; das agressões retrógradas; das maldades profissionais; do medo da sua mensagem renovadora.

Sofrida é a mulher que teve restrições na sua carreira, ameaças, invasões do seu espaço vital por causa das suas idéias; por causa da sua capacidade de viver com intensidade tudo aquilo em que estava crendo do fundo de sua sincera convicção.

Sofrida é a mulher que assistiu à queda de muitos, ao cansaço de outros, à morte de terceiros, à dor, à tortura, ao vicio, à desistência à loucura, à resistência,à tenacidade, ou a convicção de todos os que se insurgiram contra qualquer forma de agressão humana, de opressão ou de injustiça.

Sofrida é a mulher que aí está, cada vez melhor porque de costas erguidas a despeito de tudo o que viu. Sofreu e passou.

Sofrida é a mulher que não desistiu de Ser; que não se alienou; que não fugiu da dor; que se embelezou com as rugas conseguidas; que se purificou com as impurezas que em si descobriu; que mergulhou com igual coragem na própria miséria e na própria grandeza, saindo melhor de ambas. 

Fonte:
Artur da Távola – Cada um no meu lugar, 1980

Monteiro Lobato (Um Homem de Consciência)


Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens.

Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro.

Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor.

Mas João Teodoro acompanhava com aperto no coração o deperecimento visível de sua Itaoca.

- Isto já foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos bem bons 

- Agora só um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando...

João Teodoro entrou a incubar a idéia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível.

- É isso, deliberou lá por dentro. Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada de nada, então arrumo a trouxa e boto-me fora daqui.

Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. 

Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. 

Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada...

Ser delegado numa cidadezinha daquelas é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado - e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!...

João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou no seu cavalo magro e partiu.

- Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?

- Vou-me embora, respondeu o retirante. Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.

- Mas como? Agora que você está delegado?

- Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado, eu não moro. Adeus.

E sumiu.

Olavo Bilac (A Montanha)

Soneto formatado em imagem obtida no facebook em Sonetos Célebres.