quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 11. O Gato

Sentei-me hoje ao pé de uma velhota embrulhada num xale. Logo notei, sem ter nada investigado, que ela dissimulava qualquer coisa por baixo da manta. -Como foi que cheguei a isso? não o sei ao certo. Um movimento de suas mãos ocultas a arrepanharem o xale sobre o regaço... o seu ar demasiado "inocente"... sei lá.

Eu podia ter-me ufanado da minha perspicácia. Mas não. Nem houve propriamente perspicácia alguma; ou, se houve, foi toda inconsciente: pouco se me dava daquela mulher, do seu xale, dos seus gestos. Ser Sherlock por vontade, por estudo, por aplicação determinada e metódica da inteligência, é um esporte razoável, embora não me seduza. Mas esta espécie de "suspicácia" inata e vulgar é aborrecível como todas as inclinações tolas e baixas.

Senti-me desgostoso de mim, e mal me consolei com a reflexão, que fiz em seguida, de que o dom não me era particular, nada tinha de diferencialmente pessoal, Pois que alheio a todopensamento, a toda vontade e a toda tendência definida. É qualidade humana, com raízes fundas na camada mais funda da nossa humanidade. Todos temos dentro de nós um bicho indiscreto e malévolo, em simbiose com o nosso Eu distinto e consciente, que às vezes o ignora ou faz por ignorá-lo, ou mesmo lhe dá largas.

Arrastado pela curiosidade, antes que acabasse de refletir, não me custou perceber que de fato a mulher escondia qualquer coisa, e que essa coisa era um gato. Um gato branco, boquinha rósea, olhos muito grandes estriados por um chuvisco de luz entre vegetações de esmeralda e ouro. Tinha um ar pouco amigável, meio enfezado, meio suplicante. -Percebi tudo isso num ápice, porque tenho a vista habituada a inspecionar gatos. É este o animal da minha predileção, o único semovente que me agrada sem reservas.

Gostaria também bastante dos cavalos de raça desde o possante Brabançon até o árabe naturalizado e aperfeiçoado nos haras de Inglaterra, por seu instinto da atitude pictórica ou escultural, se tais cavalos fossem do tamanho de gatos e se pudessem ter dentro de casa, pôr ao colo e deixar correr por cima das mesas. -O defeito desse animal é ser excessivamente grande. Isto o reduziu ao papel pouco distinto de mero acessório do homem, e tornou-o um prosaico objeto de utilidade ou de ostentação.

Dentre todos os caprichos da natureza, o mais estranho está nessa fantasia inutilíssima e zombeteira com que ela repartiu a força e a beleza pela escala das dimensões, no reino animal.

Os insetos, em regra, são feíssimos e fortíssimos; ao mesmo tempo, pequeninos e inaproveitáveis. Os cavalos e outros viventes grandes e belos são relativamente fracalhões. Tudo se resolveria bem se houvesse gafanhotos do tamanho de girafas, besouros do volume de vacas holandesas, pulgas das dimensões de bezerros; que motores formidáveis à disposição do homem! Entretanto, escusava que os animais nobres e formosos ocupassem tanto espaço e, sendo na verdade os bibelots da natureza, fossem condenados ao estábulo, à estrebaria, ao amanho da terra, à tração de veículos, ao trabalho bruto, à escravidão humilhante.

Essa a justiça da grande Mãe! E ainda se isso passasse exclusivamente com os bichos! Mas, não. Toda beleza é escrava. Mulher, -é o alvo e a presa da matilha esfaimada dos instintos. Vende-se nos mercados. Aprisiona-se. Condena-se a ser uma forma vazia, ornada de vermelhão, de pó-de-arroz e de jóias, com a noite dentro, como a cabaça mágica do bugre. Talento, gênio, bondade, amor, -tudo capturado, amarrado, explorado, torturado, agadanhado, sangrado, e finalmente reduzido a cacos, a cisco, a lama, a cinza, a pó, a pó que se espalha ao vento, entre o delírio e a confusão da macumba retumbante e frenética.

Ao cavalo, a certos respeitos, eu preferiria o elefante. Embora convivendo, em determinadas regiões, com a espécie humana, esse, contudo, guarda a dignidade de um escravo testarudo e resignado -obediente, fiel, mas inamoldável, sempre intransigentemente elefante. Não tem a elegância do nobre equus (elegância, aliás, já um pouco desacreditada, como a do estilo ciceroniano), mas lá tem a sua, que lhe é própria e, além de própria, intransferível, por mais que haja indivíduos humanos a quererem tomar-lha, na classe que compreende os grandes vendeiros, os desembargadores e os clérigos.

A elegância do elefante, revelam-na bem certos artistas. Há bibelots de louça, marfim ou bronze, em que ela se manifesta com a evidência da luz. Hierática, cheia, pesada, a massa liga-se às proporções e aos contornos numa sóbria unidade de concepção e de fantasia, e tudo é um só élan de inspiração enternecida e brincalhona. A gravidade unida ao peso, a paciência ao volume, a doçura à simplicidade, e um quê de majestoso, e um quê de ingênuo, e um quê de gaiato. -Apenas falta a essas composições o indefinível encanto da vida, esse encanto que resulta da nossa perversa inclinação para só gostar completamente das coisas que sofrem.

O certo é que, se eu pudesse possuir um elefante em casa, aí com umas dez ou doze polegadas de altura, e que me viesse comer à mão, e brincasse com o meu bichano, às correrias por baixo de mesas e cadeiras, isto me seria um verdadeiro enlevo na minha solidão povoada de imagens inertes. -O pior é que um dia... Tudo tem o seu fim neste mundo. Seria possível que o meu bibelot animado devolvesse antes de mim a sua porção de fluido vital ao laboratório do universo. O meu bichano havia de andar miando tristemente pelos cantos. A minha cozinheira talvez enxugaria lágrimas, às escondidas, ao ver-me acariciar o Romão, à hora das refeições, na ausência do outro.

Gatos que miam e cozinheiras lacrimejantes estragam uma casa. Desisto do elefantinho.

A verdade é que tenho um fraco pelos gatos, e fiquei a pensar no que a mulher do bonde faria daquele. Iria deitá-lo fora? Iria dá-lo a alguém que lhe destinasse o indigno emprego de caçador de ratos?

Eu estou convencido de que os gatos não querem mal ao gênero mus. Procuram agarrar os roedores por simples prazer e necessidade de brincar. E se preferem esses a quaisquer outros, é apenas porque o rato, de todos os bichos proporcionados ao felino doméstico, é, o que mais radicalmente difere deste.

O gato só pode compreender o rato como uma coisa sem afinidade alguma com ele, mais ou menos como nós encaramos os peixes, aos quais não concedemos nenhuma sobra de respeito, nem de simpatia, nem de piedade. São objetos de um outro mundo, criações de um outro plano, obras de uma outra série. A teoria que Malebranche sustentava com referência à sua triste cadela -cujos latidos de dor eram no seu entender simples passagem do ar pelo mecanismo da garganta -é por todo o mundo imemorialmente e inconscientemente aplicada aos peixes. O próprio dilúvio, condenação e aniquilamento de todos os viventes não embarcados, deixou à margem, isto é, dentro da água, esses interessantes autômatos.

O rato, roedor meticuloso, destruidor frio, amigo das sombras, dos recantos ocultos, das gretas e frinchas secretas, dos buracos dissimulados e recônditos, grande trabalhador sem horizonte, medroso, tenaz, esperto, estúpido, o rato é o antípoda psicológico e moral deste príncipe dos quadrúpedes, deste poeta de pelo, deste artista de garras, deste sonhador indolente e desdenhoso, que compreendeu a imensa utilidade de não fazer nada, amigo do sol, das noites de lua, dos jardins floridos, dos telhados altos e desertos.

Este, quando procura a penumbra e o aconchego, é no borralho familiar onde o fogo deixou um pouco da sua alma quente e errante, é entre cobertas moles e cariciosas, é no regaço quieto das pessoas pensativas, ternas ou tristes.

Acusam-no de ser desamoroso e ingrato. Julgamento mesquinho. O mal do gato está unicamente em não ser nem servil nem serviçal. O homem só compreende as afeições no seu tríplice aspecto de promessa, desejo ou saudade de serviços. (Triste de quem as concebeu algum dia como um culto e um puro gozo interior, esquecendo-se de que a vida que vale é a que se processa e corre da periferia do corpo para fora!)

O gato saboreia melhor do que os próprios donos a fina flor da humanidade, aquilo que há em nós de mais seleto, e despreza tranqüilamente o farelo. Por isso é que se apega mais à casa do que ao habitante, como alguém, de refinado olfato, que preferisse, numa paisagem, o ar embalsamado por um resto de perfume de flores ausentes.

O homem canta -Home, sweet home!, e vai para a pândega, a dissipação, o tráfico, as feiras dos negócios, dos vícios e das vaidades: o gato fica, adorando com recolhida finura o melhor produto do homem, o melhor retrato do homem melhor, a Casa, a Casa onde o fogo prisioneiro canta a ária encantatória das coisas perpétuas, verazes e substanciais, a mesa em torno da qual a família reparte o pão cotidiano em paz no meio da tormenta, as paredes de onde pendem alfaias e recordações, as portas em cuja tela de penumbra se enquadraram vultos amigos que nunca mais vieram empurrá-las, mas parece às vezes que vão chegar a todo momento, que andam ali perto, ali. -A Casa! A Casa do Homem, em tudo superior ao habitante que passa, ao hóspede mofino de uns dias fugazes; ilha de estabilidade, de composição, de recolhimento, de segurança e de amor, no meio da instabilidade, da precariedade, da confusão, do desperdício, da angústia e da loucura universal.

O homem faz a sua casa e foge dela; ainda lá dentro, foge em espírito; não chega a compreender nem a sentir que fez um mundo, um mundo maravilhoso, para o qual todo o mundo grande, desde tempos imemoriais, vem acumulando infinitos elementos; um pequeno mundo sensível e supra-sensível onde a soma dos elementos imateriais é incomparavelmente maior do que a dos outros, onde cada pedra ou tijolo, cada móvel, cada quadro, cada retrato, cada canto encerra uma saturação imensa de humanidade e de vida vivida e vem a ser mais rica em poder irradiante do que a mais carregada petchblenda...

Mas eu estava em que os gatos não têm aversão aos ratos. E não têm. O que há é que são antípodas uns dos outros. O bichano vê no rato um simples mecanismo, bom para esporte e brinquedo.

É verdade que das brincadeiras resulta muitas vezes o óbito da presa. Mas é natural que um gato não tenha idéias claras acerca dos sofrimentos e da morte.

Nós, que somos gente, ou tendemos a isso, apenas sentimos que há dor no mundo por
experiência própria e individual, e nada nos custa como acreditar que a experiência dos outros possa coincidir com a nossa.

Por isso o rancor é dez mil vezes mais comum do que a piedade; além de que a piedade é freqüentemente uma forma de rancor fatigado.

Quanto à morte, pode-se muita vez duvidar que seja motivo de mágoa para algum dos que ficam; ao passo que se tem a certeza de que é festa para os herdeiros, pão para os gato-pingados, rócio para várias indústrias, e espetáculo para os vizinhos do falecido.

Tive ganas de ver se a dona quereria vender-me o gatinho, mas deteve-me a dificuldade do transporte. Se eu o levasse na mão até à secretaria, rir-se-iam de mim pelo caminho e na repartição. Carregá-lo no bolso, impossível. Mandá-lo levar a casa, despesa. Eu neste ponto me pareço muito com toda a gente: sou comodista e econômico em matéria de prazeres do coração.

Desisti da compra e consolei-me com os poetas que amam damas imaginárias, sob o pretexto de que as de osso e carne são imperfeitas, mas na realidade por uma questão de economia: pus-me a pensar amorosamente num gato ideal. E desfiei de memória aquilo de Beaudelaire:

Viens, mon bon chat, sur mon coeur amoureux,
Retiens les griffes de ta patte.

Logo o enxerguei junto de mim, grande, perfeito, maravilhosamente gato, lambendo a mão com a língua rósea, o olhar tranqüilamente perdido no borborinho das ruas, e como que a repetir aquela sentença grave de Eurípedes: "Zeus aborrece os homens atarefados e os que se agitam demais".

O gato é uma das mais completas expressões de beleza dadas ao mundo. Completas? Digo mal. Nem nós esgotamos todo o seu potencial, nem o próprio acabou de se realizar. Como os colibris, as rosas e os periquitos, é uma obra-prima, feita pela Natureza no caprichoso intento de mostrar como aquela que faz montanhas e mares é também capaz de compor coisas de paciência, de fantasia graciosa e de gosto quintessencial.

Desconfio, porém, às vezes, que não foi a Natureza, mas o próprio Deus quem modelou esses objetos com os próprios dedos, para humilhar o homem e divertir os anjos. E que os anjos os deixaram cair à terra por descuido, ou para os destruir. -É talvez por isso que os periquitos têm a cabeça achatada, e aquele arzinho de devotos irônicos, e aquele ânimo desconfiado e áspero que faz com que se irritem e escancarem o bico recurvo quando os queremos acariciar. De certo, é pela mesma razão que os gatos conservam essa aura de humana nostalgia que os distingue, essas atitudes de insatisfação gemente e errabunda, esses enrodilhamentos imóveis e solitários, com os olhos estanhados, esfomeadamente arregalados para o ar, como na desesperada esperança de ver cair alguma traga migalha do paraíso perdido!

Fonte:
Domínio Público

A. A. de Assis (Trova na Imagem I)


Millôr Fernandes (O Cavalo e o Cavaleiro)

Pois ainda que pareça incrível, quando o homem chegou às portas do céu, São Pedro disse:

– “Não pode entrar!”

– “Como não posso entrar? Tenho folha corrida de bons antecedentes e tenho bons antecedentes mesmo.” 

– “Sei” – respondeu  Saint Pierre – “mas no céu ninguém entra sem cavalo.”

      E o homem, não podendo argumentar com Saint Peter, voltou. No caminho encontrou um velho amigo e perguntou aonde ele ia. Disse o amigo que ao céu. Ele lhe explicou então que, sem cavalo, “neca”. O amigo então sugeriu:

– “Olha aqui, Saint Pietro já está velho. Você fica de quatro, eu monto em você. Ele não percebe nada porque já está velho e míope e nós entramos no céu.”

E assim fizeram.
Na porta, o Santo olhou o nosso herói:

“Opa, você de novo? Ah, conseguiu cavalo, heim? Muito bem, amarre aí fora e pode entrar.”

MORAL: BURRO NÃO ENTRA NO CÉU.

Patrícia Engel Secco (Paradoxos)

A vida parecia cada vez mais complicada para Alberto. Não ruim, pelo contrário, mas cada vez mais difícil.

Há alguns anos, ele não tinha com o que se preocupar... Bastava se entregar aos estudos e às descobertas. Ah! Como ele estava seguro em meio aos seres invertebrados, aos redemoinhos, às constelações, aos tubos de ensaio e aos elementos químicos...

A cada dia que passava, Alberto compreendia mais e mais as razões e o funcionamento de tudo no mundo. Tudo.

A formação do Universo, estrelas anãs e gigantes brancas, buracos negros, novos planetas e até mesmo um novo anel em algum planeta conhecido... Nada passava despercebido para Alberto, que, sem ter muito tempo para atividades que não levassem a alguma conclusão científica, não participava dos jogos do recreio e não usava, de maneira nenhuma, a internet para o lazer e para o diletantismo, atitude que ele considerava simplesmente ultrajante!

Então por que dentre todos os jovens da escola justamente ele tinha sido o escolhido pela mais linda e encantadora menina do grupo?

A vida parecia, sim, mais estranha para Alberto, que, sem entender o porquê de seu comportamento, ficou quase duas horas tentando montar uma imagem real da atmosfera de Saturno, que, recentemente, descobriram ser colorida devido aos gases que a compõem. Uma imagem bela o suficiente para tocar o coração de qualquer menina!

Duas horas perdidas tentando montar uma foto enquanto o mundo científico estava em polvorosa com o registro de uma colisão de galáxias! E ele ainda assim tinha certeza de que o tempo perdido tinha valido a pena!

Alberto guardou com carinho a fotografia em uma pasta e seguiu o caminho da escola, pensando em uma deliciosa frase de seu ídolo maior, Einstein, que naquele momento lhe servia de consolo:

"A verdade científica é sempre um paradoxo se julgada pela experiência cotidiana, que se agarra à aparência efêmera das coisas".

De acordo com Einstein, são paradoxos a Terra se mover em torno do Sol e a água ser constituída por dois gases altamente inflamáveis...

Quem sabe paradoxos tão grandes como este que ele agora está vivenciando: saber que tudo o que lhe interessa na vida são as explicações científicas e que não existe explicação científica para o que mais lhe interessa neste momento, o amor.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Soares de Passos (Maria, a Ceifeira)

(IMITAÇÃO DE UHLAND)

«Bons-dias, Maria: da lida do prado
«Nem mesmo te afastam cuidados d'amor,
«Se ao fim de três dias mo deixas ceifado
«A mão do meu filho te quero propor.»

Promessa é do rico, soberbo rendeiro:
Maria, oh! quão ledo seu peito bateu!
Seus olhos brilharam, seu braço ligeiro
Mais forte nas messes a foice moveu.

Soou meio-dia: que ardente secura:
Já todos demandam a fonte, o pinhal;
Somente nos ares a abelha murmura:
Maria não pára, que é sua rival.

O sol esmorece, bateram trindades:
Debalde o vizinho lhe grita: bastou!
Zagais e ceifeiros se vão às herdades
Maria, coa foice, lidando ficou:

O orvalho desliza; desponta a seu turno
A estrela no espaço, na selva o cantor;
Maria, insensível ao bardo nocturno,
A foice incansável agita ao redor.

Os dias e as noites assim por tais modos,
Nutrida d'amores, mal sente passar,
Três dias findaram: oh! vinde ver todos
Maria ditosa d'esp'rança a chorar.

«Bons-dias, Maria; já tudo ceifado!
«Lidaste deveras: a paga hás-de ter.
«Enquanto a meu filho, foi graça o tratado;
«Quão loucos e simples o amor nos faz ser!»

Tal disse, e passava... no peito constante,
Ai pobre Maria, que transe cruel!
Teu corpo formoso tremeu vacilante,
E exausta caíste, ceifeira fiel.

Um ano a coitada, sozinha consigo,
Vivendo de frutos, vagou sem falar...
No prado mais verde cavai-lhe o jazigo:
Ceifeira como esta jamais heis de achar.

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Simone Pedersen (Ave Maria)

O meu sonho sempre foi ser freira. Chamar-me Maria. Mas nasci com asas, sem ser anjo. Posso me aproximar de Deus de outra forma. Consigo subir até Sua casa.

Antes de a noite acordar pela manhã, as irmãs libertam a respiração do convento pelas janelas: “Tum-tum”, “Tum-tum”, escuto o coração do convento pulsando em reza. Ah, se não fosse ave, seria freira! Como é encantador ouvir os passos delas flutuando pelo piso frio do convento, como se voassem, sem abrir as asas. Logo começam as xícaras a tocar piano e eu sinto o aroma de café.

O convento é um grande ninho onde moram anjos em forma humana. Gosto de sobrevoar os telhados e sentir o calor que irradia pelas suas janelas. O próprio sol visita as suas dependências e depois se esparrama pelos seus pátios e frestas. Fico tão emocionada, que arrulho de encantamento.

Às vezes, sinto saudade do cheiro verde das matas e voo até lá. Como é extasiante sentir odores tão diferentes! A maresia, que salga as narinas. O café quente do convento. Os perfumes de banho dos humanos que andam de um lado para outro, como formigas trabalhadeiras. Sou mesmo uma ave privilegiada, testemunho a história desse povo todos os dias. De um lado, as doces beatas; do outro, o salgado mar de botas molhadas. O vento traz  folhas da mata, que acariciam os rostos dos homens. O chafariz respinga lágrimas de felicidade desse solo abençoado.

Outro dia, muitas nuvens se aproximaram do convento. Extasiada, deitei-me sobre o telhado e permiti que as águas doces me banhassem de todas as minhas decepções. Eu aceitei quem eu era. Como havia pessoas humanas e animais, havia eu, ave. Tantos similares e tantos diferentes, convivendo com árvores e mares, chuvas e risadas. Únicos e realizados. Filhos da natureza. Pais de nossos sonhos.


Eu sempre quis ser freira. Mas nasci ave. Acho que a vida foi muito generosa comigo. Não sou uma pomba qualquer. Sou uma ave brasileira, alegre como uma cigana, viajando entre o mar, a mata e a cidade, em um tapete mágico movido a vento. Sou uma ave maravilhada. Sou uma ave dessa terra santa.

Fonte:
http://www.asesbp.com.br/escritores/escritores51b.html

Pe. Antônio Vieira (Sermão do Bom Ladrão)

O Sermão do Bom Ladrão, foi escrito em 1655, pelo Padre Antônio Vieira. Ele proferiu este sermão na Igreja da Misericórdia de Lisboa (Conceição Velha), perante D. João IV e sua corte. Lá também estavam os maiores dignitários do reino, juízes, ministros e conselheiros.

Observa-se que em num lance profético que mostra o seu profundo entendimento sobre os problemas do Brasil – ele ataca e critica aqueles que se valiam da máquina pública para enriquecer ilicitamente. Denuncia escândalos no governo, riquezas ilícitas, venalidades de gestões fraudulentas e, indignado, a desproporcionalidade das punições, com a exceção óbvia dos mandatários do século 17.

Vieira usou o púlpito como arauto das aspirações públicas, à guisa de uma imprensa ou de uma tribuna política. Embora estivesse na Igreja da Misericórdia, disse ser a Capela Real e não aquela Igreja o local que mais se ajustava a seu discurso, porque iria falar de assuntos pertinentes à sua Majestade e não à piedade.

O padre adverte aos reis quanto ao pecado da corrupção passiva/ativa, pela cumplicidade do silêncio permissivo. O sermão apresenta uma visão crítica sobre o comportamento imoral da nobreza, da época.

Eis alguns fragmentos:

Levarem os reis consigo ao paraíso os ladrões, não só não é companhia indecente, mas ação tão gloriosa e verdadeiramente real, que com ela coroou e provou o mesmo Cristo a verdade do seu reinado, tanto que admitiu na cruz o título de rei.
Mas o que vemos praticar em todos os reinos do mundo é, em vez de os reis levaram consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno.

Esta pequena introdução serviu para que Vieira manejasse os seus dardos contra aquele auditório repleto pela nobreza. E continuou enfático:

A salvação não pode entrar sem se perdoar o pecado, e o pecado não se perdoa sem se restituir o roubado: Non dimittitur peccatum nisi restituatur ablatum.

Suposta esta primeira verdade, certa e infalível; a segunda verdade é a restituição do alheio sob pena de salvação, não só obrigando aos súditos e particulares, senão também aos cetros e as coroas. Cuidam ou deveriam cuidar alguns príncipes, que assim como são superiores a todos, assim são senhores de tudo; e é engano. A lei da restituição é lei natural e lei divina. Enquanto lei natural obriga aos reis, porque a natureza fez iguais a todos; enquanto lei divina também os obriga; porque Deus, que os fez maiores que os outros, é maior que eles.

Estribado no pensamento filosófico de Santo Tomás de Aquino, de que os príncipes são obrigados a devolver o que tiram de seus súditos, sem ser para a preservação do bem da coletividade, lembrou Vieira terem sido punidos com o cativeiro dos assírios e dos babilônios os reinos de Israel e Judá, porquanto os seus príncipes, em vez de tomarem conta do povo como pastores roubavam o povo como lobos: "Principes ejus in medio illius, quasi lupi rapientes praedam” (Ezech. XXII, 27).

Invocando o pensamento de Santo Agostinho, mostrou a diferença entre os reinos, onde se comprovam opressões e injustiças, e as covas dos ladrões: naqueles os latrocínios ou as ladroeiras são enormes; nestes os covis dos ladrões representam-se por reinos pequenos, e comprova essa afirmação narrando de uma passagem histórica com Alexandre Magno:

Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício: porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco ponem latronem, et piratam quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o rei de Macedônia, ou de qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.
Quando li isto em Sêneca não me admirei tanto de que um estóico se atrevesse uma tal sentença em Roma, reinando nela Nero. O que mais me admirou e quase envergonhou, foi que os nosso oradores evangélicos em tempo de príncipes católicos e timoratos, ou para a emenda, ou para a cautela, não preguem a mesma doutrina.

Prosseguindo ainda nessas considerações, lança verrinas contra os poderosos:

O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera; os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento distingue muito bem São Basílio Magno. Não só são ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com mancha, já com forças roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo: os outros se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam.
Diógenes que tudo via com mais aguda vista que os outros homens viu que uma grande tropa de varas e ministros da justiça levava a enforcar uns ladrões e começou a bradar: lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos... Quantas vezes se viu em Roma a enforcar o ladrão por ter roubado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo, um cônsul, ou ditador por ter roubado uma província?... De Seronato disse com discreta contraposição Sidônio Apolinário: Nom cessat simul furta, vel punire, vel facere. Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo para roubar ele só! Declarando assim por palavras não minhas, senão de muito bons autores, quão honrados e autorizados sejam os ladrões de que falo, estes são os que disse, e digo levam consigo os reis ao inferno.

Novamente Vieira vai invocar as palavras de Santo Tomás de Aquino:

(...) aquele que tem obrigação de impedir que se furte, se o não impediu, fica obrigado a restituir o que se furtou. E até os príncipes que por sua culpa deixaram crescer os ladrões, são obrigados à restituição; porquanto as rendas com que os povos os servem e assistem são como estipêndios instituídos e consignados por eles, para que os príncipes os guardem e mantenham com justiça.

Imprimindo uma faceta satírica e anedótica, Vieira comenta o seguinte episódio:

Dom Fulano (diz a piedade bem intencionada) é um fidalgo pobre, dê-se-lhe um governo. E quantas impiedades, ou advertidas ou não, se contêm nesta piedade? Se é pobre, dê-lhe uma esmola honesta com o nome de tença, e tenha com que viver. Mas, porque é pobre, um governo, para que vá desempobrecer à custa dos que governar; e para que vá fazer muitos pobres à conta de tornar muito rico?!

Numa outra parte, ao comentar as investidas portuguesas na Índia, fala sobre a informação de São Francisco Xavier a D. João III, quando aquele santo denunciava que naquela região, bem assim em outras, os responsáveis pela administração pública conjugavam o verbo rapio em dos os modos.

Escreveu Vieira:

O que eu posso acrescentar pela experiência que tenho é que não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas também da parte de aquém, se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo rapio, não falando em outros novos e esquisitos, que não conhecem Donato nem Despautério (a). Tanto que lá chegam começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos, é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o misto e mero império, todo ele aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam; e para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando as coisas desejadas aos donos delas por cortesia, sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem, quando menos, meeiros na ganância. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinito, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes, em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados e as terceiras quantas para isso têm indústria e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque o presente (que é o seu tempo) colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e o futuro, de pretérito desenterram crimes, de que vendem perdões e dívidas esquecidas, de que as pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas, e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos. Finalmente nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plusquam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtavam, furtaram, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar, para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados e ricos: e elas ficam roubadas e consumidas... Assim se tiram da Índia quinhentos mil cruzados, da Angola, duzentos, do Brasil, trezentos, e até do pobre Maranhão, mais do que vale todo ele.

Com coragem e convicção, aponta o seu verbo ao rei de corpo presente:

Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se laterones. E depois, corrompendo-se este vocábulo, como afirma Marco Varro, chamaram-se latrones. E que seria se assim como se corrompeu o vocábulo, se corrompessem também os que o mesmo vocábulo significa? O que só digo e sei, por teologia certa, é que em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos príncipes de Jerusalém: Principes tui socii rurum: os teus príncipes são companheiros dos ladrões. E por que? São companheiros dos ladrões, porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões, porque os consentem; são companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e poderes; são companheiros dos ladrões, porque talvez os defendem; e são finalmente seus companheiros, porque os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo.
Onde encontrar, a não ser num Santo Ambrósio, num São Bernardino de Sena ou num Savanarola, outra voz que terrivelmente assim bradasse perante el-rei conivente de algum modo com as malversações de seus súditos, registrando o pregador, noutro sermão, não se haver sem motivo observado que enquanto os magnetes atraem o ferro, os magnatas atraem o ouro?
O que costumam furtar nestes ofícios e governos os ladrões de que falamos ou é a fazenda real ou a dos particulares; e uma e outra têm obrigação de restituir depois de roubada, não só os ladrões que a roubaram, senão também os reis; ou seja, porque dissimularam e consentiram os furtos, quando se faziam, ou somente (que isso basta) por serem sabedores deles depois de feitos. E aqui se deve advertir uma notável diferença (em que se não repara) entre a fazenda dos reis a e dos particulares. Os particulares, se lhes roubam a sua fazenda, não só não são obrigados a restituição, antes terão nisso grande merecimento se o levarem com paciência; e podem perdoar o furto a quem os roubou. Os reis são de muito pior condição nesta parte: porque, depois de roubados têm eles obrigação de restituir a própria fazenda roubada, nem a podem demitir, ou perdoar aos que roubaram. A razão da diferença é, porque a fazenda do particular é sua; a do rei não é sua, senão da república. E assim como o depositário, ou tutor, não pode deixar alienar a fazenda que lhe está encomendada e teria obrigação de a restituir, assim tem a mesma obrigação o rei que é tutor e como depositário dos bens e erário da república; a qual seria obrigado a gravar com novos tributos, se deixasse alienar ou perder as suas rendas ordinárias.
Rei dos reis e Senhor dos senhores, que morreste entre dois ladrões para pagar o furto do primeiro ladrão; e o primeiro a quem prometeste o paraíso foi outro ladrão; para que os ladrões e os reis se salvem, ensinai com vosso exemplo e inspirai com vossa graça a todos os reis, que não elegendo, nem dissimulando, nem consentindo, nem aumentando ladrões, de tal maneira impeçam os furtos futuros e façam restituir os passados, que em lugar de os ladrões os levarem consigo, como levam, ao inferno, levem eles consigo os ladrões ao paraíso, como vós fizestes hoje: Hodie mecum eris in paradiso.

Neste sermão nos vemos diante de um diagnóstico que parece mesmo atemporal, desnudando os desmandos e a mistura dos interesses públicos e privados que infestam a administração pública brasileira desde o início da colonização, contexto em que os Sermões são escritos, até os dias que correm. Note:

O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera. (...) os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. - Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam.

Ele acusa os colonos e os governantes do Brasil de roubarem escandalosamente:

Grande lástima será naquele dia, senhores, ver como os ladrões levam consigo muitos reis ao Inferno: e para esta sorte se troque em uns e outros, vejamos agora como os mesmos reis, se quiserem, podem levar consigo os ladrões ao Paraíso. Parecerá a alguém, pelo que fica dito, que será cousa muito dificultosa, e que se não pode conseguir sem grandes despesas; mas eu vos afirmo e mostrarei brevemente que é cousa muito fácil e que sem nenhuma despesa de sua fazenda, antes com muitos aumentos dela, o podem fazer os reis. E de que modo? Com uma palavra; mas a palavra de rei. Mandando que os mesmos ladrões, os quais não costumam restituir, restituam efetivamente tudo o que roubaram.

Vieira foi um autor barroco e pode-se encontrar em suas obra as características desse movimento, tais como o uso de contínuas antíteses, comparações, hipérboles etc. Seu texto é essencialmente persuasivo e, enquanto tal, os jogos de palavras obedecem a uma finalidade prática, isto é, a retórica em função de seu discurso crítico. Vieira colocou-se contra o uso da palavra num sentido apenas lúdico, para provocar prazer estético.

Percebe-se que o autor preocupava-se com temas de caráter social e de dimensão política. Neste sermão, ele aproxima e compara a figura de Alexandre Magno, grande conquistador do mundo antigo, com a do pirata saqueador, evidenciando assim sua crítica aos valores morais e sua visão ideológica.

A persuasão em Vieira alcança o raio da alegoria — de resto, um recurso típico da tradição medieval — como reforço à grandeza dos padrões sociais e éticos. Consubstanciada pelo modelo do pregador, alimenta-se também da ironia, da sátira, do ataque (sutil ou explícito) contra vícios morais e administrativos dos representantes do rei na Colônia do Brasil, como citado. O suporte alegórico do bom ladrão é a demonstração pouco corrente, escolhida pelo pregador para testemunhar melhor dos erros de sua época, dos crimes de superiores e nobres e de colonizadores reles, distantes da justiça reinol e divina.

Em seus sermões Vieira mostrava certa independência nas palavras, atitude completamente contrária ao dogma fundamental da Companhia de Jesus, que era o da obediência cega às ordens superiores. Ele trabalhava por conta própria, e pensava mesmo em introduzir reformas na Companhia, coisa que os mais antigos viam com muito maus olhos. Daí resultou que seus superiores lhe ordenassem positivamente que partisse para as missões do Maranhão.

Fonte:
Passeiweb

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 10. Rufina (3)

Hoje de manhã, ao tomar o bonde, lobriguei lá dentro um vulto de mulher e, com a instantaneidade do raio, enxerguei a imagem de Rufina. Trêmulo, sentei-me, e verifiquei: o vulto era uma velha gorda e tostada. Fechei os olhos, procurei esquecer-me da velha e de Rufina ejusdem farínae, afinal de contas! -e comecei a resolver o seguinte problema: qual seria a renda bruta da companhia, supondo-se que tinha em tráfego quatrocentos bondes, cada bonde transportando em média vinte e cinco passageiros? A questão me interessava, porque estou tratando de redigir uma reclamação para a imprensa contra certas irregularidades do serviço.

-Vejamos. 25 x 200 = vinte por duzentos, que são 4.000, mais... Ru-fi-na... cinco por duzentos, que são mil... Erre, um = Ru.... Quatro mil mais mil, cinco mil; cinco mil que? Ora, o diabo da velha! Cinco mil contos... -Desisti das contas. A matemática é inconciliável com o coração. É inconciliável com a vida.

Como é que Newton pôde ser pai de família, ter uma esposa, ter filhos, ter afetos, preocupações, desejos, e calcular continuamente? Eu, quando alguma vespa me pica, faço até as máquinas de cálculo errar uma adição. Tudo aquilo em que ponho as mãos desconcerta, extravaga. Até o Melquíades, meu servente, que em matéria de calma e paciência e um urso de bazar, fica esparavonado, entorta, arrebita e disparata!

Preciso esforçar-me para me corrigir. Não tanto, porém, que me torne apto a maquinar friamente com a cabeça no meio das tormentas e das delícias da vida. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Eu prefiro sonhar com Rufina a cavar uma celebridade em cálculo diferencial.

Fonte:
Domínio Público

Praline Gay-Para (Conto da Etiópia: Quem é o Rei?)

Esta é a história de um camponês que de tão pobre estava só pele e osso.

Um dia, sentado à porta de sua velha cabana, viu chegar um caçador montado num cavalo.

O caçador parou, aApeou do cavalo, cumprimentou-o e disse:

— Perdi-me na floresta e estou procurando o caminho que leva à cidade de Gondar.

— Gondar fica a dois dias de viagem — respondeu o camponês. -— O sol já se pôs, seria mais prudente passar a noite aqui e prosseguir amanhã de manhã.

O camponês tinha uma galinha tão magricela quanto ele. Matou-a e a cozinhou para oferecer um bom jantar ao caçador. Ofereceu-lhe ainda sua cama.

De manhãzinha, quando o homem despertou, o camponês explicou a ele como chegar a Gondar:

— Você deve contornar a floresta, evitar as pedreiras, afastar-se dos precipícios, não se perder, seguir a estrada, tomar um atalho...

O caçador ficou preocupado:

— Pressinto que vou me perder novamente. Não conheço a região. Você não poderia me acompanhar até Gondar? É só montar na garupa.

— Está bem — disse o camponês —, mas sob uma condição: quando lá chegarmos, você poderia me apresentar ao rei, que eu nunca vi em toda minha vida?

— Você o verá, prometo a você.

Nosso homem fechou a porta da casa, montou na garupa e lá se foram pela estrada.

Viajaram muito, por muito tempo.

Quando avistaram Gondar, o camponês perguntou ao caçador:

— Como se faz para reconhecer o rei?

— Não se preocupe. Lembre-se apenas disto: enquanto todos fazem a mesma coisa ao mesmo tempo, o rei é o único diferente.

Observe bem as pessoas ao redor e assim o reconhecerá.

Uma hora mais tarde, os dois homens chegaram às imediações do palácio.

Uma multidão se apinhava diante dos portões.

Todos falavam e comentavam as notícias do reino.

Quando viram os dois homens a cavalo, afastaram-se do portão, e se ajoelharam.

O camponês não entendeu nada.

Todos se ajoelharam, menos ele e o caçador, que estavam a cavalo.

— Onde pode estar o rei? — perguntou o Camponês. — Não o vejo.

— Vamos entrar no palácio e lá você o verá — assegurou o caçador.

E os dois homens entraram a cavalo no palácio.

O camponês estava preocupado. Ao longe, viu uma fileira de guardas montados, que os esperavam na entrada.

Os guardas desceram dos cavalos. Ficaram todos a pé. Apenas ele e o caçador continuaram a cavalo.

O camponês irritou-se:

— Você me disse: quando todo mundo fizer a mesma coisa... Onde está o rei?

— Paciência. Você vai reconhecê-lo, lembre-se apenas disto: enquanto todos fizerem a mesma coisa ao mesmo tempo, o rei fará diferente.

O camponês ficou mais perplexo do que nunca.

— Quem pode ser o rei? Ainda não consigo vê-lo.

Os dois homens apearam também. Entraram numa sala imensa do palácio. Todos os nobres, cortesãos e conselheiros tiraram o chapéu
quando os viram. Ficaram todos de cabeça descoberta, exceto o caçador e o camponês, que não sabia por que usavam chapéu ali dentro do palácio.

O camponês se aproximou do caçador e murmurou:

— Não estou vendo o rei.

— Não seja impaciente. Quando todo mundo faz a mesma coisa ao mesmo tempo, o rei é diferente. Logo você acabará por reconhecê-lo. Venha se sentar.

Os dois homens se instalaram num sofá confortável. Todos ficaram de pé em volta deles.

O camponês não parava quieto.

Olhou ao redor, aproximou-se do caçador e perguntou:

— Quem é o rei? É você ou sou eu?

O caçador soltou uma gargalhada e disse:

— Você tem razão, eu sou o rei. Mas você também é um rei, pois soube acolher um estranho.

Como esta história, a amizade deles durou muito tempo, uma amizade real.

E eis aqui o final.

Nota:
Gondar: antiga capital do império da Etiópia, situada a nordeste do lago Tana. Foi ocupada pelos italianos entre meados de 1930 até 1941, ano em que os britânicos a bombardearam. A cidade abriga ruínas do período imperial, bem como vestígios de arquitetura fascista.

Fonte:
Extraído de O príncipe corajoso e outras histórias da Etiópia, Praline Gay-Para, São Paulo, Comboio de corda, 2007.

Selene de Medeiros (Poesias Avulsas)

DA AGONIA

Sim, tudo morre em mim violáceo o pensamento
Tudo que fui se esvai. o que andei se anuvia
Sol de âmbar, trigo e noite, ave e sombra, errasia
imagem do que amei, nudez e alumbramento,

e em vão me apego à vida e a permanência tento.
Oh!, regatos de ouvir, intangível poesia,
sonhos em migração, lampejo de alegria,
para tão curto andar tão fundo desalento.

Esperança, onde estás? Eu mesma não socorro
esta ânsia de ir-me e vai comigo o tempo e morro
- Tão triste o desprender dos dias que eram teus!

Só vivo o amor e sempre e mais dilacerante . . .
Que silêncio, Deus meu, neste undécimo instante,
que enorme solidão neste chorar de adeus!

DA SOLIDÃO

Ninguém para esperar. Ninguém! abrir a porta
e encontrar o silêncio, o frio, a sombra espessa . . .
Ausente a voz que indaga, o gesto que conforta,
o peito onde pousar ao menos a crença.

Ninguém para esperar, voltar quando amanheça
ou não voltar talvez. E nada, nada importa!
Chorar rebelde e só . . . ninguém que se enterneça
Apenas o ermo, a sombra, o frio, e a casa morta . . .

E entanto ansiar se alguém . . . e o silêncio tão denso
que só na treva pode o desepero imenso
Como sinistro oceano em vadas e entornar . . .

E acabar esta noite, a noite íntima e pura,
com tanta entrega, tanto amor, tanta ternura,
chorando sobre a mesa escondida de um bar . . .

FOLHAS SECAS

Folhas secas . . . Pisai-as , namorados . . .
Ei-las em roda alígera, veloz,
quando estendeis os lábios despertados
para o primeiro beijo dado a sós.

Estais num bosque, em tudo a doce voz
do amor nos ramos altos e abraçados.
E as folhas vêm qual se velhice atroz
as tangesse à quietude dos relvados.

Também elas na seiva e albor de outrora
sentiram beijos quentes noite afora
responer-lhes às ânsias vegetais . . .

Hoje gostam de ouvir beijos de amantes,
e vêm tombar macias, hesitantes,
atapetando o solo que pisais . . .

Fonte:
http://cantoepalavras.blogspot.com.br/2009/06/072-os-eternos-momentos-de-poetas-e.html

Lourenço do Rosário (Conto Moçambicano: O Coelho e o Cágado)

O coelho e o cágado eram amigos.

Certo dia, combinaram semear, juntos, feijão jugo.

Quando o feijão ficou maduro, colheram-no e foram cozê-lo.

Enquanto preparavam a refeição, o coelho disse: "Amigo, lembrei-me agora que tinha de ir dar um recado a uma pessoa. Não me demoro, volto já". O cágado prometeu que esperaria por ele.

Tendo-se afastado uns metros, o coelho começou a atirar pedras contra o companheiro. Este, vendo-se numa situação inesperada em que corria o perigo de apanhar uma pedrada, fugiu e deixou abandonada a panela do feijão. Então, o coelho aproximou-se e comeu tudo sozinho. Depois espalhou as cascas à volta. Quando o cágado regressou, passado o medo, o coelho mostrou-se aborrecido. O cágado pediu desculpas e disse: "Se calhar foram os macacos". "Se calhar", respondeu o coelho.

Nos dias seguintes, o coelho repetiu a cena e foi comendo sozinho o feijão.

Um dia, o cágado que já havia muito que andava desconfiado daquelas saídas do coelho à mesma hora, fingiu que fugia quando o coelho começou a atirar-lhe pedras. Escondeu-se por detrás de uns arbustos e observou atônito quem era afinal o autor das pedradas. E resolveu por sua vez pregar-lhe uma partida. Disse o cágado: "Olha amigo, desde que colhemos o feijão, não nos lembrámos dos espíritos dos nossos antepassados. Eles habitam este riacho. Se calhar até são eles quem nos anda a atirar pedradas. Atiremos, pois, algum feijão para o rio". O coelho, que respeitava as crenças e ficava cheio de medo quando se falava em espíritos, concordou com o cágado e atiraram todo o feijão à água. O cágado, que tem possibilidades de viver na água e fora dela, entrou para dentro do rio e comeu o feijão todo. A cena repetiu-se nos dias seguintes.

O coelho não estava a gostar da situação. Desconfiado, enfiou um dos feijões num anzol. Quando o cágado mergulhou para comer o feijão, comeu o que tinha o anzol e o coelho pescou-o.

A partir daí, a amizade entre ambos terminou.
===============
Outra versão do quarto parágrafo:

"Tendo-se afastado uns metros, o coelho despiu a pele e ficou completamente pelado. Voltou para junto do cágado e disse: "Compadre, olha o animal pelado". O cágado ficou apavorado e fugiu, deixando a panela do feijão. O animal pelado, que era o coelho, aproximou-se e comeu o feijão todo. Depois espalhou as cascas. Quando o cágado regressou, o coelho mostrou-se indignado, pois já tinha vestido a sua pele. O cágado disse: "Se tu estivesses, fugias como eu". O coelho respondeu: "Talvez".

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.

Machado de Assis (Carlos Jansen: Contos Seletos das Mil e Uma Noites)

O SR. CARLOS JANSEN tomou a si dar à mocidade brasileira uma escolha daqueles famosos contos árabes das Mil e Uma Noites, adotando o plano do educacionista alemão Franz Hoffmann. Esta escolha é conveniente; a mocidade terá assim uma amostra interessante e apurada das fantasias tascas daquele livro, alguns dos seus melhores contos, que estão aqui, não como nas noites de Sheherazade, ligados por uma fábula própria do Oriente, mas em forma de um repositório de cousas alegres e sãs.

Para os nossos jovens patrícios creio que é isto novidade completa. Outrora conhecia-se, entre nós, esse maravilhoso livro, tão peculiar e variado, tão cintilante de pedrarias, de olhos belos, tão opulentos de sequins, tão povoado de vizires e sultanas, de idéias morais e lições graciosas. Era popular; e, conquanto não se lesse então muito, liam-se e reliam-se as Mil e Uma Noites. A outra geração tinha, é verdade, a boa fé precisa, uma certa ingenuidade, não para crer tudo, porque a mesma princesa narradora avisava a gente das suas invenções, mas para achar nestas um recreio, um gozo, um embevecimento, que ia de par com as lágrimas, que então arrancavam algumas obras romanescas, hoje insípidas. E nisto se mostra o valor das Mil e Uma Noites: porque os anos passaram, o gosto mudou, poderá voltar e perder-se outra vez, como é próprio das correntes públicas, mas o mérito do livro é o mesmo. Essa galeria de contos, que Macaulay citava algumas vezes, com prazer, é ainda interessante e bela, ao passo que outras histórias do Ocidente, que encantavam a geração passada, com ela desapareceram.

Os melhores daqueles, ou alguns dos melhores, estão encerrados, estão encerados neste livro do Sr. Carlos Jansen. As figuras de Sindbad, Ali-Babá, Harum al Raschid, o Aladim da lâmpada misteriosa, passam aqui, ao fundo azul do Oriente, a que a linha curva do camelo e a fachada árabe dos palácios dão o tom pitoresco e mágico daqueles outros contos de fadas da nossa infância. Algumas dessas figuras andam até vulgarizadas em peças mágicas de teatro, pois aconteceu às Mil e Uma Noites o que se deu com muitas outras invenções: foram exploradas e saqueadas para a cena. Era inevitável, como por outro lado era inevitável que os compositores pegassem das criações mais pessoais e sublimes dos poetas para amoldá-las à sua inspiração, que é por certo fecunda, elevada e grande, mas não deixa de ser parasita. Nem Shakespeare escapou, o divino Shakespeare, como se Macbeth precisasse do comentário de nenhuma outra arte, ou fosse em presa fácil traduzir musicalmente a alma de Hamlet. Não obstante, a vulgarização pela mágica de algumas daquelas figuras árabes, elas aí estão com o cunho primitivo, esse que dá o silêncio do livro, ajudado da imaginação do leitor.

Este, se ao cabo de poucas páginas vier a espantar-se de que o Sr. Carlos Jansen, brasileiro de adoção, seja alemão de nascimento, e escreva de um modo tão correntio a nossa língua, não provará outra cousa mais do que negligência da sua parte. A imprensa tem recebido muitas confidências literárias do Sr. Carlos Jansen; a Revista Brasileira (para citar somente esta minha saudade) tem nas sua páginas um romance do nosso autor. E conhecer e escrever uma língua, como a nossa, não é tarefa de pouca monta, ainda para um homem de talento e aplicação. O Sr. Carlos Jansen maneja-a com muita precisão e facilidade, e dispõe de um vocabulário numeroso. Esse livro é uma prova disso, embora a crítica lhe possa notar uma ou outra locução substituível, uma ou outra frase melhorável.  São minúcias que não diminuem o valor do todo.

Esquecia-me que o livro é para adolescentes, e que estes pedem-lhe, antes de tudo, interesse e novidades. Digo-lhes que os acharão aqui. Um descendente de teutões contalhes pela língua de Alencar e Garrett umas histórias mouriscas: com aquele operário, esse instrumento e esta matéria, dá-lhes o Sr. Laemmert, velho editor incansável, um brinquedo graciosíssimo, com que podem entreter algumas horas dos seus anos em flor. Sobra-lhes para isso a ingenuidade necessária; e a ingenuidade não é mais do que a primeira porção do ungüento misterioso, cuja história é contada nestas mesmas páginas. Esfregado na pálpebra esquerda de Abdallah, deu-lhe o espetáculo de todas as riquezas da terra; mas o pobre - diabo era ambicioso, e, para possuir o que via, pediu ao derviche que lhe ungisse também a pálpebra direita, com o que cegou de todo. Creio que esta outra porção do ungüento é a experiência.

Depressa, moços, enquanto o derviche não unge a outra pálpebra!

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Soares de Passos (Agar)

De Bersabé nos areais ardentes
O desmaiado sol ia esconder-se,
E Agar, a expulsa Agar, gemendo aflita,
Unia ao peito o moribundo filho.
O vaso d'água que lhe dera o esposo
Esgotara-se em breve, e no deserto
Com seu pobre Ismael não descobrira,
Desde o romper do dia, a ansiada fonte.
O dia declinava: eis que o infante,
Que pela mão a acompanhava exausto,
Ardendo em sede lhe sucumbe às plantas.
Ela vê-o cair, ela estremece,
E, os olhos turvos em redor lançando,
Aqui e ali correndo busca ainda,
Mas debalde, um frescor. Enfim, cansada,
Ela mesma também, eis volve ao filho,
Prostra-se, abraça-o, com maternos beijos
Tenta ansiosa prolongar-lhe a vida.

«Filho, meu filho – murmurava a triste –
«À sede vais morrer! Oh! se o pudesse
«Adivinhar teu pai, cruel não fora;
«E Sara, a própria Sara, enternecida
«Emudecera seus fatais ciúmes.
«Oh! não gemas, não gemas, que debalde
«Invocas tua mãe. Ela te escuta,
«Mas não pode salvar-te: dentro em pouco
«Em seu regaço exalarás a vida.
«E hei-de eu ver-te expirar? ver nesses olhos
«Sumir-se a luz do dia? e nessas faces,
«Que tantas vezes me sorriram ledas,
«Ver as ânsias da morte? Oh! não, não posso
«Ver morrer o meu filho». Disse, e ao tronco
Duma árvore vizinha o recostava;
Depois, com tristes, vagarosos passos,
Foi noutros sítios aguardar a morte.
Ali, ao ver o sol que esmorecia,
Desatou a chorar, e estes queixumes
Em voz convulsa murmurou ainda:

«Sol do deserto, que o meu pobre filho
«Vês expirando na soidão além,
«Com teu suave, derradeiro brilho
«Beijar-lhe a face carinhoso vem!
«Oh! vem, que eu triste nessa face pura
«Materno beijo nunca mais darei.
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Quando o teu facho ressurgir do oriente,
«Tudo na terra sentirá prazer;
« E lá nos campos de Mambré virente
«Mais bela a rosa te verá nascer:
«Só ele em sombras duma noite escura
«Adormecido ficará, bem sei.
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Por mim não choro, que infeliz escrava
«Meus tristes dias findarei aqui:
«Ai! choro aquele que no mundo amava,
«Choro meu filho, que expirando vi.
«Maternos mimos, filial ternura,
«Lembrai-me os tempos que feliz gozei!
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Oh! quem dissera nos passados dias
«Em que ao meu colo te cerquei d'amor,
«Oh! quem dissera que a morrer virias
«Neste deserto sem achar frescor?
«Emurcheceste, já não tens verdura,
«Mimoso arbusto que gentil criei!
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Tantas esp'ranças, que o Senhor gerara
«Na escrava humilde, findarão assim.
«Foi mais feliz a geração de Sara:
«Cruel destino só me coube a mim.
«Em vão, em vão me prometeu futura
«Longa progénie: sem ninguém fiquei,
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Aves agrestes que me ouvis as queixas,
«Com tristes vozes o seu fim chorai!
«Brisas do ermo, suspirai-lhe endeixas!
«Astros da noite, seu dormir velai!
«Velai-o todos, que a final ventura
«Que vos reservo nem sequer terei.
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

Mas Deus! que via ela,
Que um ai desprendeu?
Que pomba tão bela
No manto do céu!
Que penas de prata,
D'azul, d'escarlata,
O espaço retrata
Sereno, sem véu!

É anjo voando!
Que brilho que tem!
Que véus ondulando
De pura cecém!
Que anéis de cabelo
Nos ombros de gelo,
No colo tão belo
Caindo ao desdém!

Descendo, descendo,
Já perto chegou;
E a pobre tremendo
Calada ficou;
E o anjo sorria
Com doce magia,
E à terra descia,
Na terra pousou.

E em roda mil lumes
De brilho sem fim
Lançava, e perfumes
De nardo e jasmim;
E a voz argentina,
Suave, divina,
Soltou peregrina
Falando-lhe assim:

«O que fazes, Agar, porque choras?
«Nada temas, não tens que temer;
«Se o teu filho perdido deploras,
«Esses prantos converte em prazer.

«Do deserto chegou seu gemido
«Às alturas que habita o Senhor:
«Surge, surge, e teu filho querido
«Vai ao longe buscar sem temor!

«Surge, surge, recobra a esperança
«Que as promessas cumpridas serão!
«O teu filho, o Senhor to afiança,
«Será pai duma grande nação.
 
«Glória a Deus, que no céu ouve as mágoas
«De quem sofre na terra a carpir!
«Eis um jorro de límpidas águas:
«Ide nelas a sede extinguir!»

E, assim dizendo, lhe mostrava perto
Uma fonte escondida entre verduras,
Como nunca se vira no deserto,
De tão grato frescor, d'águas tão puras.

Depois, batendo as esmaltadas penas,
Deixou na terra um luminoso traço;
E, agitando seu manto d'açucenas,
Sumiu-se ao longe na amplidão do espaço.

Erguendo aos céus a radiosa fronte,
A pobre mãe ao Senhor Deus louvava;
E, enchendo o vaso no cristal da fonte,
Com ele ao filho a salvação levava.

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Rosane Pamplona (A Bolsa, a Bolsinha e a Bolsona)

Ia o menino para a cidade grande pela primeira vez. O pai recomendou:

— Filho, tome o dinheiro para o trem, mas guarde-o sempre nesta bolsinha. Só tire da bolsinha as notas que precisar e nunca a deixe aberta!

O menino guardou bem aquelas palavras e foi se despedir da mãe. A mãe achou que a bolsinha não era segura. Pegou outra, maior, e ensinou ao garoto:

— Meu filho, leve a bolsinha de dinheiro sempre dentro desta bolsa. E nunca a deixe aberta!

O menino foi se despedir da avó. A avó, mais precavida, achou melhor lhe dar uma bolsa maior ainda. E explicou:

— Meu neto, ponha sempre a bolsa com a bolsinha dentro desta bolsona. E nunca a deixe aberta!

O menino ouviu tudo com atenção e foi embora pegar o trem. Chegando ao guichê, abriu a bolsona e tirou dela a bolsa. Fechou a bolsona e abriu a bolsa. Tirou a bolsinha, fechou a bolsa, abriu a bolsona, guardou a bolsa, fechou a bolsona. Então, abriu a bolsinha, tirou uma nota de dez e fechou a bolsinha. Abriu a bolsona, tirou a bolsa, fechou a bolsona, abriu a bolsa, guardou a bolsinha, fechou a bolsa, abriu a bolsona, guardou a bolsa, fechou a bolsona. Só então deu o dinheiro para o funcionário do guichê. Mas este não quis dar o bilhete.

— O preço é 12, rapazinho.

O menino, então, abriu a bolsona, tirou a bolsa, fechou a bolsona, abriu a bolsa, tirou a bolsinha, fechou a bolsa, abriu a bolsona, guardou a bolsa, fechou a bolsona, abriu a bolsinha, tirou mais uma nota de dez, fechou a bolsinha. Daí abriu a bolsona, tirou a bolsa, fechou a bolsona, abriu a bolsa, guardou a bolsinha, fechou a bolsa, abriu a bolsona, guardou a bolsa e fechou a bolsona. Deu a outra nota para o funcionário, que lhe devolveu o troco.

Para guardar o troco, o menino abriu a bolsona, tirou a bolsa, fechou a bolsona, abriu a bolsa, tirou a bolsinha, fechou a bolsa, abriu a bolsona, guardou a bolsa, fechou a bolsona, abriu a bolsinha, guardou o dinheiro, fechou a bolsinha, abriu a bolsona, tirou a bolsa, fechou a bolsona, abriu a bolsa, porém, antes que ele guardasse a bolsinha na bolsa, fechasse a bolsa, abrisse a bolsona, guardasse a bolsa na bolsona e fechasse a bolsona, o trem passou e ele... perdeu o trem!

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Danglei de Castro Pereira (Sousândrade: tradição e modernidade) Parte V, final

Pode-se dizer que, em O Guesa, o eu-poético opera uma desagregação da imagem do poeta romântico. Dotada de uma visão racional diante do cânone romântico tradicional, a poética sousandradina poderia ser vista como uma crítica à máscara externa implícita no seio do romantismo conservador:
(Alviçareiras no areial:)
– Aos céus sobem estrellas,
Tupan-Caramurú!
É Lindoya, Moema,
Coema,
É a Paraguassú;
– Sobem céus as estrellas,
Do festim rosicler!

Idalinas, Verbenas
De Athenas,
Corações de mulher;
– Moreninhas, Consuelos,
Olho-azul Marabás,
Pallidez Juvenilias,
Marilias
Sem Gonzaga Thomaz!
(O Guesa. Canto II, p. 32.)

Nesses versos, fica patente a crítica imposta por Sousândrade ao cânone dominante. O desfilar de musas como “Lindoya, Moema, Paraguassú e Marilia” denuncia uma crítica à formação européia predominante em nossa literatura que, por muitas vezes, confecciona o interno a partir de uma espécie de molde externo. “Tupan-Caramuru” pode ser entendido como a concretização da artificialidade na expressão dos elementos de nossa cultura, pois um Deus tipicamente indígena, “Tupan”, aparece contaminado pela figura do branco colonizador, Diogo Álvares Correia.

Os versos “Olho-azul Marabás/ Pallidez, Juvenilias” corroboram a crítica à “europeização” do traço nacional pelo externo. Essa crítica se estende ao próprio movimento romântico na referência a “Moreninhas, Consuelos” e “Marabá”, personagens tipicamente românticas que podem sintetizar a artificialidade do discurso romântico epigonal. “Coema” poderia ser entendido como uma alegoria da artificialidade desse discurso.

Dessa forma, a visão lúcida diante da artificialidade romântica “epigonal” leva a uma metalinguagem de cunho satírico. Nesse percurso, o discurso sousandradino apropria-se da tradição para redimensioná-la em uma atitude marcadamente de vanguarda modernista:

 (Arraia-miuda, nas malhas; AGASSIZ-UYARA)

– Que violentam-se ellipses,
Ora, na ode infernal!
== Venias... dias d’entrudo...
            Mais crudo
Foi do Templo o mangoal.
– Nús, desformes, quebrados,
Neos, rijos, sem dó!
== Venias... gyra, Baníua,
            A Caríua
Doce mócóróró.
(O Guesa. Canto II, p. 33)

(Discussão entre mestres de fôrmas e fórmas:)

– Redondilhas menores...
== Per Guilherme e Nassáu!
Res, non verba, senhores
                            Doctores,
             Quer d’estados a nau!
(O Guesa. Canto II, p. 34)

            (NEPTUNOS:)

– Os poetas plagiam,
            Desde rei Salomão:
            Se Deus crea – procream,
                            Transcream –
            Mafamed e Sultão.
(O Guesa. Canto II, p. 35)

Nos versos acima, o poeta introduz comicamente figuras da tradição, metaforizadas jocosamente nos “mestres de fôrmas e fórmas”, na figura mítica de “Netuno” e na dança pandemônio do “Tatuturema”. “AGASSIZ-UYARA” indicaria uma ironia em relação à erudição própria do discurso tradicional, caracterizado como “Arraia-miuda” lançada “nas malhas”. Nessa linha de leitura, o “plágio” dos poetas apontaria para uma ridicularização do próprio fazer literário, verificada nos versos “ – Nús, deformes, quebrados,/ Neos, rijos, sem dó!”. Nesses versos, o termo “Neos”, investido de uma visão pejorativa, é envolvido caoticamente pelos termos “desformes, quebrados” e associado a elementos como “Baíua”, “Caríua” e à onomatopéia “mócóróró”, produzindo a deflagração da distância expressiva entre os termos eruditos face aos traços naturais. Em tom de galhofa, Sousândrade aponta para sua estrutura distinta, ou seja, o “violentam-se elipses” indica a metalinguagem imanente ao poema.

Nesse ponto, temos o poeta como um visionário, um Deus ao molde do Vate romântico na medida em que inverte a criação divina ao aludir a construção racional de seus versos, metaforizada no transcriar expresso no excerto citado há pouco.

Ora, O Guesa que sempre se sentia
            Revestido do signo, e sem do insano
            Zeno ser filho, então lhe acontecia
            Deixar o manto ethereo e ser humano”
(O Guesa. Canto II, p. 24)

Nesse processo racional, a humanização do poeta/Guesa, observável no fragmento acima, corrobora para a concretização do veio crítico comentado nesse artigo. O revestir-se em “signo” remonta à tradição romântica de vislumbrar através da criação literária um mundo idealizado que, muitas vezes, transfigura a própria realidade. No entanto, o deixar o “manto ethereo e ser humano” aponta para a tomada de consciência em relação a esse processo. Sendo assim, o impulso criativo humanizado traz para o texto o teor racional, remetendo à lucidez do poeta face à realidade que o cerca.

Vista por esse prisma, a figura feminina de Virjanura, musa inspiradora do personagem Guesa, pode ser entendida como uma crítica ao comportamento romântico tradicional no que se refere à construção da personagem feminina:

 “...Nas mãos tinha-a, mirava-a, possuia” [...].
 Quão taciturno agora! Qual se os beijos
Esse altar profanassem dos desejos
—Uma aza negra esvoa na alegria....”
(O Guesa. Canto IV, p. 81)

O ato de possuir a amada descaracteriza a visão romântica, na qual a musa é tida como algo inatingível e, portanto, como elemento a ser adorado. A tristeza, após a consumação da posse, indica a consciência da degradação da musa. A “aza negra que esvoa na alegria” é a constatação da dessacralização da figura feminina que, vista a partir de uma ótica realista, aparece destituída de sua aura de pureza e castidade.

“Virjanûra” sintetiza, assim, a sátira à falsidade do olhar romântico em relação ao espaço brasileiro, podendo ser entendida como um prolongamento da inquietação apresentada por Gonçalves Dias na composição de “Marabá”. A diferença reside no fato de que Virjanüra aparece projetada para além da mera idealização romântica, uma vez que o eu-poético não a renega e, sim, toma-a como musa, dessacralizando-a.

Podemos observar que, em O Guesa, a pureza do espaço natural, quando mencionada, é relegada a um passado remoto:

“Ou quando a que nasceu para ser nossa
Vemos em braços d’outrem delirando:
Ou meiga patria, esperançosa e môça,
Do seu tumulo ás bordas soluçando.”
(O Guesa. Canto II, p. 20)

Uma das formas de perceber o teor puro, atribuído ao traço nacional, é a fusão desse traço à figura da musa. Tal procedimento remete a uma personificação do espaço natural que, por muitas vezes, pode ser confundido com a própria musa. A inquietação do eu-poético em relação à posse do espaço natural, que é visto nos “braços d’outrem delirando”, aponta para a conscientização de que a “meiga pátria, esperançosa e môça” perde sua plenitude, aparecendo soluçante às bordas do seu túmulo.

3 Considerações finais

De nosso ponto de vista, acreditamos que, embora fortemente marcado pela visão romântica, Sousândrade opera uma racionalização do impulso emotivo primário presente na vertente canonizada no Romantismo Brasileiro. Tal postura pode ser verificada pela lucidez com que o poeta apresenta o espaço interno corrompido pelo traço externo. Ao se apropriar criticamente do canône tradicional, por meio da adoção de um Romantismo titânico, Sousândrade revela uma noção de brasilidade distinta do ufanismo romântico, fato que faz dele um ícone para a modernidade brasileira.

Pode-se dizer, então, que a poética sousandradina não busca a expressão do interno moldado pelo prisma europeu, como o fez em larga medida José de Alencar; pelo contrário, critica essa submissão, encarando-a como ponto de descaracterização de nossa cultura. Daí termos, no romantismo sousandradino, uma sátira à “originalidade” pretendida pelo Romantismo.

Sousândrade, portanto, proporcionou a emergência de um nacionalismo racional e, com isso, mostrou um olhar inovador, o que aponta para a constatação de que a literatura brasileira seria efetivamente fundada a partir da síntese da matriz nativa com as interferências externas.

Nas considerações feitas até o momento, procuramos enfatizar que o poeta maranhense apresenta uma maior lucidez em relação à “rotina incorporada”, presente no discurso romântico conservador canonizado no Brasil. Tal postura confere à poética do maranhense um redimensionamento da harmonia romântica, levando à expressão de um Romantismo, mais lúcido e racional, próximo da vertente romântica alemã.

O poeta maranhense não fica na mera reprodução de valores alheios a nossa cultura, mas tenta deflagrar a tensão existente entre eles no seio de nossa cultura. Na valorização da “cor local”, Sousândrade deixa transparecer um anseio nacionalista. A utilização de elementos da língua tupi como “urarí” (veneno), “urucari” (palmeira), “potyras” (flor), “cáe-á-ré” (rio de água branca na língua dos índios Barés) e “jacaré”, além da constante alusão à cultura indígena, figuram como uma possibilidade de saída diante da dependência romântica ao elemento externo.

Por esse prisma, a valorização da “cor local” é fator de ironia na inusitada poética sousandradina, pois no interno sobrevive o “sonho” de uma plenitude futura que, no entanto, não se realiza. No clamor pela valorização da “cor local”, o poeta de O Guesa não vê o nativo como mero prolongamento do europeu civilizado – Jurupari equiparado a Satanás, ou O Guesa comparado a Jesus –, mas como expressão das matrizes nativas enquanto detentoras do cerne da brasilidade. É justamente por essa posição intrinsecamente nacionalista que Sousândrade pode ser relacionado à modernidade.

Como vimos, a postura lúcida perante a matriz nacional aproxima a poética de Sousândrade ao Romantismo titânico ou racional. Sua preocupação em expressar a situação degradada do homem nativo (vítima da ação colonizadora) confere ao poema um engajamento político-social concretizado na figura utópica da República. Expressando a realidade histórica e social da segunda metade do século XIX, Sousândrade busca uma visão mais ampla da dependência econômica imposta pela ação do estrangeiro colonizador, evidenciando, com isto, o aprisionamento cultural do colonizado, que passa a construir sua visão de mundo pelo prisma do outro e, nesse processo, perpetua a dependência.

O poeta maranhense foi um dos primeiros poetas brasileiros a apontar para a nova perspectiva sócio-econômica que se materializava: o capitalismo. O despontar dessa nova estrutura social modifica o olhar sousandradino face às particularidades nacionais, deflagrando o pessimismo e a amargura diante da situação dos povos colonizados.

Essa visão negativa, crivada de racionalidade, aparece de forma sintética nos versos que seguem:

Tupan! vampiro em volta da candeia!
Dissolução do inferno em movimento!
(O Guesa, Canto II. p.41)

O Deus “Tupan” caracterizado como um vampiro, denota o racionalismo imanente ao poetar sousandradino, uma vez que retira do mito indígena toda a carga positiva para, a partir daí, decretar a decadência da nação que se expande comparada a um inferno.

Esse procedimento aponta para aquilo que Vizzioli (1993) chama de conciliação entre a razão e o sentimento no romantismo racional ou titânico. Assim como Hölderlin, Sousândrade impôs a sua poética o mesmo posicionamento crítico, questionando a pura emotividade romântica para, racionalmente, expor uma poética lúcida em relação à realidade de sua época.

É justamente por esse olhar crítico perante a matriz nativa que o poeta distancia-se da mesmice de seus contemporâneos. Tal postura implica uma manipulação consciente da tradição literária, permitindo a compreensão da modernidade sousandradina como resultado de uma visão romântica, privilegiada pela lucidez diante de seu tempo. Como salienta Williams (1976), a obra de Joaquim de Sousândrade possui características modernas, mas só pode ser compreendida em sua plenitude se encarada necessariamente como uma obra romântica.

De nosso ponto de vista, Sousândrade pode ser entendido como um poeta romântico, pois mesmo demonstrando uma consciência crítica diante da degeneração moral e ética da sociedade do século XIX, continua preso ao olhar utópico característico do discurso romântico.

Referências

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WILLIAMS, F. G. Sousândrade: vida e obra. São Luís/MA: SIOGE, 1976.


Notas 

[i] Caberiam a Augusto e Haroldo de Campos (1964) os louros pela reavaliação da obra do maranhense, a quem chamariam de “terremoto clandestino”, atribuindo-lhe uma posição de destaque dentre os poetas brasileiros, não como perpetuador de uma tradição, mas como um poeta que soube redimensionar essa tradição.

[ii] No presente trabalho, no tocante à produção de Gonçalves Dias, tomaremos como referência Poesias completas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1957

[iii] Será resguardada a ortografia original do poema, mesmo que, em alguns momentos, esta apresente algumas incorreções aos olhos da norma culta vigente. O texto fonte será sempre: SOUSÂNDRADE, O Guesa. Edição Fac-similar. Org. Jomar de Morais. São Luís/MA: SIOGE, 1979.


Fonte:   
Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 4, número 2, jan./jun. 2004. Disponivel em http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0402/07.htm

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 9. A Roupa e o Gesto


Gosto de viajar no último banco. Vai-se mais resguardado de maçantes. Pode-se inspecionar o carro inteiro, quase sem ser visto. Não se vêem caras. 

Evita-se o risco de pagar a passagem para os amigos que não o são, e pode-se fazer aos amigos que o são a surpresa de lha pagar, numa traição delicada, pelas costas, -o que, como fineza, tem na sua independência um especialíssimo sabor. -Por fim, pode-se fumar sem a preocupação de ser incômodo a senhoras, por que muito raramente vão senhoras no último banco e dá-se a coincidência de não haver outro depois do último. 

Aliás, deixo de fumar perto de senhoras, não por uma particular deferência, mas apenas para não me incomodar a mim mesmo. Saborear um cigarro é prazer tão leve e tão fino, que o simples pensamento de que alguém no-lo possa estar amaldiçoando amarga os gorgomilos e embacia a transparência azulejante das espirais. 

Apesar de preferir ordinariamente o último, fui hoje para o primeiro, e fiz toda a viagem voltado para o resto do carro. Não influiu nisto o fato de eu envergar o meu novo terno cinzento e de estrear uma comburente gravata de listras amarelas e filetes encarnados. 

Não. Detesto exibições. E não distingo entre exibições, sejam de roupas, sejam de talentos ou virtudes, sejam de vícios ou maroteiras. Propendo até a perdoar mais facilmente a exibição de roupas, que não é assim tão idiota como inculcam os que não a podem pagar. 

Ter vaidade de uma farpela bonita é geralmente uma falta venial e, por assim dizer, exterior, que não repercute nas regiões nobres da alma; ao passo que a vaidade intelectual envenena e turba as próprias fontes do pensamento, e a vaidade da boa ação destrói exatamente essa misteriosa e fragílima levedura de heroísmo, que é o seu único valor, -o imponderável que a análise não pode reduzir e ante o qual o escalpelo se detém, enquanto faísca no olho implacável do operador uma centelha de humana emoção. 

É a vaidade exterior que tem preservado na mulher o seu secreto manancial de piedade e de energias profundas. Aparentemente frívola, ela é na realidade mais forte e melhor. Os seus tecidos aéreos, as suas rendas e fitas, as suas exterioridades espumosas e florais de criatura espetacular, são na realidade umas couraças, uns adarves, umas muralhas, -são tranqueiras e circunvalações defensivas que a mulher estende em redor de si, para ir entretendo o inimigo enquanto ela conserva lá dentro, na intimidade da cidadela sacra, o seu tesouro e o seu altar. 

Não, a indumentária (termo suntuoso, que eu sentia envolver-me, luxuosamente, como a coisa designada) a indumentária não me influiu na resolução de ir para o primeiro banco. Predispôs-me bem, quando muito deu-me um calorzinho de otimismo e de simpatia difusa. Isto, sim. -De onde infiro que devíamos usar mais freqüentemente de roupa nova, revezando-a talvez com as mais velhas, para acentuar o efeito pelo contraste, mas enfim usar mais freqüentemente de roupa nova. 

Se todos vivêssemos enfiados em estojos de boa fazenda e bom corte, de certo lucraria a disciplina interna das almas e com ela a facilidade e o concerto das relações entre os homens. Um indivíduo rudemente estrafegado pela vida, mas sempre cingido em ternos corretos e confortáveis, suporta com outra filosofia e outra elegância os baldões da fortuna. Principalmente, é claro, quando a roupa está paga. 

Homens há que são relembórios por teima, por descaso, por sistematização inconsciente das sugestões da preguiça, da somiticaria ou da falta de gosto. Querem fazer crer que são assim por vontade e que vão executando um programa bem meditado. Dão-se ares de desprezar profundamente essas materialidades ineptas. E a verdade é que são às vezes sinceros. Mas como se iludem! 

O indivíduo mais sinceramente lavado de vaidades decorativas não pode, quando menos, quando menos, deixar de sentir a cada instante a discrepância em que se encontra nos meios que freqüenta. Então, para manter a sua atitude interior de dissidência, não pode evitar a necessidade de pensar nisso, de fazer reflexões que deixam forçosamente um sedimento amargo, sobretudo quando reagem contra atitudes e atos depreciativos com que esbarrou. Sendo assim, onde está a liberdade interior que ele pretende prezar acima de tudo? A liberdade perfeita e bela seria a que implicasse no mesmo desprezo profundo e sereno as materialidades exteriores e todas as suas conseqüências -a liberdade de Diógenes ou de Francisco de Assis. Sem isso não é liberdade: é um simulacro, um escamoteio, um sofisma em ação, que traz consigo mesmo a sua pena perpétua, como a sua própria sombra. 

Um dos seguros efeitos da roupa nova e bem cortada é que ela cria e mantém o hábito das posições perfiladas e dos movimentos harmoniosos. Vale por um esporte. Excelente esporte para o corpo, visto que o submete a uma disciplina retificadora e a uma continuada economia de força. Excelente esporte para a alma, que se modela à feição do corpo. -As atitudes e movimentos da alma são atitudes e movimentos corporais: a alma põe-se de pé, acocora-se, desliza, descai, ajoelha-se, caminha direita e alegre, ou cambaleia, ou rasteja. A alma toma todas as posições de luta, desde a de um calmo e melódico guerreiro de Fídias até à de um torpe moleque agachado e sinuoso, com a navalha empalmada e o pé igualmente pronto para a rasteira ou para a fuga. 

Nas aulas de educação moral e cívica devia-se ensinar, antes de mais, a selecionar e fixar posturas e gestos. Aquele que aprendeu uma simples maneira nova de segurar o cigarro, de puxar e soltar a fumaça, de arremessar o coto, uma certa maneira vivaz, ritmada, incisiva e distinta de realizar todos esses pequenos movimentos, adquiriu alguma coisa que positivamente lhe modifica a personalidade, por via de ressonâncias que se vão convertendo em movimentos interiores habituais. -Inversamente, para convencer uma menina de que ela deve ser boazinha, não há como convencê-la de que assim se torna mais bonita. Há muito menina grande que faz toda a força do seu domínio interior com a simples preocupação de não ter cara de espeloteada ou de evitar a inflamação das pálpebras. Chamfort conta de uma dama que assim se justificava de assistir com olhos secos a uma comovedora representação teatral: "Eu choraria; mas é que tenho de cear na cidade". 

Compreende-se bem a confusão que de ordinário se faz entre o gesto significativo e a coisa significada, entre o valor da virtude e suas aparências externas. Este pratica uma ação honrada, não por esta ou aquela razão abstrata, mas para poder andar "de cabeça erguida"; aquele, para poder "dar uma...", isto é, fazer um gesto violento e desaforado aos seus detratores. Conheci um homem que, dando uma grossa esmola a uma igreja, dizia: "Não é lá tanto pela religião, porque enfim eu vivo a fazer por ela o que posso; mas é cá por uma birra, - é um couce que eu prego ao Alvarenga, aquele idiota, que deu um conto de réis e disso se pavoneia." 

A metáfora é mais do que um artifício pitural, é a gesticulação das almas. 

Somos bonecos à procura de gestos. Estes preexistem e persistem fora de nós, e nós passamos por eles como a água passa pelos vasos e canais que a contêm e lhe dão forma, como a água passa pelos acidentes da própria correnteza e do próprio caminho, pelas suas rugas, pelas suas cintilações e sombras, pelas suas espumas e cachões. 

Tomamo-los no lar, desde o berço, e na escola; apanhamo-los no teatro, no cinema, nos livros, nos quadros, na escultura, na rua, nas salas, na própria música, que espontaneamente se resolve em desenhos cinéticos de uma aérea e fulmínea expressividade. 

Os gestos de dignidade serena, de compostura discreta e elegante estão, em parte, incorporados às roupas distintas, como um forro invisível. O alfaiate corta pelo pano e, sem o saber, vai cortando ao mesmo tempo por uma tela espiritual, fabricada por duas tecelãs incansáveis, a Humanidade e a Natureza. 

Dizem que o hábito não faz o monge. Imagine-se o que seria um frade de São Francisco sem o seu hábito! O hábito só não faz o monge quando esse está de tal maneira conformado pela vestimenta, que já pode impunemente despi-la, sem de fato arrancá-la toda do corpo. 

A toga foi talvez a mais importante das invenções romanas. De certo contribuiu mais do que tudo para fortalecer e ritmar, para esculturizar o caráter daquela gente estrepitosa e derramada. 

Por uma razão semelhante, as estátuas clássicas (isto me parece que foi dito por Alam) são formas imperecíveis de idealidade ética, formas que precedem e sobrevivem ao conteúdo ideal que nelas vão sucessivamente vazando as gerações. 

A roupa é muita coisa, porque a expressão é tudo. Tudo quanto em nós representa idéia, pensamento, espirito, são expressões que se refletiram para dentro e puseram um pouco de luz e de ordem no caos de que brotaram -como esses deuses barbáricos e frustes que nasceram da pedra informe, das águas indeterminadas, dos elementos brutos e confusos, para individuar as coisas e esboçar uma organização do mundo. 

Fonte:
Domínio Público