terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Fiodor Dostoiévski (O Duplo)

O Duplo é um romance do escritor russo Fiódor Dostoiévski, escrito um ano após o seu livro de estreia, Pobre Gente.

O Duplo narra as aventuras do conselheiro titular Goliadkin e das suas terríveis inquietações em torno de um colega que lhe usurpa a identidade enquanto seu homônimo.

Concebida ainda numa prematura fase do autor russo, O Duplo é ao mesmo tempo «uma história verídica» sobre as crispações - e alienações - de um homem que se vê privado de seus direitos enquanto pessoa particular numa sociedade intrusa e ávida de usurpação, e de uma história documentada sobre a existência do indivíduo em torno de fatores que o levam à insanidade mental e à ruptura da sociedade, mercê de uma vida em que o terror supera o amor em sua plena renovação - fatores esses que desencadearam décadas de superstição e preconceito numa Rússia agitada pelos ventos avassaladores de que o realismo soube tirar proveito.

O mais inquietante neste romance de contornos realistas é a completa desconfiança do senhor Goliadkin – desconfiança essa partilhada ao longo da narrativa pelo leitor – perante as causas que disparam a sua condição. O senhor Goliadkin é antes de qualquer suspeita um homem aparentemente normal, não fosse a sua incessante agitação em redor dos seus inimigos, numa sociedade onde se fomenta a intriga na primeira pessoa. É neste contexto que nos é apresentado o senhor Goliadkin.

Porém, a existência deste homem, aparentemente anônimo e oculto da sociedade de que faz parte, é repentinamente abalada com a aparição de um senhor Goliadkin «completamente igual a si próprio», como se este fosse prova viva da sua pavorosa ocupação.

Após haver dado guarida ao senhor «completamente igual a si» - um indivíduo bastante infeliz e miserável, que passara por várias provações na vida -, o senhor Goliadkin ver-se-á numa situação deveras delicada quando o mesmo a quem dera «do seu pão» se haver convertido em seu inimigo.

A situação em casa do senhor Goliadkin seria para o senhor Goliadkin uma forma muito frutuosa de se passar despercebido na sociedade que frequentava; compreendera mesmo a causa que o deixaria incólume. Porém, o seu homônimo acabaria por se deixar passar por ele mesmo, ora granjeando o carinho dos chefes do departamento, ora fazendo-se convidado no reduto dos seus mais diretos inimigos.

Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Duplo_(romance)

sábado, 16 de dezembro de 2017

Silmar Bohrer (Lampejos Semanais) IV


Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) VIII - A travessia das salas

Para chegar à varanda tinham de subir o último degrau da escada. Por onde? Pelo único caminho existente, o pau da vassoura. Como? Muito bem. Juquinha a ergueria nos ombros e a poria lá. Depois, lá de cima, ela ajudaria Juquinha a subir, dando-lhe a mão. 

"Não! Isso não serve. Posso escorregar e cair. O melhor é eu ir sozinha engatinhando pelo pau até a varanda, e ver se lá existe alguma corda. Se houver corda, Juquinha subirá por ela — e em seguida a Candoca. Está certo."Depois de bem planejada a subida, explicou tudo ao menino e deram começo à realização da ideia. Juquinha, menino forte, ergueu-a facilmente ao ombro e empurrou-a para cima do cabo da vassoura.

— Muito bem — disse Emília lá do alto. — Agora eu subo até a varanda em procura de corda, e você me espera aí com a Candoca — e pôs-se a engatinhar pelo cabo da vassoura acima. Chegando ao nível da varanda, pulou. Encontrou lá um montinho de lixo da manhã.

Emília compreendeu que a criada estava no meio da variação quando ficou reduzida — e a vassoura escorregou pela escada. Nesses ciscos de casa de família, "corda" é coisa que não falta nunca. Emília encontrou vários pedaços de fios de linha, bons para o fim desejado. Arrastou um deles até à quina do degrau e gritou para o menino lá em baixo:

— Achei uma corda ótima. Vou jogar a ponta. Faça uma laçada e passe-a pela cintura da Candoca. Depois suba pela corda acima como os marinheiros sobem pelo cordame dos navios. Mas antes de jogar a corda tenho de amarrar a outra ponta em alguma coisa aqui. Espere.

Emília olhou em torno. Onde amarrar a ponta da "corda"? O chão da varanda era de ladrilhos, sem felpa nenhuma ou prego. Emília foi examinar a soleira da porta, que era de madeira. Descobriu uma excelente lasquinha, ajeitadíssima para o caso, mas inútil, porque ficava a três centímetros de altura. Inútil? Com um pau ela poderia enfiar lá uma laçada feita na ponta da "corda". Só restava achar o pau.

Emília voltou para o montinho de cisco. Que riqueza de materiais! Havia tudo ali. "Cordinhas", paus, pedras, fiapos de pano e rolos de "penugem de cisco".

O pau encontrado foi uma palhinha da vassoura. Emília enfiou a laçada num gancho da palhinha e ergueu-a até à lasca.

— Ótimo! A laçada cerrou e não escapa.

Depois jogou a ponta da "corda" pelo degrau abaixo.

— Pronto, Juquinha. Deixe a Candoca amarrada e suba. Aqui de cima nós dois suspenderemos essa manhosa.

E assim foi feito. O menino subiu com a maior facilidade, porque era mestre em trepar em árvores. Em seguida os dois juntos suspenderam a Candoca. Aí é que ela chorou de verdade, aos berros, como se fosse o fim do mundo. "É natural", pensou Emília fazendo a conta. "Este degrau tem 15 vezes a alturinha dela; corresponde, pois, a uma altura de 27 metros para o Coronel Teodorico. Até ele, um homenzarrão, era capaz de chorar se alguém o suspendesse 27 metros na ponta de uma corda."

Muito bem. Lá estavam os três na varanda, Tinham agora de entrar na casa, o que foi fácil, porque a soleira da porta era apenas de 5 centímetros de altura e havia aquele precioso cisco para ajudá-los. Emília e o menino tomaram duas palhinhas de vassoura de igual comprimento, quebraram outra mais fina em pedaços iguais e amarraram esses pedaços nas duas palhinhas — e lá subiram pela escada feita. A Candoca resistiu. Não queria subir. Estava com medo e a chorar que nem um bezerro. O remédio foi repetirem a operação anterior. Passaram-lhe a corda sob os braços e suspenderam-na à força.

Lá dentro da casa Emília admirou a imensidão de tudo. No assoalho viu um tapete verde-cana com ramagens cor-de-rosa. Tinha meio centímetro de espessura — metade da altura dela! 

— Este tapete está me parecendo um pasto de capim-catingueiro florescido que os bois ainda não amassaram.

Como fosse impossível atravessar a sala por cima do tapete, tiveram de dar volta junto ao rodapé. Em certo ponto viram um enorme balde vermelho: o dedal de celuloide da Zulmira, caído por ali.

— Ótimo! — exclamou Emília. — Vamos deixar a Candoca guardadinha neste "balde", enquanto procuramos o algodão. Esta manhosa só serve para nos atrapalhar.

A Candoca foi sentada à força dentro do dedal e lá ficou chorando, enquanto Emília e Juquinha continuavam a viagem pela beira do rodapé. Em certo ponto encontraram uma pulga dormindo. Que tamanho! Era como um leitão para um homem comum. Juquinha pregou-lhe um pontapé. A pulga arregalou os olhos, assustada, e deu um pulo gigantesco. Logo adiante viram uma traça, dessas que parecem semente de abóbora e caminham com a cabecinha de fora, arrastando a "casa". Pararam para ver bem.

— Estes bichinhos aprenderam o sistema, com os caramujos — disse Emília. — Com eles não há isso de "ir para casa" porque a casa anda com eles.

Notou que a casa da traça era feita de pedacinhos de lã, cortados do tapete e ligados entre si dum modo especial. Emília quis fazer uma experiência.

— Será que se eu trepar em cima ela continua andando? — e trepou.

A traça, porém, encolheu a cabeça, como faz a tartaruga, e ficou imóvel. Emília desceu.

— Não presta. Isto não dá cavalo.

E contou ao Juquinha as suas proezas com o mede-palmo, com o caramujo, com o besouro de pintas amarelas e a mutua. O menino ficou radiante à ideia de montar num besouro.

— Muito melhor que os cavalos — disse ele — porque os besouros voam.

— Antigamente os cavalos também voavam, disse Emília.

— Quando? Nunca ouvi falar nisso.

— Na Grécia houve um tal Pégaso que voava maravilhosamente. O Walt Disney pintou o retrato dele, da Pégasa e dos Pegasosinhos, naquela fita a Fantasia. Não viu?

— Eu bem quis ver, mas papai não deixou. Disse que era muito caro.

— "Pão duro!" Por isso mesmo está "empapado".

— Quê?

— Está dormindo na Papolândia — atrapalhou Emília. — Mas depois da Grécia os cavalos perderam as asas, como as içás quando enjoam de voar e descem. Já agora podemos ter quantos Pégasos quisermos. Podemos montar em besouros, em borboletas, e até em libelinhas. Imaginem que gosto, voarmos montados na velocidade incrível das libelinhas!

E assim, na prosa, chegaram ao quarto de Dona Nonoca. Lá estava a estante dos remédios, imensa, com caixas de pílulas e vidros. Também lá estava o pacote azul do algodão com um chumaço aparecendo. Mas muito alto — na segunda prateleira.

— O algodão está encimíssimo — observou Emília. — Está como papagaio de papel enganchado no fio telefônico. Como derrubar aquilo? O jeito era esse: derrubar. Pacotes de algodão pesam pouco. Se conseguissem alcançá-lo com uma vara... Mas que é da vara?

Emília espiou entre a estante e a parede.

— Achei! Achei! Há aqui um vão escuro, cheio de velhas teias de aranha pelas quais podemos subir.

— E a aranha? — perguntou o menino.

— Não vejo nenhuma. É teia velha, e estes fios aguentam perfeitamente o meu peso — disse Emília experimentando. — Não há como não ter peso nem tamanho. Tudo vira fácil — e foi subindo.

Juquinha de nariz para o ar, acompanhava a manobra.

— A estante tem forro — disse ele. — Quero ver como a senhora passa.

— O forro é de pinho — respondeu Emília. — As tábuas de pinho às vezes têm nós que caem e deixam um buraco. Estou rezando para que este forro seja de tábua de pinho com buraco de nó. Se não houver passagem, paciência. Descerei e procurarei outro meio.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Silmar Bohrer (Lampejos Semanais) III


Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) VII – Juquinha conta a sua história

Depois que o gato se foi embora, talvez em procura de mais insetos gostosos como aqueles, Emília pôs-se a refletir muito a sério. Podia sair da toca, mas já estava sem liberdade de ação. De um momento para outro o destino a transformara em mãe de dois órfãos. Juquinha não era nada; até lhe serviria de companheiro — menino taludo, de dois centímetros de altura. Já a Candoca não passava duma criança de três anos e meio, completamente boba. Teria de andar pela mão de alguém. Que alguém? Juquinha ou ela, a "ama seca" Emília — que graça!

— Nunca me casei de medo de ter filhos, e afinal me vejo tutora de dois marmanjos — um maior que eu, mas ainda sem juízo, e outro do meu tamanho, mas que só sabe chorar. A encrenca vai ser grande...

Emília sempre teve fama de não possuir coração. Mentira. Tinha sim.

Está claro que não era nenhum coração de banana como o de tanta gente. Era um coraçãozinho sério, que "pensava que nem uma cabeça". Podendo deixar ali as duas crianças, já que a situação do mundo era a de um geral "salve-se quem puder", não as deixou. Heroicamente resolveu salvá-las.

— Bem. E agora? — pensou lá por dentro logo depois de passado o perigo. — Sozinha, eu ia me arrumando muito bem. Mas tudo mudou. As duas crianças me obrigam a estudar a defesa. Que defesa devo adotar? Evidentemente, o disfarce. Não me resta outro caminho senão essa forma de mentira. Tenho de disfarçar-me em bicho-folhagem ou qualquer coisa assim — e tenho também de disfarçar estas crianças.

A ideia do bicho-folhagem foi sugerida pela lembrança de uma velha história de tia Nastácia. Para livrar-se da onça, o macaco besuntou-se de mel e rolou num monte de folhas secas, desse modo transformando-se em bicho-folhagem e enganando a onça. Emília tinha de inventar qualquer coisa assim.

— Juquinha — disse ela voltando-se para o menino — saiba que seus pais se mudaram para um país muito distante e deixaram vocês entregues aos meus cuidados.

— Para onde foram?

Emília demorou na resposta. Estava pensando. Isso de falar a verdade nem sempre dá certo. Muitas vezes a coisa boa é a mentira. "Se a mentira fizer menos mal do que a verdade, viva a mentira!" Era uma das ideias emilianas. "Os adultos não querem que as crianças mintam, e no entanto passam a vida mentindo de todas as maneiras — para o bem. Há a mentira para o bem, que é boa; e há a mentira para o mal, que é ruim. Logo, isso de mentira depende. Se é para o bem, viva a mentira! Se é para o mal, morra a mentira! E se a verdade é para o bem, viva a verdade! Mas se é para o mal, morra a verdade! Juquinha quer saber para onde os pais foram. Se eu disser a verdade, ele se desespera, chora, e fica uma 'inutilidade de olho vermelho e ranho no nariz atrás de mim. Logo não devo contar a verdade. Poderei inventar uma mentirinha benéfica. Dizer, por exemplo, uma coisa que ele não compreenda bem, mas que o sossegue." E respondeu:

— Seus pais, Juquinha, foram obrigados a mudar-se para a Papolândia.

— Onde é isso?

— É uma terra em toda parte, onde só há papa-popos. É a terra dos papapupu-dospos que voam, ou andam pelo chão miando como gato. E sabe o que é papapopo? — É uma espécie de colo. Antigamente as mães punham os filhinhos no colo; hoje os papapupudospos põem todo mundo no papapopo.

— E é bom lugar esse papapopo?

— Ótimo. Quentinho como cama. Quem adormece nesse colo gosta tanto que não acorda mais.

A explicação deixou Juquinha na mesma, mas o sossegou. Sentia muito que seus pais fossem dormir um sono tão comprido numa terra tão esquisita; mas se era no quente, então bem. A expressão "quentinho como cama" agradou ao menino, que estava nu e com frio.

— Não sei o que aconteceu com a nossa roupa, disse ele. — Eu estava com o meu capote vermelho, de boné na cabeça, pronto para sair com a tia Febrônia depois do almoço. De repente, tudo se sumiu diante de mim. Uma escuridão! Fiquei caído no meio de panos. Veio a falta de fôlego. Comecei a me debater e engatinhar para sair dali.

— Dali de onde?

— Daquela panaria escura.

— Sair e ir para onde?

— Não sei. Eu queria sair, sair — e fui saindo sempre engatinhando.

— Por que sempre engatinhando?

— Porque não podia ficar de pé. O pano não deixava.

— E depois?

— Fui indo, fui indo, até que rolei para um enorme buraco que já não era de pano. Parecia de couro. Escuro como a noite lá dentro. Felizmente vi uma luz. Era um buraquinho claro naquele buracão escuro. Encaminhei-me para lá e saí.

— E que viu?

— Vi este mundo de agora. Tudo tão grande que a gente nem reconhece as coisas. De repente, olhei; mamãe ia saindo de gatinhas de outro enorme monte de pano. E dum terceiro monte de pano, adiante, vi sair papai. Corri para eles. Estavam tão assustados que nem podiam falar. Mamãe afinal falou; papai nunca mais. Ficou totalmente mudo. Vovó, coitada, sumiu. A Zulmira também. Vi o chão forrado de pelos enormes; andar por ali era o mesmo que andar por um capinzal cerrado. Pelos vermelhos e azuis e pretos.

Emília percebeu que Juquinha estava se referindo ao tapete da sala de jantar.

— E a Candoca? — perguntou.

— A Candoca ia tomar banho naquele momento.

A Zulmira já tinha tirado o vestidinho dela... Emília horrorizou-se. Se a pequena já estivesse no banho quando sobreveio a "redução" teria morrido afogada. E pensou nos milhões de criaturas que pelo mundo a fora deviam naquele momento estar no banho e fatalmente morreram afogadas.

— Quem era a Zulmira?

— A ama de Candoca.

Um ponto da história do Juquinha Emília não compreendeu — o tal buracão escuro em que ele havia caído ao escapar da montanha de pano. Mas desconfiou duma coisa.

— Você estava calçado, Juquinha?

— Estava, sim, com os meus sapatos amarelos. E ia sair com a Febrônia justamente para comprar uns sapatos novos. O do pé direito estava furado no dedão.

Emília riu-se.

— Compreendo agora, Juquinha. O tal buraco enorme em que você caiu foi o pé direito daqueles sapatos velhos, o buraquinho do buracão" era o furo do dedão.

O menino ficou pensativo, de rugas na testa.

"Quem sabe se foi mesmo?"

A Candoca principiou a choramingar de frio. Aquele cimento da escada não era bom berço. O choro da criança fez que Emília voltasse à ideia do bicho-folhagem. Tinha de descobrir qualquer coisa com que vestir-se e vestir os órfãos. Pano?... Impossível. Pano até que havia muito, por toda parte montanhas de pano; mas pano pede tesoura e agulha, e se acaso ela possuísse uma tesoura e uma agulha seriam proporcionais ao seu tamanho e tão pequenininhas que não cortaria nem coseria nenhum dos grossos panos existentes no mundo.

Mas há uma coisa que pode substituir o pano: o algodão com que se fazem os panos. Se ela encontrasse um pouco de algodão, estariam resolvidos dois grandes problemas: o do vestuário e o da defesa.

— É isso! Vou disfarçar-me em chumaço de algodão e fazer o mesmo às crianças. Chumacinhos de algodão valem pela melhor roupa e podem rolar à vontade pelo mundo, sem atrair a atenção de gatos, pintos ou passarinhos. Que bicho come algodão? Nenhum. Logo, o problema agora é descobrir um chumaço de algodão.

E voltando-se para o Juquinha:

— Lá dentro de sua casa não haverá algodão?

— Algodão?

— Sim, desse de botar em cova de dente ou no ouvido, quando há dor de ouvido.

— Há, sim. Na estante dos remédios do quarto de mamãe há um pacote azul.

— Ótimo. Fique sabendo que a grande coisa para nós três agora é irmos até lá e apanharmos um pouco desse algodão.

— A senhora está com dor de ouvido? — perguntou o bobinho.

Emília riu-se.

— Não, meu amor. Estou com dor de papapopo e o remédio é algodão.

— Que tanto papapopo a senhora fala? Emília riu-se de novo.

— Juquinha, Juquinha. Papapopo era uma coisa que antigamente não preocupava a ninguém. Mas agora o papapopo é tudo. O grande perigo da humanidade nova, meu amor, é o Senhor Dom Papapopo. Saiba disso.

O menino não entendia. Quis explicações. Ela tapeou.

— O Senhor Dom Papapopo, Juquinha, deve ser filho daquele Papão que outrora assustava as crianças. O tal Papão, porém, era mentira. Nunca existiu. Começou a existir desde que alguém mexeu na Chave do Tamanho. Está entendendo? Desde esse instante o Papapopo, ou o Senhor Dom Papão — pois tudo é a mesma coisa — apareceu no mundo e anda por toda parte nos rondando. Felizmente eu não sou boba. Percebo as coisas muito bem. Penso em tudo e "adapto-me", como diz o Visconde. Por isso estou certa de que o grande remédio contra o Papão é o Algodão. Juquinha amigo toca a procurar o Senhor Dom Algodão por causa do Senhor Dom Papão.

Juquinha ficou na mesma e Candoca pôs-se a berrar.

— Vamos! — disse Emília, dando a mão à manhosa e saindo da fresta.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Silmar Bohrer (Lampejo Semanal) II


Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) VI – A família do Major Apolinário

A torneira ficava a cinco palmos do chão, isto é, a cem alturas da Emília. Pareceu-lhe a maior torneira do mundo.

— Em geral as torneiras de jardim não ficam bem fechadas, pensou ela, de modo que de vez em quando cai um pingo.. Lá, portanto, é provável que eu encontre água.

Emília desceu da folha de samambaia e avançou na direção da calçada. Teve a sorte de ver no chão uma folha de iúca mexicana, que o jardineiro podara na véspera e deixara caída por ali (talvez o "apequenamento" o tivesse colhido durante o trabalho.) Onde andaria o pobre jardineiro? No papo de algum passarinho, com certeza. Emília caminhou muito bem por cima da folha de iúca e assim chegou à beira da calçada sem judiar dos pezinhos na dureza das pedras.

A altura da calçada seria duns 20 centímetros, o que representava 20 alturas da Emília, de modo que ela ficou a olhar para semelhante barreira como se fosse a muralha da China. Que colosso! Como galgar tamanha escarpa? Se fosse formiga, dotada de seis patinhas, nada mais simples; naquele momento duas formigas ruivas subiam pela pedra com a mesma facilidade com que andavam no plano. Mas para um bípede de um centímetro de altura, obstáculos de um palmo são muralhas intransponíveis. Emília seguiu pela beira inferior da calçada, na esperança de encontrar um "subidor" qualquer.

Logo adiante deu com uma imensa "cobra vermelha", que descia da calçada, atravessava o pedregulho e afundava a "cabeça amarela" na grama do canteiro próximo. Emília aproximou-se cautelosamente. Viu que era o cano de borracha do jardim. Parou diante dele. Mediu-o com os olhos. Diâmetro igual a três vezes a sua altura. Se pudesse trepar e caminhar por sobre esse cano, ser-lhe-ia fácil transpor a escarpa e descer no cimento.

Por felicidade, a "cabeça-da-cobra", isto é, o esguicho de metal amarelo, afundava na grama do canteiro. Emília foi para lá, agarrou-se às folhinhas de grama e depois de várias manobras conseguiu trepar sobre a borracha. O resto foi fácil. Seguiu pelo cano até à escarpa, isto é, o ponto em que o cano subia do pedregulho à calçada. Esse trecho íngreme ela o galgou de gatinhas.

Ótimo. Estava outra vez no horizontal, em cima da calçada. Com as mãos na cintura, Emília contemplou a paisagem. Que calçada imensa, Deus do céu! Parecia o deserto do Saara.

Deixando-se escorregar do cano abaixo, encaminhou-se para a torneira. Como era gostoso andar no liso do cimento! Até deu uma corridinha.

Bem debaixo da torneira, olhou para cima. Haveria algum pingo em formação naquelas alturas? Impossível perceber. Súbito, sem aviso, um pingão, plaft! pingou em cima dela e esborrachou-a no cimento.

Que banho! Emília ficou atordoada por vários segundos. Nunca supôs que um pingo d'água pesasse tanto. Erguendo-se, bebeu, à moda dos animais, numa das pocinhas formadas pelos respingos, e aproveitou a ocasião para um banho.

— Que coisa curiosa! — exclamou enquanto se esfregava. — Estou nua e não sinto a menor vergonha. Será que isso de vergonha depende do tamanho das criaturas? Deve ser, porque entre os homens a vergonha era só para os adultos. As criancinhas novas não mostravam vergonha nenhuma nem ninguém se ofendia de vê-las nuas.

Aprendi mais essa: vergonha é coisa que depende do tamanho. 

A torneira ficava perto de uma enorme escadaria de cinco degraus — a escadinha da varanda das trepadeiras. Lá no quarto degrau Emília percebeu viventes. Firmou a vista. Eram dois insetos cor-de-rosa e um preto — insetos desconhecidos e evidentemente descascados. Chegando mais perto, compreendeu tudo.

— Meu Deus do céu! Aquilo é gente!...

Era de fato gente — gentinha como ela — os donos da casa com certeza, O inseto preto seria uma tia Nastácia de lá — a cozinheira. E Emília teve assim a primeira prova provada de que o apequenamento também havia alcançado outras criaturas.

— Bom. Vou dar uma subida até lá para conversar com aqueles companheiros.

Mas havia escada, com cada degrau vinte vezes a sua altura. Ah, se aparecesse por ali a mutuca! Emília viu enorme pau caído sobre a escada e compreendeu que era a vassoura. Com certeza a negra estava passando a vassoura na varanda e no momento em que ficou pequenininha a vassoura escorregara escada abaixo e era agora o tal "enorme pau". Felizmente a palha encostava no chão, de modo que Emília pôde subir por ela até equilibrar-se em cima do pau — e lá se foi engatinhando. Ao chegar ao ponto desejado, pulou.

Quando a viram engatinhando por cima do cabo da vassoura, as criaturas do quarto degrau supuseram tratar-se dum mede-palmo; mas mede-palmo não pula, de modo que o pulinho da Emília fez que todas recuassem assustadas.

— Não tenham medo! — disse ela aproximando-se. — Também sou gente. Sou Emília, lá do sítio de Dona Benta, que fiquei pequenininha e ando em exploração pelo mundo.

— É a Emília mesmo, mamãe! — gritou um menino que também andava por ali e só então ela viu.

— Conheço os livros que falam dela. A cara é a mesma, o jeito é o mesmo. Só falta a roupinha de xadrez.

— E quem é você? — perguntou Emília.

— Sou o Juquinha. E esta é a Candoca, minha irmã — disse o menino apontando para outra criança.

— E que aconteceu por aqui?

— Não sei. Era de manhã e estávamos na mesa almoçando. De repente, uma panaria sem fim nos enleou e foi um custo para sairmos de dentro. E todas as coisas ficaram enormes — enormíssimas, como a senhora vê. A casa cresceu que não tem mais fim. Nossa roupa evaporou-se, num mistério.

Emília viu que eles não estavam compreendendo a verdadeira situação. Julgavam-se do mesmo tamanho de sempre. As coisas em redor é que haviam crescido.

— Esse senhor quem é, Juquinha? Seu pai?

— Sim, meu pai. E ali está mamãe. A criada é a tia Febrônia, nossa cozinheira. Papai perdeu a fala coitado, tamanho foi o susto, e mamãe está
muito triste com o desaparecimento de vovó.

— Como desapareceu sua avó?

— Desapareceu porque não aparece — explicou Juquinha — Depois que conseguimos nos livrar daquela inundação de pano, reunimo-nos todos embaixo da mesa — menos vovó. Até agora, nem sinal.

Emília compreendeu o caso. A pobre velha não tinha podido safar-se de dentro de suas próprias roupas, e com certeza havia morrido asfixiada. Se o apequenamento foi coisa para a humanidade inteira, então milhões de criaturas deviam ter perecido como a avó daquele menino — pela impossibilidade de saírem de dentro das próprias roupas. Nada mais claro.

— Como se chama sua mãe?

— Nonoca.

Emília dirigiu-se para Dona Nonoca, que estava chorando. Contou-lhe mil coisas, as suas aventuras no jardim, a luta com a aranha, o perigo das aves, o almocinho de mel que havia feito. A mulher chorava, chorava.

— Chorar não adianta, Dona Nonoca. O que temos de fazer é nos adaptar.

Dona Nonoca não entendeu essa palavra tão científica. Emília explicou-se.

— Adaptar-se quer dizer ajeitar-se às situações. Ou fazemos isso, ou levamos a breca. Estamos em pleno mundo biológico, onde o que vale é a força ou a esperteza. A senhora até teve muita sorte de que nenhum passarinho ou gato a visse. Como vieram parar neste degrau?

A pobre mulher contou que depois do desastre eles vieram caminhando até à varanda, para ver como tinha ficado o mundo.

— E estávamos olhando para o nosso velho jardim, transformado nesta mata gigantesca e sem fim, quando um horrível pé-de-vento nos jogou aqui.

Emília achou graça no "horrível pé-de-vento". Havia de ser aquele mesmo ventinho insignificante que a derrubara duas vezes. Conversou o que pôde com a pobre criatura e com o inseto preto. Desejava provar que nada havia crescido, eles é que haviam perdido o tamanho — mas não pôde convencer ninguém.

— Como é que sabe? — disse a negra. — Eu estou vendo tudo grande.

Emília deu todas as razões imagináveis, sem conseguir coisa nenhuma. E diante da certeza da negra e de Dona Nonoca, também ficou na dúvida.

— Será que tudo ficou grande e as criaturas estão do mesmo tamanho de sempre ou tudo está do mesmo tamanho de sempre e fomos nós que diminuímos?

Pensou, pensou, pensou. O problema era dos mais sérios. Tanto podia ser uma coisa como outra — e em ambos os casos a situação das criaturinhas era exatamente a mesma.

Aquele homem era o Major Apolinário da Silva, prefeito da cidade, cidadão muito importante. Estava agora transformado em insetinho descascado e mudo. Emília mediu-lhe a altura. Viu que tinha 4 centímetros. E como fosse muito gordo, dava a ideia duma taturana cor-de-rosa em pé.

Juquinha, o mais esperto da família, mostrava-se contente com a novidade e, ao contrário do pai, falava pelos cotovelos. Contou que antes da "ventania" ele estivera na varanda espiando a rua pelas grades de ferro do jardim, e muito estranhara não ver movimento nenhum.

— Não passou nenhum automóvel nem carroça, nem nada. Tudo paradíssimo. Um silêncio que nunca vi. Silêncio de gente, porque os passarinhos andam mais barulhentos do que nunca. Parece que se mudaram todos para a cidade.

Emília riu-se. Lembrou-se da queda de içás e siriris em outubro, quando milhões de formigas de asas saem dos formigueiros para a festa anual do banho de sol. Nesses dias o assanhamento das galinhas e passarinhos é enorme — e os papos se enchem de arrebentar. O mundo inteiro devia estar agora cheio do assanhamento das aves, diante da inesperada aparição daquela nova espécie de içás.

Emília esclareceu como pôde o caso e deu os conselhos da sua experiência.

— É preciso, primeiro — disse ela — o maior cuidado com os ventos. Qualquer ventinho nos derruba. Segundo: cuidado ainda maior com os passarinhos e as galinhas. Basta dizer que eu estou aqui, nesta terra desconhecida, justamente por causa dum simples pinto sura, que ainda ontem corria de medo de mim. Terceiro: cuidado com os buracos redondos, porque em geral têm moradores dentro e esses moradores se defendem. Em vez de buraquinhos redondos, temos de procurar vãos, fendas e outros abrigos naturais, não feitos por nenhum colega.

— Colega?

— Sim, nossos colegas são agora os bichinhos do chão e do ar.

Quarto conselho: cada um que arranje um espinho de cactos, porque se não fosse este aqui — e mostrou a sua lança — eu já estava sugada por uma aranha.

— Mas onde poderemos arranjar essa arma? — quis saber Juquinha.

— Esta encontrei perto do "violetal", no chão. Mas criaturas grandes, como seu pai, sua mãe e a tia Febrônia, podem usar alfinetes. Não há alfinetes aqui em casa?

Nesse momento um miado de gato assustou Emília. O menino, porém, e a negra fizeram cara alegre.

— É o Manchinha, disseram os dois ao mesmo tempo.

— Que Manchinha? — perguntou Emília.

— O nosso gato amarelo.

— Emília horrorizou-se. Pois então estavam com um gato ali perto e não se escondiam?

— Ele é o que há de manso — disse a boba da Febrônia. — Dormia na minha cama. Fui eu que o criei.

Oh, estupidez humana! — pensou Emília. — Será que esta gente supõe que o gato vai reconhecê-los e continuar bonzinho como era?

Explicou-lhes isso, e aconselhou-os a procurarem refúgio. Mas quem pode com a burrice de certas criaturas? Ninguém acreditou em suas palavras. Riram-se. Até o Major Apolinário riu-se — pela primeira vez depois do apequenamento.

— Você diz isso porque não conhece o Manchinha — observou Dona Nonoca. — Não há no mundo gato mais meigo.

— Mas pega camundongo?

— Isso, pega.

— E gafanhotos?

— Também pega. Ainda ontem andou atrás dum gafanhoto aí no jardim.

— E acha então que ele tem inteligência bastante para nos distinguir dum gafanhoto ou duma barata?

O Major riu-se de novo. Ele ainda estava com a "ideia de gato" própria das gentes que possuíam tamanho. Emília tentou esclarecê-lo. Explicou aquela história da "ideia filha da experiência".

— A "ideia de gato", Senhor Apolinário, vinha da nossa antiga experiência de criaturas tamanhudas em relação aos gatos. Era a ideia dum animal perigoso para ratos, baratas e gafanhotos, mas inofensivo para nós. Agora, porém, temos de reformar essa ideia, como também temos de reformar todas as ideias tamanhudas, como por exemplo, a "ideia de pinto", a "ideia de leão" e tantas outras. E quem não fizer assim está perdido.

O Major não entendeu. Era a burrice em pessoa. Achou aquele sermão com cara de "coisa de livros". Nesse momento o Manchinha miou novamente mais perto.

Emília não quis saber de mais nada. Agarrando as duas crianças correu a esconder-se numa rachadura do cimento.Foi a conta. A enorme carantonha dum gato gigantesco surgiu à porta da varanda. Miou várias vezes, como quem está aflito em procura dos donos. Depois, aproximou-se, no perigoso andar de gato que enxerga barata.

Que horrível cena! Apesar de durinha de coração, Emília arrepiou-se ao ver o meigo Manchinha, tão saudoso dos seus donos, comer sossegadamente os três insetos descascados que descobriu ali. Mas teve o cuidado de tapar com as mãos os olhos das duas crianças. Juquinha e Candoca nunca vieram a saber do trágico destino de seus pais — vítimas da "lerdeza com que sé adaptavam às novas condições de vida", conforme Emília mais tarde explicou ao Visconde.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Ógui Lourenço Mauri (Poemas Escolhidos) II


UM REFÚGIO POR OPÇÃO
(glosando José Feldman)

MOTE:
Pai, eu te peço perdão
por não ser o que querias!
Eu vivo na contramão,
num refúgio... de poesias!
 José Feldman (Maringá/PR)
  
GLOSA:

 Pai, eu te peço perdão
por ter frustrado teu sonho.
Assim, não queria, não;
é disso que me envergonho!

Lamento muito, meu velho,
por não ser o que querias!
 Na leitura do Evangelho,
eu tento acalmar meus dias.

Desde cedo, fiz a opção,
eu nasci pra ser poeta.
Eu vivo na contramão
de tua paternal meta.

Não me ajeito a obrigações,
só faço o que repudias.
Vivo minhas emoções
num refúgio... de poesias!
_____________________

PROCURA-SE UM PAPAI NOEL

Procura-se um Papai Noel bem brasileiro,
Com total verde-amarelo em seu visual.
Nada de indumentária vinda do estrangeiro,
Terá que mostrar sua origem tropical.

Procura-se um Papai Noel de tez morena,
Trazendo às crianças o sabor da surpresa,
Magia que o comércio retirou de cena
Na ânsia de vender, de acumular riqueza.

Procura-se um Papai Noel que abrace forte,
Um abraço bem ao modo tupiniquim...
Um gesto sem a frieza do Polo Norte,
Bem ao estilo dos que meu pai dava em mim.

Procura-se um Papai Noel, sorriso aberto,
Que a criança possa tocar, ver e curtir.
E que seu presente só seja descoberto
No exato momento em que o "Velhinho" partir.

Procura-se um Papai Noel de nossa gente.
Viajante de trenó e renas, jamais!
Nós almejamos alguém que esteja presente.
Muito nosso, sim!... Dos Pampas aos Seringais.
_____________________

CHEGANDO PELO SUL...

Você tramou tudo ao anoitecer
E chegou antes do clarão da lua...
Maliciosa, esperou-me farta e nua;
No rocio, sem que eu pudesse prever.

O modo como apareci, porém,
Resultou para você surpreendente,
Pois, evitando encontrá-la de frente,
Logrei pregar-lhe uma peça também.

Pouco somou seu tentador sorriso
Ao me aguardar desde os rumos do norte;
Pois vim do sul, a emoção foi mais forte,
E ao vê-la de costas perdi o juízo...

Fui às nuvens, não sabia onde estava
Quando, perto, e pela primeira vez,
Vi seu cabelo a ornar sua nudez...
Trança única que às nalgas chegava.

Fonte: O Poeta

Malba Tahan (Radiá! Radiá!)

Um dilúvio de luz cai da montanha”. O silêncio, na claridade suave da tarde, era como uma dádiva de Allah sobre a terra. Parecia-me ouvir, ao longe, o doce som de flautas e adjuaks vibradas por artistas invisíveis.

À porta da tenda surge, de repente, a figura altiva do quebir, chefe da caravana.

— Vamos, beduíno! — gritou, arrebatado. — A grande caravana vai partir! Iremos para além da Pérsia; atravessaremos a índia; levaremos os nossos camelos até os confins da China e do Tibet. Terás a fortuna de conhecer as cidades e os recantos mais prodigiosos do Islã: encontrarás os mercadores mais ricos do mundo; os teus lucros serão fabulosos. Vamos! Por Allah, o Exaltado! A caravana vai partir!

Respondi:

— Sim, valente quebir! Sempre desejei conhecer as maravilhas desses países cheios de lendas e mistérios. Estou convencido de que essa longa e curiosa viagem seria para mim fonte de incalculáveis riquezas.

Mas...

Naquele momento a encantadora Radiá, com sua graça infinita de inum, colocava cocrals (1) de ouro em torno de seus tornozelos morenos.

A caravana vai partir? Vai em busca da Riqueza? Deixá-la ir, a caravana...

— Prefiro, ó quebir! Continuar aqui, recostado nestas almofadas, vendo a querida Radiá prender colares de ouro em torno de seus tornozelos morenos...

* * *
    
A baraca (2) protegia a minha confortável tenda na orla do deserto. O narguilé (3) embriagador parecia mais doce que o sorriso nos lábios da noiva apaixonada.

Alguém chama por mim. Ouço o meu nome repetidas vezes. Reconheço a voz de um taleb (4).

— Por que me procuras, ó venerável taleb? — perguntei.

— Vem comigo, jovem poeta! — respondeu o sábio. O rei de Cabul e o imperador da China, em viagem para Meca, pararam, esta tarde, no oásis de Bled-Djerid (5). Falei em teu nome. Já leram os teus versos. Admiram-te.  Fazem questão de  conhecer-te.  Vamos até ao oásis antes que eles partam. Por Allah! É uma oportunidade única em tua vida! Receberás as homenagens dos soberanos mais ricos e generosos! Serás o poeta mais afamado do mundo: Ficarás mais célebre do que Antar (6) e mais invejado do que Moslim (7).

— Sim, judicioso taleb! Sempre ambicionei receber as homenagens daqueles que têm em mãos o ouro e o poder. O imperador da China e o rei de Cabul são os monarcas mais ricos e mais generosos, entre quantos vivem sobre a face da terra. Recebido em audiência especial, por esses soberanos, tornar-me-ei célebre. O meu nome, emoldurado pela Glória jamais sairia da memória dos homens.

    Mas naquele momento a deliciosa Radiá cantava. A sua voz era tão meiga como a lua e mais doce que as tâmaras brancas do Iêmen.

O Rei e o Imperador esperam por mim? Encontrarei no oásis de Bled-Djerid a Glória que deslumbra e seduz os mortais?

A Glória? Deixá-la ir, a Glória...

— Prefiro, ó taleb!, continuar aqui, recostado indolente sobre estas almofadas, ouvindo a querida Radiá cantar, com indizível ternura os seus sonhos de amor...

* * *
    
Pouco faltava para a hora melancólica do ezzã (8). Uma poeira de luz envolvia a minha tenda onde as sombras procuravam refúgio.

Mac Allah!(9) Chamam por mim. Quem será?

Abre-se a porta. Acha-se, diante de mim, o meu grande e dedicado amigo.

— Venho buscar-te, meu caro — exclamou, cheio de alegria. Todos os habitantes da aldeia estão reunidos na mesquita. Mafoma, o enviado de Deus, vai falar aos fiéis, depois do ezzã. Aquele que ouvir as palavras do Profeta estará salvo e terá o seu nome incluído entre os bem-aventurados! Vem, ó irmão dos árabes, vem comigo!

Respondi:

— Sim, meu grande e incomparável amigo! Sempre almejei obter, pela mão do Enviado de Allah, a minha reabilitação aos olhos de Deus! Certo estou de que hoje na mesquita, entre cheiques (10) e ulemás (11), obteria a remissão de meus erros e a salvação de minh’alma. Ficaria, para sempre, livre do peso de meus pecados.

Mas...

Naquele momento a sombra do desejo aparecia, bem nítida, nos olhos negros de Radiá.
    
O Profeta vai falar na mesquita? Devo ouvir a sua palavra que redime e salva? A Salvação Eterna! Deixá-la ir, a Salvação Eterna...

    Prefiro, ó inesquecível amigo! continuar aqui, recostado indolente nestas almofadas, pois a sombra do desejo aparece, neste momento, bem nítida nos olhos negros e sedutores de Radiá...

* * *
    Minha pobre tenda está triste e vazia na orla do deserto. Radiá desapareceu de meus olhos como um asfir (12) que fugisse da prisão.

De nosso amor, que parecia eterno, restam apenas as tâmaras amargas da saudade.

Radiá! Radiá! “Chovam lírios e rosas em teu colo! Chovam hinos de glória na tua alma!” Lembra-te, Radiá! Por ti sacrifiquei a Riqueza, a Glória, a Salvação Eterna!...

Resta-me, ainda, a Vida!

Sim, a Vida... Deixá-la ir, a Vida...
________________________________________
Notas:
1- Cocral — peça de ouro ou marfim em forma de pulseira larga. Inum, fada; feiticeira. Criatura dotada de encantos irresistíveis.
2- Baraca — bênção especial de um santo. A tenda, sob a proteção de uma perfeita baraca, está livre dos maus olhares e dos espíritos daninhos e perturbadores.
3- Narguilé — peça usada pelos fumantes. Há diferentes tipos de narguilés. Em geral a fumaça é aspirada por um tubo longo e passa por uma pequena camada de água.
4- Taleb — Professor.
5- Bled-Djerid — país das tâmaras.
6- Antar — (Antara Ibn-Cheddad) poeta árabe notável, anterior ao Islamismo. Tornou-se famoso por causa do “Romance de Antara” no qual o poeta aparece como herói ao lado de Abla, a sua apaixonada, encarnando todas as virtudes que eram atribuídas aos paladinos errantes das tribos pagãs.
7- Moslim — (Moslim ben el-Valid) nasceu no ano 747 e morreu em 803. Teve, durante grande parte de sua vida, a proteção de vários generais e ministros. Foi conhecido pelo apelido de “Cari el-Asavani”, cuja tradução é: “Vitima das lindas mulheres”.
8- Ezzã — As preces obrigatórias para os árabes são em número de cinco; a primeira (mogreb) é feita ao nascer do sol; e a última (ezzã) é realizada à noite.
9- Mac Allah — Exclamação usual entre os crentes. Corresponde aproximadamente ao nosso “Deus seja louvado”.
10- Cheique — tratamento cerimonioso atribuído, em geral, aos homens respeitáveis pela idade ou pela posição social. Chefe de tribo.
11- Ulemá — doutor; homem de grande cultura.
12- Asfir — pássaro verde do Sul.

Fonte: 
Malba Tahan. Minha Vida Querida.