quinta-feira, 27 de junho de 2019

Arthur de Azevedo (História Vulgar)


Era a primeira vez que o Getúlio vinha ao Rio de Janeiro. Conquanto filho do barão de Batatais, lavrador abastado, jamais se divertira. Depois de formado em Direito, sabe Deus como, na capital de São Paulo, voltara para a fazenda do pai, onde nasceu, e onde esperava morrer.

Aos vinte e oito anos chegaram-lhe desejos de ver mundo. Falou ao barão de uma viagem à Europa. – Para que Europa? – disse o velho. – Vai ao Rio de Janeiro, que ainda não conheces, e é uma capital digna de ser vista. A Europa irás depois comigo, tua mãe e tua irmã se Deus nos der vida e saúde. – O bacharel contentou-se, pois, com o Rio de Janeiro.

Quando se despediu do filho, na plataforma da estação, o barão recomendou-lhe, pela centésima vez, que tivesse muito cuidado com as más companhias, o que não impedia que o rapaz, aqui chegado, se entregasse confiadamente ao Alípio.

É verdade que o Alípio tinha exterioridades que enganavam, e não vivia senão à custa delas. Delas e do próximo. Era um rapaz da moda, mas passou pelo serviço antropométrico e ainda hoje tem o retrato na polícia.

Ele e o paulista encontraram-se dir-se-ia que por acaso, sentados à mesma mesa, para tomar café, num botequim da rua do Ouvidor, e quando as duas colherinhas, batendo uma na outra, tiniram no açucareiro, o Alípio ergueu os olhos, apertou-os como para reconhecer o Getúlio, e disse-lhe:

– Cavalheiro, creio que já nos encontramos.

– É possível.

– Mas onde? Não me posso lembrar!

– Em São Paulo?

– Não, não creio.

– Talvez em Poços de Caldas. Estive lá duas vezes.

– É isso. Foi em Poços de Caldas! O cavalheiro é paulista?

– Sim senhor, e é a primeira vez que venho ao Rio.

– Tem gostado?

– Muito, mas ainda não vi nada; cheguei ontem.

– Conquanto não tenha a satisfação de o conhecer, ofereço-lhe os meus fracos préstimos.

– Muito obrigado, mas não venho aqui fazer outra coisa senão passear. Há sete anos que me meti na fazenda de meu pai; era tempo de espairecer.

– Ah! O cavalheiro é lavrador?

– Sim, senhor, formei-me em Direito, mas sou um simples fazendeiro, sócio de meu pai. O senhor nunca ouviu falar do barão de Batatais?

– Batatais? Pois não, doutor! Ora essa! É uma das primeiras fortunas de São Paulo!

– Pois é meu pai.

– Se o doutor vem ao Rio de Janeiro simplesmente para se distrair, razão de mais para aceitar os meus fracos préstimos. Sou carioca da gema, conheço toda a cidade como as palmas das minhas mãos, e posso mostrar-lhe o que ela tem de mais interessante.

– Oh! Senhor! Não sei a que deva…

– À simpatia. O doutor não imagina como simpatizei com a sua pessoa!

– Mas o senhor naturalmente tem mais que fazer do que me servir de cicerone.

– Que fazer? Eu? Ah, meu doutor, infelizmente a minha vida é  esta – andar pelos cafés, pelos teatros, pelos clubes, pelas casas de jogo, pelas alcovas – enfim, pelo monde ou l’on s’amuse! Não sei o que é trabalhar! E não tenho remorsos, porque meu pai trabalhou por si e por mim. O que faço é gozar o que ele não gozou, para que me não aconteça o mesmo.

– Então é rico?

– Tenho alguma coisinha, tenho…

Nesse mesmo dia jantaram juntos no Brito (o Alípio não consentiu que o Getúlio pagasse), e à noite foram ao Cassino, onde o paulista se divertiu a valer. Separaram-se amigos às três horas da madrugada, na rua Senador Dantas, concertando encontrar-se ao meio-dia para almoçarem
juntos.

Almoçaram, deram um longo passeio a Botafogo, e foram jantar numa casa de jogo, que o Alípio quis mostrar ao Getúlio, a título de curiosidade.

– Só a título de curiosidade – repetiu o carioca. – Eu jogo, mas não te aconselho que jogues. (Já se tratavam por tu.) O jogo é estúpido: tira sempre o necessário e não dá nunca senão o supérfluo. Tu alguma vez jogaste?

– Já, em Poços de Caldas, mas jurei que nunca mais jogaria! Perdi uma boa bolada, e o velho ficou furioso!

– Devo prevenir-te de uma coisa: esta casa de jogo é uma das mais decentes do Rio de Janeiro, mas tem cuidado. Aqui vem de tudo. Vês aquele sujeito gordo? É um magistrado integérrimo! Vês aquele sujeito magro? Tem o retrato na polícia!

Depois do jantar, que foi magnífico, regado por excelentes vinhos, aparelharam a roleta. O banqueiro, ex-advogado sem causa, tomou o seu lugar sobre um estrado, diante das fichas multicores alinhadas em ordem, formando pequenas colunas, e o pessoal do vício abancou-se em volta do tapete verde.

– Eu vou piabar – disse o Getúlio ao Alípio.

– Vê, vê só, não jogues! Eu teria remorsos se te trouxesse a esta casa para perderes dinheiro!

Começou o jogo. Depois das três primeiras bolas, o bacharel não resistiu: comprou cem mil-réis de fichas, que voaram logo.

O Alípio lançou-lhe um olhar repreensivo.

– Não posso ver defunto sem chorar – respondeu o outro, que insiste e em dez minutos perdeu oitocentos mil-réis.

Acendeu-se-lhe, então toda, a sua coragem de paulista, e fez a última parada, tão forte, que ressarciu todo o prejuízo e ganhou perto de um conto de réis.

O Alípio que, jogando, ou antes, fingindo jogar, examinava-o de soslaio, viu-o aproximar-se do banqueiro, receber um maço de notas, e arrumá-las na carteira, que guardou sorridente no bolso do peito.

– Vou-me embora – disse-lhe o Getúlio. – Preciso recolher-me hoje um pouco mais cedo: estou com dor de cabeça.

O Alípio deixou a sala do jogo para acompanhá-lo até o corredor, e perguntou-lhe indiferentemente, ajudando-o a vestir o sobretudo:

– Ganhaste?

– Alguma coisa.

– Pois sim, mas não tornes a jogar, vai com o que te digo! aconselhou, abotoando-lhe o sobretudo. – Levanta a gola, agasalha-te bem, não brinques com este clima. Eu ainda fico.

– Precisas de algum dinheiro?

– Não.

– Então até amanhã?

– Decerto. Irei buscar-te ao hotel às mesmas horas de hoje. Adeus!

O paulista desceu as escadas lépido e contente, foi para o hotel, que não era longe, entrou para o seu quarto, despiu-se e resolveu dar, antes de dormir, um balanço ao dinheiro para saber ao certo qual tinha sido o seu lucro. Foi ao bolso: a carteira lá não estava… Escusado é dizer que o Alípio nunca mais o procurou.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

Affonso Celso (Poemas Avulsos)


ROSA

Rosa colhida, sozinha,
Lindas rosas no jardim
 E nas faces também tinha
Duas rosas de carmim.

Cheguei-lhe e disse-lhe:
-Rosa, qual destas rosas me dás;
As de face primorosa
Ou essas que unindo estás?

Ela fitou-me, sorrindo,
Inda mais enrubesceu
Depois, ligeira,fugindo,
De longe me respondeu:

-Não dou as rosas das faces
Nem as que tenho nas mãos;
Daria se me estimasses,
As rosas do  coração!

ANJO ENFERMO

Geme no berço, enferma, a criancinha,
Que não fala, não anda e já padece...
Penas assim cruéis por que as merece
Quem mal entrando na existência vinha?!

Ó melindroso ser, ó filha minha!
Se os céus ouvissem a paterna prece
E a mim o teu sofrer passar pudesse,
- Gozo me fora a dor que te espezinha.

Como te aperta a angústia o frágil peito!
E Deus, que tudo vê, não ta extermina,
Deus que é bom, Deus que é pai, Deus que é perfeito.

Sim, é pai mas – a crença no-lo ensina:
- Se viu morrer Jesus, quando homem feito,
Nunca teve uma filha pequenina!...

NA FAZENDA

Dorme a fazenda. Uniformes,
Com seu inclinado teto,
Têm as senzalas o aspecto
De um bando d´aves enormes.

Os cães, no pátio encoberto,
Repousam de orelha erguida;
São como oásis de vida
Da escuridão no deserto.

De vagos tons uma enfiada
Com o torpor luta e vence-o;
É no burel do silêncio
Franja sonora bordada.

Às vezes, da porta estreita
Sai um chorar de criança,
Chamando a mãe que descansa
Morta do afã da colheita.

Talvez no infantil assombro
Já se lhe antolhe mais tarde:
— O eito enquanto o sol arde,
E o peso da enxada ao ombro.

Os cães levantam-se a meio,
Geme a criança um momento
E, a pouco e pouco, em lamento
Sucumbe o isolado anseio.

Longe, na sombra perdido,
Há no perfil de um oiteiro
Algo de estranho guerreiro
Da cota de armas vestido.

Ao lado reluz a linha
De extensa e alvacenta estrada,
Como a lâmina da espada
Que lhe saltou da bainha.

E o disco da lua nova
No lar azul das esferas,
De nuvens que lembram feras,
Como um réptil sai da cova.

Ondula no espaço o fumo
De algum incêndio invisível;
Chora a criança, impassível
Prossegue a noite em seu rumo.

CCXIII

Nunca o teu corpo acostumes
Ao que de necessidade
Lhe ser estrita não vês.
Os vícios não lhe avolumes,
Porque é grave enfermidade
Cada vício que lhe dês.

CCXIV

Eu dizia não ter senso
Quem no amor inda confia;
E acabei afeto imenso
Dando a quem não merecia

CCXV

Não zombes da covardia
Deste peito a ti voltado
Que tanto mais te aprecia
Quanto mais menosprezado.

CCXVI

Não me creias fugidio
Que sempre te hei de buscar,
Como a água busca o rio,
Como o rio busca o mar.

CCXVII

Meu coração imprudente,
Quem é que tinha razão?
Eu te dizendo: "ela mente! "
Ou tu contestando: "não! "

CCXVIII

Do amor na escola inda aprendo,
Sou principiante;
Lições estou recebendo
Da minha amante.

Mas o aluno é tão ladino,
Tanto se adestra,
Que já não aceita ensino,
Fornece à mestra.

CCXIX

Faceira, entre as mais faceiras,
Toma sentido,
As horas correm ligeiras;
Talvez te seja impedido
Recuperar, quando queiras,
Tamanho tempo perdido.

Vinicius de Moraes (Seu "Afredo")


Seu Afredo (ele sempre subtraía o l do nome, ao se apresentar com uma ligeira curvatura: "Afredo Paiva, um seu criado..."), tornou-se inesquecível à minha infância porque tratava-se muito mais de um linguista que de um encerador. Como encerador, não ia muito lá das pernas. Lembro-me que sempre depois de seu trabalho, minha mãe ficava passeando pela sala com uma flanelinha debaixo de cada pé, para melhorar o lustro. Mas como linguista, cultor de vernáculo e aplicador de sutilezas gramaticais, seu Afredo estava sozinho. 

Tratava-se de um mulato quarentão, ultra-respeitador, mas em quem a preocupação linguística perturbava às vezes a colocação pronominal. Um dia, numa fila de ônibus, minha mãe ficou ligeiramente ressabiada quando seu Afredo, casualmente de passagem, parou junto a ela e perguntou-lhe à queima-roupa, na segunda do singular: 

- Onde vais assim tão elegante? 

Nós lhe dávamos uma bruta corda. Ele falava horas a fio, no ritmo do trabalho, fazendo os mais deliciosos pedantismos que já me foi dado ouvir. Uma vez, minha mãe, em meio à lide caseira, queixou-se do fatigante ramerrão do trabalho doméstico. Seu Afredo virou-se para ela e disse: 

- Dona Lídia, o que a senhora precisa fazer é ir a um médico e tomar a sua quilometragem. Diz que é muito bão. 

De outra feita, minha tia Graziela, recém-chegada de fora, cantarolava ao piano enquanto seu Afredo, acocorado perto dela, esfregava cera no soalho. Seu Afredo nunca tinha visto minha tia mais gorda. Pois bem: chegou-se a ela e perguntou-lhe: 

- Cantas? 

Minha tia, meio surpresa, respondeu com um riso amarelo: 

- É, canto às vezes, de brincadeira... 

Mas um tanto formalizada, foi queixar-se a minha mãe, que lhe explicou o temperamento do nosso encerador: 

- Não, ele é assim mesmo. Isso não é falta de respeito, não. É excesso de... gramática. 

Conta ela que seu Afredo, mal viu minha tia sair, chegou-se a ela com ar disfarçado e falou: 

- Olhe aqui, dona Lídia, não leve a mal, mas essa menina, sua irmã, se ela pensa que pode cantar no rádio com essa voz, 'tá redondamente enganada. Nem programa de calouro! 

E a seguir, ponderou: 

- Agora, piano é diferente. Pianista ela é! 

E acrescentou: 

- Eximinista pianista!

Fonte:

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Baú de Trovas e Versos Afins n.3


A SOGRA
(1900)

Todo o moço que se casa
deve ter um pau no canto,
para benzer sua sogra
quando estiver de quebranto.

SEGREDOS
(1900)

Na campina verdejante,
vou colher mimosa flor,
para saber, minha amante,
se ainda tu me tens amor.

Do malmequer delicado,
sob as sombras do arvoredo,
hei de saber, bem amado,
este teu grande segredo.

NA RIBEIRA
(Trovas Portuguesas, 1905)

Ó moças andem ligeiras,
vão pedir a Santo Antônio,
que as ponha todas em linha
no livro do matrimônio.

Ó moças, que querem noivos,
vão esta noite à Ribeira,
que os moços em honra ao santo
vão armar uma fogueira.

Santo Antônio anima os mortos,
e dá saúde aos doentes;
não é muito que despache
mil sadios pretendentes.

Fonte:
Iba Mendes (seleção/organização). Trovas e Cantigas. São Paulo, 2019.

Carolina Ramos (Eulália Só...)


Trouxa de roupa equilibrada à cabeça, vinha ela. O pescoço firme, bem torneado, descendo vertical até perder-se na curva suave do colo cheio, garantia a estabilidade da
carga.

Da varanda fresca, franjada de samambaias, o velho médico examinava a figura esguia, atento à elegância flexível e natural. As damas da alta, empilhavam livros à cabeça, para emprestar leveza e graça ao caminhar. Para ela, a trouxa de roupas bastava. O efeito, embora não buscado, era o mesmo. Sob o aplauso das chinelas, que batiam plac-plac, no lajedo da calçada, tudo era graça e equilíbrio, desde a carapinha cuidadosamente trançada, à curva das canelas finas. Conceituado cirurgião, de há muito aposentado, Dr. Breisser seguia-lhe os passos desde que dobrara a esquina. Viu-a aproximar-se, através da fumaça do cigarro preso entre os dedos trêmulos, analisando-a quase que com interesse anatômico. Lembrava-se de quando a vira pela primeira vez, menina, ainda. Dez ou doze anos, no máximo. Viera pedir emprego. Magrinha. Perebenta. Olhos grudados no chão.

A senhora Breisser indagara, com ternura, erguendo-lhe o queixo, com a ponta dos dedos: — "Como é que você se chama?"

A menina respondera num fio de voz: — "Eulália."

Insistira a senhora Breisser: — "Eulália do quê?”

— "Só Eulália..." — um altear rápido de ombros, e a menina encerrara o assunto: — "Eulália só..."

Não houve jeito de descobrir-lhe a origem. Pais desconhecidos. O nome fora escolhido par ela mesma, quando sentira necessidade de um. Eulália era o nome da mãe da primeira amiguinha encontrada em seu caminho e que lhe despertara um lampejo de afeição. Gostou dele. Adotou-o. Ficou sendo mesmo Eulália. Ou melhor, Eulália Só. Assim fora registrada. Nascera em algum lugar. Crescera por aí, abastecendo-se aqui e ali, ajudada pelo lado bom da humanidade. Difícil de ser encontrado, mas ainda existente. Que nem tudo é perdido! Questão de procurar e achar aquela mão dadivosa, pronta a abrir-se no momento exato.

Eulália Só — semente solta ao vento — desconhecia o ventre do fruto que a gerara, mas, conservava dentro de si o germe da vida, Lutou por ele. Sobreviveu! Como fora parar naquele local, nem ela mesma sabia. Pela mão de alguém, lá chegara e deitara raiz. O vento arrasta a semente, porém chega o dia em que ela se agarra a alguma coisa e se fixa.

Se encontrar solo propício, viceja. Foi o que se deu com Eulália. Fixou-se. Vicejou. Aos quinze anos, descobriu o amor. Descobriu também, e muito cedo, que o carinho dos homens pode produzir frutos. Não tardou em frutificar. Nem chegou a usar a grinalda, comprada com tanto carinho.

Enquanto sentia expandir-se dentro de si a molécula do amor, via escapulir-se o noivo. E sem deixar pista. Guardou a grinalda no fundo da gaveta, escondida como coisa proibida. Não usada, parecia-lhe prova de pecado. Nove meses depois, nascera Dora. Por sadismo do destino, fraquinha e doente. Os membros inferiores logo provaram a incapacidade de acompanhar o desenvolvimento do corpo. Negavam-se a andar, Não andaram nunca. Dora passou a viver recostada em travesseiros, num cesto ao qual um vizinho generoso adaptara rodas. E esse mesmo generoso vizinho fizera com que, ano e meio depois, o lar de Eulália se embandeirasse, novamente, de fraldas, festejando a chegada do Zeca, mais clarinho do que a mana, já que o pai era branco. Pai que, a exemplo da irmã, não chegou a conhecer.

Ao vir á luz, já o vizinho tinha novos vizinhos, em plagas não vizinhas. Não fora a prodigalidade do seio materno, o garoto não teria tido chances, nem condições físicas futuras para empurrar, com tanta desenvoltura, o carrinho da irmã maior.

Com dois filhos à roda e mais um a caminho, Eulália Só não era mais só, mas, manteve o nome. Ninguém lhe oferecera outro. A grinalda permanecia guardada no fundo da gaveta. As flores de laranjeira, feitas de cera perolada, amarelando.

Cada vez que chegava ao velho casarão dos Breisser, corpo arredondado por nova gravidez, Eulália vinha de olhos baixos e voz sumida. Tinha brio. Brio não custa dinheiro. E patrimônio. Dificilmente se perde. Morre com ele, quem com ele nasce. E era o peso do brio que baixava os olhos de Eulália e fazia sua voz sumida. A senhora Breisser, com ternura infindável e paciência de santa, renovava os conselhos, um a um. 

Eulália chorava. Eulália prometia. Prometia não acreditar mais em promessas de ninguém. Prometia... por isso, não chegava a acreditar nem nas próprias promessas!

O quarto filho levou-a ao hospital. A criança não resistiu. E quase carregou a mãe consigo. Não fora a dedicação dos Breisser, e adeus Eulália! A lição, afinal, surtiu efeito.
Eulália pôs distância definitiva entre o seu coração e o coração dos homens. Instalada em seu casebre modesto, de janelas verdes e telhado de uma água, passou a viver só para os filhos. Continuou a lavar roupas. As mãos escuras não maculavam a alvura da espuma e, por estranha alquimia, as roupas saíam branquinhas. Mais branquinhas do que de outra qualquer mão!

Tantos anos passados, e vinha ela uma vez mais chegando, trouxa à cabeça, como sempre. Ia longe o tempo em que se apresentara ao casal Breisser pela primeira vez, perebenta, olhos grudados no chão, voz sumida. Agora, mulher feita, mãe de três filhos. Dois rodando por aí, fazendo sabe-se lá o quê, esquecidos dela. A outra, presa à cadeira de rodas, presente do doutor.

Eulália passou a mão por cima do portão, fazendo correr o trinco. O pescoço permanecia firme, equilibrando a trouxa.

— "Boa tarde, seu doutor..."

— "Boa tarde, Eulália. Como vão as coisas?"

— "Mais pra lá do que pra cá..."

— "E Dorinha?"

— "Na pior! Anda encucada. Não dá nem pra gente conversar. Também, do que é que a gente vai falar?! Pra não mastigar tristeza, melhor, mesmo, é ficar de boca fechada."

O médico examinava, com atenção, a mulher que tinha à frente. Moça ainda. Pobre Eulália! De longe, o vulto enxuto a fazia mais jovem. De perto, o cansaço e o desencanto, artistas implacáveis, alteravam-lhe os traços, com pinceladas de desesperança e tintas de angústia.

Há algum tempo, Dr. Breisser peneirava o assunto. Planejara e medira tudo com desvelo de minucioso arquiteto. Difícil, contido, expor o que havia arquitetado. Viúvo, sem filhos, aposentado, via a idade avançar, sem maiores preocupações ou ambições. Tinha, porém, como objetivo, não deixar perdida, com o seu desaparecimento, a polpuda aposentadoria. Alguém teria de beneficiar-se dela. E esse alguém, bem que poderia ser Eulália. Ninguém preenchia melhor os requisitos, uma vez que, só, desamparada e sustentando, ainda, uma filha doente.

Beirando os oitenta, o velho cirurgião sabia terem de ser práticas e rápidas as decisões. Fechou o livro que tinha em mãos. Esmagou o cigarro no cinzeiro, descansando os olhos claros na figura cor de café.

— "Eulália, eu vou me casar com você."

Ao trança-pé da surpresa, Eulália sentiu, pela primeira vez, desequilibrar-se a trouxa que trazia á cabeça. Amarelou! Tinha, pelo Dr, Breisser, a veneração, o carinho e o especial respeito que dedicaria a um pai, caso a vida lhe tivesse dado um. Profundamente embaraçada, desceu devagarinho a trouxa, colocando-a sobre a mesa. Reunindo forças conseguiu gaguejar, num sussurro;

— "Que é que foi que o doutor disse?!"

A voz grave do velho médico confirmou, clara e pausadamente:

— "Eu disse que vou me casar com você, Eulália,"

Petrificada, sem saber o que fazer, ou dizer, Eulália, como em tempos passados, grudou os olhos no chão, mais confusa do que nunca. A bondade do médico prontificou-se em ajudá-la:

— "Não fique assim, Eulália. Não há nada demais! Casamos e pronto! Você continua lá, na sua casa, eu continuo aqui. Quando eu morrer, você receberá o que eu lhe deixar. Simples, não ?!

Os olhos de Eulália, redondos de espanto, desgrudaram do chão. A emoção derreteu o gelo da perplexidade e dobrou-lhe os joelhos. Com lágrimas e beijos, lavou e enxugou as mãos do benfeitor.

Casaram-se, um mês depois. No civil e no religioso. Cerimônia íntima, sem convidados. Presentes, apenas, as testemunhas indispensáveis e Dorinha, na primeira fila, em sua cadeira de rodas.

À noite, sozinha no quarto, Eulália colocou, na carapinha trançada, a grinalda de flores de laranjeira, já sem a cobertura perolada. Era uma senhora. A senhora Breisser! Repetiu, acentuando as sílabas: — "Brais-ser...!" — um nome que se escrevia de um jeito e se lia de outro. Um nome aberto... claro! Claro e luminoso como os olhos do doutor.

Apesar da idade, o doutor tinha olhos de menino. De menino bom, cansado de olhar o mundo perverso. E ele lhe dera o nome de presente, como menino que dá de presente um brinquedo muito usado, mas, muito precioso, também. Breisser não era um nome qualquer. Era nome honrado, respeitado, querido! Nome de alguém que acrescentara muitos nomes á lista promissora da vida e roubara tantos outros ao doloroso rol da morte.

Resignou-se. O nome claro não combinava com a sua pele escura! Eulália Breisser era um nome que soava falso! Era como se, de uma hora para outra, passasse a usar no dedo um enorme brilhante, Embora faiscante, quem acreditaria nele?! O pouco que poderiam dizer é que seria falso ou, o que era pior... que o teria roubado. Cruzes! Eulália Breisser... soava como sacrilégio!

Em sua auto-punição, lembrou-se da primeira senhora Breisser... tão linda, tão fina, tão inteligente! E tão sua amiga! Aquela, sim, merecia o nome do doutor!

Eulália, casada, continuou a cuidar, agora, com redobrado carinho, das roupas do doutor. À dedicação e ao desvelo de outrora, somava-se a gratidão do presente. Apenas isto poderia explicar saírem as roupas mais brancas do que nunca, das mãos escuras de Eulália.

Um ano após o casamento, Eulália enviuvou. E chorou. Chorou muito! Tanto quanto chora quem sabe ter perdido um grande pai!

Trouxeram-lhe papéis para que assinasse. Fez tudo certinho, como lhe mandaram, desenhando letras com muito cuidado. Certinho, também passou a receber a sua cota de viúva. Todavia, quando lhe indagavam o nome, vinha-lhe à mente a figura bondosa e amiga da primeira senhora Breisser. E então respondia segura, sem voz sumida, sem olhos grudados no chão:

— "Meu nome é Eulália... Eulália Só."

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XVII


A POESIA...
    
Para... Há sombra aqui! Para e descansa!
Já ficou para trás a aridez do deserto!
Ao teu lado, a fugir num leito claro e incerto
brinca um riacho feliz de alma ingênua de criança!

Aqui, a terra veste as cores da esperança
e na árvore que oscila e faz sombra, e está perto,
há um pássaro que canta e irrequieto balança
o ramo que de flores todo está coberto!

Há sombra aqui... há um pouco de paz ao redor...
Chegas cansado e triste a arrastar tuas mágoas,
para, - descansa um pouco... e sonha que é melhor...

Dorme, e ouve a canção que te embala dos ninhos,
- se a vida, é como um rio a rolar suas águas,
a poesia- é uma sombra à margem dos caminhos.

ADOLESCÊNCIA

Cabelos leves de vento,
       vento de sol, ouro e música,
boca úmida, alvorada, 
      canto de pássaro sem nome.

Mãos de sonho, vagas mãos
como desejo impossível,      
pressentir como bailados,   
- onde o palco iluminado?  

Curvas, não formas, apenas
     curvas despontando - geração.
Ritmo solto, avançando      
pelo futuro talvez                 
ou pela rua dos olhos.        

Riso, dor irrevelada,         
canto efêmero, prenúncio,
mistério infinito do eco     
múltiplo, pelos espelhos     
se projetando no tempo.     

Irrevelada brancura             
passo no espaço, ascensão,
desejo, ah! o desejo é tudo  
na louca metamorfose,      
- sonho de asas, quase vida!

AH! NÃO SERIA ISTO POESIA?

A alegria provocante do teu sorriso
a fresca alegria
da tua boca molhada como os caminhos
ao nascer do dia,
-ah ! não será isto poesia?

A música de abismo no silencio longo
do teu beijo que atrai,
essa estranha vertigem que inebria,
- ah! não será isto poesia?

O vento a acariciar os tens cabelos soltos
teus cabelos revoltos
macios e leves,
como painas, como nuvens, como neves,
tecidos de seda e de luz
numa estranha magia
ah! não será isto poesia ?

E o mistério de teus olhos profundos, castanhos,
que atraem como horizontes
para mundos estranhos,
onde há noites de amor, e nunca chega o dia ...
- ah! não será isto poesia ?

A visão do teu pescoço branco, selado como um templo,
pelo véu de teus cabelos louros, que eu descubro
nos delírios de minha fantasia,
- ah! não será isto poesia?

E o lóbulo de tua orelha, pequenino, redondo,
onde a maciez do teu corpo se adivinha,
e onde mora o perfume de tua carne que antevejo
e se anuncia ...
- ah! não será isto poesia?

E a beleza de tua adolescência, insubmissa e revolta,
no ritmo de tuas formas libertadas
ferindo o meu olhar como saga bravia ...
- ah! não será isto poesia?

E a tua voz
- a noite que se fez sorri numa flauta macia -
e teu corpo, uma bandeira inquieta desfraldada,
teu amor, prece sensual para a minha heresia...
- ah! não será isto poesia?

- Sim, isto tudo é poesia, em vida revelada,
porque tu és a Poesia, oh! minha doce amada!

ÂNSIA  VAGA
   
Sempre a vida em conserva
o mundo a os acontecimentos
na tela dos mesmos cinemas,
e as mesmas historias em livros diferentes
   e em livros diferentes sempre os mesmos poemas . . .

Sempre a vida em conserva
gravada em discos, irradiada de longe, fotografada,   
nunca a presença, a emoção sentida
deslumbrada...

Ah! pisar outros chãos, colher flagrantes reais
de imprevistas naturezas
feliz a irresponsável como um menino
sem ninguém compreender o que eu faço e o que eu falo . . .

Ah! tomar de surpresa o meu próprio destino,
olhá-lo com os meus olhos cheios de belezas
e assombrá-lo!

AUSÊNCIA 
   
Quando estás longe, querida,
na minha angústia sem fim,
saudade, é o nome da vida
que morre dentro de mim...

Saudade, - estranha ilusão
que à solidão recompensa,
presença no coração
maior que a própria presença.   

Presença no coração
que à vida não satisfaz...
Saudade, estranha emoção
que a distância aumenta mais.

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

Malba Tahan (Mil Histórias sem Fim) Narrativa 9


História singular de um turbante cinzento e a estranha aventura de um enforcado. O encontro inesperado que teve o herói do conto com uma jovem que chorava no meio de uma grande floresta.

 Das Mil histórias sem fim é esta a nona!

 Lida a nona restam, apenas, novecentas e noventa e uma.

Meu nome é Sind Mathusa. Poucos homens têm havido, na Índia, mais ricos do que meu pai e não sei de um só que o excedesse em inteligência, bondade e prudência.

Sentindo-se, certa vez, assaltado de grave enfermidade, e na certeza de que os dias que lhe restavam na vida podiam ser contados pelos dedos da mão, meu pai chamou-me para junto de seu leito e disse-me:

- Escuta, ó jovem desmiolado! Atenta bem no que te vou dizer. És pela lei o herdeiro único de todos os bens que possuo. Com o ouro que te vou deixar poderias viver regaladamente, como um rajá, durante duzentos anos, se a tanto quisessem os deuses prolongar a tua louca e inútil existência. Como sei, porém, que és fraco para resistir aos vícios, e forte em seguir os maus exemplos, tenho a triste certeza de que muito mal empregarás a riqueza que vai em breve cair-te nas mãos. Quero, assim, fazer-te agora um pedido: se for atendido morrerei tranquilo e não levarei para a vida futura o tormento de uma angústia.

- Dizei-me, meu pai - respondi -, qual é o teu desejo. Quero ser mais repelente do que um chacal se deixar de cumprir a tua vontade!

- Meu filho, quero arrancar de ti um juramento. Vês aquele turbante cinzento que ali está? Vais jurar pela imaculada pureza dos ídolos e pelas asas de Vichnu (1) que se algum dia te sentires desonrado procurarás imediatamente a reabilitação que a morte concede aos infelizes, enforcando-te naquele turbante!

Fiz, sem hesitar, a vontade ao enfermo. Jurei pelos ídolos e pelos complicados deuses da Índia que se me visse, no futuro, ferido pela mácula da desonra, procuraria a morte ao enforcar-me no turbante cor de cinza.

Passados dois ou três dias, meu pai, fechando os olhos para a vida, integrou-se no Nirvana. Vi-me, de um momento para o outro, senhor de inúmeras propriedades, das quais auferia uma renda que chegava a causar inveja e insônia ao orgulhoso xá da nossa província. Passei a ostentar uma vida de luxo e dissipações; rodeavam-me, dia e noite, falsos amigos e bajuladores da pior casta que me induziam a praticar toda a sorte de leviandades e loucuras.

Uma noite, tendo reunido em minha casa, como habitualmente o fazia, em grande festa, vários e divertidos companheiros da nossa laia, um deles chamado Ishame, que adquirira considerável riqueza vendendo camelos e elefantes, convidou-me para uma partida de jogo de dados. A princípio a sorte me foi favorável; cheguei a ganhar num golpe o meu peso em marfim. Cedo, porém, perseguido por uma triste fatalidade, entrei a perder e os meus prejuízos excederam de mais de cem vezes o lucro inicial. 

Com a esperança de recuperar o dinheiro perdido redobrei as paradas. Perdi novamente. Na progressiva loucura do jogo, já alucinado, arrisquei nos azares da sorte as minhas joias, escravos e propriedades. Mais uma vez perdi, e ao nascer do sol sobre o Ganges nada mais me restava da herança de meu pai. Na certeza de que poderia contar com a generosidade e auxílio daqueles que me rodeavam, fiz, com a garantia da minha palavra, uma grande dívida de honra, ao perder a última partida. Procurei um jovem brâmane, filho de opulenta família e que sempre vivera a meu lado, no tempo da fartura, e pedi-lhe que me emprestasse algum dinheiro.

- Meu caro Sind - disse-me o brâmane conduzindo-me para o interior de sua rica vivenda -, chegas em péssima ocasião. Fui obrigado a enviar ontem, para resgatar uma dívida de meu pai, cerca de duas mil rupias para Benares. Encontro-me inteiramente desprevenido. Lamento, portanto, não poder servir a um amigo tão querido.

Olhei para as pratarias que se amontoavam por todos os recantos de sua casa. Havia narguilés riquíssimos e bandejas com inscrições que deviam valer alguns milhares.

- Nada disso é nosso - acudiu logo o brâmane, apontando para os adornos e enfeites. - É desejo de meu pai casar minhas irmãs com homens de boa casta, e para atrair os pretendentes alugou toda essa prata e esses tapetes bordados a ouro. Todos acreditam, desse modo, que somos ricos e que vivemos na fartura e na opulência.

Irritado com o cinismo daquele falso amigo, disse-lhe com calculada frieza:

- Bem sabes que sou descendente de nobres e que meus avós pertenciam à mais alta linhagem da Índia. Declaro, pois, que para fugir da situação em que me encontro, estou disposto a casar com uma jovem fina e educada. Peço, pois, a tua irmã mais moça em casamento.

Sorriu o brâmane:

- Pedes em casamento uma jovem que não conheces e que talvez não te aceite para esposo. Em nossa família os casamentos não são ditados pelos interesses pessoais; a mulher deve ser ouvida e suas inclinações pessoais levadas em linha de conta. Se desejas pagar dívidas de jogo com o dote de minha irmã mais moça, sinto dizer-te que estás equivocado, jamais aceitaria, como cunhado, um homem que se arruinou em consequência de uma vida desregrada e pecaminosa!

E, conduzindo-me até a porta de seu palácio, empurrou-me delicadamente para a rua.

Apesar desse péssimo acolhimento, não desanimei. Fui ter à casa em que morava um mercador chamado Meting, que era assíduo frequentador de minha mesa. De mim havia Meting recebido inúmeros obséquios e finezas, e muito dinheiro para ele eu perdera no jogo.

- Que desejas de mim? - perguntou-me. Disse-lhe que precisava de pequeno auxílio.

- Julgas que eu sou algum imbecil da tua espécie? - respondeu-me. - De mim não terás nem um thalung (2) de cobre!

Desesperado, vendo-me repudiado por todos, e sem recursos para pagar o imenso débito que contraíra, abandonei o palácio e fui ter a um grande bosque nas vizinhanças da cidade. Era meu intento cumprir o juramento que formulara junto ao leito de meu pai.

Escolhi, portanto, entre muitas, uma belíssima árvore. Subi pelo nodoso tronco, sentei-me em um dos galhos mais altos, desenrolei o longo e belo turbante cor de cinza, amarrei uma das suas extremidades em outro galho que estava a meu alcance e fiz na outra extremidade um laço seguro em torno do pescoço. Todos esses preparativos trágicos executei-os com a maior calma, sentindo, embora, o coração opresso pela mais imensa tristeza.

Já ia deixar cair o corpo no espaço, quando, ao reforçar o laço fatal que me estrangularia, notei que havia na ponta do turbante, por dentro, qualquer coisa de muito resistente. Que seria? Na esperança louca de encontrar ali qualquer coisa que me pudesse salvar, rasguei o turbante. Embora pareça incrível, senhor, devo contar: de dentro dele retirei uma carta de meu pai redigida nos seguintes termos:

Estás desligado do teu juramento. Vai à casa de Kashiã, o tecelão, e pede-lhe a caixa de areia. Quem se salva por um milagre da desonra e da morte deve evitar o erro e procurar o caminho reto da vida.

Ébrio de alegria saltei da árvore e quase a correr fui ter à choupana onde morava o pobre Kashiã, apelidado “o tecelão”; recebi das mãos desse pobre homem a lembrança que meu pai ali deixara para me ser entregue.

Ao abrir a misteriosa caixa quase desmaiei, tão grande foi o meu assombro. Estava repleta de brilhantes, pérolas e rubis - alguns dos quais valiam mais que as coroas dos príncipes hindus.

Possuidor de tão grande riqueza, não soube dominar a tensão de que fui presa e chorei. Lembrei-me de meu bom pai, sempre generoso e prudente, que ao prever a minha desgraça usara daquele artifício para salvar-me. Era evidente que eu só poderia obter a caixa com auxílio da carta, e a existência desta só chegaria ao meu conhecimento se o turbante fosse por mim próprio desmanchado.

Como louco que se salva de um abismo ao fundo do qual se atirara, assim me vi naquele momento. Depois de lançar aos pés do velho Kashiã um punhado de preciosas gemas, tomei a caixa e encaminhei-me para a cidade. Era minha intenção pagar todas as minhas dívidas e readquirir as minhas antigas propriedades. Quis, porém, a fatalidade que tal não acontecesse.

Ao atravessar um pequeno e sombrio bosque nas margens do Elir, encontrei sentada sob uma grande árvore uma jovem de deslumbrante formosura. Os seus olhos azuis tinham um pouco do céu da Índia com os reflexos mais verdes do mar de Omã. As faces eram como as da terceira deusa do templo de Yhamã. Os lábios da linda criatura tinham um encanto a que talvez não pudesse resistir o faquir mais puro e mais santo da terra. Com essas comparações não exagero a beleza da desconhecida; ao contrário, fico muito aquém da verdade.

A jovem chorava. Os seus soluços vibravam em ondas de indizível angústia.

- Que tens, ó jovem? - perguntei-lhe carinhoso, aproximando-me dela. - Qual é o motivo do teu pranto? Se para o teu mal há remédio, dentro dos recursos humanos, certo estou de que saberei livrar-te de qualquer desgosto!

Isso eu dizia tendo sob um dos braços a preciosa caixa, cheia de cintilantes pedras que me dariam ouro, fama e poderio.

Sem interromper o seu copioso pranto, a jovem olhou com surpresa para mim, segurou com os lábios o belo manto de seda que lhe caía sobre os ombros, e, puxando-o para o lado, deixou a descoberto o colo e os braços mais alvos, ambos, do que as penas das garças sagradas de Hamadã.

Recuei horrorizado. A infeliz tinha as duas mãos cortadas junto aos pulsos!

- Ó desditosa criatura! - exclamei, a alma oprimida pela maior angústia. - Qual foi o bárbaro autor de tamanha crueldade? Conta-me a causa de tua desgraça, e fica certa de que poderás armar o meu braço com o ódio que a vingança te souber inspirar.

A desditosa jovem, entre soluços, narrou-me o seguinte:
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Notas
1 Uma das muitas formas que os hindus atribuem às divindades. Vichnu é representado por dez formas diferentes.
2 Thalung - moeda de ínfimo valor.
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continua…
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Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. vol. 2.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Baú de Trovas e Versos Afins n. 2


O SELO
(1920)

Subiu o imposto do selo,
mas quem do selo se priva?
Inda é bom que não rareie
a produção da saliva!

CALORÃO
(1920)

Em todas as terras frias
está faltando o carvão;
Que pena que não se exporte
este brabo calorão!

NA BAHIA
(1920)

Na Bahia toda gente
tem liberdade bastante,
contanto que esteja dentro
...do partido dominante.

BURRO VELHO
(1909)

Tanta gente que se admira
do macaco fazer renda,
mas eu já vi um burro velho,
ser caixeiro numa venda.

Fonte:
Iba Mendes (seleção/organização). Trovas e Cantigas. São Paulo, 2019.