quarta-feira, 20 de março de 2019

Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) V

MEDITAÇÃO

A noturna lembrança consumida
Da tua horrível morte dolorosa,
Enevoa de lágrimas a vida...

E sinto a luz tornar-se duvidosa,
Tocando a minha fronte que lhe gasta
A seiva etérea, a fluída cor viçosa.

O meu olhar maldito logo afasta
O Ser que ás suas lágrimas empece,
E o perfil animado lhe desgasta!

O meu olhar as coisas anoitece...
E elas choram na sombra e na incerteza,
A minha própria dor... E eis que aparece,

Diante de mim, o Espectro da Tristeza...
E tudo transfigura... E eu fico a ver,
Como através da Morte, a Natureza...

O berço é cova. Que é nascer? Morrer.
Quem abre ao sol os olhos, escraviza
A alma, a luz espiritual do ser...

Um rio de emoção, em mim, desliza...
Para cantar se fez pequena fonte;
Seu canto é bruma pálida e indecisa.

E fito, de olhos tristes, o horizonte:
Nele me perco em névoa: sou distancia...
Intima cruz a erguer-se em tosco monte...

Vésper, sorriso de ouro, luz, fragrância
Da noite que amanhece, ao teu fulgor,
Vejo Espectros que são da minha infância...

Formas mortas que nem meu próprio Amor
Anima,--ele que dantes animava
A sombra, a pedra, as árvores em flor!

E como outrora tudo me encantava!
Como perdi no turbilhão dos dias
O sabor que nas coisas eu gostava!

Tristezas são fantasmas de alegrias...
E entre Fantasmas vivo... Ó meus amores,
Folhas mortas, outono, ventanias!...

Sombras da meia noite! Mãe das Dores
Em teu altar sozinho, na capela
Do monte sem romeiros e sem flores!

Ó Noite! Virgem triste! Erma Donzela!
Se eu fora sombra de alma adormecida,
Silencio de alma, solidão de estrela?...

Mas não; eu vivo e penso nesta Vida;
No Mal vitorioso e na Bondade
Quase sempre ultrajada e perseguida!

Vejo a Inocência ás mãos da Crueldade
Morta, desbaratada, e vejo a aurora
Alumiando esta negra, férrea idade!

Vejo um pequeno Anjinho que enamora
Meu comovido espírito encantado...
E divinos sorrisos ele chora,

E só de vê-lo, eu sinto-me sagrado!
E fica todo em flor meu coração,
Paraíso astral, Jardim de Deus, Sol nado!

E, súbito, lá vai: é sonho vão!
E sobre mim, aflita, a noite desce:
Maré cheia de treva e solidão.

E o sangue em minhas veias arrefece...
Á altura do meu rosto, vejo o Medo
Que, nos ermos crepúsculos, me empece!

E como tudo é sombra, dor, segredo!
De longe, aspectos de alma que nos falam;
De perto, brutas formas de rochedo!

Quantas intimas dores nos abalam!
Porque não há no mundo quem as ouça,
As dolorosas vozes que se calam!

Ó gente enamorada! Ó gente moça!
Que, de repente, ao túmulo baixais,
Qual o vosso pecado? a culpa vossa?

Ó Procissão das lágrimas, dos ais,
Diante de mim, passando eternamente
A caminho das sombras sepulcrais!

Dor sem fim, sem principio, dor presente,
Martirizando as almas, e sobre elas
O sorriso de Deus indiferente!

O Deus que põe na face das estrelas
Nodosa de sombra e enfeita com as flores
Da morte, as brancas Noivas e as Donzelas;

O Deus aceso em trágicos furores,
Que mata as criancinhas sem pecado
E parece viver das nossas dores,

E fez do nosso choro o mar salgado,
E fez da nossa angustia um ermo outeiro,
E sobre ele Jesus crucificado;

O Deus que me tornou prisioneiro,
E que transforma tudo quanto eu amo
Em desfeita visão de nevoeiro;

Ah, esse Deus que, quando por Deus chamo,
É profundo silencio, indiferença,
A própria sombra morta que eu derramo...

Remoto Deus--Fantasma, sem presença,
Que em matéria de dor edificou
As árvores, o Sol, a noite imensa,

E em doloroso barro levantou
Minha figura trágica e represa,
Num impotente, empedernido voo;

É o Deus do Abismo, o Pai da Natureza,
Noturno Deus da vida material,
Divindade da fúnebre Tristeza;

O Deus criador das Trevas, contra o qual
Sozinho, se ergue em mim, mas sem temor,
O meu divino Ser espiritual;

Meu Ser heroico aceso em puro amor!
Sol comovido, ardente meio dia,
Trespassando de luz a noite e a dor!

Meu Ser, onde se muda em alegria
A corpórea tristeza; onde a Matéria
Se faz alma perfeita de harmonia;

Meu Ser que afirma o Bem, ante a miséria
Das transitórias coisas; que levanta,
Contra a sombra do inferno, a Luz etérea!

Meu Ser espiritual que, alegre, canta,
Se, por ventura, eu choro desolado,
E que os Fantasmas lúgubres espanta;

Meu Ser criador do Espírito sagrado,
O Redentor das lágrimas, dos ais;
Senhor dum novo Olimpo sublimado...

Novo Orfeu nos Abismos infernais.

ESPERANÇA E TRISTEZA

Minha tristeza é pior que a tua dor.
Um dia, no teu ventre sentirás
Reencarnar para o mundo o teu amor:
A mesma alma, o mesmo olhar... verás!...

Eu sei que há de voltar; e assim terás
A alegria primeira, ainda maior...
E então, de novo, alegre ficarás;
Será primeiro o teu segundo amor!

Mas eu que, antes do tempo, já declino,
Quem sabe se verei o teu Menino,
Numa idade em que possa compreender?

E partirei talvez sem lhe deixar,
Na memória, esse interno e fundo olhar,
A comovida imagem do meu ser...

SOZINHO

Tarde. Vagueio só por um outeiro.
Sua Imagem quimérica flutua,
Diante de mim, no espaço: é nevoeiro
Vestindo de emoção a terra nua...

E como na minh'alma se insinua
Aquele etéreo Vulto... amor primeiro!
Ouço-o falar, lá fora, á luz da lua.
Vejo-o brincar na sombra do terreiro.

Apenas vêm meus olhos, neste mundo,
O seu perfil angélico, o seu fundo,
Misterioso, verde negro olhar...

Vejo uma estrela? É ele. Vejo um lírio?
É ele. Tudo é ele. E o meu delírio
É ele: é o seu espírito a cantar!

DEPOIS DA VIDA

Quando meu coração parar desfeito
Em sombra, na profunda sepultura,
E o meu ser, já fantástico e perfeito,
Vaguear entre o Infinito e a terra dura;

Quando eu sentir, enfim, todo o meu peito
A transformar-se em constelada Altura;
Eu, divino Fantasma, o claro Eleito,
O Enviado da Vida á Morte escura;

Quando eu for para mim minha esperança,
Meu próprio amor jamais anoitecido,
E a minha sombra apenas for lembrança;

Quando eu for um Espectro de Saudade,
Entre o luar e a névoa amanhecido,
Serei contigo, Amor, na Eternidade.

O ENCONTRO COM O RETRATO

Receio o teu encontro, pobre Mãe,
Com o retrato de teu Filho. Vais
Contemplar suas formas materiais,
O que pertence á morte e a mais ninguém...

Mas para que exaltar ainda mais
Aquela dor que é só do mundo? Tem
Paciência. Não o vejas. Olha bem:
De que servem as lágrimas e os ais?...

Essa dor não a ames, que é profana.
Sim: não adores nele a forma humana,
A ilusória aparência, o sonho vão...

Pois é verdade, ó Mãe, que tens presente
Seu imortal espírito inocente
Em ti mesma, em teu próprio coração!...

NA MINHA SOLEDADE

Aqui, por estes sítios onde nós
Vivemos; tu brincando no jardim;
Eu a ouvir encantado a tua voz
E vendo em ti um Anjo, um sonho, ao pé de mim;

Aqui, por estes vales de alegria
Enquanto tu viveste,
E agora escuras, armas terras de elegia
Batidas do nordeste,
Eu ando á minha sombra reduzido
E mais a tua Imagem.
E quem nos vê, de longe, diz entristecido:
Dois Espectros, além, vagueando na Paisagem...

A TUA IMAGEM

Os meus olhos abrigam como um templo,
Tua divina Imagem que os eleva
E os enche de pureza e santidade;
São os meus olhos íntimos, aqueles
Que entre as nuvens avistam, certas horas,
Asas de Anjos, relâmpagos de Deus,
E não meus pobres olhos materiais
Na cor, nos formas vãs crucificados.

E tu vives e falas nesse mundo,
Ao pé do qual meu corpo de tragédia
É sua antiga e vaga Nebulosa...

E em meu noturno espirito reboa
Aquela tua voz amanhecente
Que espalhava alegrias pelo ar.

E a tua voz divina, por encanto,
Se espelha em minhas lágrimas que ficam
Todas, por dentro, acesas num sorriso.

A lágrima vê tudo: a própria voz,
Pousando á sua turva superfície,
Nela desenha, em ondas, o seu Vulto.

Meu doloroso ser com tua Imagem
Eterna comunica. A minha vida
Na tua morte assim se continua...
Embora exista entre elas a distância
De sombras lampejantes, que separa
Nosso corpo mortal do nosso espirito.

E eu canto, e me deslumbro em minha dor!
De súbito, anoiteço, e me disperso,
E vejo-me Fantasma... e, a sós, divago
Pelos caminhos lúgubres da Morte...
E chego á porta em flor do teu sepulcro;
E uma alegria misteriosa vem
Dourar a sombra vã de que sou feito...

E esta alegria és tu... que me apareces!...
Minha segunda vida transcendente
Nasceu da tua Ausência que lhe imprime
O drama eterno, a ação divina e triste.

Tua morte refez meu ser: abriu-lhe
Novo sentido de alma; aquele olhar
Que no seio das lágrimas desperta,
E veste de infinito e de saudade
A tosca rocha bruta que se torna
Espirito vivente no crepúsculo:
Esfinge em cujos lábios a tristeza
Das coisas interroga a dor humana.

E vós, ó brutas coisas reviveis
Perante o meu olhar que vos penetra
De seu liquido lume visionário.
Tornastes a viver. As vossas almas
Que a minha dor primeira afugentou,
São presentes, de novo, em vosso corpo.
Ei-lo cismando, triste, á luz do luar,
Na projetada sombra que, a seus pés,
Desenha ignotas formas de silencio...
Ei-lo embebido em mística ternura,
Trêmulo de emoção, reverdecendo,
Esculpindo, no ar, melancolias...

E a tua Imagem paira sobre mim...
Todo eu palpito em ondas de ansiedade!
Abismo de emoção, em mim me perco!
E minh'alma exaltada e comovida,
Deste meu ser transborda e inunda tudo!
Arde no fogo virgem das estrelas,
Em cada humana lágrima cintila,
Chora nas nuvens, no ermo vento geme!

E julgo haver, meu Deus, ressuscitado
Da morte que sofri para nascer!

Sim: o meu berço é irmão do teu sepulcro;
Teu cadáver baixou aquele abismo
Donde subi outrora á luz da morte...
E lá tu me encontraste ainda em vida,
Na Aurora que precede o nascimento,
E parece dourar a nossa Infância...

Sinto que estou contigo em outro mundo.
Lá vivemos os dois em companhia,
Muito embora eu arraste sobre a terra,
Que teu cadáver, tão mimoso! esconde,
Esta minha Presença de aflição!

E beijo a tua Imagem, de joelhos...
E, em meu silencio, rezo... E a tua Imagem
Agora é grave, séria, quase triste,
Porque se fez sagrada além da Morte.

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912.

Machado de Assis (Um Erradio)


A porta abriu-se… Deixa-me contar a história à laia de novela, disse Tosta à mulher, um mês depois de casados, quando ela lhe perguntou quem era o homem representado numa velha fotografia, achada na secretária do marido. A porta abriu-se, e apareceu este homem, alto e sério, moreno, metido numa infinita sobrecasaca cor de rapé, que os rapazes chamavam opa.

— Aí vem a opa do Elisiário.

— Entre a opa só.

— Não, a opa não pode; entre só o Elisiário, mas, primeiro há de glosar um mote. Quem dá o mote?

Ninguém dava o mote. A casa era uma simples sala, sublocada por um alfaiate, que morava nos fundos com a família; Rua do Lavradio, 1866. Era a segunda vez que ia ali, a convite de um dos rapazes. Não podes ter ideia da sala e da vida. Imagina um município do país da Boêmia, tudo desordenado e confuso; além dos poucos móveis pobres, que eram do alfaiate, havia duas redes, uma canastra, um cabide, um baú de folha-de-flandres, livros, chapéus, sapatos. Moravam cinco rapazes, mas apareciam outros, e todos eram tudo, estudantes, tradutores, revisores, namoradores, e ainda lhes sobrava tempo para redigir uma folha política e literária, publicada aos sábados. Que longas palestras que tínhamos! Solapávamos as bases da sociedade, descobríamos mundos novos, constelações novas, liberdades novas. Tudo era o novíssimo.

— Lá vai mote, disse afinal um dos rapazes, e recitou:

Podia embrulhar o mundo
A opa do Elisiário.

Parado à porta, o homem cerrou os olhos por alguns instantes, abriu-os, passou pela testa o lenço que trazia fechado na mão, em forma de bolo, e recitou uma glosa de improviso. Rimo-nos muito; eu, que não tinha ideia do que era improviso, cuidei a princípio que a composição era velha e a cena um logro para mim. Elisiário despiu a sobrecasaca, levantou-a na ponta da bengala, deu duas voltas pela sala, com ar triunfal, e foi pendurá-la a um prego, porque o cabide estava cheio. Em seguida, atirou o chapéu ao teto, apanhou-o entre as mãos, e foi pô-lo em cima do aparador.

— Lugar para um! disse finalmente.

Dei-me pressa em ceder-lhe o sofá; ele deitou-se, fincou os joelhos no ar, e perguntou que novidades havia.

— Que o jantar é duvidoso, respondeu o redator principal do Cenáculo; o Chico foi ver se cobrava alguma assinatura. Se arranjar dinheiro, traz logo o jantar da casa de pasto. Você já jantou?

— Já e bem, respondeu Elisiário, jantei numa casa de comércio. Mas vocês por que é que não vendem o Chico? é um bonito crioulo. É livre, não há dúvida, mas por isso mesmo compreenderá que, deixando-se vender como escravo, terão vocês com que pagar-lhe os ordenados… Dois mil-réis chegam? Romeu, vê ali no bolso da sobrecasaca. Há de haver uns dois mil-réis.

Havia só mil e quinhentos, mas não foram precisos. Cinco minutos depois voltava o Chico, trazendo um tabuleiro com o jantar e o resto da assinatura de um semestre.

— Não é possível! bradou Elisiário. Uma assinatura! Vem cá, Chico. Quem foi que pagou? Que figura tinha o homem? Baixo? Não é possível que fosse baixo; a ação é tão sublime que nenhum homem baixo podia praticá-la. Confessa que era alto. Confessa ao menos que era de meia altura. Confessas? Ainda bem! Como se chama? Guimarães? Rapazes, vamos perpetuar este nome em uma placa de bronze. Acredito que não lhe deste recibo, Chico.

— Dei, sim, senhor.

— Recibo! Mas a um assinante que paga não se dá recibo, para que ele pague outra vez; não se matam esperanças, Chico.

Tudo isto, dito por ele, tinha muito mais graça que contado. Não te posso pintar os gestos, os olhos e um riso que não ria, um riso único, sem alterar a face, nem mostrar os dentes. Essa feição era a menos simpática; mas tudo o mais, a fala, as ideias, e principalmente a imaginação fecunda e moça, que se desfazia em ditos, anedotas, epigramas, versos, descrições, ora sério, quase sublime, ora familiar, quase rasteiro, mas sempre original, tudo atraía e prendia. Trazia a barba por fazer, o cabelo à escovinha; a testa, que era alta, tinha grossas rugas verticais. Calado, parecia estar pensando. Voltava-se a miúdo no sofá, erguia-se, sentava-se, tornava a deitar-se. Lá o deixei, quando saí, às nove horas da noite.

Comecei a frequentar a casa da Rua do Lavradio, mas durante os primeiros dias não apareceu o Elisiário. Disseram-me que era muito incerto. Tinha temporadas. Às vezes, ia todos os dias; repentinamente, falhava uma, duas, três semanas seguidas, e mais. Era professor de latim e explicador de matemáticas. Não era formado em coisa nenhuma, posto estudasse engenharia, medicina e direito deixando em todas as faculdades fama de grande talento sem aplicação. Seria bom prosador, se fosse capaz de escrever vinte minutos seguidos; era poeta de improviso, não escrevia os versos, os outros é que os ouviam e transladavam ao papel, dando-lhe cópias, muitas das quais perdia. Não tinha família; tinha um protetor, o Dr. Lousada, operador de algum nome, que devera obséquios ao pai de Elisiário, e quis pagá-los ao filho. Era atrevido por causa de uma sombrinha de amor-próprio que não tolerava a menor picada. Naquela casa era bonachão. Trinta e cinco anos; o mais velho dos rapazes contava apenas vinte e um. A familiaridade entre ele e os outros era como a de um tio com sobrinhos, um pouco menos de autoridade, um pouco mais de liberdade.

No fim de uma semana, apareceu Elisiário na Rua do Lavradio. Vinha com a ideia de escrever um drama, e queria ditá-lo. Escolheram-me a mim, por escrever depressa. Esta colaboração mental e manual durou duas noites e meia. Escreveu-se um ato e as primeiras cenas de outro; Elisiário não quis absolutamente acabar a peça. A princípio disse que depois, mais tarde, estava indisposto, e falava de outras coisas; afinal, declarou-nos que a peça não prestava para nada. Espanto geral, porque a obra parecia-nos excelente, e ainda agora creio que o era. Mas o autor pegou da palavra e demonstrou que nem o escrito prestava, nem o resto do plano valia coisa nenhuma. Falou como se tratasse de outrem. Nós contestávamos; eu principalmente achava um crime, e repetia esta palavra com alma, com fogo — achava um crime não acabar o drama, que era de primeira ordem.

— Não vale nada, dizia ele sorrindo para mim com simpatia. Menino, você quantos anos tem?

— Dezoito.

— Tudo é sublime aos dezoito anos. Cresça e apareça. O drama não presta; mas, deixe estar que havemos de escrever outro daqui a dias. Ando com uma ideia.

— Sim?

— Uma boa ideia, continuou ele com os olhos vagos; essa, sim, creio que dará um drama. Cinco atos; talvez faça em verso. O assunto presta-se…

Nunca mais falou em tal ideia; mas o drama começado fez com que nos ligássemos um pouco mais intimamente. Ou simpatia, ou amor-próprio satisfeito, por ver que o mais consternado com a interrupção e condenação do trabalho fui eu, — ou qualquer outra causa que não achei nem vale a pena buscar, Elisiário entrou a distinguir-me entre os outros. Quis saber quem eram meus pais e o que fazia. Disse-lhe que não tinha mãe; meu pai era lavrador em Baturité, eu estudava preparatórios, intercalando-os com versos, e andava com ideias de compor um poema, um drama e um romance. Tinha já uma lista de subscritores para os versos. Parece que, de envolta com as notícias literárias, alguma coisa lhe disse ou ele percebeu acerca dos meus sentimentos de moço. Propôs-se a ajudar-me nos estudos com o seu próprio ensino, latim, francês, inglês, história… Cheio de orgulho, não menos que de sensibilidade, proferi algumas palavras que ele gostou de ouvir, e a que respondeu gravemente:

— Quero fazer de você um homem.

Estávamos sós; eu nada contei aos outros, para os não molestar, nem sei se eles perceberam daí em diante alguma diferença no trato do Elisiário, em relação a mim. É certo, porém, que a diferença não era grande, nem o plano de “fazer-me um homem” foi além da simpatia e da benevolência. Ensinava-me algumas matérias, quando eu lhe pedia lições, e eu raramente as pedia. Queria só ouvi-lo, ouvi-lo, ouvi-lo até não acabar. Não imaginas a eloquência desse homem, cálida e forte, mansa e doce, as imagens que lhe brotavam no discurso, as ideias arrojadas, as formas novas e graciosas. Muita vez ficávamos os dois sós na Rua do Lavradio, ele falando, eu ouvindo. Onde morava? Disseram-me vagamente que para os lados da Gamboa, mas nunca me convidou a lá ir, nem ninguém sabia positivamente onde era.

Na rua era lento, direito, circunspecto. Nada faria então suspeitar o desengonçado da casa do Lavradio, e, se falava, eram poucas e meias palavras. Nos primeiros dias, encontrava-me sem alvoroço quase sem prazer, ouvia-me atento, respondia pouco, estendia os dedos e continuava a andar. Ia a toda parte; era comum achá-lo nos lugares mais distantes uns dos outros, Botafogo, S. Cristóvão, Andaraí. Quando lhe dava na veneta, metia-se na barca e ia a Niterói. Chamava-se a si mesmo erradio.

— Eu sou um erradio. No dia em que parar de vez, jurem que estou morto.

Um dia encontrei-o na Rua de S. José. Disse-lhe que ia ao Castelo ver a igreja dos Jesuítas, que nunca vira.

— Pois vamos, disse ele.

Subimos a ladeira, achamos a igreja aberta e entramos. Enquanto eu mirava os altares, ele ia falando, mas em poucos minutos o espetáculo era ele só, um espetáculo vivo, como se tudo renascera tal qual era. Vi os primeiros templos da cidade, os padres da Companhia, a vida monástica e leiga, os nomes principais e os fatos culminantes. Quando saímos, e fomos até à muralha, descobrindo o mar e parte da cidade, Elisiário fez-me viver dois séculos atrás. Vi a expedição dos franceses, como se a houvesse comandado ou combatido. Respirei o ar da colônia, contemplei as figuras velhas e mortas. A imaginação evocativa era a grande prenda desse homem, que sabia dar vida às coisas extintas e realidade às inventadas.

Mas não era só do passado local que ele sabia, nem unicamente dos seus sonhos. Vês aquela estatuazinha que ali tenho na parede? Sabes que é uma redução da Vênus de Milo. Uma vez, abrindo-se a exposição das belas-artes, fui visitá-la; achei lá o meu Elisiário, passeando grave, com a sua imensa sobrecasaca. Acompanhou-me; ao passar pela sala de escultura, dei com os olhos na cópia desta Vênus. Era a primeira vez que a via. Soube que era ela pela falta dos braços.

— Oh! admirável! exclamei.

Elisiário entrou a comentar a bela obra anônima, com tal abundância e agudeza que me deixou ainda mais pasmado. Que de coisas me disse a propósito da Vênus de Milo, e da Vênus em si mesma! Falou da posição dos braços, que gesto fariam, que atitude dariam à figura, formulando uma porção de hipóteses graciosas e naturais. Falou da estética, dos grandes artistas, da vida grega, do mármore grego, da alma grega. Era um grego, um puro grego, que ali me aparecia e transportava de uma rua estreita para diante do Pártenon. A opa do Elisiário transformou-se em clâmide, a língua devia ser a da Hélade, conquanto eu nada soubesse a tal respeito, nem então, nem agora. Mas era feiticeiro o diabo do homem.

Saímos; fomos até o Campo da Aclamação, que ainda não possuía o parque de hoje, nem tinha outra polícia além da natureza, que fazia brotar o capim, e das lavadeiras, que batiam e ensaboavam a roupa defronte do quartel. Eu ia cheio do discurso do Elisiário, ao lado dele, que levava a cabeça baixa e os olhos pensativos. De repente, ouvi dizer baixinho:

— Adeus, Ioiô!

Era uma quitandeira de doces, uma crioula baiana, segundo me pareceu pelos bordados e crivos da saia e da camisa. Vinha da Cidade Nova e atravessava o campo. Elisiário respondeu à saudação:

— Adeus, Zeferina.

Estacou e olhou para mim, rindo sem riso, e, depois de alguns segundos:

— Não se espante, menino. Há muitas espécies de Vênus. O que ninguém dirá é que a esta lhe faltem braços, continuou olhando para os braços da quitandeira, mais negros ainda pelo contraste da manga curta e alva da camisa.

Eu, de vexado, não achei resposta.

Não contei esse episódio na Rua do Lavradio; podiam meter à bulha o Elisiário, e não queria parecer indiscreto. Tinha-lhe não sei que veneração particular que a familiaridade não enfraquecia. Chegamos a jantar juntos algumas vezes, e uma noite fomos ao teatro. O que mais lhe custava no teatro era estar muito tempo na mesma cadeira, apertado entre duas pessoas, com gente adiante e atrás de si. Nas noites de enchente, em que eram precisas travessas na plateia, ficava aflito com a ideia de não poder sair no meio de um ato, se quisesse. Naquela, acabado o terceiro ato (a peça tinha cinco), disse-me que não podia mais e que ia embora.

Fomos tomar chá ao botequim próximo, e deixei-me estar, esquecido do espetáculo. Ficamos até o fechar das portas. Tínhamos falado de viagens; eu contei-lhe a vida do sertão cearense, ele ouviu e projetou mil jornadas ao sertão do Brasil inteiro, por serras, campos e rios, de mula e de canoa. Colheria tudo, plantas, lendas, cantigas, locuções. Narrou a vida do caipira, falou de Enéas, citou Virgílio e Camões, com grande espanto dos criados, que paravam boquiabertos.

— Você era capaz de ir daqui a pé, até S. Cristóvão, agora? perguntou-me na rua.

— Pode ser.

— Não, você está cansado.

— Não estou, vamos.

— Está cansado, adeus; até depois, concluiu.

Realmente, estava fatigado, precisava dormir. Quando ia a voltar para casa, perguntei a mim mesmo se ele iria sozinho, àquela hora, e deu-me vontade de acompanhá-lo de longe, até certo ponto. Ainda o apanhei na Rua dos Ciganos. Ia devagar, com a bengala debaixo do braço, e as mãos ora atrás, ora nas algibeiras das calças. Atravessou o Campo da Aclamação, enfiou pela Rua de S. Pedro e meteu-se pelo Aterrado acima. Eu, no Campo, quis voltar, mas a curiosidade fez-me ir andando também. Quem sabe se esse erradio não teria pouso certo de amores escondidos? Não gostei desta reflexão, e quis punir-me desandando; mas a curiosidade levara-me o sono e dava-me vigor às pernas. Fui andando atrás do Elisiário. Chegamos assim à ponte do Aterrado, enfiamos por ela, desembocamos na Rua de S. Cristóvão. Ele algumas vezes parava, ou para acender um charuto, ou para nada. Tudo deserto, uma ou outra patrulha, algum tílburi, raro, a passo cochilado, tudo deserto e longo. Assim chegamos ao cais da Igrejinha. Junto ao cais dormiam os botes que, durante o dia, conduziam gente para o Saco do Alferes. Maré frouxa, apenas o ressonar manso da água. Após alguns minutos, quando me pareceu que ia voltar pelo mesmo caminho, acordou os remadores de um bote, que de acaso ali dormiam, e propôs-lhes levá-lo à cidade. Não sei quanto ofereceu; vi que, depois de alguma relutância, aceitaram a proposta.

Elisiário entrou no bote, que se afastou logo, os remos feriram a água, e lá se perdeu na noite e no mar o meu professor de latim e explicador de matemáticas. Também eu me achei perdido, longe da cidade e exausto. Valeu-me um tílburi, que atravessava o Campo de S. Cristóvão, tão cansado como eu, mas piedoso e necessitado.

— Você não quis ir comigo anteontem a São Cristóvão? Não sabe o que perdeu; a noite estava linda, o passeio foi muito agradável. Chegando ao cais da Igrejinha, meti-me num bote e vim desembarcar no Saco do Alferes. Era um bom pedaço até a casa; fiquei numa hospedaria do Campo de Sant’Ana. Fui atacado por um cachorro, no caminho do Saco, e por dois na Rua de S. Diogo, mas não senti as pulgas da hospedaria, porque dormi como um justo. E você que fez?

— Eu?

Não querendo mentir, se ele me tivesse pressentido, nem confessar que o acompanhara de longe, respondi sumariamente:

— Eu? Eu também dormi como um justo.

— Justus, justa, justum.

Estávamos na casa da Rua do Lavradio. Elisiário trazia no peito da camisa um botão de coral, objeto de grande espanto e aclamação da parte dos rapazes, que nunca jamais o viram com joias. Maior, porém, foi o meu espanto, depois que os rapazes saíram. Tendo ouvido que me faltava dinheiro para comprar sapatos, Elisiário sacou o botão de coral e disse que me fosse calçar com ele. Recusei energicamente, mas tive de aceitá-lo à força. Não o vendi nem empenhei; no dia seguinte pedi algum dinheiro adiantado ao correspondente de meu pai, calcei-me de novo, e esperei que chegasse o paquete do Norte, para restituir o botão ao Elisiário. Se visses a cara de desconsolo com que o recebeu!

— Mas o senhor não disse outro dia que lhe tinham dado este botão de presente? repliquei à proposta que me fez de ficar com a joia.

— Sim, disse e é verdade; mas para que me servem joias? Acho que ficam melhor nos outros. Bem pensado, como é presente, posso guardar o botão. Deveras, não o quer para si?

— Não, senhor; um presente…

— Presente de anos, continuou mirando a pedra com o olhar vago. Fiz trinta e cinco. Estou velho, meu menino; não tardo em pedir reforma e ir morrer em algum buraco.

Tinha acabado de repor o botão na camisa.

— Fez anos, e não me disse.

— Para quê? Para visitar-me? Não recebo nesse dia; de costume janto com o meu velho amigo Dr. Lousada, que também faz o seu versinho, às vezes, e outro dia brindou-me com um soneto impresso em papel azul… Lá o tenho em casa; não é mau.

— Foi ele que lhe deu o botão…

— Não, foi a filha… O soneto tem um verso muito parecido, com outro de Camões; o meu velho Lousada possui as suas letras clássicas, além de ser excelente médico… Mas o melhor dele é a alma …

Quiseram fazê-lo deputado. Ouvi que dois amigos dele, homens políticos, entenderam que o Elisiário daria um bom orador parlamentar. Não se opôs, pediu apenas aos inventores do projeto que lhe emprestassem algumas ideias políticas; riram-se, e o projeto não foi adiante.

Quero crer que lhe não faltassem ideias, talvez as tivesse de sobra, mas tão contrárias umas às outras que não chegariam a formar uma opinião. Pensava segundo a disposição do dia, liberal exaltado ou conservador corcunda. O principal motivo da recusa era a impossibilidade de obedecer a um partido, a um chefe, a um regimento de câmara. Se houvesse liberdade de alterar as horas da sessão, uma de manhã, outra de noite, outra de madrugada, ao acaso da frequência, sem ordem do dia, com direito de discutir o anel de Saturno ou os sonetos de Petrarca, o meu erradio Elisiário aceitaria o cargo, contanto que não fosse obrigado a estar calado, nem a falar, quando lhe chegasse a vez.

Aí tens o que era esse homem fotografado em 1862. Em suma, boa criatura, muito talento, excelente conversador, alma inquieta e doce, desconfiada e irritadiça, sem futuro nem passado, sem saudades nem ambições, um erradio. Senão quando… Mas é muito falar sem fumar um charuto… Consentes? Enquanto acendo o charuto, olha para esse retrato, descontando-lhe os olhos, que não saíram bem; parecem olhos de gato e inquisidor, espetados na gente, como querendo furar a consciência. Não eram isso; olhavam mais para dentro que para fora, e quando olhavam para fora derramavam-se por toda a parte.

Senão quando, uma tarde, já escuro, por volta das sete horas, apareceu-me na casa de pensão o meu amigo Elisiário. Havia três semanas que o não via, e, como tratava de fazer exames, e passava mais tempo metido em casa, não me admirei da ausência nem cuidei dela. Demais, já me acostumara aos seus eclipses. O quarto estava escuro, eu ia sair e acabava de apagar a vela, quando a figura alta e magra do Elisiário apareceu à porta. Entrou, foi direito a uma cadeira, sentei-me ao pé dele, perguntei-lhe por onde andara. Elisiário abraçou-me chorando. Fiquei tão assombrado que não pude dizer nada; abracei-o também, ele enxugou os olhos com o lenço, que de costume trazia fechado na mão, e suspirou largo. Creio que ainda chorou silenciosamente, porque enxugava os olhos de quando em quando. Eu, cada vez mais assombrado, esperava que ele me dissesse o que tinha; afinal murmurei:

— Que é? que foi?

— Tosta, casei-me sábado…

Cada vez mais espantado, não tive tempo de lhe pedir outra explicação, porque o Elisiário continuou logo, dizendo que era um casamento de gratidão, não de amor, uma desgraça. Não sabia que respondesse à confidência, não acabava de crer na notícia, e principalmente, não entendia o abatimento nem a dor do homem. A figura do Elisiário, qual a recompus depois, não me aparecia por esse tempo com a significação verdadeira. Cheguei a supor alguma coisa mais que o simples casamento; talvez a mulher fosse idiota ou tísica; mas quem o obrigaria a desposar uma doente?

“Uma desgraça! repetia baixinho, falando para si, uma desgraça!”

Como eu me levantasse dizendo que ia acender uma vela, Elisiário reteve-me pela aba do fraque.

— Não acenda, não me vexe, o escuro é melhor, para lhe expor esta minha desgraça. Ouça-me. Uma desgraça. Casado! Não é que ela me não ame; ao contrário, morria por mim há sete anos. Tem vinte e cinco… Boa criatura! Uma desgraça!

A palavra desgraça era a que mais vezes lhe tornava ao discurso. Eu, para saber o resto, quase não respirava; mas não ouvi grande coisa, pois o homem, depois de algumas palavras descosidas, suspendeu a conferência. Fiquei sabendo só que a mulher era filha do Dr. Lousada, seu protetor e amigo, a mesma que lhe dera o botão de coral. Elisiário calou-se de repente, e depois de alguns instantes como arrependido ou vexado, pediu-me que não referisse a pessoa alguma aquela cena dele comigo.

— O senhor deve conhecer-me…

— Conheço, e porque o conheço é que vim aqui. Não sei que outra pessoa me merecesse agora igual confiança. Adeus, não lhe digo mais nada, não vale a pena. Você é moço, Tosta; se não tiver vocação para o casamento, não se case nunca, nem por gratidão, nem por interesse. Há de ser um suplício. Adeus. Não lhe digo onde moro, moro com meu sogro, mas não me procure.

Abraçou-me e saiu. Fiquei à porta do quarto. Quando me lembrei de acompanhá-lo até escada, era tarde; ia descendo os últimos degraus. O lampião de azeite alumiava mal a escada, e a figura descia vagarosa, apoiada ao corrimão, cabeça baixa e a vasta sobrecasaca alegre, agora triste.

Só dez meses depois tornei a ver o Elisiário. A primeira ausência foi minha; tinha ido ao Ceará, ver meu pai, durante as férias. Quando voltei, soube que ele fora ao Rio Grande do Sul. Um dia, almoçando, li nos jornais que chegara na véspera, e corri a buscá-lo. Achei-o em Santa Teresa, uma casinha pequena, com um jardim, pouco maior que ela. Elisiário abraçou-me com alvoroço; falamos de coisas passadas; perguntei-lhe pelos versos.

— Publiquei um volume em Porto Alegre. Não foi por minha vontade, mas minha mulher teimou tanto que afinal cedi; ela mesma os copiou. Tem alguns erros; hei de fazer aqui uma segunda edição.

Elisiário deu-me um exemplar do livro, mas não consentiu que lesse ali nada. Queria só falar dos tempos idos. Perdera o sogro, que lhe deixara alguma coisa, e ia continuar a lecionar, para ver se achava as impressões de outrora. Onde estavam os rapazes da Rua do Lavradio? Recordava cenas antigas, noitadas, algazarra, grandes risotas, que me iam lembrando coisas análogas, e assim gastamos duas boas horas compridas. Quando me despedi, pegou-me para jantar.

— Você ainda não viu minha mulher, disse ele. E indo à porta que dava para dentro: — Cintinha!

— Lá vou! respondeu uma voz doce.

D. Jacinta chegou logo depois, com os seus vinte e seis anos, mais baixa que alta, mais feia que bonita, expressão boa e séria, grande quietação de maneiras. Quando ele lhe disse o meu nome, olhou para mim espantada.

— Não é um bonito rapaz?

Ela confirmou a opinião inclinando modestamente a cabeça. Elisiário disse-lhe que eu jantava com eles; a moça retirou-se da sala.

— Boa criatura, disse-me ele; dedicada, serviçal. Parece que me adora. Já me não faltam botões nos paletós que trago… Pena! melhor que eles eram os botões que faltavam. A sobrecasaca de outrora, lembra-se?

Podia embrulhar o mundo
A opa do Elisiário.

— Lembra-me.

— Creio que me durou cinco anos. Onde vai ela! Hei de fazer-lhe um epicédio, com uma epígrafe de Horácio…

Jantamos alegremente. D. Jacinta falou pouco; deixou que eu e o marido gastássemos o tempo em relembrar o passado. Naturalmente, o marido tinha surtos de eloquência, como outrora; a mulher era pouca para ouvi-lo. Elisiário esquecia-se de nós, ela de si, e eu achava a mesma nota antiga, tão viva e tão forte. Era costume dele concluir um discurso desses e ficar algum tempo calado. Resumia dentro de si o que acabava de dizer? Continuava a mesma ordem de ideias? Deixava-se ir ainda pela música da palavra? Não sei; achei-lhe o velho costume de ficar calado sem dar pelos outros. Nessas ocasiões a mulher calava-se também, a olhar para ele, não cheia de pensamento, mas de admiração. Sucedeu isso duas vezes. Em ambas chegou a ser bonita.

Elisiário disse-me, ao café, que viria comigo abaixo.

— Você deixa, Cintinha?

D. Jacinta sorriu para mim, como se dissesse que o pedido era desnecessário. Também ela falou no livro de versos do marido.

— Elisiário é preguiçoso; o senhor há de ajudar-me a fazer com que ele trabalhe.

Meia hora depois descíamos a ladeira. Elisiário confessou-me que, desde que casara, não tivera ocasião de relembrar a vida de solteiro, e ao chegarmos abaixo declarou-me que iríamos ao teatro.

— Mas você não avisou em casa…

— Que tem? Aviso depois. Cintinha é boa, não se zanga por isso. Que teatro há de ser?

Não foi nenhum; falamos de outras coisas, e às nove horas tornou para casa. Voltei a Santa Teresa poucos dias depois, não o achei, mas a mulher disse-me que o esperasse, não tardaria.

— Foi a uma visita aqui mesmo no morro, disse ela; há de gostar muito de o ver.

Enquanto falava, ia fechando dissimuladamente um livro, e foi pô-lo em uma mesa, a um canto. Tratamos do marido; ela pediu-me que lhe dissesse o que pensava dele, se era um grande espírito, um grande poeta, um grande orador, um grande homem, em suma. As palavras não seriam propriamente essas, mas vinham a dar nelas. Eu, que o admirava, confirmei-lhe o sentimento, e o gosto com que me ouviu foi paga bastante ao tal ou qual esforço que empreguei para dar à minha opinião a mesma ênfase.

— Faz bem em ser amigo dele, concluiu; ele sempre me falou bem do senhor; dizia que era um menino muito sério.

O gabinete tinha flores frescas e uma gaiola com passarinho. Tudo em ordem, cada coisa em seu lugar, obra visível da mulher. Daí a pouco entrou Elisiário, com a gravata no pescoço, o laço na frente, a barba rapada, correto e em flor. Só então notei a diferença entre este Elisiário e o outro. A incoerência dos gestos era já menor, ou estava prestes a acabar inteiramente. A inquietação desaparecera. Logo que ele entrou, a mulher deixou-nos para ir mandar fazer café, e voltou pouco depois, com um trabalho de agulha.

— Não, senhora, vamos primeiro ao latim, bradou o marido.

D. Jacinta corou extraordinariamente, mas obedeceu ao marido e foi buscar o livro que estava lendo quando eu cheguei.

— Tosta é de confiança, continuou Elisário, não vai dizer nada a ninguém.

E voltando-se para mim:

— Não pense que sou eu que lhe imponho isto; ela mesma é que quis aprender.

Não crendo o que ele me dizia, quis poupar à moça a lição de latim, mas foi ela própria que me dispensou o auxílio, indo buscar alegremente a gramática do Padre Pereira. Vencida a vergonha, deu a lição, como um simples aluno. Ouvia com atenção, articulava com prazer, e mostrava aprender com vontade. Acabado o latim, o marido quis passar à lição de história; mas foi ela, dessa vez, que recusou obedecer, para me não roubá-lo a mim. Eu, pasmado, desfiz-me em louvores; realmente achava tão fora de propósito aquela escola de latim conjugal, que não alcançava explicação, nem ousava pedi-la.

Amiudei as visitas. Jantava com eles algumas vezes. Ao domingo ia só almoçar. D. Jacinta era um primor. Não imaginas a graça que tinha em falar e andar, tudo sem perder a compostura dos modos nem a gravidade dos pensamentos. Sabia muitos trabalhos de mãos, apesar do latim e da história que o marido lhe ensinava. Vestia com simplicidade, usava os cabelos lisos e não trazia joia alguma; podia ser afetação, mas tal era a sinceridade que punha em tudo, que parecia natural nisso como no resto.

Ao domingo, o almoço era no jardim. Já achava o Elisiário à minha espera, à porta, ansioso que eu chegasse. A mulher estava acabando de arranjar as flores e folhagens que tinham de adornar a mesa. Além disso e do mais, adornava cartões contendo a lista dos pratos, com emblemas poéticos e nomes de musas para as comidas. Nem todas as musas podiam entrar, eles não eram ricos, nem nós tão comilões; entravam as que podiam. Era ao almoço que Elisiário, nos primeiros tempos, mais geralmente improvisava alguma coisa. Improvisava décimas, — ele preferia essa estrofe a qualquer outra; mais tarde, foi diminuindo o número delas, e para diante não passava de duas ou de uma. D. Jacinta pedia-lhe então sonetos; sempre eram quatorze versos. Ela e eu copiávamos logo, a lápis, com retificações que ele fazia, rindo: — “Para que querem vocês isso?” Afinal perdeu o costume, com grande mágoa da mulher, e minha também. Os versos eram bons, a inspiração fácil; faltava-lhes só o calor antigo.

Um dia perguntei a Elisiário por que não reimprimia o livro de versos, que ele dizia ter saído com incorreções; eu ajudaria a ler as provas. D. Jacinta apoiou com entusiasmo a proposta.

— Pois, sim, disse ele, um dia destes; começaremos domingo.

No domingo, D. Jacinta, estando a sós comigo, um instante, pediu-me que não esquecesse a revisão do livro.

— Não, senhora, deixe estar.

— Não enfraqueça, se ele quiser adiar o trabalho, continuou a moça; é provável que ele fale em guardar para outra vez, mas teime sempre, diga que não, que se zanga, que não volta cá…

Apertou-me a mão com tanta força, que me deixou abalado. Os dedos tremiam-lhe; parecia um aperto de namorada. Cumpri o que disse, ela ajudou-me, e ainda assim gastamos meia hora antes que ele se dispusesse ao trabalho. Afinal pediu-nos que esperássemos, ia buscar o livro.

— Desta vez, vencemos, disse eu.

D. Jacinta fez com a boca um gesto de desconfiança, e passou da alegria ao abatimento.

— Elisiário está preguiçoso. Há de ver que não acabamos nada. Pois não vê que não faz versos senão à força de muito pedido, e poucos? Podia escrever também, quando mais não fosse alguns daqueles discursos que costuma improvisar, mas os próprios discursos são raros e curtos. Tenho-me oferecido tantas vezes para escrever o que ele mandar… Chego a preparar o papel, pego na pena e espero; ele ri, disfarça, diz um gracejo, e responde que não está disposto.

— Nem sempre estará.

— Pois sim; mas então declaro que estou pronta para quando vier a inspiração, e peço-lhe que me chame. Não chama nunca. Uma ou outra vez tem planos; eu vou animando, mas os planos ficam no mesmo. Entretanto, o livro que ele imprimiu em Porto Alegre foi bem recebido, podia animá-lo.

— Animá-lo? Mas ele não precisa de animações; basta-lhe o grande talento que tem.

— Não é verdade? disse ela chegando-se a mim, com os olhos cheios de fogo. Mas é pena! tanto talento perdido!

— Nós o acharemos; hei de tratá-lo como se ele fosse mais moço que eu. O mau foi deixá-lo cair na ociosidade…

Elisiário tornou com um exemplar do livro. Não trazia tinta nem pena; ela foi buscá-las. Começamos o trabalho da revisão; o plano era emendar, não só os erros de imprensa, mas o próprio texto. A novidade do caso interessou grandemente o nosso poeta, durante perto de duas horas. Verdade é que a maior parte do tempo era interrompido com a história das poesias, a notícia das pessoas, se as havia, e havia muitas; uma boa porção das composições era dedicada a amigos ou homens públicos. Naturalmente fizemos pouco: não passamos de vinte páginas. Elisiário confessou que estava com sono, adiamos o trabalho, e nunca mais pegamos nele.

D. Jacinta chegou a pedir ao marido que nos deixasse a nós a tarefa de emendar o livro; ele veria depois o texto emendado e pronto. Elisiário respondeu que não, que ele mesmo faria tudo, que esperássemos, não havia pressa. Mas, como disse, nunca mais pegamos no livro. Já raro improvisava, e, como não tinha paciência para compor escrevendo, os versos iam escasseando mais. Já lhe saíam frouxos; o poeta repetia-se. Quisemos ainda assim propor-lhe outro livro, recolhendo o que havia, e antes de o propor, tratamos de compilá-lo. O todo precisava de revisão; Elisiário consentiu em fazê-la, mas a tentativa teve o mesmo resultado que a outra. Os próprios discursos iam acabando. O gosto da palavra morria. Falava como todos nós falamos; não era já nem sombra daquela catadupa de ideias, de imagens, de frases, que mostravam no orador um poeta. Para o fim, nem falava; já me recebia sem entusiasmo, ainda que cordialmente. Afinal vivia aborrecido.

Com poucos anos de casada, D. Jacinta tinha no marido um homem de ordem, de sossego, mas sem inspiração nem calor. Ela própria foi mudando também. Não instava já pela composição de versos novos, nem pela correção dos velhos. Ficou tão desinteressada como ele. Os jantares e os almoços eram como os de qualquer pessoa que não cuide de letras. D. Jacinta buscava não tocar em tal assunto que era penoso ao marido e a ela; eu imitava-os. Quando me formei, Elisiário compôs um soneto em honra minha; mas já lhe custou muito, e, a falar verdade, não era do mesmo homem de outro tempo.

D. Jacinta vivia então, não direi triste, mas desencantada. A razão não se compreenderá bem, senão sabendo as origens da afeição que a levara ao casamento.

Pelo que pude colher e observar, nunca essa moça amou verdadeiramente o homem com quem casou. Elisiário acreditou que sim, e o disse, porque o pai dela pensava que era deveras um amor como os outros. A verdade, porém, é que o sentimento de D. Jacinta era pura admiração. Tinha uma paixão intelectual por esse homem, nada mais, e nos primeiros anos não pensou em casar

Assim se passaram anos. D. Jacinta começou a pensar em um ato de pura dedicação. Conhecia a vida de Elisiário, os dias perdidos, as noitadas, a incoerência e o desarranjo de uma existência que ameaçava acabar na inutilidade. Nenhum estímulo, nenhuma ambição de futuro. D. Jacinta acreditava no gênio de Elisiário. Muitos eram os admiradores; nenhum tinha a fé viva, a devoção calada e profunda daquela moça. O projeto era desposá-lo. Uma vez casados, ela lhe daria a ambição que não tinha, o estímulo, o hábito do trabalho regular, metódico, e naturalmente abundante. Em vez de perder o tempo e a inspiração em coisas fúteis ou conversas ociosas, comporia obras de fôlego, nas boas horas e para ele quase todas as horas eram excelentes. O grande poeta afirmar-se-ia perante o mundo. Assim disposta, não lhe foi difícil obter a colaboração do pai, sem todavia confessar-lhe o motivo secreto da ação; seria dizer que se casava sem amor. O que ela disse foi que o amava deveras.

Que haja nisso uma nota romanesca, é verdade; mas o romanesco era aqui obra de piedade, vinha de um sentimento de admiração, e podia ser um sacrifício. Talvez mais de um tentasse casar com ela. D. Jacinta não pensou em ninguém, até que lhe surdiu a ideia generosa de seduzir o poeta. Já sabes que este casou por obediência.

O resultado foi inteiramente oposto às esperanças da moça. O poeta, em vez dos louros, enfiou uma carapuça na cabeça, e mandou bugiar a poesia. Acabou em nada. Para o fim dos tempos nem lia já obras de arte. D. Jacinta padeceu grandemente; viu esvair-se-lhe o sonho, e, se não perdeu, antes ganhou o latim, perdeu aquela língua sublime em que cuidou falar às ambições de um grande espírito. A conclusão a que chegou foi ainda um desconsolo para si. Concluiu que o casamento esterilizara uma inspiração que só tinha ambiente na liberdade do celibato. Sentiu remorsos. Assim, além de não achar as doçuras do casamento na união com Elisiário, perdeu a única vantagem a que se propusera no sacrifício.

Errava naturalmente. Para mim Elisiário era o mesmo erradio, ainda que parecesse agora pousado; mas era também um talento de pouca dura; tinha de acabar, ainda que não casasse. Não foi a ordem que lhe tirou a inspiração. Certamente, a desordem ia mais com ele que tanto tinha de agitado, como de solitário; mas a quietação e o método não dariam cabo do poeta, se a poesia nele não fosse uma grande febre da mocidade… Em mim é que não passou de ligeira constipação da adolescência. Pede-me tu amor, que o terás; não me peças versos, que desaprendi há muito, concluiu Tosta, beijando a mulher.

Fonte:
Machado de Assis. Páginas recolhidas.

terça-feira, 19 de março de 2019

Trova 345 - Edy Soares (Vila Velha/ES)


J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) I


A MEU DIÁRIO

Mais que meu companheiro: confidente
dos momentos felizes e infelizes;
meu jardim de palavras, recônditas raízes.

O que penso tu pensas, o que dizes
é o que te diz minha ama, é o que ela sente,
por isso, em ti percebo as cicatrizes
que vão marcando o coração da gente

Em ti me ajoelho: és meu confessionário;
aqui desnudo a minha vida, e sinto
que és o espelho em que posso me rever;

arca de tantos sonhos, meu diário
a ti me entrego sem pudor, não minto,
se és pedaço do meu próprio ser!

AOS MEUS LEITORES

Para você, amigo ou amiga,
que encontraram a minha poesia na rua,
pouca e pobre, e a adotaram,
e a recolheram ao coração...

Todo o meu reconhecimento
por essa louca e nobre ação.
Em nome da minha poesia
agradeço-lhes a pura alegria,
  muito mais que alegria
Comunhão!

Que é Comunhão ou alegria
encontrar quem nos compreenda
quem nos estende a mão
quem partilhe conosco
pão e música na mesma canção.

A DOR MAIOR

Não quis julgar-te fútil nem banal
e chamei-te de criança tão-somente,
- reconheço, no entanto, infelizmente,
que, porque te quis bem, julguei-te mal.

Pensei até, ( e o fiz ingenuamente...)
ter encontrado a companheira ideal...
Quis julgar-te das outras diferente,
e és como as outras todas afinal...

Hoje, uma dor estranha me consome
e um sentimento a que não sei dar nome
faz-me sofrer, se lembro o amor perdido...

A dor maior... A maior dor, no entanto,
vem de pensar de ter-te amado tanto
sem que ao menos tivesses merecido!…

À ESPERA   

      Ela tarda... E eu me sinto inquieto, quando
  julgo  vê-la  surgir,  num  vulto,  adiante,
-  os  lábios  frios,  trêmula  e  ofegante,
os seus olhos nos meus, linda, fitando...

O céu desfaz-se em luar... Um vento brando
nas  folhagens  cicia,  acariciante,
enquanto com o olhar terno de amante
fico à sombra da noite perscrutando...

E ela não vem...Aumenta-me a ansiedade:
- o segundo que passa e me tortura,
é o segundo sem fim da eternidade...

Mas eis que ela aparece de repente!...
- E eu feliz, chego a crer que igual ventura
bem valia esperar-se eternamente!…

A LENDA QUE A BÍBLIA ESQUECEU...

Quando Deus modelou em estátua a mulher
com a argila dos barrancos,
fez seus seios, morenos,
ou brancos,
sem uma mancha sequer...

Esses cumes ousados, cor-de-rosa
dois alvos para o meu beijo,
ficaram como as manchas da primeira boca
faminta de desejo...

Porque o teu corpo (como o de todas as mulheres)
já trazia
muito antes de ser beijado,
as manchas indeléveis do primeiro dia
de pecado...

A LUZ

Ela veio... (E a minha alma tinha a porta
aberta, e ela entrou... Casa vazia
e estranha, esta que em plena luz do dia
lembrava a tumba de uma noite morta...)

Que ela havia chegado, eu nem sabia...
Mas, pouco a pouco, e a data não importa,
minha alma, por encanto, se conforta,
e há risos pela casa...E há alegria...

Quem abrira as janelas? Quem levara
o fantasma da dor sempre ao meu lado?
Os antigos retratos, quem rasgara?

E acabei por fazer a descoberta:
- ela espantara as sombras do passado
e a luz entrara pela porta aberta!

Não quis julgar-te fútil nem banal
e chamei-te de criança tão-somente,
- reconheço, no entanto, infelizmente,
que, porque te quis bem, julguei-te mal.

Pensei até, (e o fiz ingenuamente...)
ter encontrado a companheira ideal...
Quis julgar-te das outras diferente,
e és como as outras todas afinal...

Hoje, uma dor estranha me consome
e um sentimento a que não sei dar nome
faz-me sofrer, se lembro o amor perdido...

A dor maior... A maior dor, no entanto,
vem de pensar de Ter-te amado tanto
sem que ao menos tivesses merecido!...

A OUTRA VOZ...

"Se te pertence a vida, se em verdade
muito mais do que andaste ainda terás,
se com a esponja da tua mocidade
apagas tudo o que deixas atrás,

- esquece essa tristeza e as horas más,
crê na alegria e na felicidade..."

E eu apenas falei:- pensa e verás
que essa tua alegria é falsidade...

Confesso que a tristeza me apavora,
- mas para que de mim se desintegre
só matando a minha alma, onde ela mora...

E... tristeza maior, sei que ainda existe,
é essa tristeza de fingir-se alegre
numa alegria duplamente triste!

A ÚLTIMA ESTRELA

Voltaste as folhas, uma a uma, e agora
vais fechar este livro: a noite é finda...
O "meu céu interior..." já se descora
à luz de um dia que não vive ainda...

Não sei se achaste a minha noite linda,
se sentiste, como eu, o vir da aurora...
Vai a luz aumentando...A noite é finda
O "meu céu interior..." já se descora!...

Cada folha voltada, foi assim
como um raio de luz, a mais, brilhando...
- como uma estrela que encontrou seu fim...

Esta folha - é da noite, o último véu...
E este verso que lês, e vai findando,
a última estrela a se apagar no céu!...

A  VIDA
 
I
"...Mudarás, todos mudam, e os espinhos
com surpresa verás por todo lado,
- são assim nesta vida os seus caminhos
desde que o homem no mundo tem andado...

Não hás de ser o eterno namorado
com as mãos e os lábios cheios de carinho,
- hoje, juntos os dois... tudo encantado!
- amanhã, tudo triste... os dois sozinhos!...

E sentindo o teu braço então vazio,
abatido verás que não resistes
à inclemência do tempo úmido e frio!

Rolarás por escarpas e barrancos:
sobre o epitáfio dos teus olhos tristes
trazendo a campa dos cabelos brancos!"

II
" … Tem sido assim e assim será... Mais tarde
o que hoje pensas chamarás: - quimera!
E esse esplendor que nos teus olhos arde,
será a visão de extinta primavera...

Escondido à traição, como uma fera,
bem em silêncio, e sem fazer alarde,
o Destino que é mau e que é covarde,
naquela sombra adiante já te espera!  

E num requinte de perversidade
faz de cada ilusão, de cada sonho,
a ruína de uma dor... e uma saudade...

E se voltares, notarás então
desesperado, ao teu olhar tristonho
que em vão sonhaste... e que viveste em vão!..."

III
"...A vida é assim, segue e verás, - a vida
é um dia de esperança, um longo poente
de incertezas cruéis, e finalmente
a grande noite estranha e dolorida...

Hoje o sol, hoje a luz, hoje contente
a estrada a percorrer suave e florida...
- amanhã, pela sombra, inutilmente
outra sombra a vagar, triste e perdida...

A vida é assim, é um dia de esperança
uma réstia de luz entre dois ramos
que a noite envolve cedo, sem tardança...

E enquanto as sombras chegam, nós, ao vê-las,
ainda somos felizes e encontramos
a saudade infinita das estrelas!..."

IV
"...A vida é assim, uma ânsia... feito a vaga
que se ergue e rola a espumejar na areia,
- a por esse bem que a tua mão semeia
espera o mal que ainda terás por paga!

A essa hora boa que te agrada e enleia
sucede uma outra torturante e aziaga,
- a vida é assim... um canto de sereia
que à morte nos convida, e nos afaga...

O teu sonho melhor bem pouco dura,
e há sempre "um amanhã" cheio de dor
para "um hoje" nem sempre de ventura...

Toma entre as mãos o búzio da alegria
e surpreso verás que no interior
canta profunda e imensa nostalgia!..."

V
Isso tudo nos dizem, - entretanto
nós dois seguimos braços dados,
creio que se tu sabes que te adore tanto
do que ouviste talvez não tens receio...

A vida, - é o nosso amor, o nosso encanto!
Nem a podemos mais parar no meio...
Chorar? - bem sei que choras, mas teu pranto
é a alegria que canta no teu seio...

O mundo é bom e nós o cremos, basta!
E se um amor tão grande nos enleva
e pela vida unidos nos arrasta,

- que eu te abrace e te apoies sempre em mim,
e desafiando o mundo envolto em treva
sigamos juntos para um mesmo fim !

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Mia Couto (A Adivinha)


Tudo é um jogo, brincriável. Há o homem, isso é fato. Custa é haver o humano. A vida descostura, o homem passa a linha, a corrigir os panos do tempo. Mimirosa, a menina, nada sabia desses acertos. Acreditava ser tudo simples como o molhado e água, poeira e chão. E assim, tudo em tamanho não aparado: os senhores em infância, as coisas sem consequência.

Seus pais se preocupavam. Passava a idade e Mimirosa demorava a aprender o regime da realidade. Que há deveres, e as contas do ter e do haver. E o ser é apenas o que resta. Noves fora, novos de fora.

Quem estragava esse amadurecimento da miúda era sua avó, Ermelinda. A senhora se convertera em parceira de infância, ancorada em irresponsabilidade. Em meia palavra: era companhia a se evitar. Os pais de Mimirosa assim julgavam. A menina devia era evitar os risos, disciplinar arrebatamentos. A escola, em primeiro lugar. A avó, sabia-se, desprezava a escola. Que se aprende mais é fora dela, no calor da família, em redondezas de carinho. Mimirosa estava, por isso, proibida de frequentar a companhia de Ermelinda. Não queriam nem que fosse vista junto, perto do caminho da avó. A menina era conduzida, de mão acompanhada, até às imediações escolares, onde já não poderia desviar a direção. Imaginava-se. Porque ela, mal se soltava das vistas, se internava no atalhozinho que dava na casa da avó. Ali gazeteava dos deveres, entretida nos nenhuns afazeres da velha senhora. Conforme os olhos distraídos da velha ela ajudava, retificando um aqui no além ela. Até que, inevitável, chegava o jogo da adivinhação.

- Qual é um rio que não tem senão uma margem?

- Isso é coisa que não pode, avó! E do outro lado fica o quê?

- Pense, se ensine. Já sabe que o prêmio que há de haver...

Prêmio que haveria era só ao serem as duas, ali, no escondido. A velha deixava o mistério durar, pairada, parada. A pergunta labirintava na cabeça de Mimirosa. Podia um rio assim? Ou já se viu a estrada correr sem o amparo de duas ambas bermas?

- Mas há o prêmio de verdade?

- Se você‚ adivinhar esse mistério, o mundo vai ficar tão admirado que até o tempo há de parar.

- Jura, avozinha? - aberlindavam-se os olhos dela.

E voltavam às lides, sem obrigação de nada. O jardim da casa parecia obra de inventar. Um só arbustozinho nele cabia.

- Vês a sombra? Essa sombra é pequena. Mas existe uma sombra que é da terra toda inteira.

Voltada à casa, a menina era inquirida pelos pais, perguntas sem mistério, coisas de calcular o futuro: quando fores grande já escolheste o que vais ser? Simplesmente, ela não sabia querer ser grande. E, assim, sua ausência na resposta.

- Ela vai ser doutora hospitalar, vaticinava a mãe.

- Ou dessas que faz as contas e faz crescer dinheiro, preferia o pai.

- Tudo serás filha, mas não queremos que sejas como nós.

  A menina se admirava: aqueles não gostavam de si mesmos? Por que razão eles queriam que ela lhes fosse diferente? Só a avó gostava de ser como era, cuidadosamente desarrumadinha. Como deviam ser infelizes, aqueles dois, seus pais.

Até que, uma tarde, veio o alvoroço. A velha Ermelinda se sentira mal, o peito dela se amarrotara. Mimirosa, nesses dias, deixou a escola. Mas não a deixaram entrar na velha casinha. A senhora não reconhecia ninguém, ela se convertera em fundo escuro. Nenhuma luz a trazia à superfície de si mesma. E, assim, somaram-se os dias. Mimirosa, obrigada e vigiada, voltou à escola. A sombra do morcego se desenha no teto? Pois o pensamento da neta não saía do mesmo assunto: saudade de sua avó.

Um dia, enquanto seu olhar fingia percorrer o caderninho, a menina pulou da carteira e se flechou porta afora. Escapou da escola e correu pelos campos. Ninguém a viu penetrar na penumbra da casa, ninguém suspeitava que se anichara, ofegante, na cabeceira da moribunda avó.

- Avó, sei a adivinha!

  No rosto da senhora nenhum sinal, nem uma ruga se alterou. Parecia que Ermelinda já cruzara aquele risco feito na água, fronteira entre a vida e a morte.

- Lembra a adivinha, vó? Aquela do rio de um lado só?

  E os olhos da menina se atabalhoaram de água, sentida sozinha no grande mundo. A mão dela ainda arriscou tocar no braço da avó. Mas teve medo. E se chorou! O caderninho órfão, em suas mãos, sofria a catarata das lágrimas. Até que os braços do pai a puxaram. Primeiro ela cedeu. Mas depois esgueirou-se, por um instante, e depositou o caderninho escolar no leito da água. Estava aberto numa figurinha do oceano, mais suas criaturas profundas. E a voz da menina tombada com um derradeiro lenço:

- É o mar, avó. Esse cujo rio; é o mar.

  Já se retiravam daquele luto, todos mais Mimirosa quando os dedos da avó tatearam o ar e, cegos, chegaram até no caderno. Depois, acariciaram o azul da imagem. E o caderno começou a pingar, como se o papel não mais contivesse aquela água.

Concurso Internacional de Trovas do Panamá 2019 (Resultado Final)




Tema : PONTE 

Vencedores

1° lugar 
Tosca ponte esperançosa
contempla o leito vazio
e aguarda a chuva copiosa
lhe trazer, de volta, o rio...
Élbea Priscila de Sousa e Silva
 Caçapava / SP

2° lugar
Mudanças eu fiz, milhões!...
Tantas pontes transpassei
para quebrar meus grilhões
e buscar o que sonhei!
Dáguima Verônica de Oliveira
Santa Juliana / MG

 3° lugar
Existe um novo horizonte,
onde Deus nos dá guarida,
ao cruzarmos pela ponte
para o outro lado da vida!!
Joaquim Carlos Trovador
Nova Friburgo / RJ

4° lugar
Essa ponte que interliga
dois corações,  em verdade,
é tão forte!...  E forte siga,
a honrar seu nome: - Amizade!
Carolina Ramos
Santos / SP

5° lugar
Perdido em pleno horizonte,
lamento os dias tristonhos,
porque não soube ser ponte
sobre os rios dos meus sonhos.
Francisco Gabriel Ribeiro
Natal / RN

Menção  Honrosa

1° lugar
Quando estendo minha mão,
destruindo meu rancor,
e perdoando o meu irmão,
construo a ponte do amor.
Madalena Ferrante Pizzatto
Curitiba / PR

 2° lugar
Puras em seus burburinhos,
descendo de suas fontes,
as águas cortam caminhos
e a gente as corta com pontes.
Messias da Rocha
Juiz de Fora / MG

3° lugar
A ponte sobre o regato
encerra tanta lembrança,
me faz reviver, de fato...
Os meus tempos de criança!
 Maria Marlene Nascimento Teixeira Pinto
Taubaté / SP

4° lugar
Olhando para o futuro
deste mundo virtual,
tem a ponte no escuro
que nos leva ao irreal.
José Ribeiro Sobrinho
Ibatiba / ES

5° lugar
Doce  ponte  da  lembrança
que  faz  o  tempo  voltar
na  saudade,  na  esperança,
no  sonho  de  te  encontrar...  
Elias Pescador    
São Paulo / SP

Menção Especial

1° lugar
Tal qual ponte que nos leva
a transpor qualquer barreira
a ternura nos enleva
e é dos sonhos mensageira!
Talita Batista
Campos dos Goytacazes / RJ

2°lugar 
A velha ponte em frangalhos
com seus pilares ruídos...
Hoje não passa de atalhos
transportando os tempos idos!
Edy Soares
Vila Velha / ES

3°lugar
Luiz Otávio já previa,
por amor à humanidade,
que a Trova sempre seria
a ponte para a amizade.
Nei Garcez
Curitiba / PR

4°lugar
A vida lembra uma estrada
em comparações singelas:
quando a ponte é interditada
dá-se valor às pinguelas.
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora / MG

5°lugar
A enxurrada de ciúme
que quase afogou nós dois,
impediu com um tapume,
a ponte para um “depois”. 
Lóla Prata
Bragança Paulista / SP 

Comissão Julgadora:

Luis Carlos Abritta
Mifori
Vanda Fagundes Queiróz

Fonte: Maria Luiza Walendowski

segunda-feira, 18 de março de 2019

Virgílio Maia (Poemas Recolhidos)


A CASA DO SAQUINHO
Décima com mote de domínio público

Já não se ouvem as pisadas,
os risos, as brincadeiras
e o cheiro das trepadeiras
hoje são coisas passadas.
Tinha as paredes caiadas,
em volta um jardim florindo.
Pois tudo aquilo está findo,
que do ontem restou um nada,
casa velha abandonada
que o tempo vai demolindo.

ALVENARIA

Sobre pedras se eleva este soneto,
em trabalhosa faina alevantado,
as linhas definidas no traçado
da perfeição do prumo e nível reto.

Dentre tantos eleito, põe-se ereto
rima por rima, embora recatado;
ao martelar do metro faz-se alado,
opondo ao som a luz deste quarteto.

Sobre andaime de verso e de ciência
necessário a erguer prova tão dura,
deixa o pedreiro, alçado, o rés-do-chão.

E sobranceiro ao mundo, àquela altura,
Vai concluir, com brava paciência,
A obra em que balança o coração.

A SENHA
         de uma antiga balada cretense

Amada minha, trago estes limões
neste lenço de seda do Oriente.
Foi tudo o que obtive estando ausente
em tantos anos de navegações.

Trago-te a mim, te entrego os corações
que flechados e azuis tenho nos braços.
Quero agora guiar-me por teus passos
e no teu corpo haurir loucas lições.

Abre a porta, não vês que sou eu mesmo?
Sei que o tempo passou enquanto a esmo
doido amante dos mares perlustrei-os.

Sou eu, só eu. Abre esta porta, peço,
pois quem mais saberá deste endereço,
daquele sinalzinho entre os teus seios?

AS HORAS SERTANEJAS

Não lhes direi do presente,
mas de um tempo que se foi,
do Sertão-do-nunca-mais,
do couro, de muito boi,
dos aboios, das cantigas
dos velhos carros-de-boi.

Aqui tenho por meu guia
um livro muito afamado,
redigido por grande homem
do nosso vizinho estado.
Luís da Câmara Cascudo,
um potiguar arretado.

Há de ser sempre lembrado,
pelo muito que escreveu.
Qual ele quase ninguém
nossas coisas percorreu,
anotando com carinho
tudo o que viu e o que leu.

Quase uma grosa nos deu
de preciosos estudos
sobre as mais diversas coisas,
até linguagem dos mudos,
obras por todos buscadas,
por mor de seus conteúdos.

Escreveu sobre os escudos,
os que Holandês invasor.
às nossas Capitanias,
sob o lábaro tricolor,
certo dia achou por bem
fazer-se de doador.

O tempo tudo destrói,
coisa alguma lhe resiste.
Passam os anos., passam os homens,
e passa o que mais existe,
e a vida se vai passando,
nos mostra o ponteiro em riste.

Embora não mais se aviste
o Sertão velho, avoengo,
vou lhe falar de um relógio
muito antigo e solarengo,
 se rima Deus me mandar
aqui para o velho quengo.

No tempo do realengo,
o dos nossos bisavós,
era tudo mais tranquilo
não havia quiprocós
sendo as coisas mais de jeito,
as cordas com poucos nós.

Não se tinham tantos prós
e contras como hoje em dia,
a vida passava calma.,
fluíam. sem correria,
as horas sem muita pressa,
bem lentas. sem agonia.

Do aboio fala. Senhores,
este canto em que o Sertão
se acalma, se põe dolente,
e que qualquer barbatão
ouvindo vai pro curral,
os olhos postos no chão.

Cacimba roubada, então,
é capítulo sem ruindade.
Um é bom, dois é melhor,
 três é ruim...  diz a verdade
o lusitano afamado,
Antônio Galvão de Andrade.

Esta obra de qualidade
traz em sua introdução
das horas os antigos nomes,
que se usavam no Sertão
e que agora eu cordelizo,
pedindo muita atenção.

Uma bela ilustração
a cada hora corresponde,
da lavra de mestre Audifax,
artista que não se esconde,
se se exibe um texto a ele
com um desenho responde.

FOTOS

Deste antigo retrato, com firmeza,
meu avô me interroga bem de perto,
com aquela usual branda aspereza
que criança, me punha em desconcerto.

Na lapela, uma flor, que ele por certo
deixou emurchecida sobre a mesa
e do alto colarinho o branco aperto
incomodava-o um pouco, com certeza.

Tendo ao lado meu pai, que é filho seu,
certamente renovam velhos planos
de terra e gado, açudes e destino.

No fervor de seus vinte e tantos anos,
miram-me, mais novos do que eu,
e assim mesmo, para eles sou menino.

ILUMIARA

Quem pintou essas pedras no Sertão,
nessa tinta que nunca mais se apaga?
E para quem nosso ancestral pintava
brutas cenas de caça e aquela mão?

Tais secretos mistérios estarão
insondáveis nas cores dessas aras:
candelabros ou onças avermelhadas,
mais figuras que seguem em procissão.

Contou-me um dia uma mulher velhinha
que numa noite escura ela passou
se benzendo de medo pela Pedra.

E viu, jurou que viu, vinha sozinha,
que o enorme Gavião se desgarrou
da pintura, gritando feito a Fera.

SONETO ALADO COM CAVALO BRANCO

Trovejante trovão troou no céu,
a treva transformando em claro dia;
transumano contraste sucedeu,
transmudando pavor em alegria.

Foi aquilo verdade ou foi um sonho,
realidade vera ou fantasia,
quando inteiro Sertão tremeu medonho,
obedecendo antiga profecia?

Ao perpassar das éguas e das nuvens,
em crescente o cavalo pôs-se alado,
 guerreiro fez-se, ao Norte e no passado.

Mastigando luares de marfim
na tarde foi -se, galopando aléns,
entre talos de doce gergelim.

UM BUJÃO DE GÁS

Prateado, bojudo, gordo, anão,
num escuro recanto relegado,
humilde é Prometeu acorrentado
por plástica corrente a um fogão.

Traz no bojo ancestral ignição
ofertada da chama no azulado,
na memória assoprando inesperado
espeleológico arco de um tição.

Reside nele a flama do carvão,
labareda eternal em combustão,
homenagem de fogo a quem ousou:

homem primevo, rude antepassado,
que acendendo o futuro, desgrenhado,
num gesto só o fogo arrebatou.

UM CATA-VENTO DE BRINQUEDO

De extinto cacimbão o cata-vento
puxa ao meu rosto as águas de outra idade.
Ele é só um brinquedo, mas vale
pelas recordações que guardo dentro

do menino que mora aqui ao lado,
e sabendo de cor a cor dos ventos,
tem na ponta da língua, decorados,
uns gestos infantis de cata-ventos.

Flandre e ferro somados pela solda:
sendo brinquedo, brinca no jardim,
à brisa mais maneira já se alegra.

Brinca sem compromisso, roda e roda,
se fingindo irrigante desta terra,
num faz-de-conta de aguar jasmins.

Inglês de Souza (Tentação)


 Eram monótonos os dias no sítio do furo da Sapucaia. Padre Antônio de Morais acordava ao romper d'alva, quando os japins, no alto da mangueira do terreiro, começavam a executar a ópera - cômica cotidiana, imitando o canto dos outros pássaros e o assovio dos macacos. Erguia-se molemente da macia rede de alvíssimo linho, a que fora outrora do Padre-Santo João da Mata - espreguiçava-se, desarticulava as mandíbulas em lânguidos bocejos, e depois de respirar por algum tempo no copiar a brisa matutina, caminhava para o porto, onde não tardava a chegar a Clarinha, de cabelos soltos e olhos pisados, vestindo uma simples saia de velha chita desmaiada e um cabeção de canícula enxovalhado. Metiam-se ambos no rio, depois de se terem despido pudicamente, ele oculto por uma árvore, ela acocorada ao pé da tosca ponte do porto, resguardando-se da indiscrição do sol com a roupa enrodilhada por sobre a cabeça e o tronco. Depois do banho longo, gostoso, entremeado de apostas alegres, vestiam-se com idênticas precauções de modéstia, e voltavam para a casa, lado a lado, ela falando em mil coisas, ele pensando apenas que o seu colega João da Mata vivera com a Benedita da mesma maneira que ele estava vivendo com a Clarinha. Quando chegavam a casa, ele ficava a passear na varanda, para provocar a reação do calor, preparando um cigarro enquanto ela lhe ia arranjar o café com leite. João Pimenta e Felisberto passavam para o banho, depois de uma volta pelo cacauzal e pela malhada, a ver como ia aquilo. Servido o café com leite, auxiliado de grossas bolachas de carregação ou de farinha-d'água, os dois tapuios saíam para a pesca, para a caça ou iam cuidar da sua lavourazinha. A rapariga entretinha-se em ligeiros arranjos de casa, em companhia de Faustina, a preta velha, e ele, para descansar da escandalosa mandrice, atirava o corpo para o fundo duma excelente maqueira de tucum, armada no copiar - para as sestas do defunto Padre-Santo. A Clarinha desembaraçava-se dos afazeres domésticos, e vinha ter com ele, e então o Padre, deitado a fio comprido, e ela sentada na beira da rede passavam longas horas num abandono de si e num esquecimento do mundo, apenas entrecortado de raros monossílabos, como se se contentassem com o prazer de se sentirem viver um junto do outro, e de se amarem livremente à face daquela esplendorosa natureza, que num concerto harmonioso entoava um epitalâmio eterno.

Às vezes saíam a dar um passeio pelo cacauzal, primeiro teatro dos seus amores, e entretinham-se a ouvir o canto sensual dos passarinhos ocultos na ramagem, chegando-se bem um para o outro, entrelaçando as mãos. Um dia quiseram experimentar se o leito de folhas secas que recebera o seu primeiro abraço lhes daria a mesma hospitalidade daquela manhã de paixão ardente e louca, mas reconheceram com um fastio súbito que a rede e a marquesa, sobretudo a marquesa do Padre-Santo João da Mata, eram mais cômodas e mais asseadas.

Outras vezes vagavam pelo campo, pisando a relva macia que o gado namorava, e assistiam complacentemente a cenas ordinárias de amores bestiais. Queriam, então, à plena luz do sol, desafiando a discrição dos maçaricos e das colhereiras cor-de-rosa, esquecer entre as hastes do capim crescido, nos braços um do outro, o mundo e a vida universal. A Faustina ficara em casa. João Pimenta e o Felisberto pescavam no furo e estariam bem longe. Na vasta solidão do sítio pitoresco só eles e os animais, oferecendo-lhes a cumplicidade do seu silêncio invencível. A intensa claridade do dia excitava-os. O sol mordia-lhes o dorso, fazendo-lhes uma carícia quente que lhes redobrava o prazer buscado no extravagante requinte.

Mas esses passeios e diversões eram raros. De ordinário quando João Pimenta e o neto voltavam ao cair da tarde, ainda os encontravam na maqueira, embalando-se de leve e entregando-se à doce embriagues dum isolamento a dois.

Findo o jantar, fechavam-se as janelas e as portas da casa, para que não entrassem os mosquitos. Reuniam-se todos no quarto do Padre, à luz vacilante de um candeia de azeite de andiroba. Ela fazia renda de bico, numa grande almofada, trocando com agilidade os bilros de tucumã com haste de cedro envolvida em linha branca. João Pimenta, sentado sobre a tampa de uma arca velha, mascava silenciosamente o seu tabaco negro. Felisberto, sempre de bom humor, repetia as histórias de Maués e os episódios da vida do Padre-Santo João da Mata dizendo que o seu maior orgulho eram essas recordações dos tempos gloriosos em que ajudara a missa de opa encarnada e turíbulo na mão. Padre Antônio de Morais, deitado na marquesa de peito para o ar, com a cabeça oca e as carnes satisfeitas, nos intervalos da prosa soporífera de Felisberto assoviava ladainhas e cânticos de igreja.

Pouco mais de uma hora durava o serão. A Faustina trazia o café num velho bule de louça azul, e logo depois, com lacônico e anêpetuna - boa-noite, se retirava o velho tapuio. Felisberto ainda se demorava alguma coisa a caçoar com a irmã, jogando-lhe graçolas pesadas que a obrigavam a arregaçar os lábios num aborrecimento desdenhoso. Depois o rapaz saía, puxando a porta e dizendo numa bonomia alegre e complacente:

- Ara Deus dê bás noites pra vuncês.

Isto fora assim dia por dia, noite por noite, durante três meses. Uma tarde, ao por-do-sol, o Felisberto voltara de uma das suas costumadas viagens a Maués, trazendo aquela notícia em que jazia. Encontrara em Maués um regatão de Silves, um tal Costa e Silva - talvez o dono do estabelecimento - Modas e Novidades de Paris - que lhe contara que a morte de Padre Antônio de Morais, em missão na Mundurucânia, passara como certa naquela vida, e tanto que se tratava de lhe dar sucessor, acrescentando que a escolha de S. Exma. Revma. já estava feita. Foi quanto bastou ao vigário para o tirar do delicioso torpor em que mergulhara toda a sua energia moral, na saturação de deleites infinitos, despertando-lhe as recordações de um passado digno. E com o olhar perdido, imóvel, sentado junto à mesa de jantar, uma ideia irritante o perseguia. Teria o Felisberto, trocando confidência por confidência, revelado ao Costa e Silva a sua longa permanência na casa de João Pimenta? Esta ideia lhe dava um ciúme áspero da sua vida passada, avivando-lhe o zelo da reputação tão custosamente adquirida; e que agora se evaporaria como fumo tênue, pela indiscrição de um palerma, incapaz de conservar um segredo que tanto importava guardar.

O primeiro movimento do seu espírito, acordado, por aquela brusca evocação do passado, do marasmo em que o haviam sepultado três meses de prazeres, era o cuidado do seu nome. Não podia fugir à admissão daquela dolorosa hipótese que a conhecida loquacidade do rapaz lhe sugeria. A sua vida presente teria sido revelada aos paroquianos, acostumados a venerá-lo como a um santo e a admirar a rara virtude com que resistia a todas as tentações do demônio. A consciência, educada no sofisma, acomodara-se àquela vilegiatura da ininterrompidos prazeres, gozados à sombra das mangueiras do sítio. A rápida degradação dos sentimentos, que o rebaixara de confessor da fé à mesquinha condição de mancebo de uma mameluca bonita, fizera-lhe esquecer os deveres sagrados do sacerdócio, a fé jurada ao altar, a virtude de que tanto se orgulhava. Mas na luta de sentimentos pessoais e egoísticos que lhe moviam e determinavam a conduta, mais poderosas do que o apetite carnal, agora enfraquecido pelo gozo de três meses de volúpias ardentes, punham-se em campo a vaidade do Seminarista, honrado com os elogios do seu Bispo, e a ambição de glória e renome que essa mesma vaidade alimentava. Confessava-o sem vergonha alguma, analisando friamente o seu passado: caíra no momento em que, limitado a um meio que não podia dar teatro à ambição nem aplausos às virtudes, isolado, privado do estímulo da opinião pública, o ardor do seu temperamento de matuto criado à lei da natureza, mas longamente refreado pela disciplina da profissão, ateara um verdadeiro incêndio dos sentidos. A mameluca era bela, admirável, provocadora, a empresa fácil, não exigia o mínimo esforço. E agora que para ele o amor já não tinha o encanto do mistério, agora que sorvera longa e gostosamente o mel da taça tão ardentemente desejada, os sentidos satisfeitos cediam o passo a instintos mais elevados, posto que igualmente pessoais.

Mas vinha o pateta do Felisberto com a sua habitual tagarelice, e desmoronava aquele tão bem arquitetado edifício da reputação do Padre Antônio de Morais, precioso tesouro guardado no meio da abjeção em que caíra. O missionário ia ser abatido do pedestal que erguera sobre as circunstâncias da vida e a credulidade dos homens, e, angústia incomparável que lhe causava o triste clarão da condenação eterna surgindo de novo quando se rasgava o véu da consciência - a inconfidência de Felisberto vinha até impossibilitar ao Padre o arrependimento, com que sempre contara como o náufrago que não deixa a tábua que o pode levar à praia. Como arrepender-se agora que a falta era conhecida, que o prestígio estava reduzido a fumo? Iria buscar a morte às aldeias Mundurucoas? Ninguém acreditaria que um Padre devasso e preguiçoso pudesse sinceramente fazer-se confessor da Fé e mártir de Cristo, e se viesse a morrer naquelas aldeias, não celebrariam o seu nome como o de um missionário católico que a caridade levara a catequizar selvagens, mas todos atribuiriam a tentativa a uma curiosidade torpe, se não vissem no passo uma mistificação nova, encobrindo a continuação da vida desregrada do sítio da Sapucaia.