quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Therezinha Dieguez Brisolla (A Procura de Estrelas) I


Ao conter minha ousadia
deu-me o destino, severo,
em vez do amor que eu queria,
a saudade... que eu não quero.

Ao disfarçar a paixão,
quando na rua se olharam
bem à luz do lampião,
suas sombras... se abraçaram!

Ao reler: - "Amor... coragem...
é a vida... são contingências"...
eu descobri na mensagem,
teu adeus... nas reticências!

Ao romper os nossos laços
chego à estranha conclusão:
- A saudade não tem braços,
mas aperta o coração!

A tua língua refreia,
porque a calúnia é um defeito
de quem pela vida alheia
não tem o menor respeito!

A vida, má roteirista,
dá-me um papel... não me ensaia
e, se eu tento ser artista,
nega-me o aplauso... e me vaia!

A vida, por brincadeira
ou distração, faz da gente,
velha ponte de madeira
sempre à mercê de uma enchente!

Comparo a um pano rasgado
este amor, ao qual me rendo.
Quando parece acabado,
um de nós… faz um remendo!

Com teus disfarces fracassas
nas juras que eu sei de cor...
e entre nós, quando me abraças,
fica a distância maior!

Deus cria a lua e as estrelas
e uma pergunta o inquieta:
- Quem poderá descrevê-las?
Então, Deus... cria o poeta!

Estuda, criança, aprende,
que um livro sempre faz bem...
e a vida, às vezes, depende
da cultura que se tem.

Eu acendo a vela benta
e, com fé beijo a medalha
mas, quando você me tenta
meu anjo da guarda... falha!

Eu lutei quando quis ter
teu amor... e o consegui...
Depois, eu quis te esquecer
e esse combate... eu perdi.

Foi o segredo a guarida
que o nosso amor protegeu...
e a inconfidência da vida
nos fez Marília e Dirceu!

Hoje eu volto à antiga praça
e a saudade tem tal ânsia
que, em cada estranho que passa,
procuro o amigo de infância.

Meu tempo é o da serenata...
do flerte... da matinê...
da valsa... terno e gravata...
do primeiro amor... você!

Não me zango se ele tarda
ou se o espero e ele não vem.
É que o meu anjo da guarda
deve estar velho... também!

Nesta vida alucinante
e de ilusões passageiras,
às vezes, um breve instante
vale mais que horas inteiras!

"Ontem passou"... ele disse
pedindo, outra vez, perdão.
Eu não sei se fiz tolice
mas, desta vez, disse: - Não!

O seu olhar tem tal brilho
que chega à sublimidade...
Toda mãe, que espera um filho,
tem um "quê" de majestade!

Passam sorrindo ao meu lado
avó e neto... amor puro!
Nela, revivo o passado...
Nele, adivinho o futuro.

Por mais que o mundo me agrida,
minha fé não arrefece...
Mesmo no inverno da vida,
Deus manda o sol que me aquece!

Quando desfazes a trança,
jogando longe teus grampos,
tu me recordas a dança
do trigo dourando os campos!

Quase ao fim da caminhada,
meu coração não tem jeito!...
Sempre um toque de alvorada
acorda o sonho… em meu peito!

Que eu não me esqueça, jamais,
que a moral é a diretriz
e ter ética é bem mais
do que a gente pensa e diz!

Se a cruz é leve ou pesada,
para quem crê, não importa!...
Deus nos dá, para a jornada
o peso que a fé suporta.

Se de amor o velho fala,
corre o seu pranto… e, de manso,
a saudade, calma, embala
a cadeira de balanço.

Sei que este amor é veneno
do qual bebo... e o que é pior:
- Desejo, quanto mais peno,
sempre uma dose maior!

Se, um dia, o amor acabar
e as juras você esquecer,
basta um recado no olhar
e eu saberei entender.

Sorrindo, tento esconder
toda a mágoa que me inspiras.
Finges me amar... finjo crer...
Nós somos duas mentiras!

Tanto amor na despedida!!!
Voltas... E eu não sinto nada...
Pior que o adeus, na partida,
foi nosso adeus, na chegada!

"Um doutor", o pai almeja...
e a mãe, a sorrir, lhe diz
que amor e paz lhe deseja...
Só quer que seja... feliz!

Fonte:
Livro cedido pela trovadora
Therezinha Dieguez Brisolla. A procura de estrelas. Porto Alegre/RS: Odisseia, 2014.

Lima Barreto (Um Especialista)


Era hábito dos dois, todas as tardes, após o jantar, jogar uma partida de bilhar em cinquenta pontos, finda a qual iam, em pequenos passos, até ao Largo da Carioca tomar café e licores, e, na mesa do botequim, trocando confidências, ficarem esperando a hora dos teatros, enquanto que, dos charutos, fumaças azuladas espiralavam preguiçosamente pelo ar.

Em geral, eram as conquistas amorosas o tema da palestra; mas, às vezes; incidentemente, tratavam dos negócios, do estado da praça e da cotação das apólices.

Amor e dinheiro, eles juntavam bem e sabiamente.

O comendador era português, tinha seus cinquenta anos, e viera para o Rio aos vinte e quatro, tendo estado antes seis no Recife. O seu amigo, o Coronel Carvalho, também era português, viera, porém, aos sete para o Brasil, havendo sido no interior, logo ao chegar, caixeiro de venda, feitor e administrador de fazenda, influência política; e, por fim, por ocasião da bolsa, especulara com propriedades, ficando daí em diante senhor de uma boa fortuna e da patente de coronel da Guarda Nacional. Era um plácido burguês, gordo, ventrudo, cheio de brilhantes, empregando a sua mole atividade na gerência de uma fábrica de fósforos. Viúvo, sem filhos, levava a vida de moço rico. Frequentava cocotes; conhecia as escusas casas de rendez-vous, onde era assíduo c considerado; o outro, o comendador, que era casado, deixando, porém, a mulher só no vasto casarão do Engenho Velho a se interessar pelos namoricos das filhas, tinha a mesma vida solta do seu amigo e compadre.

Gostava das mulheres de cor e as procurava com o afinco e ardor de um amador de raridades.

À noite, pelas praças mal iluminadas, andava catando-as, joeirando-as com olhos chispantes de lubricidade e, por vezes mesmo, se atrevia a seguir qualquer mais airosa pelas ruas de baixa prostituição.

– A mulata, dizia ele, é a canela, é o cravo, é a pimenta; é, enfim, a especiaria de requeime acre e capitoso que nós, os portugueses, desde Vasco da Gama, andamos a buscar, a procurar.

O coronel era justamente o contrário: só queria às estrangeiras; as francesas e italianas, bailarinas, cantoras ou simplesmente meretrizes, era o seu fraco.

Entretanto havia já quinze dias, que não se encontravam no 1ugar aprazado e a faltar era o comendador, a quem o coronel sabia bem por informações do seu guarda-livros.

Ao acabar a segunda semana dessa ausência imprevista, o coronel, maçado e saudoso, foi procurar o amigo na sua loja à Rua dos Pescadores. Lá o encontrou amável e de boa saúde. Explicaram-se; e entre eles ficou assentado que se veriam naquele dia, à tarde, na hora e lugar habituais.

Como sempre, jantaram fartamente e regiamente regaram o repasto com bons vinhos portugueses. Jogaram a partida de bilhar e depois, como encarrilhados, seguiram para o café de costume no Largo da Carioca.

No princípio, conversaram sobre a questão das minas de Itaoca, vindo então à baila a inépcia e a desonestidade do governo; mas logo depois, o Coronel que “tinha a pulga atrás da orelha”, indagou do companheiro o motivo de tão longa ausência.

– Oh! Não te conto! Foi um “achado”, a coisa, disse o comendador, depois de chupar fortemente o charuto e soltar uma volumosa baforada; um petisco que encontrei… Uma mulata deliciosa, Chico ! Só vendo o que é, disse a rematar, estalando os beiços.

– Como foi isso? inquiriu o coronel pressuroso. Como foi? Conta lá!

– Assim. A Ultima vez que estivemos juntos, não te disse que no dia seguinte iria a bordo de um paquete buscar um amigo que chegava do Norte?

– Disseste-me. E daí?

– Ouve. Espera. C'os diabos isto não vai a matar! Pois bem, fui a bordo. O amigo não veio… Não era bem meu amigo… Relações comerciais… Em troca…

Por essa ocasião rolou um carro no calçamento. Travou em frente ao café e por ele adentro entrou uma gorda mulher, cheia de plumas e sedas, e para vê-la virou-se o comendador, que estava de costas, interrompendo a narração. Olhou-a e continuou depois:

– Como te dizia: não veio o homem, mas enquanto tomava cerveja com o comissário, vi atravessar a sala uma esplêndida mulata; e tu sabes que eu…

Deixou de fumar e com olhares canalhas sublinhou a frase magnificamente.

– De indagação em indagação, soube que viera com um alferes do Exército; e murmuravam a bordo que a Alice (era seu nome, soube também) aproveitara a companhia, somente para melhor mercar aqui os seus encantos. Fazer a vida… Propositalmente, me pareceu, eu me achava ali e não perdia vaza, como tu vais ver.

Dizendo isto, endireitou o corpo, alçou um tanto a cabeça, e seguiu narrando:

– Saltamos juntos, pois viemos juntos na mesma lancha – a que eu alugara. Compreendes? E, quando embarcamos num carro, no Largo do Paço, para a pensão, já éramos conhecimentos velhos; assim pois…

– E o alferes?

– Que alferes?

– O alferes que vinha com a tua diva, filho? Já te esqueceste ?

– Ah! Sim! Esse saltou na lancha do Ministério da Guerra e nunca mais o vi.

– Está direito. Continua lá a coisa.

– E… e… Onde é que estava? Hein?

– Ficaste: quando ao saltar, foram para a pensão.

– É isto ! Fomos para a Pensão Baldut, no Catete; e foi, pois, assim que me apossei de um lindo primor – uma maravilha, filho, que tem feito os meus encantos nestes quinze dias – com os raros intervalos em que me aborreço em casa, ou na loja, já se vê bem.

Repousou um pouco e, retomando logo após a palavra, assim foi dizendo:

– É uma coisa extraordinária! Uma maravilha! Nunca vi mulata igual. Como esta, filho, nem a que conheci em Pernambuco há uns vinte e sete anos! Qual! Nem de longe! Calcula que ela é alta, esguia, de bom corpo; cabelos negros corridos, bem corridos: olhos pardos. É bem fornida de carnes, roliça; nariz não muito afilado, mas bom! E que boca, Chico! Uma boca breve, pequena, com uns lábios roxos, bem quentes… Só vendo mesmo! Só! Não se descreve.

O comendador falara com um ardor desusado nele; acalorara-se e se entusiasmara deveras, a ponto de haver na sua fisionomia estranhas mutações. Por todo ele havia aspecto de um suíno, cheio de lascívia, inebriado de gozo. Os olhos arredondaram-se e diminuíram; os lábios se haviam apertado fortemente e impelidos pra diante se juntavam ao jeito de um focinho; o rosto destilava gordura; e, ajudado isto pelo seu físico, tudo nele era de um colossal suíno.

– O que pretendes fazer dela? Dizes lá.

– É boa… Que pergunta ! Prová-la, enfeitá-la, enfeitá-la e “lançá-la” E é pouco?

– Não! Acho até que te excedes. Vê lá, tu!

– Hein? Oh! Não! Tenho gasto pouco. Um conto e pouco… Uma miséria!

Acendeu o charuto e disse subitamente, ao olhar o relógio:

– Vou buscá-la de carro, porquanto vamos ao cassino, e tu me esperas lá, pois tenho um camarote. Até já.

Saindo o seu amigo, o coronel considerou um pouco, mandou vir água Apolináris, bebeu e saiu também.

Eram oito horas da noite.

Defronte ao café, o casarão de uma ordem terceira ensombrava a praça parcamente iluminada pelos combustores de gás e por um foco elétrico ao centro. Das ruas que nela terminavam, delgados filetes de gente saíam e entravam constantemente. A praça era como um tanque a se encher e a se esvaziar equitativamente. Os bondes da Jardim semeavam pelos lados a branca luz de seus focos e, de onde em onde, um carro, um tilburi, a atravessava célere.

O coronel esteve algum tempo olhando o largo, preparou um novo charuto, acendeu-o, foi até à porta, mirou um e outro transeunte, olhou o céu recamado de estrelas, e, finalmente, devagar, partiu em direção à Lapa.

Quando entrou no cassino, ainda o espetáculo não havia começado.

Sentou-se a um banco no jardim, serviu-se de cerveja e entrou a pensar.

Aos poucos, vinham chegando os espectadores. Naquele instante entrava um. Via-se pelo acanhamento, que era um estranho às usanças da casa. Esmerado no vestir, no calçar, não tinha em troca o desembaraço com que se anuncia o habitué. Moço, moreno, seria elegante se não fosse a estreiteza de seus movimentos. Era um visitante ocasional, recém-chegado, talvez, do interior, que procurava ali uma curiosidade, um prazer da cidade.

Em seguida, entrou um senhor barbado, de maçãs salientes, rosto redondo, acobreado. Trazia cartola, e pelo ar solene, pelo olhar desdenhoso que atirava em volta, descobria-se nele um legislador da Cadeia Velha, deputado, representante de algum Estado do Norte, que, com certeza, há duas legislaturas influía poderosamente nos destinos do país com o seu resignado apoiado. E assim, um a um, depois aos magotes, foram entrando os espectadores. Ao fim, na cauda, retardados, vieram os frequentadores assíduos – pessoas de variadas de profissão e moral que com frequência desejavam saber os nomes das cocotes, a proveniência delas e as suas excentricidades libertinas. Entre os que entravam naquele momento, entrara também o comendador e o ” achado” .

A primeira parte do espetáculo correra quase friamente.

Todos, homens e mulheres, guardavam as maneiras convencionadas de se estar em público. Era cedo ainda.

Em meio, porém, da segunda, as atitudes mudaram. Na cena, uma delgadinha senhora (chanteuse à diction – no cartaz) berrava uma cançoneta francesa. Os espectadores, com batidos das bengalas nas mesas, no assoalho, e com a voz mais ou menos comprometida, estribilhavam-na doidamente. O espetáculo ia no auge. Da sala aos camarotes subia um estranho cheiro – um odor azedo de orgia.

Centenas de charutos e cigarros a fumegar enevoavam todo ambiente.

Desprendimentos do tabaco, emanações alcoólicas, e, a mais, uma fortíssima exalação de sensualidade e lubricidade, davam à sala o aspecto repugnante de uma vasta bodega.

Mais ou menos embriagado, cada um dos espectadores tinha para com a mulher com quem bebia, gestos livres de alcova. Francesas, italianas, húngaras, espanholas, essas mulheres, de dentro das rendas, surgiam espectrais, apagadas, lívidas como moribundas. Entretanto, ou fosse o álcool ou o prestígio de peregrinas, tinham sobre aqueles homens um misterioso ascendente. A esquerda, na plateia, o majestoso deputado da entrada coçava despudoradamente a nuca da Dermalet, uma francesa; em frente o doutor Castrioto, lente de uma escola superior, babava-se todo a olhar as pernas da cantora em cena, enquanto em um camarote defronte, o Juiz Siqueira apertava-se à Mercedes, uma bailarina espanhola, com o fogo de um recém-casado à noiva.

Um sopro de deboche percorria homem a homem.

Dessa forma o espetáculo desenvolvia-se no mais fervoroso entusiasmo e o coronel, no camarote, de soslaio, pusera-se a observar a mulata. Era bonita de fato e elegante também. Viera com um vestido creme de pintas pretas, que lhe assentava magnificamente.

O seu rosto harmonioso, enquadrado num magnífico chapéu de palha preta, saía firme do pescoço roliço que a blusa decotada deixava ver. Seus olhos curiosos, inquietos, voavam de um lado a outro e a tez de bronze novo cintilava à luz dos focos. Através do vestido se lhe adivinhavam as formas; e, por vezes, ao arfar, ela toda trepidava de volúpia…

O comendador pachorrentamente assistia ao espetáculo e fora do costume, pouco conversou. O amigo, pudicamente não insistiu no exame.

Quando saíram de permeio à multidão, acumulada no corredor da entrada, o coronel teve ocasião de verificar o efeito que fizera a companheira do amigo. Ficando mais atrás, pôde ir recolhendo os ditos e as observações que a passagem deles ia sugerindo a cada um.

Um rapazola dissera:

– Que “mulatão”!

Um outro refletiu:

– Esses portugueses são os demônios para descobrir boas mulatas. É faro. Ao passarem os dois, alguém, a quem ele não viu, maliciosamente observou:

– Parecem pai e filha.

E essa reflexão de pequeno alcance na boca que a proferiu, calou fundo no ânimo do coronel.

Os queixos eram iguais, as sobrancelhas, arqueadas, também; o ar, um não sei quê de ambos assemelhavam-se… Vagas semelhanças, concluiu o coronel ao sair à rua, quando uma baforada de brisa marinha lhe acariciou o rosto afogueado.

Já o carro rolava rápido pela rua quieta – quietude agora perturbada pelas vozes esquentadas dos espectadores saídos e pelas falsas risadas de suas companheiras – quando o comendador, levantando-se no estrado da carruagem, ordenou ao cocheiro que parasse no hotel, antes de tocar para a pensão. A sala sombria e pobre do hotel tinha sempre por aquela hora uma aparência brilhante. A agitação que ia nela; as sedas roçantes e os chapéus vistosos das mulheres; a profusão de luzes, o irisado das plumas, os perfumes requintados que voavam pelo ambiente; transmudavam-na de sua habitual fisionomia pacata e remediada. As pequenas mesas, pejadas de pratos e garrafas, estavam todas elas ocupadas. Em cada, uma ou duas mulheres sentavam-se, seguidas de um ou dois cavalheiros. Sílabas breves do francês, sons guturais do espanhol, dulçorosas terminações italianas, chocavam-se, brigavam.

Do português nada se ouvia, parecia que se escondera de vergonha.

Alice, o comendador e o coronel, sentaram-se a uma mesa redonda em frente à entrada. A ceia foi lauta e abundante. A sobremesa, os três convivas repentinamente animados, puseram-se a conversar com calor. A mulata não gostara do Rio; preferia o Recife. Lá sim ! O céu era outro; as comidas tinham outro sabor, melhor e mais quente. Quem não se recordaria sempre de uma frigideira de camarões com maturins ou de um bom feijão com leite de coco?

Depois, mesmo a cidade era mais bonita; as pontes, os rios, o teatro, as igrejas.

E os bairros então? A Madalena, Olinda… No Rio, ela concordava, havia mais povo, mais dinheiro; mas Recife era outra coisa, era tudo…

– Você tem razão, disse o comendador; Recife é bonito, e muito mais . .

– O senhor, já esteve lá ?

– Seis anos; filha, seis anos; e levantou a mão esquerda à altura dos olhos, correu-a pela testa, contornou com ela a cabeça, descansou-a afinal na perna e acrescentou: comecei lá minha carreira comercial e tenho muitas saudades. Onde você morava?

– Ultimamente à Rua da Penha, mas nasci na de João de Barro, perto do Hospital de Santa Águeda…

– Morei lá também, disse ele distraído.

– Criei-me pelas bandas de Olinda, continuou Alice, e por morte de minha mãe vim para a casa do doutor Hildebrando, colocada pelo juiz…

Há muito que tua mãe morreu? indagou o coronel.

– Há oito anos quase, respondeu ela.

– Há muito tempo, refletiu o coronel; e logo perguntou: que idade tens?

– Vinte e seis anos, fez ela. Fiquei órfã aos dezoito. Durante esses oito anos tenho rolado por esse mundo de Cristo e comido o pão que o diabo amassou. Passando de mão em mão, ora nesta, ora naquela, a minha vida tem sido um tormento. Até hoje só tenho conhecido três homens que me dessem alguma coisa; os outros Deus me livre deles! – só querem meu corpo e o meu trabalho. Nada me davam, espancavam-me, maltratavam-me. Uma vez, quando vivia com um sargento do Regimento de Polícia, ele chegou em casa embriagado, tendo jogado e perdido tudo, queria obrigar-me a lhe dar trinta mil-réis, fosse como fosse. Quando lhe disse que não tinha e o dinheiro das roupas que eu lavava, só chegava naquele mês para pagar a casa, ele fez um escarcéu. Descompôs-me. Ofendeu-me. Por fim, cheio de fúria agarrou-me pelo pescoço, esbofeteou-me, deitou-me em terra, deixando-me sem fala e a tratar-me no hospital. Um outro – um malvado em cujas mãos não sei como fui cair – certa vez, altercamos, e deu-me uma facada do lado esquerdo, da qual ainda tenho sinal.! Tem sido um tormento… Bem me dizia minha mãe: toma cuidado, minha filha, toma cuidado. Esses homens só querem nosso corpo por segundos, depois vão-se e nos deixam um filho nos quartos, quando não nos roubam como fez teu pai comigo…

– Como?… Como foi isso? interrogou admirado o coronel.

– Não sei bem como foi, retrucou ela. Minha mãe me contava que ela era honesta; que vivia na cidade do Cabo com seus pais, de cuja companhia fora seduzida por um caixeiro português que lá aparecera e com quem veio para o Recife. Nasci deles e dois meses, ou mais depois do meu nascimento, meu pai foi ao Cabo liquidar a herança (um sítio, uma vaca, um cavalo) que coubera à minha mãe por morte de seus pais. Vindo de receber a herança, partiu dias depois para aqui e nunca mais ela soube notícias dele, nem do dinheiro, que, vendido o herdado, lhe ficara dos meus avós.

– Como se chamava teu pai? indagou o comendador com estranho entono.

– Não me 1embra bem; era Mota ou Costa… Não sei… Mas o que é isso? disse ela de repente, olhando o comendador. Que tem o senhor ?

– Nada… Nada… retrucou o comendador experimentando um sorriso. Você não se 1embra das feições desse homem? interrogou ele.

– Não me 1embra, não. Que interesse! Quem sabe que o senhor não é meu pai? gracejou ela.

O gracejo caiu de chofre naqueles dois espíritos tensos, como uma ducha frigidíssima. O coronel olhava o comendador que tinha as faces em brasa; este, àquele; por fim depois de alguns segundos o coronel querendo dar uma saída à situação, simulou rir-se e perguntou:

– Você nunca mais soube alguma coisa… qualquer coisa ? Hein ?

– Nada… Que me 1embre, nada… Ah ! Espere… Foi… É. Sim! Seis meses antes da morte de minha mãe, ouvi dizer em casa, não sei por quem, que ele estava no Rio implicado num caso de moeda falsa. É o que me 1embra, disse ela.

– O que? Quando foi isso? indagou pressuroso o comendador.

A mulata, que ainda não se havia bem apercebido do estado do comendador, respondeu ingenuamente:- Mamãe morreu em setembro de 1893, por ocasião da revolta… Ouvi contar essa história em fevereiro. É isso.

O comendador não perdera uma sílaba; e, com a boca meio aberta, parecia querê-las engolir uma e uma; com as faces congestionadas e os olhos esbugalhados, a sua fisionomia estava horrível.

O coronel e a mulata, estáticos, estuporados, entreolhavam-se.

Durante um segundo nada se lhes antolhava fazer. Ficaram como idiotas; em breve, porém, o comendador, num supremo esforço, disse com voz sumida:- Meu Deus! É minha filha!

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 77

 

Palestra de Isabel Furini, na UEM e Homenagens


Ontem, na UEM na presença de muitos maringaenses - admiradores, poetas e membros do SESC, UNATI, UNIJORE e ALM - a Embaixadora Internacional e Imortal da Poesia pela Academia Virtual de Letras, Artes e Cultura do Brasil, educadora e professora curitibana Isabel Furini proferiu uma palestra sobre a importância da poesia no mundo atual em comparação aos tempos antigos, sendo muito aplaudida.  

Na ocasião alguns poetas maringaenses (como Jaime Vieira, Joel Cardoso, Nilsa Alves de Melo, entre outros) se fizeram presente declamando poemas de sua autoria. Raílda Masson anunciou o lançamento de livro de sua autoria sobre Florbela Espanca em 5 de novembro, e posteriormente na FLIM (Festa Literária Internacional de Maringá).

Ao final, após sortear entre os presentes livros de diversos poetas, Isabel homenageou dois poetas maringaenses que trabalham há muitos anos pela divulgação da poesia, entregando em mãos medalhas, um deles a Jaime Vieira e outro para minha pessoa, como membro imortal da Academia Virtual Internacional de Poesia, Arte e Filosofia, da qual Isabel é Presidente. 

Grato e honrado por este belo presente às portas de minhas 65 primaveras que completo esta sexta-feira.

__________________________________
Educadora e escritora, Isabel Furini escreve poemas desde criança. Suas poesias foram premiadas no Brasil, na Espanha e em Portugal. Já possui mais de 30 livros publicados. Foi nomeada Embaixadora da Palavra pela Fundação Cesar Egido Serrano (Espanha); Embaixadora da Rima Jotabé, Espanha; recebeu Comenda Ordem de Figueiró e foi nomeada Embaixadora Internacional e Imortal da Poesia pela Academia Virtual de Letras, Artes e Cultura do Brasil, em 2015. Participou de antologias na Argentina, no Brasil, no Chile e em Portugal.

Jaime  Vieira é professor de línguas e literaturas portuguesa e inglesa, é autor   dos   livros:   “Desencontros”,   “Ecos   e   Gritos”,   “Reencontro”,   “Outonos”,“Reencanto”, e “Asas”. Tem 36 prêmios literários, alguns deles são internacionais. Escreveu   durante   anos   a   coluna   literária   “Sinal   Verde”,   para   vários   jornais   de Maringá,   também   apresentou   o   programa   “Jaime   Viera”   pela   rádio   cultura   de Maringá.  É   membro  da  UBE  (União Brasileira  dos   Escritores   São- Paulo/SP)  e membro fundador da Academia De Letras de Maringá. Atualmente é vice-presidente da Unijore – União dos jornalistas e escritores de Maringá. 

José Feldman nasceu em São Paulo/SP, radicou-se na cidade de Maringá/PR. Poeta, trovador, escritor e gestor cultural, foi membro da União Brasileira dos Trovadores (UBT)/SP, Casa do Poeta Lampião de Gaz e Ordem Nacional dos Escritores. Vice-presidente da ALIUBI (Ubiratã/PR), Delegado da UBT Ubiratã/PR, membro da UBT/Maringá, auxiliar de delegado da UBT Arapongas/PR, atual presidente da Academia de Letras do Brasil/Paraná desde 2009, conselheiro internacional do Movimento União Cultural, acadêmico da AVIPAF, acadêmico da Academia de Letras de Teófilo Otoni, Academia Formiguense de Letras, Academia de Letras Brasil – Suiça, em Berna, membro da Sociedade Mundial de Poetas, entre outras. Premiado em diversos concursos de Trovas e de Poesias, criador do blog Singrando Horizontes, organizador e editor de e-books e e-revistas literárias. Possui dois livros de trovas de sua autoria. Recebeu honrarias por seu trabalho em prol da literatura de diversas academias do Brasil e do exterior. Título de Doutor Honoris Causa da Academia de Letras do Brasil, comenda da Academia Pan Americana de Letras e Artes, comenda Euclides da Cunha da ALB-Suiça, a mais alta honra destas duas academias. Prefaciou livros de escritores de Curitiba/PR e Vila Velha/ES.
(José Feldman)

Primavera


OLAVO BILAC

Primavera

Ah! quem nos dera que isto, como outr'ora,
Inda nos comovesse ! Ah! quem nos dera
Que inda juntos pudéssemos agora
Ver o desabrochar da primavera!

Saiamos com os pássaros e a aurora.
E, no chão, sobre os troncos cheios de hera,
Sentavas-te sorrindo, de hora em hora:
"Beijemo-nos! amemo-nos! espera!"

E esse corpo de rosa rescendia,
E os meus beijos de fogo palpitava,
Alquebrado de amor e de cansaço...

A alma da terra gorjeava e ria...
Nascia a primavera... E eu te levava,
Primavera de carne, pelo braço!
________________

Não há mal que seja eterno,
dor não há que sempre dure… 
– Não deixa tristeza o inverno
que a primavera não cure!
A. A. DE ASSIS 
________________

CASIMIRO DE ABREU

Primaveras

I

A primavera é a estação dos risos.
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.

Na primavera tudo é viço e gala,
Trinam as aves a canção de amores,
E doce e bela no tapiz das flores
Melhor perfume a violeta exala.

Na primavera tudo é riso e festa,
Brotam aromas do vergel florido,
E o ramo verde de manhã colhido
Enfeita a fronte da aldeã modesta.

A natureza se desperta rindo,
Um hino imenso a criação modula
Canta a calhandra, a juriti arrula,
O mar é calmo porque o céu é lindo

Alegre e verde se balança o galho,
Suspira a fonte na linguagem meiga,
Murmura a brisa:- Como é linda a veiga!
Responde a rosa: - Como é doce o orvalho!

II

Mas como às vezes sobre o céu sereno
Corre uma nuvem que a tormenta guia,
Também a lira alguma vez sombria
Solta gemendo de amargura um treno.

São flores murchas:- o jasmim fenece,
Mas bafejado s’erguerá de novo
Bem como o galho do gentil renovo
Durante a noite quando o orvalho desce.

Se um canto amargo de ironia cheio
Treme nos lábios do cantor mancebo,
Em breve a virgem do seu casto enlevo
Dá-lhe um sorriso e lhe intumesce o seio.

Na primavera - na manhã da vida-
Deus às tristezas o sorriso enlaça,
E a tempestade se dissipa e passa
A voz mimosa da mulher querida.

Na mocidade, na estação fogosa,
Ama-se a vida- a mocidade é crença,
E a alma virgem nesta festa imensa,
Canta, palpita, s’ xtasia e goza.
________________

Triste, lembro a primavera 
cheia de luz e alegria, 
em que tendo a vida à espera, 
eu sonhava e não vivia!
CAROLINA RAMOS 
________________

MARIA NASCIMENTO SANTOS CARVALHO

Primavera

Naquele dia 23 de setembro 
dia ficou maravilhosamente claro, 
o céu, levemente colorido, 
ornamentado de nuvens de brinquedo, 
que se faziam e se desfaziam 
num abrir e fechar de olhos. 

As flores se tornaram mais viçosas 
e desabrocharam antes dos primeiros raios de sol. 

A lua nova, 
que mais parecia um traço de giz 
na tela do firmamento, curiosa, 
fingiu que esqueceu de se recolher na hora marcada, 
e olhava, sonolentamente a transformação da Natureza. 

As estrelas se abalroavam, 
por trás das cortinas do espaço, 
extasiadas com a paisagem celeste 
e, de vez em quando, 
desfilavam entre uma e outra nuvem de brinquedo... 

O mar vestiu-se de calmaria 
para esperar o alvorecer da Primavera... 
Havia música no ir-e-vir das vagas 
que davam cambalhotas, rodopiavam graciosamente 
e se enroscavam nas espumas rendadas, 
imaculadamente brancas, 
do mar de águas mornas e insinuantes. 

O Sol, convidado de honra, 
acordou mais cedo, tomou banho de cheiro, 
e desengavetou sua roupa de gala, 
há meses fora de uso, 
para recepcionar o surgir do novo dia, 
o desabrochar da nova Estação. 

Timidamente, numa curva distante, 
um arco-íris se fez presente, 
com seus lindos anéis coloridos, 
para dar um encanto especial 
à longínqua esquina do infinito. 

E, naquele dia 23 de setembro, 
até as águas-vivas que anunciam perigo no mar, 
se tornaram amigas, sensíveis e inofensivas, 
Porque era o dia da chegada da Primavera...
________________

Nossa retina é quem sente
quanto a natureza é bela…
na primavera, silente,
as flores falam por ela!
FRANCISCO JOSÉ PESSOA 
________________

ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG

Poeminha à Primavera III

A vida em traje a rigor
Está pronta para a festa...
Durou um ano de espera
O mundo multicolor
Que nos trouxe a PRIMAVERA!

Que essa estação tão linda
Desperte também o amor,
Fazendo brotar na gente
Um mundo cheio de luz,
O desejo mais ardente, 
O querer mais envolvente
Que nos encanta e seduz.
________________

Todo amor se circunscreve 
às ações puras, sinceras. 
Assim, colhemos, de leve, 
as mais belas primaveras. 
WAGNER MARQUES LOPES 
________________

ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG

Primavera

A primavera nasce deslumbrante,
Florindo o mundo, dando cor a vida,
Ela que estava há tão pouco escondida
Surge agora como um sol irradiante.

Em cada flor o perfume do querer,
Cada matiz só beleza e esplendor,
Dentro da alma a razão de entender
Criação... criatura...CRIADOR!

Que em prece possamos agradecer,
A beleza que podemos assistir,
- O milagre colorido a explodir - !

Que a humanidade possa então viver,
Imensa paz, muita ternura e amor,
Q' em cada mão haja sempre uma flor!
________________

Sê, na vida, paciente
ante as agruras da espera
feito os ramos que somente
florescem na Primavera.
ANTONIO JURACI SIQUEIRA 
________________

HILDA PERSIANI

Primavera

Meu Deus! Que festa!
Os pássaros gorjeando,
As borboletas em bando,
Que alegria será esta?

-É a primavera que está voltando:
Um colorido mais lindo
De belas flores se abrindo,
Com seu perfume exalando.

Ao vê-las, fico sorrindo,
O inverno vai se despedindo,
Dando a ela seu lugar.

A primavera da vida,
Essa fase tão querida,
Passa e nunca mais torna a voltar!...

Monteiro Lobato (O Luzeiro Agrícola)


Sizenando Capistrano é o inspetor agrícola do vigésimo distrito. Incumbe-lhe fomentar a pecuária, elaborar relatórios, ensinar o uso de máquinas agrícolas, preconizar a policultura, combater a rotina e ao fim de cada mês perceber na coletoria a realidade de setecentos mil-réis.

Antes de inspetor Capistrano fora poeta. Cultivara as musas. Não sabia que coisa era pé de café, mas entendia de pés métricos, pés-quebrados e fazia pé de alferes a todas as divas do Parnaso. Tal cultura, entretanto, emagrecia-o. A sua produção de hendecassílabos, alexandrinos, quadras, odes, sonetos, poemas, vilancetes, églogas, sátiras, anagramas, logogrifos, charadas elétricas e enigmas pitorescos, conquanto copiosa, não lhe dava pão para a boca, nem cigarro para o vício. A palidez de Capistrano, sua cabeleira à Alcides Maia, sua magreza à Fagundes Varela, seu spleen à Lord Byron e suas atitudes fatais, ao invés de lhe aureolarem a face dos nimbos da poesia, comiseravam o burguês, que, ao vê-lo deslizar como alma penada pela cidade, horas mortas, de mãos no bolso e olho nostalgicamente ferrado na lua, murmurava condoído:

— Não é poesia, não, coitado, é fome...

O editor artilhava a cara de carrancas más quando Capistrano lhe surgia escritório adentro com a maçaroca de versos candidatos à edição.

— São versos puros, senhor, versos sentidos, cheios de alma. Virão enriquecer o patrimônio lírico da humanidade.

— E arruinar o meu patrimônio econômico — retorquia a fera. — Do lirismo bastam-me aquelas prateleiras que editei no tempo em que era tolo e não se vendem nem a peso.

— Ó vil metal! — murmurava o poeta, franzindo os lábios num repuxo de supremo enojo. — Ó mundo vil! Ó torpe humanidade! Em que te distingues, Homem, rei grotesco da criação, do suíno toucinhento que espapaça nos lameiros? Manes de Juvenal! Eumênides! Musas de Cólera! Inspirai-me versos candentes com que cauterize até aos penetrais da alma este verme orgulhoso e mesquinho! Baudelaire, dá-me os teus venenos...

— Rapazes — berrava o livreiro à caixeirada —, ponham-me este vate no olho da rua!

Ante o manu militari irretorquível, o poeta apanhava a papelada lírica e moscava-se para a zona neutra do passeio, onde, readquirida altivez ossiânica, objurgava para dentro da loja hostil:

— A Posteridade me vingará, javardos!

E sacudia à porta do editor o pó das suas sandálias, que no caso eram surradas e já risonhas botinas de bezerro. Em seguida, remessando para trás a cabeleira, num repelão, ia fincar-se sinistramente à esquina próxima, em torva atitude, à espera dum conhecido esfaqueável, a quem, com gestos soberbos de Bergerac, extorquisse um níquel.

Cansado, entretanto, de ouvir estrelas em jejum, de amar a lua no céu sem possuir um queijo na terra, acatou a voz do estômago e quebrou a lira — para viver. Meteu a tesoura nas melenas, deu brilho aos sapatos, desfatalizou o semblante, substituiu o ar absorto do aedo pelo ar avacalhado do pretendente, e à força de pistolões guindou-se às cumeadas do Morro da Graça.(1) Todo mundo o recomendou ao Gaúcho Onipotente, porque todos andavam fartos daquela perpétua fome lírica a deambular pelas ruas, caçando rimas e filando cigarros. 

Que fosse acarrapatar-se ao Estado. O Estado é um boi gordo, semelhante àquela estátua equestre de Hindenburg, feita de madeira, em que os alemães pregavam pregos de ouro. A diferença está em que no Estado, em vez de tachas de ouro, pregam-se Capistranos vivos.

Foi apresentado ao Pinheiro.

— Então, menino, que quer?

— Um empreguinho qualquer que Vossa Onipotência haja por bem conceder-me.

— E para que presta você, menino?

— Eu? Eu... fui poeta. Cantei o amor, a Mulher, a Beleza, as manhãs cor-de-rosa, as auroras boreais, a natureza, enfim. Romântico, embriaguei-me na Taverna de Hugo. Clássico, bebi o mel do Himeto pela taça de Anacreonte. Evoluído para o parnasianismo, burilei mármores de Paros com os cinzéis de Herédia. Quando quebrei a lira, estava ascendendo ao cubismo transcendental. Sim, general, sou um gênio incompreendido, novo Asverus a percorrer todas as regiões do ideal em busca da Forma Perfeita. Qual Prometeu, vivi atado ao potro do Inania Verba, onde me roeu o Abutre da Perfeição Suprema. Fui um Torturado da Forma...

O general, que era amigo das belas imagens, iluminou o rosto de um sorriso promissor.

— Poeta — disse ele —, eu também sou poeta. Rimo homens. Componho poemas herói-cômicos. Conheces a Hermeida? É obra minha. Amo as belas imagens e tenho lançado algumas imortais. “A mulher de César!” “Os levitas do Alcorão!” Hein? Tu me caíste em graça e, pois, acolho-te sob o meu pálio. Que queres ser?

— Inspetor.

— De quarteirão?

— Isso não.

— Agrícola?

— Ou avícola...

— De que região?

— Não faço questão.

— Sê-lo-ás do vigésimo distrito. Conheces as culturas rurais?

— Já cultivei batatas gramaticais.

— E de pecuária, entendes? Distingues um Zebu dum galo Brama? Um pampa dum murzelo?

— Já cavalguei Pégaso em pelo.

— Conheces a suinocultura? Sabes como se cria o canastrão?

— Sei trincá-lo com tutu de feijão.

— És um gênio, não há que ver. Talvez faça de ti, um dia, presidente da República. Teu nome?

— Sizenando. Capistrano é sobrenome.

— Cá me fica. Vai, que estás aí, estás fomentando a agricultura como inspetor do vigésimo distrito, com setecentos bagos por mês. Os poetas dão ótimos inspetores agrícolas e tu tens dedo para a coisa. Vai, levita do Ideal…

II

Sizenando Capistrano, mal se pilhou transformado de famélico ouvidor de estrelas em peça mestra do Ministério da Agricultura... casou, luademelou três meses e por fim compareceu perante o ministro para saber em que rumos nortear a sua atividade.

O ministro franziu a testa: é tão difícil dar ocupação aos fósforos ministeriais... Pensou um bocado e:

— Escreva um relatório — sugeriu.

— Sobre que, Excia.?

— Sobre qualquer coisa. Relate, vá relatando. A função capital do nosso ministério é produzir relatórios de arromba sobre o que há e o que não há. Relate.

— Mas, Excia., eu desejava ao menos uma sugestãozinha emanada do alto critério de V. Excia., sobre o tema do relatório que a bem da lavoura V. Excia., com tanto descortino, me incumbe de escrever...

— Já disse: sobre qualquer coisa que lhe dê na veneta. Relate, vá relatando e depois apareça.

Sizenando saiu tonto com os processos expeditos do doutor Grifado (2) com assento na pasta, e passou três meses de papo ao ar, procurando uma tese conveniente.

Como por essa época a lua de mel entrasse em plena minguante, houve certo dia rusga brava ao jantar, e a consorte, mulherzinha de pelo crespo no nariz, pespegou-lhe pela cara com um prato de salada de beldroega. Tal o célebre estalo que abriu a inteligência do padre Antônio Vieira em menino, aquele obus culinário teve a estranha ação de iluminar os refolhos cerebrais do inspetor.

— Eureca! — berrou ele radiante. E com um grande riso de gozo na cara emplastada de verdura, ergueu-se da mesa precipitadamente e correu ao escritório. A mulherzinha, entre colérica e pasmada, perguntou de si para si:

— Estará louco?

Sizenando deitou mãos à tarefa e levou a cabo um estudo botânico-industrial da beldroega, com afã tal que, transcorridos dez meses, dava a prelo o Relatório sobre o Papalvum brasiliensis, vulgo beldroega, e sua aplicação na culinária. 

O ano seguinte gastou-o em rever as provas do calhamaço, a modo de escoimá-lo dos mínimos vícios de linguagem. O antigo torturado da Forma ressurtia ali... Saiu obra papa-fina, em ótimo papel e com muitas gravuras elucidativas. Entre estas, em belo destaque, os retratos do ministro e do diretor da Agricultura, do Marechal Hermes, do tenente Pulquério, do Frontim, do Pinheiro e mais protuberantes beldroegas do momento. Pronta a edição, embaraçou-se Sizenando quanto ao destino a dar-lhe. Que fazer de tanta beldroega?

Foi ao ministro.

— Excelência! De acordo com as sábias ordens de V. Excia., venho comunicar a V. Excia. que se acha pronta a edição do relatório sobre o Papalvum.

— Que papalvo? Que relatório? — inquiriu o ministro, deslembrado.

— O que V. Excia. me incumbiu de escrever.

— Quando?

— Haverá dois anos.

— Não me recordo, mas é o mesmo. Mande a papelada para o forno de incineração da Casa da Moeda.

Sizenando abriu a maior boca deste mundo. Compreendendo aquela estuporação, o ministro sorriu.

— Então? Que queria que eu fizesse de cinco mil exemplares de um relatório sobre a beldroega? Que o pusesse à venda? Ninguém o compraria. Que o distribuísse grátis? Ninguém o aceitaria. Se é assim, se sempre foi assim, se sempre será assim com todas as publicações deste ministério, o mais prático é passar a edição diretamente da tipografia ao forno. Isso evitará a maçada de nos preocuparmos com ela e de a termos por aí a atravancar os arquivos. Não acha vossa senhoria que é o mais razoável? Retire o que quiser e forno com o resto.

— E depois, que devo fazer? — indagou Sizenando, ainda tonto com o expeditismo ministerial.

— Escrever outro relatório — respondeu sem vacilar o ministro.

— Para ser queimado novamente? — atreveu-se a murmurar o poeta inspetor.

— Está claro, homem! Para que diabo despendeu o Governo tanto dinheiro na montagem do forno? Está claro que para incinerar as notas velhas e os relatórios novos. Deste modo se conservam em perpétua atividade o pessoal da Imprensa, o do Forno e o dos Ministérios. Veja como é sábia a nossa organização administrativa! A montagem do forno foi a melhor ideia do Governo passado. Antes dele a Imprensa Nacional vivia entulhada de impressos; a produção de relatórios, função capital deste ministério, periclitava; e era tudo uma desordem, um desequilíbrio capaz de induzir o Governo à supressão da Imprensa e do meu ministério. O forno sanou a situação. O fervet opus é magnífico e a espada de Dámocles está para sempre arredada de nossas cabeças. Hein? Vá. Escreva outro relatório, sobre... sobre... o caruru, por exemplo.

Sizenando deixou o gabinete do ministro profundamente meditativo. S. Excia. derrancara-o! Viu com dor de alma as chamas do Forno lerem aquele relatório tão bem acabadinho, tão de encher o olho... E sacou seis meses de licença com vencimentos para descansar.

Esgotada a licença, ia Sizenando começar a pensar em preparar-se para escolher o papel e a tinta com que relatasse o caruru quando a política apeou da administrança o doutor Grifado. Sizenando deixou que transcorressem mais seis meses, ao termo dos quais se apresentou ao novo ministro para lhe sondar a orientação.

O novo ministro era bacharel em ciências jurídicas e sociais, ex-chefe de polícia e tão entendido em agricultura como em arqueologia inca. Mas lera uns números de Chácaras e Quintais e ali se abeberara de umas tantas noções sobre avicultura, policultura, criação de canários etc. Fez dessas uras o seu programa. 

No discurso de apresentação, ao empossar-se no cargo, emitiu os seguintes conceitos, louvadíssimos pelos circunstantes, empregados no ministério quase todos e verdadeiros hortaliças em matéria agrícola.

— A monocultura, senhores, é o grande mal; a policultura é o grande bem; no dia em que produzirmos cebola, alho, batata, repolho, coentro, alpiste, cerefólio, grão-de-bico, tremoço, quiabo, espargo, espinafre, alcachofra...

(Um arrepio de entusiasmo percorreu a espinha dos assistentes, que se entreolharam gozosos, como quem diz: Temos homem pela proa!)

— ... cebolinha, couve-flor, sorgo, soja amarela, centeio, aveia, figos da Trácia, uvas de Corinto, violetas de Parma...

— Bravíssimo!

— ... violetas de Parma... e outros cereais europeus (vermelhidão no rosto), a prosperidade nacional se assentará num soco basáltico, do qual não a arrancarão as mais rijas lufadas dos vendavais econômicos. Conduzir a pátria a essa Canaã da policultura: eis a mira permanente dos meus esforços, eis o meu programa, eis o fim supremo colimado pela minha atividade. Espero, pois, que etc. etc.

Palmas, bravos, guinchos, silvos e outros sons denunciadores de entusiasmo em grau de ebulição estrugiram pela sala. O ministro foi abraçado e beijado — nas mãos. Aquele salvaria a pátria, não havia a menor dúvida! 

O novo ministro da Agricultura era positivamente uma águia — igual às anteriores. Tinha programa. Visava confundir a rotina monocultora com demonstrações práticas das magnificências da policultura mecânica.

Sizenando recebeu ordem de ir desatolar a vigésima região do atascal da rotina. Aquela gente ainda vivia em pleno período da pedra lascada do café; era mister tangê-la à estação áurea da policultura, da avicultura, da sericultura, da criação de canários hamburgueses etc., preluzida no discurso do ministro.

Chegando à sede do distrito, com séquito numeroso e abundante farragem mecânica, Sizenando distribuiu convites para a inauguração dum curso prático. Escolheu para campo de demonstração um “rapador” a um quilômetro da cidade, e lá, no dia emprazado, reuniu os convivas. Veio o prefeito municipal, o porteiro da Câmara, o coletor federal, o promotor público, três jornalistas, quatro professores, o diretor do grupo escolar com a meninada, o vigário da paróquia, o fiscal da iluminação pública, o zelador do cemitério, o carcereiro, dois guarda chaves da Central, cinco inspetores de quarteirão, o delegado, o cabo do destacamento — e um fazendeiro recém-despojado da sua propriedade por dívidas. A turma docente e os bois do arado formavam grupo à parte.

Sizenando trepou a um cupim e pronunciou breve alocução alusiva à personalidade sobre-excelente do ministro, e ao papel dos novos métodos racionais na agricultura moderna.

— O novo método, meus senhores, é baseado na ciência pura. Vem dos laboratórios de braços dados à química. Começarei pela demonstração do arado, ou charrua, a pedra angular de todo o progresso agrícola. Senhor Primeiro Arador, arado para a frente!

Despegou-se da turma um capataz, que empurrou para perto do cupim tribunício um belo arado de disco. Rodearam-no os circunstantes, como a um animal raro.

— Eis, meus senhores, um arado de disco. Esta parte se chama cabo; esta é a roda, serve para rodar; estas rodelas são os discos, servem para sulcar a terra; este ferrinho é a manivela graduadora; este pauzinho é o balancim. Aqui se atrelam os bois e cá toma assento o condutor.

A assistência abria a boca.

— Vejamos-lo agora em ação. Senhor Primeiro Condutor de Primeira Classe, atrelar!

Adiantou-se da turma um carreiro e tangeu os bois para a máquina, jungindo-os à canga. Os assistentes riram-se. Acharam imensa graça no Tomé Pichorra, que nunca fora senão o Tomé Pichorra, carreiro, transformado em Primeiro Condutor de Primeira Classe! Era de primeiríssima.

— Senhor Primeiro Arador, arar!

O Primeiro Arador saltou à boleia e empunhou as manivelas. O Primeiro Condutor aguilhoou a junta de bois.

— ‘amo, Bordado! Puxa, Malhado!

Os dois caracus moveram-se pesadamente. A terra, sulcada pelo ferro, abriu-se em leivas. Sizenando exultou.

— Vejam, senhores, que maravilha! Faz o trabalho de vinte homens, além de que deixa a terra desatada, com grande receptividade para a meteorização atmosférica — o que equivale a um adubamento copioso.

Este pedacinho encantou sobremodo ao zelador do cemitério, o qual não conteve um sincero “Muito bem!”.

Sizenando agradeceu com um gesto de cabeça. O arado deu umas tantas voltas e emperrou. A banda de música, para disfarçar a entaladela, rompeu o Vem cá mulata. E assim terminou a primeira parte da bela demonstração agrícola.

A segunda constituiu no destorroamento e no gradeamento da terra, feitos com o mesmo luxuoso aparato. Havia Primeiro e Segundo Destorroador, Primeiro e Segundo Gradeador. Um mimo de hierarquia!

Ao terminar o serviço, a banda zabumbou um tanguinho. A terceira parte foi absorvida pelo plantio de cebolas, batatas, alho, alfafa e outras salvações nacionais.

— Os senhores verão — concluiu Sizenando — que maravilhosa messe vai brotar, farta, deste torrão sáfaro e ingrato só porque aplicamos sumariamente os processos modernos da cultura racional, os quais centuplicam a produção e diminuem o trabalho. A máquina agrícola é a verdadeira alavanca do progresso! 

— Protesto! A alavanca do progresso sempre foi a imprensa — contraveio um jornalista, cioso da velha prerrogativa.

— Será — retrucou Sizenando —; mas se uma, a imprensa, alçaprema o progresso moral, a outra, a máquina agrícola, alçaprema o progresso econômico!

— Bravíssimo! — rugiu o zelador do cemitério, inimigo pessoal do Zé Tesoura. — Isto é que é!

— Sim, senhor, muito bem! — grunhiram outros.

Rubro de gozo pelo sucesso da tirada, Capistrano espichou o dedo para a filarmônica, a pedir o hino nacional.

Desbarretaram-se todos. Ereto sobre o pedestal de cupim, Capistrano imobilizou-se em atitude de religiosa unção, de olhos fixos no futuro da pátria. E à derradeira nota pôs fim à festa com um escarlate viva à República com três “erres”.

Acompanharam-no, como um eco, o coletor, o zelador do cemitério, o agente do correio e os funcionários federais demissíveis, além dos bois, que mugiram.

Meses mais tarde procedeu-se à colheita. As cebolas haviam apodrecido na terra, devido às chuvas; os alhos vieram sem dentes, devido ao sol; as batatas não foram por diante, devido às vaquinhas; as outras “policulturas” negaram fogo devido à saúva, à quenquém, à geada, a isto e mais aquilo.

Não obstante, seguiu para o Rio um soporoso relatório de trezentas páginas onde Capistrano, entre outras maravilhas, notava: “Os resultados práticos do nosso método demonstrativo in loco têm sido verdadeiramente assombrosos! Os lavradores acodem em massa às lições, aplaudem-nos com delírio e, de volta às suas terras, lançam-se com furor à cultura poli, em tão boa hora lembrada pelo claro espírito de V. Excia. O Senhor Ministro pode felicitar-se de ter aberto de par em par as portas da idade de ouro da agricultura nacional”.

Os jornais transcreveram com garbos estes e outros pedacinhos de ouro. E o conde de Afonso Celso se encheu de mais um bocado de ufania por este nosso maravilhoso país.
__________________________
Notas:
[1] Residência do general Pinheiro Machado, o mandão da política na época.

[2] Um ministro da Agricultura da época que não era doutor mas não protestava contra o tratamento.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.