terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Fernando Pessoa (Quadras ao Gosto Popular) II


Teu xale de seda escura
É posto de tal feição
Que alegre se dependura
Dentro do meu coração.

O manjerico comprado
Não é melhor que o que dão.
Põe o manjerico ao lado
E dá-me o teu coração.

Rosa verde, rosa verde,...
Rosa verde é coisa que há?
É uma coisa que se perde
Quando a gente não está lá.

A rosa que se não colhe
Nem por isso tem mais vida.
Ninguém há que te não olhe
Que te não queira colhida.

Andorinha que passaste,
Quem é que te esperaria?
Só quem te visse passar
E esperasse no outro dia.

Nuvem do céu, que pareces
Tudo quanto a gente quer,
Se tu, ao menos, me desses
O que se não pode ter!

Vai alta a nuvem que passa.
Vai alto o meu pensamento
Que é escravo da tua graça
Como a nuvem o é do vento.

Ambos à beira do poço
Achamos que é muito fundo.
Deita-se a pedra, e o que eu ouço
É teu olhar, que é meu mundo.

Aquela senhora velha
Que fala com tão bom modo
Parece ser uma abelha
Que nos diz: «Não incomodo.»

Dás nós na linha que cose
Para que pare no fim.
Por muito que eu pense e ouse,
Nunca dás nó para mim.

Boca com olhos por cima
Ambos a estar a sorrir...
Já sei onde está a rima
Do que não ouso pedir.

Tinhas um pente espanhol
No cabelo português,
Mas quando te olhava o sol,
Eras só quem Deus te fez.

Boca de riso escarlate
E de sorriso de rir...
Meu coração bate, bate,
Bate de te ver e ouvir.

Acendeste uma candeia
Com esse ar que Deus te deu.
Já não é noite na aldeia
E, se calhar, nem no céu.

As gaivotas, tantas, tantas,
Voam no rio pró mar...
Também sem querer encantas,
Nem é preciso voar.

As ondas que a maré conta
Ninguém as pode contar.
Se, ao passar, ninguém te aponta,
Aponta-te com o olhar.

Todos os dias que passam
Sem passares por aqui
São dias que me desgraçam
Por me privarem de ti.

Não sei que grande tristeza
Me fez só gostar de ti
Quando já tinha a certeza
De te amar porque te vi.

A mantilha de espanhola
Que trazias por trazer
Não te dava um ar de tola
Porque o não podias ter.

O moinho de café
Mói grãos e faz deles pó.
O pó que a minh'alma é
Moeu quem me deixa só.

Boca de riso escarlate
Com dentes brancos no meio,
Meu coração bate, bate,
Mas bate por ter receio.

Se há uma nuvem que passa
Passa uma sombra também.
Ninguém diz que é desgraça
Não ter o que se não tem.

Tu, ao canto da janela,
Sorrias a alguém da rua.
Porquê ao canto, se aquela
Posição não é a tua?

Há grandes sombras na horta
Quando a amiga lá vai ter...
Ser feliz é o que importa,
Não importa como o ser!

Tenho um livrinho onde escrevo
Quando me esqueço de ti.
É um livro de capa negra
Onde inda nada escrevi.

Meu coração a bater
Parece estar-me a lembrar
Que, se um dia te esquecer,
Será por ele parar.

Trazes o vestido novo
Como quem sabe o que faz.
Como és bonita entre o povo,
Mesmo ficando para trás!

A tua boca de riso
Parece olhar para a gente
Com um olhar que é preciso
Para saber que se sente.

Tome lá, minha menina,
O ramalhete que fiz.
Cada flor é pequenina,
Mas tudo junto é feliz.

O avental, que à gaveta
Foste buscar, não terá
Algibeira em que me meta
Para estar contigo já?

PESSOA, Fernando, Quadras ao gosto popular, Lisboa, Ática, 1994.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

João Batista Xavier Oliveira (Trovas Collection) III

Fonte: O Trovador

Olivaldo Júnior (Um passarinho só)


Era uma vez um passarinho. Ou seria um poeta? Bem, era uma vez um passarinho. Um passarinho só. Pássaro que, por um breve momento de sua vida, pensou ter achado os seus para estar entre eles com toda a liberdade. Ledo engano!... Assim como disse a poeta Orides Fontela num de seus versos, "muito além é o país do acolhimento". Ora, ora, ele que não esperaria para ver o trem da vida aparecer no tal país, porque não apareceria mesmo.

Sozinho outra vez, passou a voar na Internet, onde não se voa, mas se navega. Transgressor sem dar na vista, ele voava, deixando rastros, migalhas na tela, para, caso quisesse, um dia poder fazer o caminho de volta, indo direto para casa. Mas onde ficava mesmo sua casa? Onde era seu ninho? Não se lembrava mais, ou, melhor ainda, lembrava-se, mas não era mais possível voltar. Era só e, sozinho mesmo, continuaria. E era tão difícil!

Dia após dia, o mesmo aparente pássaro de sempre voava e voava em busca de.. O que é que ele procurava mesmo? Ah! Muitas vezes lhe fugia a ideia daquilo que estava mesmo buscando, à procura, ou querendo, então, nessas horas, cantava, deixando seu canto ir no ar e no mar de intenções da Internet, a fim de, quem sabe, achar outro náufrago que o escutasse e quisesse trocar umas letras com ele. Muitos, embora o ouvissem, não ligavam.

Cansado, com o peso de suas asas de palavras sobre as costas, sentia a lágrima prender-lhe o canto, e não queria mais saber de nada. O céu azul se escurecia, e a negra noite à luz da alma se instalava, sem perdão. Perdão, onde andará seu caro amigo, que gostava de Baden Powell e outros mais, e sumira no ar como fumaça? Não sabia. Estava só. Cansado de canto, de estrelas trazidas à boca e devolvidas à página, onde brilhavam, sozinhas, por ele.

Fonte:  O Autor

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 21 a 24

21 — UMA AVENTURA VERTIGINOSA
 
O sol brilhava forte e eu já estava cansado da minha posição. Resolvi sair do esconderijo. Preguei sem querer um grande susto no primeiro marinheiro que me apareceu pela frente.

— Cruzes! — gritou ele, levando a mão à espada.

Fiz um gesto de paz e disse:

— Amigo!

Levaram-me à presença do capitão. Disse-lhe meu nome. Falei em Anchieta e no desejo que eu tinha de combater os franceses. Afirmei-lhe que era valente e hábil na guerra. Quiseram experimentar-me.

— Vamos ver se és ágil e forte. Sobe até o topo daquele mastro. Não hesitei. De um salto agarrei-me à primeira corda que vi. Subi por ele até a primeira verga. Depois abracei o mastro grande e, em poucos minutos, estava no cesto da gávea, pregando outro susto no vigia, que quase me jogou para baixo, julgando ver em mim um fantasma de pele bronzeada.

— Muito bem! — disse o capitão quando pisei de novo as tábuas do convés.

Deram-me pequenos serviços a fazer. Passaram-se alguns dias. A expedição parou em diversos portos para receber reforços. Dois meses depois de nossa saída da Bahia avistamos o inimigo. À tarde começamos o ataque. Nem posso descrever o que foi aquele combate. Só me lembro é de que o vermelhão do crepúsculo se confundia com o vermelhão dos fortes franceses incendiados, com o fulgor das explosões e com o relampejar dos canhões e arcabuzes. No princípio julguei que íamos ser vencidos. Mas depois sentimos o inimigo enfraquecer. Só ficou um forte a resistir, duro, vomitando fogo contra nós.

No meio do barulho infernal da luta, berrei ao ouvido do comandante o meu plano. Ele o achou maluco mas me ordenou a pô-lo em prática. Fiz descerem ao mar um bote pequeno. Joguei para dentro dele duas barricas de pólvora. Comecei a remar com fúria rumo da fortificação que ainda resistia. Por cima de minha cabeça zumbiam projéteis. As pobres estrelas da noitinha estavam sem brilho, como num desmaio. A água do mar dava a impressão de chumbo derretido. E eu remava, remava... O suor escorria pelo meu corpo. Consegui aproximar-me do forte sem ser visto. A proa do meu barco tocou a paliçada. Lá dentro ardia uma fogueira. Calculei a posição dela e arremessei uma barrica. Um estrondo. Joguei a segunda. Nova explosão. Os inimigos gritavam e corriam. Era o pânico. Era a derrota.

Só sei que horas depois, com o corpo todo chamuscado, esfolado e dolorido, eu estava deitado na praia.

22 — ESTRELAS E DIAMANTES
Não voltei mais para bordo. O tempo curou minhas feridas, apagou meu cansaço. O mar me deu alimento. Os rios, água fresca e boa. Andei à toa. Atravessei os matos sem medo dos espíritos maus, porque agora eu era cristão e a cruz de Anchieta ia comigo.

Cheguei ao porto de Santos. Contava-se que Mem de Sá mandara Brás Cubas com um grupo de homens explorar o sertão em busca de ouro e pedras preciosas. Eu achei aquilo muito engraçado. De que valia o ouro? De que
valiam as pedras preciosas? O que havia de gostoso era a aventura. Consegui um lugar na expedição. Achamos ouro. Descobrimos belas pedras. E uma noite, quando o acampamento dormia, olhei para o céu e disse para mim mesmo: Não há pedras mais bonitas que as estrelas com que Deus enfeita as suas noites. Essas, Brás Cubas não pega.

23 — TORNO A ENCONTRAR ANCHIETA
Uma das maiores alegrias que senti depois que deixei o bando de Brás Cubas foi no meu segundo encontro com Anchieta. A coisa se passou assim. Os índios tamoios estavam, como eu já disse, reunidos numa confederação muito forte que atacou a Vila de São Paulo, onde se achavam os jesuítas e alguns índios fiéis comandados por Tibiriçá. O primeiro ataque foi repelido. Os tamoios se retiraram a fim de juntar mais gente para uma segunda investida. São Paulo não poderia resistir ao segundo golpe. Então os Padres Anchieta e Nóbrega foram corajosamente procurar o Cacique Coaquira, chefe tamoio, no aldeamento de Iperoig. Ora, eu sempre me julgara corajoso porque enfrentara inimigos armados de tacape, arco e frecha. Mas passei a me considerar miserável quando vi (sim, porque eu vi) aqueles dois homens irem sorrindo e de mãos vazias ao encontro dos ferozes tamoios. Acompanhei-os até Iperoig, segui-os de longe como um cachorrinho que não está certo da aprovação do dono.

Graças a Anchieta e a Nóbrega negociou-se a paz. Nunca mais esqueci aquele dia em Iperoig. Anchieta estava à beira do mar, escrevendo na areia branca um poema à Virgem. Fiquei parado, olhando. O vulto negro do padre se recortava contra o céu sem nuvens. O mar gemia. As ondas vinham lamber os pés do apóstolo. E com a ponta duma vara ele riscava as palavras do poema...

Foi então que Anchieta me explicou o que era poesia, o que vinha a ser uma sextilha, um soneto. Tive desejos ferozes de ser poeta. E nos dias que se seguiram andei riscando na areia coisas absurdas, poemas sem sentido em que o Tupi se misturava com o Português.

Depois da paz de Iperoig tomei parte num grande combate. Os franceses se haviam estabelecido de novo na baía do Rio de Janeiro. (É curioso. A atração dos estrangeiros pela Baía da Guanabara continua forte até hoje. Felizmente eles nos chegam na qualidade de turistas e não de piratas...) O Governador Mem de Sá veio em pessoa combater os invasores. Foi uma batalha muito linda. Imaginem vocês as águas desta baía coalhadas de igaras! E uma chuva de flechas escurecendo o ar. E os gritos. O fogo dos arcabuzes e dos canhões. Para mim aquilo tudo teve o gosto de uma festa. Recebi um ferimento no ombro. Mas continuei a lutar.

Os franceses foram expulsos pela segunda vez. Estácio de Sá, irmão do governador, tinha fundado em 1565, junto ao Pão de Açúcar, uma cidade a que deu o nome de São Sebastião do Rio de Janeiro, em honra a seu patrono, El Rei de Portugal. (Vocês, que têm o hábito de simplificar tudo, lhe chamam hoje apenas Rio.) Pobre Estácio de Sá! Recebeu em combate uma flechada no rosto.

Foi bem triste sua morte. Eu me lembro... O dia estava claro. Fiquei comovido. Não sei bem por que, pois mal conhecia o homem.

Neste instante de 1942 em que escrevo estas palavras, não resisto à tentação de ir à janela de meu apartamento para olhar o mar. À sombra de grandes guarda-sóis de gomos coloridos vejo banhistas deitados na areia da praia.

Poucos deles se lembrarão agora de que devem a sua magnífica cidade a Estácio de Sá. A vida é assim mesmo.

Depois, nem todos podem ter a minha memória...

24 — NÉVOA, CORSÁRIOS E GOVERNADORES
Agora vem um período meio nevoento de minha vida. Não me lembro do que fiz, do que pensei, do que senti. A História me conta que após a expulsão dos franceses o governo de Lisboa resolveu dividir o Brasil em dois governos, — o do Norte e o do Sul. Na política europeia, sempre perigosa e agitada, desde aqueles remotos tempos, aconteceram coisas muito importantes. D. Sebastião, rei de Portugal, morreu misteriosamente em 1578 na Batalha de Alcácer-Quebir. (No entanto dizem que até hoje existem velhas damas em Portugal que alimentam a esperança de verem de volta à pátria o galante soberano.) O reino passou a ser governado pelo Cardeal D. Henrique, um cidadão de idade avançada.

D. Filipe II, rei de Espanha, sem a menor cerimônia anexou Portugal à sua Coroa. E como o Brasil pertencesse a Portugal, passou em consequência a ser domínio espanhol.

Ora, a Espanha tinha inimigos. Entre estes se achava a Inglaterra. Os ingleses sempre foram temíveis no mar. Os seus corsários eram famosos. Um certo Edwards Fenton em 1583 atacou Santos. Ia já cantar vitória quando apareceu uma esquadra composta de navios portugueses e espanhóis. Os ingleses “abriram o pano” — expressão que na gíria significa fugir e que bem se ajusta à ocasião, pois se tratava de navios a vela. Mas a moda pegou. Vieram outros corsários ingleses. Robert Withrington, que atacou a Bahia, aprisionando os navios que se encontravam no porto. Depois: Thomas Cavendish, seguido, com o intervalo de poucos anos, de James Lancaster. Saquearam eles São Vicente, Santos e Recife; levaram muita coisa, de sorte que, no fim de contas, puderam dizer que tinham feito “a good business” — um bom negócio.

Eu nem conto a vocês o nome dos governadores do Brasil naqueles anos entre 1591 e 1613. Foram tantos e fizeram tão pouco.. . Fizeram pouco — devo esclarecer — porque estavam cercados de perigos, sujeitos aos ataques dos índios e dos piratas estrangeiros. Faltavam-lhes vias de comunicação. O território era grande demais. O diabo quisesse governar o Brasil!

Em 1612 os franceses desembarcaram no Maranhão, fundando a povoação de São Luís. Não sei como eu me achava por essa época entre os homens de Jerônimo Albuquerque, que estava encarregado de expulsar os invasores. Já então eu falava corretamente o português, tendo também outra ideia do mundo e da vida. Sabia manejar um arcabuz e disparar um canhão.

Habituara-me por completo ao uso de roupas europeias E aos poucos esquecia os meus costumes indígenas.

Em 1615, depois de tremendos combates, conseguimos expulsar os invasores.
 
Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

João Batista Xavier Oliveira (Trovas Collection) II

Fonte: O Trovador

Olivaldo Júnior (3 Minicontos de amor)

O LANTERNINHA

Desde menino era vidrado nas lâmpadas. "Aluado!...", diziam as más línguas da pequena cidade de Lua Nova. Nova mesmo era a capacidade do lanterninha João Braz.

Não se casara, e lá se iam quarenta anos de uma triste existência! A vida era a ausência entre uma e outra sessão de cinema em que era o responsável pela... "censura".

Lanterna em punho, noite a noite, voltava a pé para casa sonhando com sua musa, uma estrela qualquer de um filme a mais que exibiam. Um dia, não voltou. Aluou-se de vez.

A LOUCA APAIXONADA

A louca apaixonada era uma moça que vivia assombrando os homens da cidade em que eu morava quando guri. Ninguém sabia seu nome, só sabiam que tinha ficado viúva.
 
Muito linda, vivia de esmolas pelas ruas da cidade, mas não precisava de nada. Era rica. A família, por não querer interná-la em hospício, vivia assistindo a inúmeras fugas.

Foi que, um dia, passou um anjo por ela e, num passe de mágica, deu-lhe um par de asas que lhe couberam como uma luva. E, como a Ismália de Guimaraens, desceu ao mar.

A LUA QUE EU COMPREI

Quebrei meu porquinho de outrora e, com o dinheiro presente, comprei-me uma lua, a mais linda que havia! Não, não lhe digo quem me vendeu, mas é fácil de achá-lo, ele é o...

Bem, a lua que eu comprei era à pilha, portanto, não era todo dia que eu a ligava, não. Pilhas custam caro, economizo. E tem a questão ecológica, o descarte correto, você sabe.

Uso essa lua só em certos dias, quando, por exemplo, quero escrever um poema. Assim, a qualquer lua da folhinha, fico todo amoroso, ligo a lua que eu comprei e pronto.

Fonte: O Autor

Fernando Pessoa (Quadras ao Gosto Popular) I


Cantigas de portugueses
São como barcos no mar -
Vão de uma alma para a outra
Com riscos de naufragar.

Eu tenho um colar de pérolas
Enfiado para te dar:
As per'las são os meus beijos,
O fio é o meu penar.

Se ontem à tua porta
Mais triste o vento passou -
Olha: levava um suspiro...
Bem sabes quem to mandou...

Entreguei-te o coração,
E que tratos tu lhe deste!
É talvez por 'star estragado
Que ainda não mo devolveste…

A caixa que não tem tampa
Fica sempre destapada.
Dá-me um sorriso dos teus
Porque não quero mais nada.

Tens o leque desdobrado
Sem que estejas a abanar.
Amor que pensa e que pensa
Começa ou vai acabar.

Duas horas te esperei
Dois anos te esperaria.
Dize: devo esperar mais?
Ou não vens porque inda é dia?

Toda a noite ouvi no tanque
A pouca água a pingar.
Toda a noite ouvi na alma
Que não me podes amar.

Dias são dias, e noites
São noites e não dormi...
Os dias a não te ver
As noites pensando em ti.

Trazes a rosa na mão
E colheste-a distraída...
E que é do meu coração
Que colheste mais sabida?

Depois do dia vem noite,
Depois da noite vem dia
E depois de ter saudades
Vêm as saudades que havia.

No baile em que dançam todos
Alguém fica sem dançar.
Melhor é não ir ao baile
Do que estar lá sem lá estar.

Rosmaninho que me deram,
Rosmaninho que darei,
Todo o mal que me fizeram
Será o bem que eu farei.

Tenho um relógio parado
Por onde sempre me guio.
O relógio é emprestado
E tem as horas a fio.

Quando é o tempo do trigo
É o tempo de trigar,
A verdade é um postigo
A que ninguém vem falar.

Levas chinelas que batem
No chão com o calcanhar.
Antes quero que me matem
Que ouvir esse som parar.

Em vez da saia de chita
Tens uma saia melhor.
De qualquer modo és bonita,
E o bonita é o pior.

Teus brincos dançam se voltas
A cabeça a perguntar.
São como andorinhas soltas
Que inda não sabem voar.

Tens uma rosa na mão.
Não sei se é para me dar.
As rosas que tens na cara,
Essas sabes tu guardar.

Tens um livro que não lês,
Tens uma flor que desfolhas;
Tens um coração aos pés
E para ele não olhas.

Fomos passear na quinta,
Fomos à quinta em passeio.
Não há nada que eu não sinta
Que me não faça um enleio.

Ó minha menina loura,
Ó minha loura menina,
Dize a quem te vê agora
Que já foste pequenina...

Levas uma rosa ao peito
E tens um andar que é teu...
Antes tivesses o jeito
De amar alguém, que sou eu.

O vaso que dei àquela
Que não sabe quem lho deu
Há de ser posto à janela
Sem ninguém saber que é meu.

Todos os dias eu penso
Naquele gesto engraçado
Com que pegaste no lenço
Que estava esquecido ao lado.

Tens uma salva de prata
Onde pões os alfinetes...
Mas não tem salva nem prata
Aquilo que tu prometes.

Por um púcaro de barro
Bebe-se a água mais fria.
Quem tem tristezas não dorme,
Vela para ter alegria.

O malmequer que arrancaste
Deu-te nada no seu fim,
Mas o amor que me arrancaste,
Se deu nada, foi a mim.

Tenho vontade de ver-te
Mas não sei como acertar.
Passeias onde não ando,
Andas sem eu te encontrar.

Fonte:
PESSOA, Fernando, Quadras ao gosto popular, Lisboa, Ática, 1994.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

João Batista Xavier Oliveira (Trovas Collection) I

Fonte: O Trovador

Olivaldo Júnior (3 Minicontos do Carnaval)

Ô, ABRE ALAS!

O coração daquele jovem nunca tinha batucado. Batia, desde sempre, no ritmo insone de manter viva a vida que Deus lhe dera, mas batuque mesmo não, nunca tinha batucado.

Foi que, no Carnaval daquele ano, sairia no carro abre-alas do Desfile Municipal, e, para isso, se preparara com afinco. Foram meses frequentando a quadra da Escola e tudo.

Na passagem da segunda para a Terça-feira de Carnaval, vestindo azul, chapéu de abas curtas branco na fronte, sentia seu peito batucar, no abre-alas da Avenida e de outro "eu"!

'MIL' CONFETES

O salão do clube de campo daquela pequena cidade interiorana não parecia mais um mero salão de clube de campo do interior, mas o interior de um bolo de festa de criança.

No chão, confetes mil se avolumavam, e por ele passavam senhoras e senhores que, ao pisarem lá, se transformavam e sentiam vir à tona a criança entorpecida de tempos idos.

Assim, ao som de "Máscara Negra" e de tantas outras lindas canções carnavalescas, deram-se as mãos e, numa imensa dança circular, giraram sobre o chão de 'mil' confetes...

UM PIERRÔ

Vestiu-se feito um Pierrô para a folia. Sabia que em algum ponto da Alegria haveria de encontrar a Colombina. O Arlequim, página virada para ela, seria só mais um amor e só.

Porém, no decorrer da alegoria, viu seu sonho virar cinzas e, no caos da manhã raiada, raiou sem ela na avenida. Bêbado de amor sem nexo, vagou, vadio, pelas vielas a chorar.

Não sabe como o Carnaval acabou. Chorou até seu rosto se mostrar. Não foi dessa vez! Acordou nos braços do amigo, um Arlequim sem Colombina que o fizera despertar.

Fonte: O Autor

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 17 a 20

17 — MEU AMIGO ANCHIETA
Quando recuperei os sentidos encontrei-me num lugar desconhecido. Estava eu estirado numa rede, junto da qual vi o homem misterioso, que me contemplava com ar amigo. Sorri para ele. Fazia anos que eu não sorria para ninguém, porque eu achava que o guerreiro que sorri, abre no sorriso uma porta por onde pode entrar a piedade e a fraqueza.

Fiquei muito admirado quando o desconhecido falou minha língua.

— Como é teu nome? — perguntou ele.

— Tibicuera.

Começou então para mim uma vida nova. 0 homem misterioso era o padre jesuíta José de Anchieta. Tinha vindo ao Brasil com o segundo governador geral, Duarte da Costa. Estávamos em 1554, na aldeia de Piratininga. Não me lembro de ter dedicado a alguém amizade igual à que dediquei àquele homem. Segui-o por toda parte como um cão fiel. Sempre me achei disposto a sacrificar minha vida por amor dele. E ainda hoje me lembro com saudade daquele homem encurvado, fraco, feio e de grandes olhos brilhantes.

Morava Anchieta com outros padres numa pobre casinha de barro e paus, coberta de palha. Era ali que os jesuítas recebiam os índios e procuravam ensinar-lhes coisas úteis e belas. Essa casa tinha uma única sala duns quatorze passos de comprimento por dez de largura. Servia ao mesmo tempo de escola, enfermaria, dormitório, cozinha, despensa e refeitório. Chegavam até ela índios de todas as tribos. Entravam desconfiados, ariscos, olhando para os lados.

Anchieta os recebia como um pai. E falava-lhes em Deus. No Deus Único, que fez o Mundo e que o governa.

Como havia índios de cabeça dura! Por mais que o santo padre falasse, por mais que gesticulasse, desse exemplos e riscasse figuras explicativas na areia — os indígenas não percebiam nada. Mas Anchieta não perdia a paciência.

Se aparecia algum índio doente, ele lhe dava remédio e conforto. Se surgiam entre os indígenas brigas, questões, disputas, Anchieta resolvia tudo como o melhor e mais justo dos juízes

Anteontem, assistindo a uma ópera no Municipal, lembrei-me que a primeira representação que vi na minha vida me foi proporcionada no colégio de Piratininga pelo meu grande e saudoso amigo Anchieta. Como os indígenas não se interessavam pela religião e mesmo lhes era custoso compreendê-la, Anchieta organizava espetáculos no colégio. As peças que ele escrevia para os índios representarem chamavam-se autos.

Lembro-me bem de um auto em que tomei parte. Chamava-se “O Mistério do Natal”. Um dia Anchieta reuniu os índios mais inteligentes, ensinou-lhes seus papéis e deu começo aos ensaios. Aparecia no auto a Virgem Maria, São José, o Menino Jesus. Como não havia mulheres na missão, era um índio que fazia o papel de Virgem Maria. Fiquei muito aborrecido por não ter sido escolhido para tomar parte na representação. Anchieta me botou a mão no ombro e disse:

— Paciência, meu filho. Tomarás parte de outra vez. Os papéis já estão todos distribuídos.

Fiquei melancólico. Fiz ainda uma tentativa:

— Padre, se eu fizesse o papel de burrinho?

Anchieta sorriu. E no dia da festa eu fui o burrinho que estava no estábulo onde nasceu o Salvador do mundo.

E assim muitos índios compreenderam a doce história do Natal. E Anchieta encontrou facilidade para convertê-los depois.

Quando chegava a Piratininga a notícia de que alguma tribo atacara um aldeamento de brancos, Anchieta ficava triste, abatido e passava horas e horas a rezar.

18 — O DEUS ÚNICO
Anchieta me contou as maravilhas do mundo. Com desenhos riscados na areia e palavras simples ele me explicou o que era uma ilha, um continente, um cabo. Fiquei também sabendo que do outro lado do grande mar existiam outras terras, outras nações com povos de pele, cara e costumes diferentes dos das nossas tribos.

Uma noite, olhando pata o céu, Anchieta murmurou.

— Mundos, Tibicuera, mundos...

E apontou para as estrelas. Fiquei olhando para o céu, de boca aberta. E eu, que pensava que uma estrela cabia na palma de minha mão, relutei muito em acreditar que cada estrela fosse um mundo.

Anchieta tornou a falar:

— Deus, Deus é ainda muito maior que as estrelas que ele fez com suas mãos mágicas.

— Deus... — murmurei.

E a pergunta que eu trazia presa no peito conseguiu derrubar o muro da minha timidez e saltou:

— Padre, o teu Deus é mais forte que Anhangá?

Anchieta sorriu.

— Muito mais.

— Mais forte que Curupira?

— Anhangá e Curupira não existem, meu filho. E Deus está em toda a parte.

Dei um pulo e fiquei de pé.

— Mas eu vi, Padre, eu vi Curupira e Anhangá! Foi no mato. Ninguém pode com eles.

Anchieta bateu no meu ombro e explicou:

— Tu viste os espíritos do mato porque estavas cego. Cego é aquele que não conhece o Deus verdadeiro.

Eu sacudia a cabeça, teimoso como uma mula. Tinha visto os espíritos do mal que moravam na mata. Tinha, tinha e tinha.

— Só existe um Deus, senhor do Céu e da Terra. Os que creem nele não podem temer os gênios do mal.

Retruquei:

— As armas dos guerreiros não conseguem ferir os espíritos maus. Pajé me disse que ninguém pode com eles.

Anchieta me mostrou a cruz preta que trazia presa ao pescoço por um cordel de couro.

— Com esta arma vencerás os espíritos da floresta.

E me deu a cruz. Naquele mesmo dia entrei no mato. O medo tinha desaparecido de meu corpo. Eu trazia, apertada nos dedos, a cruz que o padre me dera. Gritava:

— Anhangá! Curupira!

O eco respondia longe. Mas depois caía o silêncio. A noite me surpreendeu no mato. E dentro da noite eu gritei ainda pelos espíritos maus.

Silêncio.

“Os gênios do mato morreram” — pensei. E voltei para o colégio.

19 — CORSÁRIOS FRANCESES
Nos meses que se seguiram, aprendi a amar e respeitar o Deus Único. Estudei gramática, catecismo e rudimentos de música. Fui batizado. Anchieta me quis dar um nome cristão. João, Tomé ou Pedro. Supliquei-lhe que me conservasse o nome antigo. Eu me lembrava das palavras do pajé: “e o neto do neto de Tibicuera ainda será Tibicuera”.

Passei dias felizes no colégio de Piratininga. Duma feita salvei a vida de Anchieta, livrando-o da flechada de um índio vingativo.

Um dia nos chegaram notícias desagradáveis. Os índios se revoltavam nas capitanias de Espírito Santo, Pernambuco e Bahia. Os tamoios se reuniam numa confederação muito forte, aliavam-se aos franceses e, juntos, pretendiam expulsar os portugueses do Brasil.

Anchieta escreveu na areia o nome do comandante da expedição francesa: Nicolau Durand de Villegaignon. Fiquei olhando por longo tempo estas palavras. Depois apaguei-as com o pé, raivoso. Pouco me importava que o Brasil ficasse com os portugueses ou com os franceses. Mas acontecia que meu amigo José de Anchieta era de corpo e alma devotado aos portugueses. As dores dele eram as minhas dores. Eu estava, portanto, contra os corsários franceses!

A situação piorava. Os aliados — tamoios e franceses — ficavam cada vez mais fortes.

Um dia Anchieta nos trouxe a notícia da chegada do novo Governador Geral, Mem de Sá. O chefe branco entrou com o pé direito. Procurou corrigir os erros do governo anterior, mandou construir aldeias, proteger os índios e auxiliar os padres na catequese. E bem como hoje se vê na tela dum cinema, nos intervalos, este letreiro: É proibido fumar no salão, Mem de Sá espalhou proclamas proibindo a guerra entre as tribos e a antropofagia. Ora, proibir a guerra e a antropofagia para a maioria dos índios era o mesmo que hoje proibir o basebol aos americanos do norte, as touradas aos espanhóis ou o futebol aos americanos do sul...

Eu já andava cansado da vida quieta do colégio. Não morrera o guerreiro que existia dentro do meu peito... Eu fazia a mim mesmo perguntas que ficavam sem resposta: “Por que será que o Governador não ataca os franceses?”

Achei que não podia ficar o resto de minha vida agarrado à batina de Anchieta, como um filho mimoso. Um dia me despedi dele com tristeza, dizendo-lhe que ia correr mundo.

— Vai — disse-me o padre. — Agora Tibicuera é cristão, conhece o Deus verdadeiro. Nada de mal lhe poderá acontecer.

Fui.

Caminhei pela beira do mar. Já não ia mais seminu como os indígenas. Levava roupas iguais às dos colonos portugueses. Trazia por baixo da camisa a cruz preta que Anchieta me dera.

20 — PASSAGEIRO CLANDESTINO
Cheguei à Bahia.

Vi navios ancorados no porto. Pelas conversas que ouvi nas ruas compreendi que se tratava de uma armada mandada de Portugal para combater 0s franceses.

Andei a caminhar sem rumo pelas ruas de Salvador. À tardinha ia olhai o mar. Via as naus num balanço suave sobre as águas. Gaivotas voavam ao redor dos mastros e depois partiam na direção do mar alto. Senti uma saudade estranha nem eu mesmo sabia de quê. Dormi aquela noite na areia da praia.

Antes de fechar os olhos fiquei olhando as estrelas. Elas me pareceram caravelas da grande armada de Deus e o céu um mar azul sem ondas. Sonhei que Anchieta estava prisioneiro dos franceses, que o iam matar. Acordei sobressaltado. Vi que havia a bordo dos navios muita agitação. Levavam para as porões barricas d’água, caixas com mantimentos. Marinheiros corriam dum lado para outro. Limpavam-se os canhões.

Naquela manhã aprendi muita coisa. O comandante da armada se chamava Bartolomeu Vasconcelos da Cunha. Ia descer para o Sul com seus navios, com o fim de combater e expulsar os franceses do Rio de Janeiro.

Passei o dia inquieto. Precisava ir com eles. Procurei um oficial. Supliquei-lhe que me levasse. Respondeu que a tripulação estava completa. Além do mais, eu era um índio que não conhecia o serviço de bordo.

Anoiteceu. O luar prateava as águas, acariciava os navios adormecidos. Eu tinha na cabeça um plano muito confuso... Tirei a roupa. Fiquei de tanga, como nos meus tempos de guerreiro tupinambá. Joguei-me n’água e
nadei sem ruído na direção dos navios. Aproximei-me do primeiro casco, subi por um grosso cabo que pendia da popa. O trabalho foi fácil. Eu era musculoso. Estava habituado a me içar pelos cipós que pendem de certas árvores do mato.

Consegui saltar para a coberta do navio sem ser visto. Escondi-me atrás de duas barricas que se achavam junto do castelo de proa. Ali fiquei muito quieto. A noite passou. Clareou um novo dia. Ouvi berrarem ordens. Içaram-se as velas. Os navios começaram a se mover. Dentro de algumas horas estávamos longe da Bahia.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.