quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Conto do Egito (O Marido Enganado)

O príncipe Khafré levantou-se para falar: “Vou contar à tua majestade um prodígio que aconteceu no reinado do teu pai Nebka, justificado, quando ele foi ao templo de Ptah, senhor de Ankhhtaui”.

Ora, quando sua majestade foi a Ankhtaui, chamou o sacerdote leitor chefe Ubaoner. Aconteceu que a mulher de Ubaoner se apaixonou por um homem da cidade e mostrava a sua afeição mandando presentes de roupa pela sua serva. Sempre que havia condições, ela mandava a serva levar o seu amante até à casa de Ubaoner. Aí o homem da cidade dizia à esposa de Ubaoner: “Há um pavilhão no jardim, pois bem, vamos lá passar um momento feliz.”

Então a mulher de Ubaoner disse ao servidor encarregado do jardim: “Faz preparar o pavilhão que está no jardim”.

Em seguida ele e ela passaram o dia a beber. Quando escureceu o homem da cidade desceu para o lago, a fim de ali se purificar enquanto a serva procurou o encarregado do jardim e contou-lhe o que sua ama tinha feito.

Logo que nasceu o dia seguinte, a primeira coisa que o encarregado do jardim fez foi procurar o seu senhor Ubaoner e contar-lhe tudo o que ouvira da serva. Então Ubaoner ordenou ao encarregado do jardim que fosse buscar a sua caixa mágica. Era uma caixa maravilhosamente elaborada, feita de ébano com decorações de ouro. Depois Ubaoner tirou dela uma espécie de cera e fez um modelo de crocodilo com sete côvados de comprimento. Recitou então encantamentos mágicos sobre o modelo de crocodilo e disse-lhe: “Quando alguém chegar para se banhar no meu lago, apodera-te dele.”

Depois de ter dito a sua fórmula, Ubaoner entregou o crocodilo ao encarregado do jardim e disse-lhe: “Espera o momento em que o tal homem entrar no meu lago para tomar banho, segundo o seu costume diário: lança então este crocodilo na água na direção dele.”

O encarregado do jardim retirou-se, levando com ele o crocodilo de cera. Pouco depois, a mulher de Ubaoner disse ao encarregado do jardim: “Faz preparar o pavilhão que está no meio do jardim, porque eu quero passar lá um momento.”

O pavilhão foi então fornecido de todas as coisas boas. A dama passou depois um dia feliz com o homem da cidade. Ora quando veio o entardecer ele foi até o lago como fazia todos os dias. Então o encarregado do jardim lançou à água o crocodilo de cera, e este transformou-se num
crocodilo com sete côvados, apoderando-se do homem da cidade. Entretanto, Ubaoner passou sete dias com a majestade do rei Nebka, enquanto o homem da cidade era mantido, sem respirar, nas profundezas do lago. Depois desse tempo, a majestade do rei Nebka, foi a Mênfis, e o sacerdote leitor chefe Ubaoner aproximou-se dele, dizendo: “Quer a tua majestade acompanhar-me e ver um prodígio do teu reinado?”.

O rei acompanhou Ubaoner até ao lago e então o sacerdote chamou o crocodilo, dizendo: “Traz-e o homem até aqui”.

Quando o crocodilo apareceu com o homem, sua majestade disse: “Esse crocodilo é certamente perigoso.”

Ubaoner curvou-se e pegou no crocodilo, que se tornou de novo um modelo de cera na sua mão. Depois o sacerdote leitor chefe Ubaoner contou à majestade do rei Nebka, o que o homem da cidade tinha feito com sua esposa. Então sua majestade disse ao crocodilo: “Toma o que te pertence.”

O crocodilo mergulhou no lago e nunca ninguém soube para onde ele foi com o homem da cidade. A majestade do rei Nebka, ordenou em  seguida que a mulher de Ubaoner fosse levada para um terreno aberto na zona norte do palácio, onde ela foi queimada, sendo suas cinzas lançadas ao rio.

“Foi esse o prodígio que aconteceu no reinado do teu pai, o rei Nebka, graças à arte do sacerdote leitor chefe Ubaoner”, disse Khafré.

Então a majestade do rei Khufu disse: “Que sejam oferecidos mil pães, cem jarros de cerveja, um boi e duas medidas de incenso ao rei Nebka, e que seja entregue um bolo, um jarro de cerveja, um naco de carne e uma medida de incenso ao sacerdote leitor chefe Ubaoner, porque eu vi um exemplo do seu poder.”

E tudo foi feito de acordo com o que sua majestade tinha ordenado.

Fonte:

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Guilherme de Almeida (Poemas Escolhidos)



NÓS, I

O pequenino livro, em que me atrevo
a mudar numa trêmula cantiga
todo o nosso romance, ó minha amiga,
será, mais tarde, nosso eterno enlevo.

Tudo o que fui, tudo o que foste eu devo
dizer-te: e tu consentirás que o diga,
que te relembre a nossa vida antiga,
nos dolorosos versos que te escrevo.

Quando, velhos e tristes, na memória
rebuscarmos a triste e velha história
dos nossos pobres corações defuntos,

que estes versos, nas horas de saudade,
prolonguem numa doce eternidade
os poucos meses que vivemos juntos.

PERCEVAL

Ele, o monge, dizia: "Eu fui glorioso e forte:
chamavam-me, no mundo, o Belo Perceval...
Muito alfanje inimigo, embaixador da morte,
estalou no broquel pregado ao meu braçal!

Por Brancaflor venci, sozinho, uma coorte;
zombei do Rei Artur, matando-lhe o rival;
ao brilho do meu nome e esplendor do meu porte
eu conquistei a glória, um trono e o Santo Graal!

Depois... fiz-me eremita. E, à sombra de uma penha,
eu vesti, sem amor, sem fé, sem esperança,
sobre a armadura de aço o manto de estamenha...

Porque — ai de mim! — se o meu arnês nunca sequer
deixou que perpassasse a ponta de uma lança,
também não quis que entrasse o olhar de uma mulher!"

DOR OCULTA

Quando uma nuvem nômade destila
gotas, roçando a crista azul da serra,
umas brincam na relva; outras, tranquila,
serenamente entranham-se na terra.

E a gente fala da gotinha que erra
de folha em folha e, trêmula, cintila,
mas nem se lembra da que o solo encerra,
da que ficou no coração da argila!

Quanta gente, que zomba do desgosto
mudo, da angústia que não molha o rosto
e que não tomba, em gotas, pelo chão,

havia de chorar, se adivinhasse
que há lágrimas que correm pela face
e outras que rolam pelo coração!

FELICIDADE

Ela veio bater à minha porta
e falou-me, a sorrir, subindo a escada:
"Bom dia, árvore velha e desfolhada!"
E eu respondi: "Bom dia, folha morta!"

Entrou: e nunca mais me disse nada...
Até que um dia (quando, pouco importa!)
houve canções na ramaria torta
e houve bandos de noivos pela estrada...

Então, chamou-me e disse: "Vou-me embora!
Sou a Felicidade! Vive agora
da lembrança do muito que te fiz!"

E foi assim que, em plena primavera,
só quando ela partiu, contou quem era...
E nunca mais eu me senti feliz!

SONETO ÚNICO

Vejo a sombra partir-se pelo meio
e pôr-me duas pálpebras na face;
minha boca de sede bebe o seio
de alguma estrela que me amamentasse;

tem um peso de terra o corpo alheio
que há no meu corpo; em meus ouvidos nasce
uma árvore cantando um vento cheio
de céu em cada enlace e desenlace;

em minhas mãos paradas pousam ninhos;
vão os passos de todos os assombros
andando as minhas veias de caminhos;

e há, para o vôo aceso numa aurora,
pressentimentos de asas nos meus ombros
— quando a Moça da Foice me namora.

LÍRICA CAMONIANA
A Camoniana é composta por 26 sonetos de sabor camoniano que registram estados emocionais de um  breve mas intenso e atribulado caso de amor do poeta, já na meia idade.

[TRISTEZA]

Tristes versos que a pena entristecida
Foi, por o gosto de penar, traçando,
Sem saber que me estava retalhando,
A alma, o peito, a razão, o sonho, a vida:

Em quais terras da terra será lida
A confidência que ides confiando?
E, bem mais e melhor que lida, quando,
Em qual tempo dos tempos, entendida?
Às terras, e ainda aos tempos mais diversos,
Ide, sem pressa aqui, ali sem pausa,
Pois só por o partir foi que partistes.

Qual glória heis de esperar, meus tristes versos,
Se já vos falta aquela vossa causa
De serdes versos e de serdes tristes?

[PAIXÃO]

Se isto de amar é só viver morrendo
E achar-me de tal morte satisfeito;
Não do meu ser, mas de outro, ser sujeito,
Sendo menos quem sou do que outrem sendo;

Se é ao meu coração ir prometendo
Lugar conforme num alheio peito,
E, em se ele mais mostrando, de tal jeito,
Das suas mostras mais ir-me escondendo;

Se isto é amor, e se a Fortuna é essa
Que se exp'rimente em mim a sua lei;
Se uma esquivança após de uma promessa

E o nada ter é tudo o que terei:
Que lhe sei já pedir, que me não peça?
Que me pode já dar, que lhe não dei?

[POSSE]

Tanto de vossa vida vivo ausente,
Quanto perto viveis de minha vida:
Onde presente sou, sois escondida,
Onde sou escondido, sois presente.

Mandais que vossa vida se acrescente,
Não de alguma outra coisa prometida,
Que não da coisa que não for vivida,
E com coisa outra alguma se contente.

Porém, se tenho eu pouco e tendes muito,
Igual parte provamos de igual fruito,
Pois responde o que quero ao que podeis.

Vede que um mesmo engano é o meu, e é o vosso:
Por minha quero ter-vos, e não posso,
Por vosso podeis ter-me, e não quereis.

[AUSÊNCIA]

A qual parte vos fostes, que vos vejo
Mais que nunca presente em toda parte?
Tanto sois para mim que, se o que parte
É muito, inda o que fica me é sobejo.

A cada instante meu, a cada ensejo,
Tão bem, por formas tais e de tal arte
Vossa apartada imagem se reparte,
Que nada mais já sobra ao meu desejo.

Qual, fugindo da terra, pela altura
Vai-se o sol, tal vos fostes, ordenando
Que a meus pés fique a sombra sobre o pó.

Tanto o vosso rigor nisso se apura,
Que em vos partindo só, e em me deixando,
Nem me deixais o gosto de ser só.

[IMORTALIDADE]

Alma que de meu corpo te apartaste,
Corpo que de minh'alma te partiste,
E que dest'arte em dois me repartiste,
E numa só desdita a ambos juntaste:

Qual vida é igual à morte que inventaste?
Qual morte mais do que tal vida é triste?
Que humano ser tão desumano existe
Que haja sua igualdade em tal contraste?

Ante a razão porque a razão cativa
No próprio cativeiro acha conforto,
E às vezes se abandona, outras se esquiva,

Chego a quedar-me ante mim mesmo absorto,
Alma sem corpo, que não sei se é viva,
Corpo sem alma, que não sei se é morto.

[DIVAGAÇÃO]

Naquela solidão, naquela altura
Onde os olhos nos montes apascento,
E é o sonho, no seu doce alheamento,
Mais verde d'esperança que a verdura;

Onde a vida adormece, e de mistura
Aos sentidos se afaz o entendimento,
Ali me vos figura o pensamento,
Branda de pensamento e de figura.

Que é minha condição, meu mal sobejo
Andar a minha vista revistando
Apenas o que avista o meu desejo.

Sem ventura de mim que, imaginando,
Se vos não vejo, sonho que vos vejo,
E se vos vejo, cuido estar sonhando!