quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) 1990 em Diante – Jorge Pieiro

Nos anos 1990 apareceram alguns periódicos literários: O Pão (homenagem ao jornal da Padaria Espiritual), em 1992; Espiral: Revista Literária, em 1995; Almanaque de Contos Cearenses, que, embora não tenha sido criado como revista, pode ser considerado a única revista cearense de contos, com apenas uma edição, em 1997; e Literapia – Revista de Literatura da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, em 1999. Como “continuação” do Almanaque, em 2005 surgiu a revista Caos Portátil – Um Almanaque de Contos, também dedicada exclusivamente à prosa de ficção breve.

Nas páginas desses órgãos se publicaram e publicam contos dos mais variados feitios, sejam de escritores mais conhecidos na comunidade literária, com livros editados e comentados, sejam dos mais jovens e inéditos.

O Almanaque exerceu o mesmo papel de O Saco no final dos anos 1970: o de dar ânimo aos novos escritores cearenses, ao mesmo tempo em que surgiu da necessidade de publicação de poemas e contos daqueles poetas e contistas. Naqueles anos ocorria no Brasil o chamado boom do conto. Nos anos 1990 teve início outro boom, que se estendeu pelo século XXI. À frente do Almanaque estiveram Pedro Salgueiro e Tércia Montenegro. Além de homenagem a escritores do passado (Adolfo Caminha, Otávio Lobo, Moreira Campos e Juarez Barroso), se publicaram peças de outros veteranos (Eduardo Campos, José Alcides Pinto, Caio Porfírio Carneiro) e de contistas cearenses surgidos depois dos anos 1970: (alguns com vários livros publicados ou premiados em importantes concursos literários, como Natércia Campos, Nilto Maciel, Carlos Emílio Corrêa Lima, Audifax Rios, Batista de Lima, Ronaldo Correia de Brito), além dos mais novos ou inéditos em livro, como Alano de Freitas, Paulo de Tarso Pardal, Jorge Pieiro, Astolfo Lima Sandy, Luís Marcus da Silva, Dimas Carvalho, Pedro Salgueiro, Napoleão Sousa Jr, Luciano Bonfim e Tércia Montenegro.
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JORGE PIEIRO

Jorge Alan Pinheiro Guimarães (Limoeiro do Norte, 1961) é mestre em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Ceará. Publicou Ofícios de desdita (Fortaleza: edição do autor, 1987); Fragmentos de Panaplo (Fortaleza: Ed. do autor, 1989); O tange/dor (Fortaleza: Ed. do autor, 1991); Galeria de murmúrios (Fortaleza: Cadernos de Panaplo, 1995); Neverness (Fortaleza: Letra & Música, 1996); Caos portátil (Fortaleza: Letra & Música, 1999); Os sonhos de Josafá (Fortaleza: Seduc, 2006) e Bolha de Osso (Fortaleza: Letra & Música, 2007). Tem contos nas coletâneas Almanaque de Contos Cearenses (Recife: Ed. Bagaço, 1997), Geração 90 – Manuscritos de computador (São Paulo: Boitempo, 2001), Geração 90 – os transgressores (São Paulo: Boitempo, 2003) e Os cem menores contos brasileiros do século (São Paulo: Ateliê Editorial, 2005). Co-edita – juntamente com Pedro Salgueiro – a revista Caos Portátil – um almanaque de contos.

            Aos seus contos ele designa de contemas. E explica: “contema é a menor unidade significativa do conto”, além de poder “representar a aglutinação da palavra Conto com a palavra Poema” e, ainda, poder “querer sugerir o tema para o conto a ser, quem sabe?, desenvolvido...”

            A linhagem de Jorge é a de Gilmar de Carvalho e Uilcon Pereira. Do primeiro herdou a aversão à disciplina técnica da arte de contar, narrar. De ambos herdou o gosto pelos personagens impalpáveis, mutantes, nebulosos, imaginários, quase mitológicos. “naíra desencantou-se de sua forma vespa em mulher” (“desencanto num crepúsculo ou meio-delírio em reflexão”). Loucos, delirantes, crianças habitam o universo caótico da ficção de Pieiro. O narrador de “meu tio e eu” não via no tio um doido, embora soubesse da opinião dos outros: “julgavam que ele fosse doido.” Porque o tio rolava no chão, gritava, corria com o menino (“cavaleiros de armadura”), em perseguição aos inimigos, as galinhas. São de novo Quixote e Sancho. Trata-se de um conto de alto teor poético, sem deixar de ser narrativo. “O tio foi ficando igual a um cordão azul” (...). A morte do tio, o sentimento do narrador, o tempo passando – é tudo um poema de intensidade máxima. Em outra narrativa de concepção e realização soberbas, “chocolates brancos”, o protagonista-narrador, um mudo em busca de comunicação com o mundo, narra suas descobertas: os nomes das pessoas com quem se encontra numa praça todos os dias.

            Da série “episódios delirantes”, segunda parte de Caos Portátil, dois personagens, Io e Ella, buscam saídas, verdades. “Eu revolvo meus olhos como se não houvesse mais esperança”. Na verdade (haverá verdade?), Ella é apenas fruto da imaginação de Io: “E eu não sou uma pessoa. Sou sua imaginação, sua fruição.” Io é um inventor, um criador, um escritor, como se lê no episódio 7: “Ella, quero andar com você pelas ruas. Vamos? Não posso, bobo. Você é um escritor... Por que não? Você inventa...”

Nos sete contemas de O Tangedor o leitor encontra personagens os mais estranhos: um espantalho apaixonado rabiscava setas no papel e uma delas atingiu-lhe o peito de palha; um alienígena e uns “bichinhos das gaiolas” que saíram voando na manhã da caatinga; um louva-a-deus com medo da “língua pegajosa de tamanduá”; o vento que coleciona folhas secas e tenta “relatar essa vida de vento”. Há ainda o narrador que executou o sol; o criador da personagem valdizete (“ela não existe”, “a não ser que eu próprio seja esse homem inventando histórias fantásticas”); e rubem (os nomes dos personagens são sempre escritos com letras minúsculas), que “só queria encantar a vida” e terminou descobrindo que “violões mudos são cisnes bebendo água”. Estes primeiros contemas seriam uma amostra do que viria em outros livros.

Em Fragmentos de Panaplo surge o lugar, ou o “desejo-lugar”, onde os personagens viverão. Panaplo “achada, despertada e desiludida”. Mas “talvez panaplo não mais exista. Pela falta de fé...” Nele, “lugar de ninguém estar”, o leitor deparará aqui e ali uma estação de trem, trilhos, uma estrada, a “última mangueira”, passarinhos, papagaios, jardins, colinas, gnomos, fadas, rainhas, meninos de louça, bruxos, dragões, gigantes, espelhos e também prédios em avenidas, automóveis, cães policiais, furgões, a violência urbana. Em Panaplo tudo acontece ou tudo existe: um narrador diz ter se encontrado “com um walter benjamim em panaplo, num dia de seus delírios”.

Em Caos Portátil ocorrem algumas mudanças formais em relação ao livro anterior. Os parágrafos são iniciados com letras maiúsculas, assim como nomes de lugares e personagens. Panaplo não é mais “panaplo”. O espaço geográfico do Ceará aparece algumas vezes: o barranco do Jaguaribe, em “à nau do velho lobo-do-rio”, localidades e prédios de Fortaleza, como o Cine São Luiz, o Theatro José de Alencar, o hospital Mira y López, o Parque do Cocó, a Praça Portugal, a Praça do Ferreira, embora não mencionada pelo nome (“A praça reflete simpatia nos meus olhos. Gosto dos seus adereços. Os bancos de madeira, compridos, pintados de branco, estimulam os proprietários do tempo livre”). Há também referência à cidade criada por Uilcon Pereira, Àssombradado, numa homenagem ao escritor paulista. Está no conto citado neste parágrafo: “– Vamos comprar pérolas em Àssombradado!”

Os narradores quase nunca se identificam por nomes. Em “comemoração de um remorso” o narrador aguarda o trem na estação, que “está tão fria”. Parece estar só, a pensar no passado e no futuro. Em “interrupção de um sonho de cidade e vale” lembra as “três sombras” que o “aborreceram na estrada, durante a luta com o javali”. Após a luta, caiu “no vale de um jaguar jamais sonhado.” Em “descrição de uma cena do irreal domingo” o personagem informa: “sempre morei numa estação que não existia”. No entanto, a casa sempre existiu naquele lugar e por trás dela os trilhos. Em “um incidente numa lama da noite” o narrador talvez seja um lobisomem. Numa noite, “rolando no lamaçal”, viu “a branca vaca” passar “voando por cima de mim”. Surgem homens armados. Ele se defende: “por favor, homens, não atirem! não sou um lobisomem...”

Também em Caos Portátil muitos narradores e personagens não têm nomes explícitos. Em “última sessão”, no Cine São Luiz, “um homem invade a imagem na tela”. A plateia ouve o estrondo do tiro. A seguir, outro espectador foge do local, “carregando a arma fumegante, sem entender, na correria, o que ainda pode ser real...” Ficção (o filme) e realidade (plateia) se confundem. Essa fusão da realidade com a ficção ou o espetáculo artístico reaparece em “a execução”. No Theatro José de Alencar durante um concerto, o trompetista “meteu a mão no colete e arrastou, sic, uma navalha”. O espetáculo continuou, “o maestro fez gesto de grito, mas nada conseguiu com a batuta no ar.” Os espectadores deliraram. Aquilo fazia parte do show?

A opinião de Horácio Rodrigues, no ensaio “O Jorge dos Espelhos Cearenses”, é a de que o contista, “Sem pompa e com atrevimento, transforma a linguagem usual em linguagem literária, parte do corriqueiro chegando a uma dedução fantástica. Em seus contos curtos, quase poemas, Jorge surpreende ao transpor o horizonte semântico da comunicação onde o possível se confunde com o impossível, ultrapassando, de maneira simples, a visão realista”.

Há também narradores plurais, como em “transe de uma divagação”. São “esses humanos diferentes, medrosos a bombas”. Outras vezes o narrador se pluraliza, como “nitratos de muros e pensamentos”. Primeiro um narrador: (...) “ruminando sei lá que vidas... por isso, concluí: sou um bicho condenado” (...) Depois os narradores: (...) “mas nem só eu: nós. E estamos condenados” (...). 

Nos contemas em que o ponto de vista é onisciente os personagens são seres do mundo da fantasia, dos contos de fadas, seres fantásticos. Em “contrabrincadeira da carochinha” gnomos e flores veem desarticulada a sua paz, enquanto a princesa corria “em busca do seu plebeu”. Outras vezes os personagens têm nomes simbólicos: monamy e korea, em “caso de uma desobediência”; naíra, que “desencantou-se de sua forma vespa em mulher”, no contema “desencanto num crepúsculo ou meio-delírio em reflexão”; elesbão, o caolho de “historinha especular de um rei ausente”. De Caos Portátil podem ser lembrados aqui Aliandro Odraga (vejam-se as iniciais maiúsculas), o de “umbigo esfacelado”; Oreblas, de “o bicado oreblas”, personagem atacado por pássaros; Prantina, Buan e as ratazanas, de “os nervos”. E muitos outros.

É recorrente a presença de pássaros e de outros animais nos contemas de Pieiro. Como em “a mangueira que colheu corina”: o velho sonho humano de voar, porque “a vida só tem significado para os passarinhos”. Em “antes de tudo & depois de tudo” o personagem sem nome explícito “contemplou o espaço e notou que os pássaros voavam da direita para a esquerda”. Ao final, “o pássaro tomou o rumo do sul, seguindo os pássaros comuns”. Há até um conto, “o bicado oreblas”, em que pássaros invadem a casa do personagem, o aprisionam em fios-raminhos e o bicam “até o amanhecer de um dia seguinte...” A mulher gorda de “o sábio” surge no meio da rua, abre os braços, põe-se a rodar, dando “a impressão de que queria voar”.

Pieiro manipula a linguagem com sabedoria, sem se deixar encantar pela prosa coloquial e de uso comum e muito menos pelo vocabulário erudito ou pelo estilo pomposo. Os narradores não são simples contadores de histórias, embora haja esboços de enredos em alguns contos. A narração às vezes é constituída de frases sem pontuação, como em “o exílio, smj”. Muitos dos contos são divididos em pequenas partes numeradas. Os tempos verbais são utilizados com sabedoria de arquiteto. Em “a cilada”, durante quase toda a narração, os verbos estão no presente, como a tornar evidente a realidade. A primeira frase é: “A porta entreaberta destrói a surpresa.” Na última frase, no desfecho, o verbo vai para o futuro: “A portaberta destruirá outras surpresas.”

A reutilização de temas dos contos de fadas faz de Jorge Pieiro um esmerilhador de personagens. As velhas gêmeas Mirla e Marla lembram bruxas e princesas esquecidas. De tão envelhecidas e envoltas no passado, terminam encontrando o príncipe e voando para o céu, “uma numa vassoura, a outra como um passarinho”. Veja-se também “contrabrincadeira da carochinha”, “historinha especular de um rei ausente”, “o gigante jamais dormia...” e outros. Nem sempre esses personagens habitam Panaplo. E, se habitam, o leitor não percebe. O certo é que havia um gigante em Panaplo e jamais dormia. O mundo de Pieiro é habitado por estranhas criaturas e animais pestilentos, tarântulas, besouros, mas também por crianças em busca da “caixa de barulhos” (“muito detrás dos jogos de amarelinha”). 

No entender de Nelson de Oliveira, em “O novo conto brasileiro: apocalipses”, “Pieiro gosta de trabalhar com ferramentas de corte e solda na microestrutura do discurso. Ou seja, ele, a gramática em uma mão, a tesoura e o tubo de cola noutra, recorta orações e vocábulos a fim de construir sentenças que jamais se completam, cheias de interrupções e atalhos. O resultado é sempre caleidoscópico, com cheiro de escrita automática desautomatizada”.

Na antologia Geração 90: Manuscritos de Computador o escritor de Limoeiro do Norte comparece com dez contos. Narrado na primeira pessoa, “Janela” tem outra personagem, sempre chamada de “Ela”, que também pode ser vista como co-narradora. O narrador principal conduz a narração e dá a palavra à outra: “Ela me disse:”. Essa personagem explica: “Sou apenas a pessoa da janela”. E mais uma vez a lembrança do sonho de voar: (...) “havia o receio de não saber se podia voar.” Ao se referir, o narrador, ao personagem secundário Leonardo, justifica: “Ele veio pelo abismo, voando numa geringonça” (...). Em “O Mágico” mais um personagem de nome estranho, Mr. Kaletzip, o prestidigitador. Em “Não deveria manchar de sangue esta página” o narrador é um palhaço apaixonado pela mulher do equilibrista. É, no entanto, um personagem: mora numa página. O narrador tem a clara noção de que não é real. Sendo assim, não deve matar o equilibrista, mas apenas imaginar sua queda ou programar ameaças veladas e sabotagens. Não deve manchar de sangue a página da história. Há ainda duas homenagens, uma ao escritor Eduardo Luz, em “Tiara de Algodão”, e outra a Moreira Campos, a quem chama de “um maior”, em “Borboleta”. Compara o escritor a sua grande borboleta à “grande mosca no copo de leite”, de um conto do autor de Vidas Marginais. Os pássaros estão presentes no miniconto “Sem título”. O narrador sem nome explícito anuncia: “Nunca desci daquela árvore. Os pássaros me chamam de estátua.”

E assim vai Jorge Pieiro construindo a sua obra, os seus labirintos, os seus caminhos, os seus mundos, os seus panaplos, os seus contemas.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Fábulas: Estratégias para leituras

Artigo por VAZ, Fernanda; BORGES, Suellen Chaves; CASTELA, Greice da Silva ; MANCHOPE, Elenita Conegero Pastor ; BARREIROS, Ruth Ceccon

RESUMO:
Este artigo é resultado da experiência obtida a partir da Oficina “Fábulas: estratégias para leituras”, ministrada no Projeto de Extensão “Ação da Escola: em prol da Leitura e da Cidadania”, desenvolvido pelo Centro de Educação, Comunicação e Artes (CECA) da UNIOESTE (Cascavel), em parceria com a Secretaria de Estado da Ciência,    Tecnologia e Ensino Superior (SETI), no Programa Universidade Sem Fronteiras, junto aos professores de uma escola municipal em Cascavel - PR. Valorizar e destacar as peculiaridades das estratégias de educação para a leitura foi um dos objetivos propostos por este Projeto, que contou com a participação de um grupo de acadêmicos do curso de Letras, um profissional recém-formado e três professoras orientadoras. Como um espaço de reflexão e discussão sobre a teoria e a prática de leitura e sua importância nos âmbitos acadêmico e social, o Projeto utilizou-se de diferentes gêneros textuais, numa proposta de formação contínua do educador. O objetivo da Oficina em destaque foi proporcionar aos professores/participantes novas possibilidades de uso do gênero Fábula, dentro de uma perspectiva de leitura voltada à formação de leitores críticos, tendo por base o referencial teórico proposto por Solé (1998). As atividades desenvolvidas durante a Oficina mostraram que, apesar de ser bastante conhecido pelos professores das séries iniciais, o uso desse gênero permanece limitado no contexto escolar.

1 – Introdução

Este artigo é resultado da experiência obtida a partir da Oficina “Fábulas: estratégias para leituras”, ministrada no Projeto de Extensão “Ação da Escola: em prol da Leitura e da Cidadania” do Programa Universidade Sem Fronteiras, junto aos professores de uma escola municipal em Cascavel - PR. O objetivo da Oficina foi proporcionar aos professores/participantes novas possibilidades de uso do gênero fábula, dentro de uma perspectiva de leitura voltada à formação de leitores críticos, tendo por base o referencial teórico proposto por Solé (1998).

As discussões que nortearam a Oficina foram pensadas numa perspectiva dialógica da língua, em que os sujeitos constroem os sentidos do que lêem, tomando o texto como lugar de interação, onde está presente uma infinidade de não-ditos (implícitos) que são desvelados por um contexto sociocognitivo dos interlocutores (KOCH & ELIAS, 2009).

2-Fábulas: um breve histórico e seus principais representantes

Desde os tempos mais longínquos, histórias criadas pelo povo, contadas oralmente, eram repassadas de uma região a outra pelos mercadores e/ou por outros viajantes – transmitidas, assim, de geração em geração. O conjunto desses textos constitui a literatura oral e tradicional. Com o tempo, alguns escritores e investigadores registraram por escrito tais textos, de origem anônima, conservados na memória popular, fixando-os, então, em livro, para que não se perdessem. Foi o que fez Jean de La Fontaine, no século XVII, com as fábulas de Esopo (século XI a.C.) – boa parte do que foi publicado pelo escritor francês já existia na oralidade. Por isso mesmo o escravo grego, ainda que considerado o pai do gênero, não possui o reconhecimento de que La Fontaine desfruta na contemporaneidade – consideração relevante, num trabalho a ser empreendido com os alunos, levando-se em conta o aspecto oral da língua, percebido em suas peculiaridades e devidamente distinguido em relação à escrita.

Monteiro Lobato, no ano de 1922, dá nova roupagem às antigas fábulas de Esopo e de La Fontaine, trazendo breves comentários e perspectivas críticas. Os textos originais são realçados pelos diálogos, meticulosamente construídos pela genialidade inventiva do autor, entre as personagens do Sítio.

Os ouvintes de Dona Benta e Tia Nastácia são, pois, participantes e insatisfeitos, não se acomodando a soluções sacramentadas. Os meninos    interferem no relato, mudam os finais, criticam os desempenhos, têm opiniões, ainda que, às vezes, equivocadas e preconceituosas. Assim sendo, o recebedor é sempre um indivíduo ativo, cuja reação é decisiva para o transcurso do ato de narrar (ZILBERMAN, 1982, p. 110, grifo nosso).

Mesclando elementos factuais aos da fantasia, Lobato pode ser considerado precursor (e referência) da literatura infantil brasileira. Zilberman explica que a introdução do local e do contemporâneo deveu-se a Monteiro Lobato, que inventou ainda um núcleo ativo de personagens infantis, liderados pela boneca Emília e situados nas propriedades de Dona Benta. O sucesso do empreendimento literário do escritor encetou uma produção para a infância com raízes locais, o que se verifica na obra de coetâneos seus, como Viriato Correa, José Lins do Rego, Erico Veríssimo e Graciliano Ramos, todos com narrativas para crianças, publicadas na década de 30 (1982, p. 107).

Sua obra mais famosa, Sítio do Pica-Pau Amarelo, mostra um universo mágico em que os problemas do Brasil são tratados de forma metafórica e criativa, ganhando uma versão televisiva na década de 1970. Lembrou-se, que tal popularidade (da obra) pode viabilizar o uso das fábulas em atividades pedagógicas contextualizadas, sem perder de vista as estratégias propostas para leitura.

3-Estratégias para leitura

O aluno entra em contato, no dia-a-dia, com diversos gêneros textuais, seja por necessidade, por obrigação ou, até mesmo, por prazer/entretenimento; embora, nem sempre perceba isso. Em regra, ele não sabe por que precisa ler determinado(s) texto(s), em detrimento de outro(s).

Consideramos, assim como Solé (1998, p. 114), que, “Se ler é um processo de interação entre um leitor e um texto, [...] podemos ensinar estratégias aos alunos para que essa interação seja o mais produtiva possível”. O mecanismo primeiro no processo de dar sentido ao que se lê, ou seja, no processo de compreensão do texto, pode ser a indagação do(s) objetivo(s) da leitura – para quê lemos? Como afirma Solé, a interpretação que nós, leitores, realizamos dos textos que lemos depende em grande parte do objetivo da nossa leitura. Isto é, ainda que o conteúdo de um texto permaneça invariável, é possível que dois leitores com finalidades diferentes extraiam informação distinta do mesmo. Assim, os objetivos da leitura são elementos que devem ser levados em conta quando se trata de ensinar as crianças a ler e a compreender (1998, p. 22).

O “processo de previsão e inferência contínua, que se apóia na informação proporcionada pelo texto e na nossa bagagem de previsão” (ibid, 1998, p. 23), configura-se,    igualmente,    uma    forma    de    estratégia    para guiar o aluno/leitor na construção do(s) sentido(s) do texto. Aciona-se uma gama de informações – de forma consciente ou não – no processo de leitura, identificando-se, para que tal fato seja visto e usado como estratégia, a necessidade, por vezes, da mediação/intervenção de um leitor mais maduro, ou seja, daquele que possui, em tese, mais leituras.

Fazemos previsões sobre qualquer tipo de texto e sobre qualquer um dos seus componentes. Para realizá-las, baseamo-nos na informação proporcionada pelo texto, naquela que podemos considerar contextual e em nosso conhecimento sobre a leitura, os textos e o mundo em geral (ibid, 1998, p. 25).

Nesse sentido, um trabalho cônscio e direcionado pode apontar, ainda, a importância das antecipações e das hipóteses, feitas a partir do título do texto, da identificação do autor, do meio de veiculação e do gênero textual, pois antes da leitura do texto, propriamente dito, fazemos antecipações, levantamos hipóteses que, no decorrer da leitura, são confirmadas ou rejeitadas. Neste último caso, as hipóteses serão reformuladas e novamente testadas em um movimento que destaca    a    nossa    atividade    de    leitor    [ativo], respaldada    em conhecimentos arquivados na memória (sobre a língua, as coisas do mundo, outros textos, outros gêneros textuais [...]) e ativados no processo de interação com o texto (KOCH & ELIAS, 2009, p. 13-14).

E, por isso mesmo “a leitura pode ser considerada um processo constante de elaboração e verificação de previsões que levam à construção de uma interpretação” (SOLÉ, 1998, p. 27). Nesse sentido, todo o contexto sócio-cultural que ampliaria a leitura das fábulas, em atividades pedagógicas, pode permanecer latente e deixar de ser acionado se o professor limitar-se a realizar um trabalho mecânico e pouco expansivo.

4-A oficina

Em concordância com os objetivos do Projeto em questão – um trabalho destinado aos professores/participantes, a partir dos diferentes gêneros textuais, visando a formação contínua do educador – buscou-se, numa perspectiva de leitura voltada à formação de leitores críticos, apontar as múltiplas possibilidades de uso do gênero fábula em contexto escolar, pautadas em referencial teórico voltado às Estratégias para leitura.

A apresentação da oficina dividiu-se em dois momentos – um aporte teórico, que subsidiasse as atividades pedagógicas; e, um apanhado de proposições que contextualizasse a teoria. Discutindo aspectos teóricos, falou-se do gênero em si – O que são fábulas e quais os elementos que, de fato, caracterizam o gênero? A palavra fábula, de origem latina, significa relato, conversação, narração alegórica; dela provém o verbo fabulare (falar) – uma das mais antigas formas de narrativa (tradição oral), em verso ou em prosa, que se utiliza do lúdico para transmitir uma lição de moral. Suas personagens são, em regra, animais, que representam tipos humano, como o egoísta, o ingênuo, o espertalhão, o vaidoso, o mentiroso etc. O gênero se divide em duas partes: a história (o que aconteceu) e a sua moral (o significado da história).

Destacou-se a relevância de se resgatar traduções de fábulas de Esopo e de La Fontaine feitas por Monteiro Lobato, cuja criticidade pode constituir um rico material de suporte para consubstanciar os debates propostos aos alunos, a partir da leitura das fábulas (originais).

Percebendo a leitura como “[...] uma construção que envolve o texto, os conhecimentos prévios do leitor que o aborda e seus objetivos” (SOLÉ, 1998, p. 22), procurou-se apontar mecanismos a serem utilizados pelo professor, de forma consciente e intencional, em atividades de leitura e de produção textual, propostas a partir do gênero fábulas.

5-Considerações finais

Apesar de esse gênero ser bastante conhecido pelos professores, constatou-se que seu efetivo uso ainda não foi incorporado ao contexto escolar, de maneira satisfatória. Os participantes concordaram que trabalhar o gênero como ferramenta didática é lidar com amplas vantagens, não apenas por seu caráter lúdico    e de (aparente) entretenimento, mas, sobretudo, pelas (diferentes) versões que ilustram, de forma concreta, distintos contextos sócio-histórico-culturais, que, se devidamente, explorados, podem auxiliar no processo de leitura.

Os resultados, obtidos pela oficina, segundo relato dos professores, foram positivos, levando-se em consideração, sobretudo, a discussão proporcionada com base nas atividades práticas que lhes foram propostas.

Referências

SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. Trad. Cláudia Schilling. 6. ed. Porto Alegre:Artmed, 1998.
KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Leitura, texto e sentido. In: ______.Ler e compreender os sentidos do texto. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2009, p. 9-37.
ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil: livro, leitura, leitor. In: _______. (org.) A produção cultural para a criança. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982, p. 93-115.

Fonte:
II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010
Diversidade, Ensino e Linguagem    UNIOESTE - Cascavel / PR. (CD-Rom)

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 15)

Entre a inocência e a esperteza,
é da inocência o troféu.
O esperto ganha a riqueza,
o inocente ganha o céu.
A. A. DE ASSIS (PR)

Se vai às compras ou a passeio,
saco de plástico evitar.
A terra, de saco cheio,
já deu o que tinha que dar.
AIRTON SOARES (CE)
-
Quanta ternura e carinho,
quanta pureza inocente,
naquele abraço fofinho
do meu "pinguinho de gente"!
ALFREDO DE CASTRO (MG)
-
Sou gente e os meus desenganos
somam-se a certo desgosto
por ver que o espelho dos anos
não gosta mais do meu rosto!
AMALIA MAX (PR)
-
Este amor que é meu tormento
bate em casa abandonada;
responde, na voz do vento,
somente o eco – mais nada!
AMARYLLIS SCHLOENBACH (SP)
-
Ante a luz que já clareia,
a fartura que há de vir,
pecado é ter a mão cheia
e não saber dividir.
ANALICE FEITOSA DE LIMA (SP)
-
Sem fazer-me de rogada,
só persiste uma verdade:
a trova em mim fez pousada,
trazendo a felicidade.
ANDRÉA MOTTA (PR)
-
Maria, só por maldade,
deixou-me a casa vazia:
Dentro da casa   a saudade,
E na saudade, – Maria!
ANIS MURAD (RJ)
-
É de dor a sensação:
meu pai... arrastando os passos;
e eu... puxando pela mão
quem já me levou nos braços!
ANTONIO CARLOS TEIXEIRA PINTO (DF)
-
Eis um médico fardado
-que perfeito matador!-
quem escapar do soldado,
não escapa do doutor...
ANTÔNIO SALLES (CE)

Como é grande a minha mágoa,
ao ver sofrer tanta gente...
Uns sofrem por falta d'água,
outros, vítimas da enchente.
ANTÔNIO VALENTIM RUFATTO (SP)

Pobre de mim, por desgraça,
Meu coração é um coador...
Nele o riso escorre... e passa...
E fica tudo que é dor....
AUGUSTO DOS ANJOS (PB)
-
Se não praticas o bem,
pára um pouco, pensa e muda:
quem não ajuda ninguém
precisa urgente de ajuda!
ARLINDO TADEU HAGEN (MG)
-
No amor o tempo se gasta
com medidas desiguais:
se estás longe, ele se arrasta;
se perto, corre demais”
CAROLINA RAMOS (SP)
-
El sol que marca el camino
De sus centellas azules
Su ternura le adivino
Cuando se viste de tules
CRISTINA BONILLA (MÉXICO)
-
 Somos como pan de vida,
con agua y harina mezclados;
no habrá nada que divida
al coserlos separarlos!
CRISTINA OLIVEIRA (USA)
-
Um coração que se isola
cava a própria solidão
e não há melhor escola
que o convívio com o irmão.
DÁGUIMA DE OLIVEIRA (MG)
-
O pouco que há sobre a mesa
é o bastante para a gente,
quando se tem a certeza
de que Deus se faz presente
EDMAR JAPIASSU MAIA (RJ)
-
Esta gente brasileira
viaja, desde criança,
como eterna passageira
do comboio da esperança!
EDUARDO A. O. TOLEDO (MG)
-
Com a verde camisola
de detalhes provocantes,
a boazuda Carola
morre de sonhos picantes.
ELIANE APARECIDA PEREIRA (SP)
-
A mulher do militar
deve pagar mais imposto,
só pelo fato de usar
sempre um marido... com...posto…
ELTON CARVALHO (RJ)
-
Que bom se a gente pudesse
fazer tudo que não fez...
e a vida, a chance nos desse,
de ser criança outra vez!...
ERCY MARIA MARQUES DE FARIA (SP)
-
O esplendor desta cidade,
com o seu mundo de atrações,
não mata em mim a saudade
da beleza dos sertões.
FERNANDO CÂNCIO ARAUJO (CE)
-
Nosso amor é tão patente,
embora os anos passados,
que aos olhos de toda gente
parecemos namorados.
FERNANDO CRUZ (RJ)
-
Esplendor tens, de tal monta,
quando passeias na praça,
que a lua se esconde, tonta,
atrás da nuvem que passa.
FRANCISCO JOSÉ PESSOA DE ANDRADE REIS (CE)
-
Espremam o coração
deste vate trovador,
e vocês conhecerão
o doce suco do amor!
FRANCISCO MACEDO (RN)
-
Primeiro amor!... chama ardente,
que o coração fere fundo,
mas, esse amor, torna a gente,
o mais feliz ser do mundo!...
HERIBALDO GERBASI (SP)
-
Apago as luzes...invento...
e faço tudo o que posso
quando a insônia é meu tormento
no quarto que já foi nosso!
HÉRON PATRÍCIO (SP)
-
Não escrevas tua história
com sangue do opositor,
os louros desta vitória
sem sangue tem mais sabor.
HORTÊNCIO SALES PESSOA (CE)
-
Sensação deliciosa
quando eu estou inspirada:
não tem espinho a rosa
nem tem pedras minha estrada.
JANSKE SCHLENKER (PR)
-
Quanto mais teu corpo enlaço
mais padeço o meu tormento,
por saber que o meu abraço
não prende o teu pensamento.
JESY BARBOSA (RJ)
-
Nas brancas ruas caiadas,
da terra do sono infindo,
as portas estão fechadas
e todos estão dormindo!
JOÃO RANGEL COELHO (RJ)
-
Minha mais linda vitória
das batalhas que venci
foi a que fez nossa história
depois que te conheci.
JOSÉ DEUSDEDIT ROCHA (CE)
-

Carregador da estação,
letrado como ninguém,
leu na cartilha o rifão:
-“há malas que vêm pro trem”...
JOSUÉ DE VARGAS FERREIRA (SP)
-
Saudade no pensamento,
rastro de antigos apelos:
perfume que vem no vento,
trazido de teus cabelos.
LÍLIA SOUZA (PR)
 -

“ É a trova em seu natural
mordaz, alegre ou dolente,
lindo trecho musical
de quatro notas somente.”
LILINHA FERNANDES (RJ)
-
Saudade, não o ciúme,
é a maior prova de amor.
É como sentir perfume,
mesmo distante da flor.
LUIZ HÉLIO FRIEDRICH (PR)
 -

Festejo tanto e bendigo,
vitórias que os outros têm,
que a vitória de um amigo
parece minha,  também!
LUIZ OTÁVIO (RJ)
-
O esplendor do teu olhar
meigo, com muita brandura,
lembra a grandeza do mar
ao mostrar tanta candura!...
MARIA ARGENTINA A. DE ANDRADE (CE)
-
Carrinho de rolimã,
nas curvas do meu passado,
traz vontade temporã
de viver despenteado.
MÁRIO A.J. ZAMATARO (PR)
-
Noite de tédio... comprida...
tão sem graça e tão vazia,
que eu bebo qualquer bebida
e aceito qualquer Maria...
MÁRIO PEIXOTO (RJ)
-
Quando quero que a saudade,
em meu peito se avolume,
busco, em total ansiedade,
o aroma do teu perfume.
MAURÍCIO NORBERTO FRIEDRICH (PR)
 -

Minha estrada, de fonemas,
toda escrita em verbo amar,
tem ladrilhos de poemas
para o meu amor passar.
NEI GARCEZ (PR)
-
Vou indo por este mundo,
para tudo tenho sinônimo;
mas meu desgosto é profundo
pois sou um poeta anônimo!
NILTON DA COSTA TEIXEIRA (SP)
-

Bendito seja o escritor
que concretiza o saber
e nos transforma em leitor
para o mundo conhecer!...
OEFE DE SOUZA (SP)
-

No alpendre do casarão,
em permanente vigília,
Dirceu cantava a paixão
em versos para Marília.
OLYMPIO COUTINHO (MG)
-

Não pisco os olhos ao vê-la
para não correr o risco
de, por momentos, perdê-la,
a cada instante em que pisco.
ORLANDO BRITO (MA)
-
Quisera pra mim um lume
que indicasse a solução
pra esquecer do teu perfume
cativo em meu coração.
OSIRES HADDAD (PR)
-
Eu, da saudade me farto,
vencendo a insônia, risonho,
quando apago a luz do quarto
e acendo a luz do meu sonho!
RODOLPHO ABBUD (RJ)
-
Quando o amor maduro,na alma
acende o fogo, a paixão,
faz a poesia que acalma
na forma do coração.
SUELI TORNICI (SP)
-

Dum jardim pleno de flores
salta sempre graciosa,
pra rima dos trovadores
a beleza de uma rosa.
VICTOR MANUEL CAPELA BATISTA (PORTUGAL)
-

A feliz trova que eu faço,
quer no verso, quer na rima,
não me traz nenhum cansaço
 sua luz sempre me anima.
VIDAL IDONY STOCKLER (PR)
-
Vejo as flores se espargindo
e o amor ficando mais terno
e a natureza sorrindo
com a chegada do inverno.
VITAL ARRUDA DE FIGUEIREDO (CE)
-

Teu perfume alvissareiro,
mais ligeiro que os teus passos,
chegando sempre primeiro
me faz sentir em teus braços.
WANDIRA FAGUNDES QUEIRÓZ (PR)
-

No esplendor dos verdes anos
minha alma feliz sorria;
hoje, imersa em desenganos,
tem vislumbres de alegria.
ZENAIDE BRAGA MARÇAL (CE)

Irmãos Grimm (A Água da Vida)

Era uma vez um rei muito poderoso que vivia feliz e tranquilo em seu reino. Um dia adoeceu gravemente e ninguém esperava mais que escapasse. Seus três filhos estavam consternados vendo o estado do pai piorar dia a dia. Choravam no jardim quando surgiu à sua frente um velho de aspecto venerável que indagou a causa de tamanha tristeza. Disseram-lhe estar aflitos por causa da enfermidade do pai, já que os médicos não tinham mais esperanças de o salvar.

O velho lhes disse: "Conheço um remédio muito eficaz que poderá curá-lo; é a famosa Água da Vida. Mas é muito difícil obtê-la."

O filho mais velho disse: "Vou encontrá-la, custe o que custar."

Foi imediatamente aos aposentos do rei, expôs-lhe o caso e pediu permissão para ir em busca dessa água.

"Não. Sei bem que essa água maravilhosa existe, mas há tantos perigos a vencer antes de chegar à fonte que prefiro morrer a ver um filho meu correndo esses riscos" disse o rei.

O príncipe porém insistiu tanto que o pai acabou por consentir.

Em seu íntimo o príncipe pensava: "Se conseguir a água me tornarei o filho predileto e herdarei o trono."

Partiu pois montado em rápido corcel na direção indicada pelo velho. Após alguns dias de viagem, ao atravessar uma floresta viu um anão mal vestido que o chamou e perguntou: "Aonde vais com tanta pressa?"

- "Que tens com isso, homúnculo ridículo? Não é da tua conta" respondeu altivamente sem deter o cavalo.

O anão se enfureceu e lhe rogou uma praga. Pouco adiante o príncipe se viu entalado entre dois barrancos; quanto mais andava mais se estreitava o caminho, até que não pôde mais avançar nem recuar, nem voltar o cavalo nem descer. Ficou ali aprisionado sofrendo fome e sede mas sem morrer.

O rei esperou em vão sua volta.

O segundo filho, julgando que o irmão tivesse morrido, ficou contentíssimo pois assim seria o herdeiro do trono. Foi ter com o pai e lhe pediu para ir em busca da Água da Vida.

O rei respondeu o mesmo que ao primeiro; por fim cedeu ante a insistência do rapaz.

O segundo príncipe montou a cavalo e seguiu pelo mesmo caminho. Quando atravessava a floresta surgiu-lhe o anão mal vestido e lhe dirigiu a mesma pergunta: "Para onde vais com tanta pressa?"

- "Pedaço de gente nojento! Sai da minha frente se não queres que te espezinhe com meu cavalo."

O anão lhe rogou a mesma praga, assim o príncipe acabou entalado nos barrancos como o irmão.

Passados muitos dias sem que os irmãos voltassem, o mais moço foi pedir licença ao pai para ir buscar a Água da Vida. O rei não queria consentir, mas foi obrigado a ceder ante suas insistências.

O jovem príncipe montou em seu cavalo e partiu; quando encontrou o anão na floresta ele, que era delicado e amável, deteve o cavalo dizendo: "Vou em busca da Água da Vida, o único remédio que pode salvar meu pobre pai, que está à morte."

- "Sabes onde se encontra?" perguntou o anão.

– "Não."

- "Pois já que me respondeste com tanta amabilidade vou te indicar o caminho. Ao sair da floresta não te metas pelo desfiladeiro que está à frente, vira à esquerda e segue até uma encruzilhada; aí segue ainda à esquerda. Depois de dois dias encontrarás um castelo encantado: é no pátio dele que se encontra a fonte da Água da Vida. O castelo está fechado com um grande portão de ferro maciço, mas basta tocá-lo três vezes com esta varinha que te dou para que se abra de par em par. Assim que entrares verás dois leões enormes prestes a se lançarem sobre ti para te devorar; atira-lhes estes dois bolos para apaziguá-los. Aí corre ao parque do castelo e vai buscar a Água de Vida antes que soem as doze badaladas, senão o portão se fecha e tu ficarás lá preso."

O príncipe agradeceu gentilmente, pegou a varinha e os dois bolos e se pôs a caminho, e conforme as indicações chegou ao castelo.

Com a varinha mágica bateu três vezes e o imenso portão se abriu; ao entrar os dois leões se arremessaram contra ele de bocas escancaradas, mas atirou-lhes os dois bolos e não sofreu mal algum. Porém antes de se dirigir à fonte da Água da Vida não resistiu à tentação de ver o que havia no interior do castelo, cujas portas estavam abertas: galgou as escadas e entrou.

Viu uma série de salões grandes e luxuosos. No primeiro, imersos em sono letárgico, viu uma multidão de fidalgos e criados. Sobre uma mesa estava uma espada e um saquinho de trigo; pressentiu que lhe poderiam ser úteis e levou-os consigo. Indo de um salão a outro, no último deu com uma princesa de rara beleza, que se levantou e disse que, tendo conseguido penetrar no castelo, destruíra o encanto que pesava sobre ela e todos os súditos do seu reino; mas o efeito do encantamento só cessaria mais tarde.

– "Dentro de um ano, dia por dia, se voltares aqui serás meu esposo."

Depois lhe indicou onde estava a fonte da Água da Vida e se despediu, recomendando-lhe que se apressasse para poder sair do castelo antes do relógio da torre bater as doze badaladas do meio-dia, porque nesse exato momento os portões se fechariam.

O príncipe percorreu em sentido inverso todos os salões por onde passara, até que viu uma belíssima cama com roupas muito alvas e limpas; cansado que estava da longa caminhada deitou-se para descansar um pouco e adormeceu.

Felizmente mexeu-se e fez cair no chão a espada que colocara a seu lado, despertando com o barulho. Levantou-se depressa: faltava um minuto para o meio-dia e mal teve tempo de correr ao parque, encher um frasco com a água preciosa e fugir.

Ao transpor os batentes da entrada soou o relógio dando meio-dia; o portão se fechou com estrondo e tão rápido que ainda lhe arrancou uma espora.

No auge da felicidade por ter conseguido a água que salvaria seu pai e ansioso por se ver no palácio pulou sobre a sela e partiu a galope.

Na floresta encontrou o anão no mesmo lugar, o qual vendo a espada e o saquinho de trigo disse: "Fizeste bem em guardar este precioso tesouro. Com essa espada vencerás sozinho o mais numeroso exército, e com o trigo desse saquinho terás todo o pão que quiseres e nunca se lhe verá o fundo."

O príncipe estava porém apoquentado com a desgraça dos irmãos, e perguntou se o anão poderia fazer algo por eles.

"Posso, ambos estão pouco distante daqui entalados em barrancos muito apertados; amaldiçoei-os por causa de seu orgulho."

O príncipe rogou encarecidamente que os perdoasse e libertasse, e o anão cedeu às suas súplicas.

"Mas te advirto que te arrependerás. Não te fies neles, são de mau coração; liberto-os apenas para te ser agradável."

Assim dizendo fez os barrancos se afastarem libertando os entalados, pouco depois reunidos ao irmão que os esperava. Muito feliz por tornar a vê-los o príncipe lhes narrou suas aventuras e disse que daí a um ano voltaria para desposar a maravilhosa princesa e reinar com ela sobre um grande país. Puseram-se os três de regresso para casa. Atravessaram um reino assolado pela guerra, estando o rei desesperado de poder salvar-se e a seu povo.

O príncipe confiou-lhe então o saco de trigo e a espada mágica, com os quais o rei derrotou os exércitos invasores e encheu os celeiros até o forro. O príncipe tornou a receber a espada e o saquinho de trigo e os três irmãos seguiram viagem, tomando um navio para encurtar o caminho.

Durante a travessia os dois irmãos mais velhos, devorados de ciúmes, começaram a conspirar contra o mais novo.

"Nosso irmão conseguiu a Água da Vida e nós não; com isso nosso pai o promoverá a herdeiro do trono que deveria ser nosso e nada nos restará."

Então juraram perdê-lo. De noite quando ele dormia furtaram-lhe o frasco e substituíram a Água da Vida por água salgada. Tentaram também roubar-lhe a espada e o saquinho de trigo mas os objetos desapareceram de repente.

Chegando em casa o jovem correu para o pai e lhe apresentou o frasco para que logo sarasse. Mal engoliu alguns goles daquela água salgada o rei piorou sensivelmente.

Estava se lastimando quando chegaram os mais velhos e acusaram o irmão de ter querido envenenar o pai. Eles porém traziam a verdadeira Água da Vida e lha ofereceram.

Apenas bebeu alguns goles pôde se levantar do leito cheio de vida e saúde como nos tempos da juventude. O pobre príncipe, expulso da presença do pai, se entregou ao maior pesar. Os dois mais velhos vieram ter com ele rindo e mofando:

"Pobre tolo! Tu tiveste todo o trabalho e conseguiste encontrar a Água da Vida mas nós tivemos o proveito; devias ser mais esperto e manter os olhos abertos, enquanto dormias a bordo trocamos o frasco por outro de água salgada. E poderíamos se quiséssemos ter-te atirado ao mar para nos livrarmos de ti, mas tivemos dó. Livra-te contudo de reclamar e contar a verdade ao nosso pai, que não te acreditaria; se disseres uma só palavra não nos escaparás, perderás a vida. Também não penses em ir desposar a princesa daqui a um ano, ela pertencerá a um de nós dois."

O rei estava muito zangado com o filho mais moço, julgando que o quisera envenenar. Convocou seus ministros e conselheiros e lhes submeteu o caso. Foram todos de opinião que o príncipe merecia a morte e o rei decidiu que fosse morto secretamente por um tiro.

Partindo o moço para a caça sem suspeitar de nada um dos criados do rei foi encarregado de o acompanhar e matar na floresta. Chegando ao lugar destinado o criado, que era o primeiro caçador do rei, estava com um ar tão triste que o príncipe lhe indagou a razão:

– "Que tens, caro caçador?"

- "Proibiram-me de falar, mas devo dizer tudo."

- "Dize então o que há, nada temas."

- "Estou aqui por ordem do rei e devo matar-vos."

O príncipe se sobressaltou mas disse:

– "Meu amigo, deixa-me viver. Dar-te-ei meus belos trajes em recompensa e tu me darás os teus, que são mais pobres."

- "Da melhor boa vontade" disse o caçador.

– "É preciso que o rei julgue que executaste suas ordens senão sua cólera recairá sobre ti. Vestirei estas roupas feias e tu levarás as minhas como prova de que me mataste. Em seguida abandonarei para sempre este reino."

Assim fizeram.

Pouco tempo depois o rei viu chegar uma embaixada faustosa do rei vizinho incumbida de entregar ao bom príncipe os mais ricos presentes em agradecimento por ter ele salvo o reino da fome e da invasão do inimigo.

Diante disso o rei se pôs a refletir: "Meu filho seria inocente?" e comunicou aos que o serviam: "Como me arrependo de o ter mandado matar! Ah, se ainda estivesse vivo ..."

Encorajado por estas palavras o caçador revelou a verdade. Disse ao rei que o bom príncipe estava vivo mas em lugar ignorado. Imediatamente o rei mandou um arauto proclamar por todo o país que considerava o filho inocente e que desejava imensamente sua volta. Mas a notícia não chegou ao príncipe; encontrara seu amigo anão, que lhe dera ouro suficiente para poder viver como um filho de rei.

Nesse interim a princesa do castelo encantado que ele livrara do sortilégio mandara construir uma avenida toda calçada com chapas de ouro maciço e pedras preciosas que conduzia diretamente ao castelo, explicando aos seus vassalos:

– "O filho do rei que será meu esposo não tardará a chegar; virá a galope bem pelo meio da avenida. Mas se outros pretendentes vierem, cavalgando à beira da estrada, expulsem-nos a chicotadas."

Com efeito, dia por dia, um ano depois do jovem príncipe ter penetrado no castelo, o irmão mais velho achou que podia se apresentar como sendo o salvador e receber a princesa por esposa. Vendo aquela avenida calçada no meio de ouro e pedrarias não quis que o cavalo estragasse com as patas tanta riqueza que já considerava sua e fez o animal passar pelo lado direito. Quando chegou diante do portão e disse ser o noivo da princesa todos riram e depois o correram de lá a chicote.

Pouco tempo depois veio o segundo príncipe, e vendo todo aquele ouro e jóias pensou que seria um pecado arruiná-los; fez o cavalo galopar pelo lado esquerdo e se apresentou como sendo o noivo da princesa. Teve a mesma sorte do irmão mais velho: foi corrido a chicote.

Findava o ano estabelecido e o terceiro príncipe resolveu deixar a floresta para ir ter com sua amada e a seu lado esquecer as mágoas. Pôs-se a caminho pensando só na felicidade de tornar a ver a linda princesa; ia tão embebido que nem sequer viu que a estrada estava toda coberta de pedras preciosas. Deixou o cavalo galopar pelo meio da avenida, e quando chegou diante do portão do castelo este lhe foi aberto de par em par. Soaram alegres fanfarras e uma multidão de fidalgos saiu para recebê-lo.

Adentrou e em pouco apareceu a princesa, deslumbrante de beleza, que o acolheu cheia de felicidade e declarou a todos que ele era seu salvador e senhor daquele reino. As núpcias foram realizadas imediatamente em meio a esplêndidas festas.

Terminadas as festas, que duraram muitos dias, ela lhe contou que seu pai o havia proclamado inocente e desejava vê-lo de novo.

Acompanhado da rainha sua esposa ele foi ter com o pai e contou-lhe tudo que se passara: como fora traído pelos irmãos e como estes o obrigaram a se calar.

O rei, extremamente irritado contra eles, mandou que seus arqueiros os trouxessem à sua presença a fim de receberem o castigo merecido, mas vendo suas maldades descobertas eles tinham tomado um barco tentando fugir para terras longínquas para aí esconderem sua vergonha. Não o conseguiram. Sobreveio uma tremenda tempestade que tragou o navio e eles pereceram miseravelmente.

Fonte:
Contos de Grimm

domingo, 19 de janeiro de 2014

Acruche Collection - Trova 15


Irmãos Grimm (A Serpente Branca)

Há muitos e muitos anos, vivia um rei muito celebrado por sua sabedoria. Nada era oculto para ele. Era como se o conhecimento das coisas mais secretas chegasse até ele pelo ar. Mas tinha um estranho costume. Quando a refeição do meio-dia acabava, a mesa era tirada e não havia mais ninguém presente, um criado de confiança lhe trazia um prato a mais. Esse prato era coberto. Nem mesmo o criado sabia o que havia ali dentro. Nem ele nem mais ninguém, porque o rei só tirava a tampa e comia depois que ficava sozinho.

Um dia, depois que isso já acontecia há algum tempo, o criado não aguentou mais de curiosidade na hora de levar o prato embora. Secretamente o carregou para seu quarto, trancou a porta com cuidado e, quando levantou a tampa, viu que dentro havia uma serpente branca.

Depois de ver a cobra, não aguentou ficar sem dar uma provadinha. Cortou um pedaço bem pequeno dela e o pôs na boca. Assim que o pedacinho da serpente tocou a língua dele, o criado começou a ouvir sussurros suaves e estranhos do lado de fora da janela. Quando se debruçou para ver o que era, descobriu que as vozes que murmuravam eram de pardais conversando, que contavam uns aos outros tudo o que tinham visto pelos bosques e campos. Provar a serpente tinha lhe dado o poder de entender a linguagem das aves e dos animais.

Ora, aconteceu que justamente naquele dia desapareceu o melhor anel da rainha.

Como o criado de confiança tinha toda a liberdade para ir onde bem entendesse no palácio, suspeitaram que o tivesse roubado. O rei mandou chamá-lo e brigou com ele, dizendo que, a não ser que ele desse o nome do ladrão até o dia seguinte, seria considerado culpado e decapitado. Não adiantou jurar inocência. O rei mandou-o embora sem uma palavra de consolo.

Com medo e se sentindo desgraçado, ele foi até o quintal e ficou pensando, vendo se encontrava um jeito para sair daquela situação. Alguns patos estavam calmamente sentados na beira de um riacho, à vontade, se alisando com o bico e batendo papo. O criado parou e escutou. Cada um dizia aos outros o que tinha acontecido em todos os lugares por onde tinha nadado naquela manhã, e toda a comida gostosa que tinha comido. Mas um deles disse, queixoso:

- Estou com um peso no estômago... Estava comendo tão depressa que engoli um anel que estava no chão bem embaixo da janela da rainha...

O criado rapidamente agarrou o pato pelo pescoço, levou-o direto para a cozinha e disse ao cozinheiro:

- Olha só que pato gordo Se eu fosse você, assava ele.

- É mesmo - disse o cozinheiro, pesando o pato com a mão. - Já que ele se esforçou para ganhar tanto peso, é tempo agora de ir para o forno.

Cortou o pescoço do pato e depois, quando estava limpando a ave para assar, encontrou o anel da rainha no estômago dela. Com isso, não foi difícil o criado convencer o rei de sua inocência. Querendo reparar a injustiça que tinha feito, o rei lhe perguntou se havia alguma coisa que ele desejasse, e lhe ofereceu o cargo que ele quisesse escolher na corte.

O criado recusou todas as honras e disse que só queria um cavalo e um pouco de dinheiro, porque desejava ver o mundo e viajar um bocado. O rei logo lhe deu o que queria, e ele partiu.

Um dia, passando por um lago, notou que três peixes estavam presos nuns caniços e estavam ficando sem água. Dizem que os peixes são mudos, mas ele ouviu muito bem como eles gemiam se lamentando, diante da morte horrível que os esperava. Como era um bom sujeito, desceu do cavalo e pôs os três cativos novamente na água. Eles puseram as cabecinhas de fora, se abanando de alegria, e disseram:

- Vamos lembrar disso e recompensar você por nos ter salvo.

Ele continuou seu caminho e, pouco depois, ouviu uma voz que vinha da areia a seus pés. Prestou atenção e ouviu a queixa do rei das formigas:

- Se os humanos conseguissem manter seus animais desajeitados bem longe de nós, seria ótimo! Esse cavalo estúpido com esses cascos imensos e pesados está esmagando meu povo sem piedade...

Ouvindo isso, o criado saiu por um caminho lateral, e o rei das formigas gritou: - Vamos lembrar disso e recompensar você...

O caminho levava a uma floresta. Lá, ele viu um casal de corvos empurrando os filhotes para fora do ninho:

- Fora, seus marmanjões! - gritavam. - Não podemos mais encher as barrigas de vocês. Já estão bem grandinhos para buscarem sua própria comida.

- Ainda somos filhotes indefesos - gritavam. - Como é que podemos arranjar comida?

Os pobres filhotes batiam as asas desajeitados e não conseguiam levantar-se do chão. comida se ainda nem sabemos voar? Vocês vão nos fazer morrer de fome!

Ouvindo isso, o bom jovem apeou, matou o cavalo com a espada e deu sua carne para alimentar os filhotes de corvo. Eles vieram saltitando, comeram até se fartar, e disseram:

- Vamos lembrar disso e recompensar você.

Daí para a frente, ele teve que usar as pernas. Depois de muito caminhar, chegou a uma grande cidade. As ruas estavam cheias de barulho e movimento. Um homem a cavalo anunciava que a filha do rei estava procurando marido, mas que quem quisesse pedir a mão dela precisava primeiro cumprir uma tarefa muito difícil e, se falhasse, perderia a vida. Muitos já tinham tentado, mas arriscaram a vida à toa. Quando o jovem viu a filha do rei, ficou tão estonteado com a beleza dela que se esqueceu do perigo, foi até o rei e se apresentou como pretendente.

Foi levado diretamente à beira do mar. Lá, diante de seus olhos, jogaram n'água um anel de ouro. Depois, o rei lhe disse que ele precisaria ir buscar o anel lá no fundo. E acrescentou:

- Se você sair da água sem ele, será jogado de volta, tantas vezes quantas necessário, até morrer nas ondas.

Os cortesãos todos ficaram com pena do jovem e lamentaram sua sorte, tão bonito. Depois, deixaram-no sozinho na praia.

Ele ficou um pouco ali parado, pensando no que ia fazer. De repente, viu três peixes nadando em sua direção - justamente os três cujas vidas ele tinha salvo. O do meio tinha uma concha na boca. Depositou-a na praia, junto aos pés do rapaz. Quando ele pegou a concha e abriu, viu que dentro estava o anel de ouro.

Todo contente, levou o anel até o rei, esperando receber a recompensa prometida.

Mas a princesa era muito prosa e, quando viu que ele era inferior a ela em nascimento, desprezou-o e disse que ele ia precisar cumprir uma segunda tarefa. Desceu até o jardim e espalhou dez sacos cheios de farelo pelo meio da grama.

- Você vai ter que recolher tudo isso até amanhã, antes do sol nascer - disse ela -, sem faltar nem um grãozinho.

O rapaz sentou no jardim e começou a pensar em um jeito de cumprir a tarefa, mas não lhe ocorria nada. E lá ficou ele, tristíssimo, esperando que o levassem para a morte quando o dia nascesse. Mas quando os primeiros raios do sol chegaram ao jardim, ele viu que os dez sacos estavam de pé, cheios até a borda, sem faltar nem um grãozinho. O rei das formigas tinha vindo durante a noite, com milhares e milhares de formigas, e os bichinhos agradecidos tinham juntado todos os grãos de farelo dentro dos sacos outra vez.

A filha do rei veio em pessoa até o jardim e ficou espantadíssima de ver que a tarefa tinha sido cumprida. Mas seu coração prosa ainda se recusava a se render. Por isso, ela disse:

- Ele cumpriu as duas tarefas. Mas não será meu marido enquanto não me trouxer um fruto da árvore da vida.

O rapaz nem sabia onde ficava essa árvore da vida. Partiu procurando, resolvido a andar até onde as pernas o levassem, mas sem qualquer esperança de encontrar.

Uma noite, depois de procurar por três reinos, ele chegou a uma floresta. Sentou-se debaixo de uma árvore e estava quase adormecendo quando ouviu um barulho nos galhos e uma fruta de ouro caiu em suas mãos. Ao mesmo tempo, três corvos desceram voando da árvore, pousaram em seus joelhos e disseram:

- Nós somos os filhotes de corvo que você não deixou morrer de fome. Quando crescemos e ouvimos dizer que você estava procurando a fruta de ouro, voamos por cima do mar até o fim do mundo, onde cresce a árvore da vida, e pegamos a fruta.

Muito contente, o rapaz voltou para casa. Deu a fruta de ouro para a princesa e, depois disso, ela não tinha mais desculpa. Dividiram a maçã da vida e a comeram juntos. Aí o coração dela se encheu de amor por ele, e os dois viveram até a velhice numa felicidade perfeita.

Fonte:
Contos de Grimm

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 25 – 30 de agosto de 1887

Eu, pecador, me confesso
Ao leitor onipotente,
E a grã bondade lhe peço
De ouvir pacientemente

Uma lengalenga longa,
Uma longa lengalenga,
Áspera, como a araponga,
E tarda como um capenga.

Saiba Sua Senhoria
Que, em cousas parlamentares,
A minha sabedoria
Vale a de um ou dois muares.

Não? Isso é bondade sua...
Modéstia minha? Qual nada!
Digo-lhe a verdade crua,
Nua e desavergonhada.

Não entendo patavina,
Eu, que entendo a lei mosaica,
Humana, embora divina,
Límpida, conquanto ataica.

“E disse o Senhor: Faze isto,
Moisés, faze aquilo, ordena,
Eu, c'o meu poder te assisto;
Põe esta pena e esta pena”.

Eram assim leis sem voto,
Sem consulta, sem mais nada.
Deus falava ao grão devoto,
E vinha a lei promulgada.

Mas por que é que tanta gente,
Reunida numa sala,
Examina a lei pendente
Escuta, cogita e fala?

E por que vota? pergunto ...
Nisto abro uma folha, e leio
Bem explicado este assunto:
Era um discurso alto e cheio.

O orador, um deputado
Do Ceará, respondia
A um que o tinha acusado
De manter a escravaria.

Defendia-se, mostrando
Que, desde anos longos, fora
Dos que viveram chamando
A aurora libertadora.

Que a obra da liberdade
Era também obra sua,
Fê-la com alacridade,
Sem proclamá-lo na rua.

Votou, é certo, em contrário
Ao projeto com que o Dantas
Criou o sexagenário
E umas outras cousas tantas.

Mas não foi porque o julgasse
Oposto ao que entende justo,
Nem porque ele lhe vibrasse
Qualquer sensação de susto.

Foi só porque o gabinete
Para o Ceará mandara
Um presidente e um cacete,
Ambos de muito má cara.

Ele, vendo os seus amigos
Perseguidos, destinados,
Depois de grandes perigos,
A serem exterminados.

Votou contra a lei; e a prova
De que lhe não era oposto,
É que, vindo gente nova,
Votou a lei, de bom rosto.

E conclui assim: “Senhores,
Qualquer outro que se achasse,
Cheio de iguais amargores
E injúrias da mesma classe,

Faria o que fiz”. Pasmado,
De tudo o que não sabia,
Vim confessá-lo humilhado
Ante Vossa Senhoria.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Tiago Malta (Tragédia Grega Poética)

TORNEDOR

Depois de muito tempo sentado,
Resolvi levantar,
E pude notar que meus braços não se moviam.
Só às vezes, e por vontade própria.
Eu erro! Eu ergo! Eu enxergo!
Boto um monte de brinquedo para moer
E faço disto adubo que fará um buraco no solo.

CARRAPATO DE SATURNO

Um dia eu vi o futuro.
- É verdade... Eu já fui assim,
Hoje em dia faço força para conseguir chegar no próximo dia,
Pois no peito há um buraco,
E esse buraco dói,
Mostrando que não está vazio,
E sim com um coração fora da validade
esquecido pelas pessoas que nos matam,
Nos roubam
E fingem nos amar...

FERMATA

Me apoiando no porque de formula -preá-
Queria ouvir meus rins funcionarem,
E por favor, peçam pro professor pardal
Para me congelar até descobrirem o remédio contra a dor de
cotovelo

TRATADO

De todos os sentimentos
Que podem rondar
A mente de um poeta medíocre,
Porém com ideias puras,
O medo é o que domina,
De ficar vazio sem sua presença.
(não te conquistar)
Quero minha menina
Enroscada no meu peito
Eu ainda não dei meu último lance,
E como cabeça dura que sou,
Não aceitei os fatos
Luto pelo seu sorriso, olhos e colo

MAQUIAGEM PARA UMA PSEUDO FELICIDADE

Mais idiota que perde alguém sem saber o porquê.
É saber muito bem o motivo e não conseguir fazer nada.
Ainda mais quando você ama uma mula empacada.
Como já fora dito por alguns espectadores

DAS PIORES SENSAÇÕES

Foi quando um machado na minha mão,
Ela passou na minha frente
Tive de segurar minha besta
Para não cravar na coluna dorsal
Acabar com a história.

BATENDO A CABEÇA NO ARMÁRIO

Aqui estão todos eles,
Me enchendo a cabeça:
Minhas ampolas de adrenalina...
A linha do trem...
A Cinelândia...
E o saco muito cheio...
A gente passa batido com a cabeça erguida,
E acha que sorriso é sinal de felicidade,
E lágrima é sinal de tristeza.
Resumo: Eu sou então a felicidade triste.

NA TUA FRENTE

...     Então escrevo ideias feitas na hora ao olhar para ti...
Observar seu sorriso
Olhando para mim
Menina que me encanta
Trocando olhares
Não terminarei meu poema
Pois meu espaço é pequeno e eu estou cansado

ZABUMBA

O coro esticado rasgou
Quando minha maceta
Tentou me proteger de mim
E falhou.
Mas dizem que o que vale é a intenção...
A zabumba não toca mais
Silêncio para todos

CARICATURA EXPRESSO

Convivi dezenove vezes
Com a imagem impressa
Que se tornava redundante.

Sentindo um alívio no peito
Por toda cisma ter sido abolida
Foi permitido cumprir...

Foi medido o número de mãos direitas balançando com
outras mãos direitas.
Pra aparecer no final do relatório:
Resumido: foi coisa de louco.

Fonte:
Tiago Malta. Trovas Egoístas.

Expressões e suas Origens II

Pensando na morte da bezerra

A história mais aceitável para explicar a origem da expressão é proveniente das tradições hebraicas, onde os bezerros eram sacrificados para Deus como forma de redenção de pecados. Conta-se que certa vez um rei resolveu sacrificar uma bezerra e que seu filho menor, que tinha grande carinho pelo animal, opôs-se. Independentemente disso, a bezerra foi oferecida aos céus e afirma-se que o garoto passou o resto de sua vida pensando na morte da bezerra. Assim, estar “pensando na morte da bezerra” significa estar distante, pensativo, alheio a tudo.

Farinha do mesmo saco

"Homines sunt ejusdem farinae" (São homens da mesma farinha, em latim) é a origem dessa expressão, utilizada para generalizar um comportamento reprovável. A metáfora faz referência ao fato de a farinha de boa qualidade ser posta em sacos separados, para não ser confundida com a de qualidade inferior. Assim, utilizar a expressão "farinha do mesmo saco" é insinuar que os bons andam com os bons, enquanto os maus preferem os maus.
   
Dor de cotovelo

A expressão teve origem nas cenas de pessoas sentadas em bares, com os cotovelos apoiados no balcão, bebendo e chorando a dor de um amor perdido. De tanto permanecerem naquela posição, as pessoas ficavam com dores nos cotovelos. Atualmente, é muito comum utilizar essa expressão para designar o despeito provocado pelo ciúme ou a tristeza causada por uma decepção amorosa.

Olha o passarinho!

Quando a fotografia foi inventada, a impressão da imagem no filme não se dava com a mesma rapidez dos dias atuais. Na metade do século 19, os fotografados tinham de permanecer parados por até 15 minutos, a fim de que sua imagem fosse impressa dentro da máquina. Fazer as crianças ficarem imóveis por tanto tempo era um verdadeiro desafio. Por isso, gaiolas com pássaros ficavam penduradas atrás dos fotógrafos, o que chamava a atenção dos pequenos. Assim, a expressão “Olha o passarinho” ficou conhecida como a frase dita pelo fotógrafo na hora da pose para a foto.

Motorista barbeiro

Antigamente, os barbeiros eram conhecidos não apenas por realizar o corte de cabelo e barba, mas também por desempenhar tarefas como: extração de dentes, remoção de calos e unhas, entre outros. Geralmente, os serviços extra deixavam consequências desagradáveis aos clientes. No século 15, o termo “barbeiro” era atribuído a atividades mal executadas. Com o tempo, passou a ser relacionado aos motoristas.  Daí a expressão “motorista barbeiro”, ou seja, mau motorista.

Novo em folha

Para falar que algo nunca foi usado ou que, se já foi, está em ótimo estado, dizemos que está "novo em folha". A expressão também pode ser usada para designar alguém que, depois de se machucar ou enfrentar uma doença, está curado. A origem dessa expressão baseia-se em folhas de papel branquinhas, limpinhas e sem amassados, encontradas em livros novos, recém impressos. Assim, trata-se de livros “novos em folha”.
   
Ovelha negra

Esta expressão não é brasileira nem restrita à língua portuguesa. Vários outros idiomas também a utilizam para designar alguém que destoa de um grupo, assim como uma ovelha da cor preta se diferencia em um rebanho de animais brancos. Na Antiguidade, os animais pretos eram considerados maléficos e, por isso, sacrificados em oferenda aos deuses ou para acertar certos acordos. Daí o hábito de chamar de "ovelha negra" aqueles que se diferenciam por desagradar e chocar aos demais.

Guardar a sete chaves

No século 13, baús eram usados para guardar joias e documentos da corte de Portugal. Cada baú tinha quatro fechaduras e era aberto por quatro chaves distribuídas entre funcionários do reino. Com o tempo, os baús caíram em desuso. E algo que antes estava bem “guardado a quatro chaves”, passou a ser “guardado a sete chaves”, devido ao misticismo associado ao número 7. Esse misticismo originou-se nas religiões primitivas babilônicas e egípcias, que cultuavam os sete planetas conhecidos na época. Assim, a expressão “guardar a sete chaves” está relacionada ao ato de guardar algo com segurança e sob sigilo absoluto.
   
Tintim por tintim

Corrente tanto no português do Brasil como em Portugal, a expressão "tintim por tintim" é utilizada para falar de alguma coisa descrita em seus mínimos detalhes. Segundo o filólogo brasileiro João Ribeiro, “tintim é a onomatopeia do tilintar de moedas”, ou seja, tintim é o barulho que uma moeda faz quando cai sobre outra. Em sua origem, a expressão “tintim por tintim” era usada para se referir a uma conta ou dívida paga até a última moeda. Assim, quando queremos obter informações precisas sobre algum fato ou situação, costumamos dizer: "Conte-me tudo, tintim por tintim”.
=================
continua...

Miguel Carneiro (Balada do Cangaceiro sem Mãe e Outras Baladas) V

A FUNÇÃO DE UM POETA

Eu não era tão amargo assim,
nem trazia no rosto a marca do sofrimento.
O semblante sisudo herdei por conta das tragédias.
E o sorriso de menino indefeso desapareceu de meus lábios finos.
Quando descobri verdadeiramente o mundo
esse se desmoronou sob os meus pés.
Procurei, então, nas sendas do passado:
Tude, a negra alta, que mercava fufu
numa lata de manteiga da Aliança para o Progresso,
Os cambucás doces da Lagoa Funda de Américo Carneiro,
A suave proteção de meu avô Augusto Asclepíades.
Mas tudo se esvaiu como uma névoa branca
repleta de saudades.
Canto agora a minha dor,
e sou apenas um pequeno poeta jacuipense,
num canto escuro de uma casa,
sem amor.

BOQUEIRÃO DE MINHAS LEMBRANÇAS
Para minha filha Laura

“Santa Bárbara, Virgem
dos cabelos louros
a sua morada
é na pedra do ouro”
Domínio Público


Tocós, Cipó, Cocorobó, Caldeirão
Riachinhos, riachos, fontinhas, minação
Cedro, Peixe, Sacraiú, Riachão

Água de beber, água de beber, água de beber, meu irmão

Pedra do Taquari, Passagem, Olaria, Tanque da Nação
Cari, corró, donilo, piaú, camarão
Cabaça, carote, pote, porrão

Água de beber, água de beber, meu irmão

Rio do Peixe, Rio Castelo, Rio Achado no Chão
Rede de Três Maio, canoa, tarrafa, temporão
Lagoa Funda, Barreiros, São José, Gavião

Água de beber, meu irmão
Baronesas, golfos, mulungus, sangradouros, corrimão
Afogados da Gameleira, Mestre Domingos, Lontras,
Zé de Epifânio acordando os peixes no breu da escuridão.

Noites de velas,Sentinelas, Água de gasto
Teu batismo João.
Por favor,
Não mate meu Jacuípe
Não mate meu Jacuípe
Povo de meu Riachão.

Senhor,
Meu Deus!
Não me deixeis cair também nessa tentação.

Agora e para sempre
Na hora de nossa morte,
Rios de minha vida
Ó ó ó doce Boqueirão.

BALADA DE AFONSO MANTTA

Lá vai, lá vai, lá vai...
Lá vai Afonso pra se encontrar com Deus.
Recitando em redondilha maior
Toda a verve de um ateu
na província de São Fudeu.

Lá vai, lá vai, lá vai...
Lá vai Afonso pra se encontrar com Deus.
E rebradar que a loucura
não deixa o juízo apodrecer,
e que pela terra ficaram poetas,
de varas tesas até o amanhecer.

Lá vai, lá vai, lá vai...
Lá vai Afonso pra se encontrar com Deus
em sua perpendicular,
fazendo da pedra de toque,
o ouro que ornata seu versejar.

Lá vai, Lá vai, lá vai...
Lá vai Afonso pra se encontrar com Deus.
E nesse adeus,
estamos nós esperando a hora chegar.

BALADA DO AMARGOSO

Meu avô Antônio Geminiano Santana não nasceu escravo,
mas como escravo fosse,
e sentisse no lombo o peso do vergalho seco de boi,
açoitado por um capitão do mato ou qualquer capataz,
e gemesse de dor na Coluna do Suplício.

Meu avô Antônio Geminiano Santana,
negro forro das terras do Amargoso,
vaqueiro do coronel Aurélio Mascarenhas,
comia em casco de cágado,
bebia num litro de óleo rícino,
como forma de humilhá-lo.

Das boiadas que meu avô Antônio Geminiano Santana tangeu pela vida afora
muitas ficaram pelos caminhos,
ou se perderam dentro dos próprios currais dos Mascarenhas.
Algumas foram trocadas numa mesa de pôquer,
todas marcadas a ferro que o próprio tempo
fez questão que a escória e a oxidação perdesse o sinal de ferrreiro,
moldado o ferrete em ferro aceso no bater do martelo na bigorna
fria da Rua dos Velhacos.

E as terras que meu avô Antonio Geminiano Santana mediu na vara de braço,
só restaram a traça corroendo os selos, à tinta dos carimbos, e o calhamaço de
averbação,
em pleno arquivo morto, jaz no Fórum Desembargador Abelard Rodrigues dos Santos,
meu padrinho, em pleno Riachão.

Meu avô Antônio Geminiano manso como suas próprias criação,
tangia com vovó Umbulina sua prole numerosa que se espalhou pelo sertão ,
e de espeto de aguilhão,
sentiu nas costas iniqüidade dos coronéis de títulos comprados à Guarda Nacional.
Não havia a quem reclamar:
se a Deus ou se ao Diabo.
Morreu pobre
abandonado num beiço de tanque,
enfartado e roxo,
no dia que o coronel lhe expulsou da própria fazenda,
que há quarenta anos tomava conta.
E em seu féretro,
o coronel também lá não apareceu,
ficando somente eu,
para recontar seu amargoso.

Fontes:
Miguel Carneiro. Balada do Cangaceiro Sem Mãe e outras Baladas
Imagem = Pintura em tela . textura e tinta acrílica, de Katia Almeida

Beatriz Alcântara (Vizinhança)

Na varanda do sétimo andar, o cão, patas apoiadas no parapeito, olha o nevoeiro. O dono, a seu lado, fuma cigarro após outro fitando o horizonte. Manhã de sol, o homem abre a porta da varanda num elegante pólo, penteado com gel, pendura meticulosamente a roupa no varal. O cão, focinho fora da balaustrada, observa a rua que jamais frequenta. Dia inteiro de calor, o animal e seu senhor, sempre muito bem vestido, olham com melancolia o pôr-do-sol num céu
laranja como brasa sobre nuvens em carneirinhos. Natal, duas mulheres, uma marcadamente mais nova, aparecem por instantes na varanda, olham os arredores e logo fecham a porta ao vento e ao frio. Pela Páscoa, a Judiciária entra e sai, sem demora, do prédio. O homem vem à janela e prega nos vidros um papel, "Vende-se". Pouco depois a mulher jovem encosta o carro à porta do prédio e o indivíduo, acompanhado pelo fiel animal, entra na viatura seguindo rua afora. Mas tarde, a porteira avisa ao carteiro, terminou a prisão domiciliar do doutor.

Fonte:
REBRA

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Beatriz Alcântara

Maria Beatriz Rosário de Alcântara nasceu em Fortaleza, Ceará. Filha de pais portugueses, passou a adolescência em Portugal. Licenciada em Letras pela Universidade Federal do Ceará e Mestra em Literatura pela Universidade de Brasília. Professora da Universidade Estadual do Ceará. Integrou o Grupo Seara de Literatura e pertence ao Grupo Espiral. Membro da Academia Cearense de Letras, Academia Fortalezense de Letras e da Academia de Letra e Artes do Nordeste Brasileiro. Poeta, ensaísta e contista. Publicou, de poesia e ensaios, os livros La Revolte Positive de Simone Beauvoir (1973); Fernando Pessoa e o Movimento Futurista de Álvaro de Campos (1985); La Parure; A Academia Brasílica dos Esquecidos (1993); Água da Pedra; O Portal e a Passagem; Raízes do Tempo; Folha de Prata e Livre Sinfonia; além do livro de contos Daquém e Dalém-Mar (1993). Participa também de diversas coletâneas, como da Revista Seara, Revista Espiral, O Livro da Ajebiana, Contos Correntes e Antologia do Conto Cearense, dentre outras.

                Daquém e dalém-mar é o livro de estreia de Beatriz Alcântara no gênero conto. Para Moreira Campos, prefaciador do volume, “impõe-se a obra, de logo, pela linguagem trabalhada, limpa, corrente e pelos vários temas de que se vale (são 16 contos, ao todo, 4 portugueses e 12 brasileiros), o que testemunha a imaginação fértil da autora”. Em “Mito rei” o leitor testemunha o velório da jovem Abigail, que “morreu daquela queda besta na calçada quando saltou do lotação” e “bateu com a cabeça no meio-fio”. Trata-se, na verdade, de conto de duplo enredo. A morte e o velório da moça seriam meros artifícios para a entrada em cena de outro personagem, cuja história se vai contanto (pelo narrador onisciente), enquanto se desenvolve o diálogo entre mãe e filha (prima da morta). A chegada do desconhecido instaura o mistério na sala (e no conto). Aliás, o mistério é uma constante neste livro. “Cortejos e avisos” é um conto misterioso, elaborado a partir de sonhos, pesadelos e premonições da narradora.

                Segundo Moreira Campos, “são múltiplos os caminhos da autora. Ora se envereda por experiências filosóficas, como no conto Monólogo da Coisa, ou não esquece o fantástico, o extraordinário, particularmente no conto Cortejos e Avisos. Ora se faz hermética, submersa, irrevelada, deixa ao leitor capaz a tarefa de preencher vazios. Um outro elemento de modernidade em Beatriz Alcântara é o conto curto, breve, um “flash”, mancha”. Uma das peças é constituída somente de diálogos; outra é um monólogo, espécie de apólogo.

                É forte a presença feminina nos contos de Beatriz. A protagonista Potyrama de “No divã” inverte os papéis de paciente e analista, ao “analisar” o psicanalista. Maria, da história que leva o seu nome, é outra personagem interessante, embora de feitio diferente de Potyrama. Enigmática, chega ao vilarejo da Taiba (litoral do Ceará), encosta “seus poucos pertences em cima da gruta, debaixo de um coqueiral”, e ali vai vivendo.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

sábado, 18 de janeiro de 2014

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 14)


Zerai os ressentimentos
e as mágoas do coração.
– Sem rancores, os bons ventos
novamente soprarão!
A. A. DE ASSIS – Maringá/PR
-
Se a noite chega cansada
de caminhar sempre ao léu,
Deus dá vinhos de alvorada
na taça rubra do céu.
ADELIR MACHADO – Niterói/RJ
-
Quebro a taça do passado
e o vinho espalhado ao chão
é meu brinde apaixonado
aos cacos de uma ilusão.
ALBA CHRISTINA CAMPOS NETTO – São Paulo/SP

-
Quando o inverno, com seu manto,
cobre de frio os caminhos,
o vinho é o doce acalanto
do coração dos sozinhos…
ALBERTINA MOREIRA PEDRO – Rio de Janeiro/RJ

-
A saudade, sem carinho,
procura, nas noites frias,
por velhas taças de vinho
que a vida já pôs vazias!
AMÁLIA MAX – Ponta Grossa/PR
-

O medo é perturbador
e afeta a nossa razão;
faz que coisas sem valor
pareçam mais do que são.
AMILTON MONTEIRO – São José dos Campos/SP
-
Neste meu verso amoroso
digo com certa emoção:
- a trova é vinho gostoso
que embriaga o coração.
ANITA THOMAS FOLMANN – Ponta Grossa/PR
-
Meigo menino sem nome
- alma e vida seminuas -
devora o vinho da fome
pelas adegas das ruas.
ANTONIO BISPO DOS SANTOS – Niterói/RJ
-
Amor é brisa suave,
é aconchego, é carinho;
é vôo cadente da ave
indo em busca do seu ninho.
ANTONIO MANUEL ABREU SARDENBERG – São Fidélis/RJ
-
O pedestre inteligente
sem excesso de confiança,
atravessa, calmamente,
na faixa de segurança.
CAMILO BORGES NETO – Curitiba/PR
-
Goza o momento que passa.
Repara que, em nossas vidas,
nem sempre há vinho na taça,
mas, há, sempre, despedidas…
CARLOS GUIMARÃES – Rio de Janeiro
-
O café que aquece as almas
e adoça nossas lembranças
merece todas as palmas,
companheiro de esperanças.
CARMEN PIO – Porto Alegre/RS
-
Pai, nos caminhos da vida,
seu exemplo é solução,
onde descubro a saída
pra qualquer complicação…!!!
CECILIA SOUZA ENNES – Curitiba/PR
-
Se o frio for prolongado
nestes dias de inverno,
dê calor ao flagelado,
seja um pouco mais fraterno!
CECILIANO JOSÉ ENNES NETO – Curitiba/PR
-
Para mim a ecologia
é sagrado compromisso.
É meu sonho ver um dia
pescador só de caniço.
CECIM CALIXTO – Tomazina/PR
-
Não há vinho que me faça
esquecê-la um só segundo,
porque vejo em cada taça
a imagem dela, no fundo.
CLARINDO BATISTA DE ARAÚJO – Natal/RN
-
Eu, como quem desabafa
no vinho a dor que lhe esmaga,
vou pondo a dor na garrafa
do vinho que me embriaga.
DIVENEI BOSELI – São Paulo/SP
-
Caminhos que contêm flores.
Caminhos cheios de espinhos,
os caminhos dos amores.
Caminhos, longos caminhos...
DJALMA MOTA – Caicó/RN
-
Brigamos… E o amor, injusto,
prendendo-me a um labirinto,
põe no vinho, que degusto,
todo o amargor que ainda sinto!
EDMAR JAPIASSÚ MAIA – Rio de Janeiro/RJ
-

Bendito seja o sujeito
que, traído pelo irmão,
tira do fundo do peito
a fortuna do perdão!
EDUARDO TOLEDO – Pouso Alegre/MG
-
Querência… O encanto profundo
dos dias calmos, risonhos…
- Um pedacinho de mundo
no mundo azul dos meus sonhos.
ELISABETH N. PASCHOAL – Taubaté/SP
-
Se em teu caminho prossegues
um grande amor procurando,
vai em frente, tu consegues,
basta continuar tentando!...
FLÁVIO ROBERTO STEFANI – Porto Alegre/RS
-
Quando a tristeza rescinde
contrato com o coração,
louve a Deus e faça um brinde
com o vinho dda gratidão.
FRANCISCO LUZIA NETTO – Amparo/SP
-
Te levanto, vino tinto,
cual obrero triunfador,
mis labios de color pinto
con el mosto abrasador.
GERMÁN ANTONIO ECHEVERRÍA AROS – Chile
-
Café Damasco… Sabor!
Gosto bem quente e bem forte,
tanto no frio ou calor,
Instantâneo ou em pacote!
GUIMARÃES TABORDA BUENO – Curitiba/PR
-
Aquelas nuvens revoltas
sob o imenso firmamento,
parecem ovelhas soltas
voando a favor do vento.
HELY MARÉS DE SOUZA – União da Vitória/PR
-
Vagando em brandos festejos,
antes que a brisa se amoite,
os vaga-lumes são beijos
que os anjos trocam de noite.
HUMBERTO DEL MAESTRO – Vitória/ES
-
Quando a tristeza não passa,
forço um sorriso no rosto,
ponho vinho em minha taça
e ergo um brinde ao meu desgosto!…
IZO GOLDMAN – São Paulo/SP
-
Poesia: flor de mistério
que brota do coração,
e abre as pétalas de etéreo
no céu da imaginação.
J. G. DE ARAUJO JORGE – AC
-
Foi São Francisco a grandeza
do amor cristão e profundo...
que, abrindo mão da riqueza,
abriu as mãos... para o mundo!
JOÃO FREIRE FILHO – Rio de Janeiro/RJ
-
Meu consolo, na tristeza,
quando, no peito, a agasalho,
é o pranto da natureza,
nas gotas tristes do orvalho.
JOSAFÁ SOBREIRA DA SILVA – Rio de Janeiro/RJ
-
Foram felizes instantes,
Juventude na querência
Hoje em terras tão distantes
Pilcha…mate…sinto ausência.
JOSÉ FELDMAN – Maringá/PR
-
Se nunca me abate a lida,
é porque sempre reponho
minha energia perdida,
tomando o vinho do sonho.
JOSÉ NOGUEIRA DA COSTA – Pouso Alegre/MG
-
Marcaram minha existência
duas "heranças" fatais:
no amor, a palavra "ausência";
na ausência, a expressão "jamais"...
JOSÉ OUVERNEY – Pindamonhangaba/SP
-
Cada vez mais terno e amigo,
na verdade o nosso amor
tem muito do vinho antigo
que o tempo apura o sabor!
JOSÉ TAVARES DE LIMA – Juiz de Fora/MG
-
Foi assim que me deixaste:
Sem nenhuma explicação!
E sepultada ficaste
neste infeliz coração.
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE – Pinhalão/PR
-
Como atitudes presentes,
a envelhecer feito os vinhos,
bons exemplos são sementes
lançadas pelos caminhos.
LAVÍNIO GOMES DE ALMEIDA – Barra do Piraí/SP
-
Renúncia, pra São Francisco,
foi total libertação;
ter posses é sempre um risco
para a alma em ascensão.
LÓLA PRATA – Bragança Paulista/SP
-
O vinho dissipa o tédio
em que o fracasso nos joga.
Na dose certa é remédio,
em excesso, nos afoga!…
LOURDES REGINA F. GUTBROD – Rio de Janeiro/RJ
-
De volta, naquela viagem,
carregando o olhar tristonho,
via de perto a paisagem,
mas bem distante o meu sonho...
LUCÍLIA TRINDADE DECARLI – Bandeirantes/PR
-

Asoma por la ventana
la luna su triste faz:
¿Dónde está Mario Quintana
que no me canta ya más?
MARIA ELENA ESPINOSA MATA – México
 -
Renúncia... amor  em pedaços...
que se prendeu num tear,
no emaranhado de laços,
que eu tento em vão desfiar...
MARIA LUA – Nova Friburgo/RJ
-
Ao clamor da Liberdade,
tremem os reis e as nações,
porque a força da verdade
tem mais força que os canhões!
MARIA LÚCIA DALOCE CASTANHO – Bandeirantes/PR
-
Com volúpia e desvario,
neste amor vou mergulhar...
Eu me sinto como o rio,
que se atira para o mar!
MARIA THEREZA CAVALHEIRO – São Paulo/SP
-
No abandono, em desalinho,
eu sonho me embriagar
na branca taça de vinho
que se derrama em luar!
MARINA BRUNA – São Paulo/SP
-
Meu querido piano amigo,
com acordes de veludo…
Quando estou junto contigo,
logo me esqueço de tudo!
MARITA FRANÇA – Curitiba/PR
-
São gotas de poesia,
ou de algum raro licor,
que o orvalho, com alegria,
põe no cálice da flor.
MARLÊ B. J. DE ARAÚJO – Viamão/Portugal
-
Fecho os olhos... sou cativo
da saudade que me escolta
e teima em me dar motivo
para crer na sua volta.
MAURÍCIO CAVALHEIRO – Pindamonhangaba/SP
-
O licor molha o carpete…
E o par de taças quebradas
brinda o silêncio… e reflete
nossas noites fracassadas.
MILTON SEBASTIÃO SOUZA – Porto Alegre/RS
-
A videira busca o sumo
em solo fértil, profundo,
e faz do vinho um resumo
das alquimias do mundo.
MOACYR SACRAMENTO – Niterói/RJ
-

Foi por falta de carinho
que errei e perdi meus passos,
mas bendigo o “mau caminho”
que me levou aos teus braços...
NÁDIA HUGUENIN – Nova Friburgo/RJ
-
Nas águas em que vivemos,
onde mais nada magoa,
teus braços serão meus remos
e a nossa cama... a canoa...
NEIDE ROCHA. PORTUGAL – Bandeirantes/PR
-
Tudo agora é tão comum!
Nada dói na consciência...
Mas não há motivo algum
que justifique a violência.
OLGA AGULHON – Maringá/PR
-

Eis meu desejo ideal,
minha utopia e quimera:
– ver seus braços, afinal,
abrirem-se à minha espera!
RENATO ALVES – Rio de Janeiro/RJ
-
Quando me assalta a saudade
de te ver, de te falar,
saio, cheio de ansiedade,
com o fim de te encontrar.
SERAFIM FRANÇA – Curitiba/PR
-
Sei que este mundo é mesquinho,
mas, Senhor Deus, não aceite
que alguns se fartem de vinho,
pois há crianças sem leite!
SÉRGIO MIRANDA FILHO – Rio de Janeiro/RJ
-

Que verdura, que beleza,
o vinhedo sobre o monte,
quando a mão da Natureza
borda a tela do horizonte!
SEBASTIÃO SOARES – Natal/RN
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Tendo o amor por inquilino,
com coragem e artimanha,
meu coração é um menino
que ora bate... que ora apanha!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA – São Paulo/SP
-
O jardim, nos seus atalhos,   
unindo vários canteiros,
tece colcha de retalhos,
ungido com doces cheiros...
VANDA ALVES – Curitiba/PR
-
Eu tinha o corpo cansado…
Ao dela faltava amor…
- E foi um vinho encorpado
que deu corpo ao nosso amor!…
WALDIR NEVES – Rio de Janeiro/RJ
-
No seu espaço abrangente,
a vida é espaço comum:
mistura um pouco da gente
na vida de cada um.
VANDA FAGUNDES QUEIROZ – Curitiba/PR
-
Na lareira um fogo brando
e, entre doses de licor,
nossos corpos desenhando
todas as formas de amor.
WILMA MELLO CAVALHEIRO – Porto Alegre/RS