quarta-feira, 1 de abril de 2020

Ruth Guimarães (Artes de Branca-Flor)


 Havia um moço que gostava muito de jogar. Aos conselhos dos mais velhos, costumava dizer que perdia apenas o seu dinheiro e que isto não é muita coisa.

– Perde mais – dizia-lhe o velho pai. – Perde dinheiro, noites de sono, o tempo, a vergonha. E um dia perderá a alma.

O moço ria e continuava frequentando as casas de jogo todas as noites.

Um dia, depois de ter perdido tudo, ao jogar com um sombrio parceiro mal-encarado, não tendo mais o que jogar, ouviu espantado esta proposta:

– Se quiser continuar, eu caso mil escudos com a sua sombra.

– Com o quê?

– Com a sua sombra.

O moço pensou por um momento.

– Ora! A minha sombra não me fará grande falta. Até hoje não me serviu de nada.

Jogou e perdeu.

O parceiro enfiou a sombra num saco e antes de partir, falou:

– Se você quiser reaver o que perdeu, procure por mim na montanha Negra, daqui a um ano e um dia.

Muito perturbado, o moço foi para casa. O pai, que o achou mais sombrio que de costume, falou:

– Que aconteceu?

E o moço não queria contar. Mas não tardou que toda a gente soubesse e reparasse que ele não tinha sombra, que o deixou muito mal visto no povoado, e fazia com que todos o apontassem com o dedo, por onde quer que andasse. Aí ele compreendeu que a sombra fazia muita falta. Ademais o pai lhe dizia:

– Estás vendo? Você perdeu a alma. Era o diabo o seu parceiro. Carregou a sua sombra. Carregou a sua alma. Ah! infeliz.

Apavorado, o moço resolveu procurar a sombra na tal montanha Negra, e pôs-se a caminho.

Chegou à montanha Negra, encontrou a casa do diabo, que era realmente aquele seu mal-encarado parceiro, e pediu-lhe a sombra.

– Ah! Sim, pois não. Dou-a se você plantar uma fila de bananeiras de manhã, e à tarde você colher, nessas mesmas bananeiras, bananas maduras para o jantar.

O moço foi para a roça do diabo, sentou-se num toco e começou a chorar. Avaliava agora a sua pouca sorte, e como o jogo tinha sido a sua perdição.

Ora, o diabo tinha uma filha muito bonita, chamada Branca-Flor. Branca-Flor espiou pelas aberturas do mato o moço sentado no tronco caído e gostou dele. Apareceu-lhe e falou:

– Não tem nada, não. Deite-se aqui no meu colo.

Aninhou a cabeça do moço no colo, pegou a catar-lhe cafuné, a conversar com ele, perguntando muitas coisas, de mansinho, até que ele adormeceu. Então, arredou-lhe a cabeça, plantou as mudas, e se escondeu. Quando o moço acordou, muito assustado, pensando que nada tinha feito, e nas desgraças que iam lhe acontecer, viu as bananeiras plantadas, com os cachos madurinhos pendendo. Muito alegre, apanhou as bananas e levou-as ao patrão. Este não desconfiou, mas a mulher dele, que era mais esperta, disse:

– Isto são artes de Branca-Flor.

No outro dia, quando o moço pediu a sombra, o diabo arranjou outra prova: deu-lhe um saquinho de feijão verde.

– Plante este feijão. Que ele brote e cresça, e feijão para o meu virado até de tarde. Senão…

O moço ainda não tinha voltado bem do espanto pelo que tinha acontecido na véspera. Foi para a roça mais triste e acabrunhado do que antes.

– Hoje eu não escapo.

Sentou no mesmo cepo e começou a chorar. Apareceu-lhe a moça bonita da véspera, aninhou-lhe a cabeça no colo, e começou a catar cafuné no seu cabelo até que ele dormiu.

A tarde, enroscavam-se nas estacas os cipós de feijão, com as vagens granadas, no ponto de colher. Radiante, o moço apanhou os feijões e levou deles uma peneira cheia ao diabo. O diabo aceitou o trabalho, mas a mulher, desconfiada, resmungou:

– Aqui andam artes de Branca-Flor.

No outro dia, mal o moço abriu a boca para falar da sombra, o diabo já falou:

– Atirei um anel no mar. Procure-o e traga-o aqui. Senão…

O moço foi para a praia, e, sentado num montinho de areia, começou a chorar. Apareceu Branca-Flor, chamou um peixinho, pediu-lhe o anel, e logo veio de volta o pequeno mensageiro de rabo de prata, com o anel na boca.

Então, o diabo também começou a desconfiar de tanta habilidade e resolveu matar o moço – com pretexto ou sem ele, e mais a filha que o tinha feito de bobo.

Fez uma cara muito hipócrita, devolveu-lhe a sombra, e falou:

– Pode ir embora amanhã.

Branca-Flor adivinhou tudo e se preveniu.

Pôs na cama do moço e na dela dois potes de barro cheios de vinho. Pegou um punhado de cinzas frias do fogão, um punhado de agulhas da caixa de costura, e um pedaço de sabão de cinza da despensa. Foi muito de mansinho procurar o moço que se sentara a um canto, meditando, e disse:

– Fujamos, que meu pai quer nos matar. Ele tem dois cavalos muito bons: um castanho e um preto. O castanho é rápido como o vento. Vá à cocheira e pegue o outro, que é rápido como o pensamento.

Em seguida, cuspiu três vezes no fogão, deu ao rapaz os embrulhinhos com as agulhas, o sabão e a cinza, para guardar, montaram e fugiram.

Já estavam longe quando repararam que o moço no escuro tinha selado o cavalo errado. Estavam fugindo no cavalo rápido como o vento. Era perigoso voltar, e Branca-Flor resolveu tocar para diante.

– Não faz mal, vamos neste mesmo. Até que papai descubra, estaremos longe.

Entrementes, na casa do diabo, todos se acomodaram. Deitou-se o diabo na sua cama de chamas, como uma salamandra. Deitou-se a mulher. Deitaram-se os diabos e diabinhos. Ficou tudo quieto. Quando nos grandes relógios dos salões silenciosos começaram a soar as badaladas da meia-noite, o diabo ergueu a cabeça do travesseiro e chamou: “Branca-Flor!”

Um cuspo no fogão respondeu:

– Já vou.

O diabo deitou e esperou. Esperou quase uma hora. E então tornou a chamar: “Branca-Flor!”

Outro cuspo respondeu com voz mais fraca:

– Já vou.

Esperou um pouco e chamou pela terceira vez: “Branca-Flor!”

Outro cuspo respondeu com voz mais fraca ainda, como de quem está quase dormindo:

– Já vou.

O diabo deixou passar mais um pouco e tornou a chamar. Ninguém respondeu. Aí ele se levantou, pegou um pau e foi à cama do moço e malhou até que viu escorrer o que julgou ser sangue. Foi à cama da filha e bateu até ouvir o rumor do que parecia ossos quebrando. Voltou para a cama e a mulher perguntou:

– Estão mortos?

– Estão sim. Escorreu sangue.

– Estão mortos mesmo? Você verificou?

– Os ossos estalaram.

A mulher não acreditou e foi ver. E viu: potes quebrados, vinho escorrendo, e nem sinal, nem do moço, nem da moça.

– Fugiram! – gritou.

Descoberto o logro, o diabo correu à cocheira, selou o cavalo preto e saiu atrás deles. Estava quase alcançando os fugitivos, quando Branca-Flor, olhando para trás, avistou a nuvem preta que vinha que vinha.

– Papai vem ai — avisou a moça. – Atire para trás o punhado de cinzas.

O moço assim fez e logo se formou um nevoeiro que baixou tão espesso como uma cortina. Não se enxergava nada. O diabo andou daqui, dali, pererecando, até que conseguiu passar. Quando estava pertinho outra vez, o moço, a mando de Branca-Flor, atirou o sabão. Formou-se um atoleiro de tijuco preto, tão grudento, que o diabo suou para escapar. Saiu dele enfezado, e foi outra vez atrás dos moços. Quando estava quase a alcançá-los pela terceira vez, o moço jogou as agulhas. Formou-se um espinheiro tão cerrado, que o diabo, aí, não teve remédio senão voltar. Chegou ao inferno e encontrou a diaba furiosa.

– Mulher – explicava ele todo atrapalhado. – Eu não pude atravessar o espinheiro…

– Que espinheiro? Que mané espinheiro o quê?! Aquilo era um punhado de agulhas. Se você não fosse tão besta, tinha passado.

O diabo tornou a montar, louco da vida, e foi perseguir os moços de novo.

Branca-Flor olhou para trás e viu a nuvem preta. Vinha que vinha. Ela transformou então o cavalo num lago, os arreios numa barca, o moço num pescador e ela mesma num cisne branco. O diabo chegou ao rio, perguntou ao pescador se tinha visto um moço e uma moça, assim assim, montados num cavalo alazão. O pescador nada respondia. Aí, o diabo, danado com o pouco caso dele, voltou ao inferno. Branca-Flor desmanchou a mágica, montaram de novo e galoparam para a frente, no seu cavalo escuro, rápido como o vento. Mas a mulher do diabo atiçou-o:

– Bobo de uma figa! Não viu que o moço era o barqueiro e Branca-Flor, o cisne branco?

O diabo montou e saiu.

– Desta vez trago aqueles dois de qualquer jeito.

– Melhor matá-los no caminho – insinuou a diaba.

– Ou isso.

Quando chegou ao lugar onde estivera o rio, cadê o rio? Voou ligeiro, pelo espaço, andando pelo mundo todo, em sua procura. Quando Branca-Flor olhou para trás, viu a nuvem preta. Vinha que vinha, feia em cima deles.

Então ela transformou o cavalo e os arreios numa roseira, ela numa rosa vermelha e o moço num beija-flor. O diabo passou, olhou as roseiras e a rosa e o pássaro, nem desconfiou. Correu mundo no seu cavalo veloz como o pensamento e não encontrou ninguém. Voltou ao inferno, e a mulher, assim que o viu, foi logo gritando:

– Bocó! Bocó de fivela! Não viu uma roseira, com uma rosa vermelha?

– Bem bonita disse o diabo.

– Não seja bobo! A rosa era Brança-Flor, e o beija-flor, o moço. Volte e traga os dois!

O diabo foi, mas Branca-Flor, e o moço, e a roseira e o beija-flor, tudo tinha sumido. Lá adiante, passou por uma igreja e o padre estava na porta, puxando a corda do sino:

– Seu Padre! Não viu um moço e uma moça, montados num cavalo alazão?

O padre dizia:

– É hora da missa.

E tocava o sino: – delém, delém…

– Seu Padre, estou perguntando…

– É hora da missa…

Delém, delém, delém.

E o diabo foi para o inferno.

Não adiantou a diaba gritar, ralhar, pintar os canecos com ele.

– Já estou cansado. Não vou mais atrás de ninguém. Vá você.

Branca-Flor e o moço seguiram viagem. Nunca mais que viram a nuvem preta.

– Meu pai desistiu – ela falou. E riu.

Com pouco, chegaram a uma cidade. Ela ficou escondida à beira do caminho, e o moço foi à cidade, procurar trabalho, para depois levá-la com ele. Antes que fosse, Branca-Flor deu-lhe um anel, e disse:

– Não tire este anel do dedo…

– Nunca?

– Nunca. Senão você me esquece.

– Não tiro — o moço prometeu.

E foi embora.

Andou muito pela cidade, perguntando se havia trabalho, até que foi dar na casa de uma família muito rica. Ajustou de trabalhar lá. Logo no primeiro dia, esqueceu a recomendação de Branca-Flor, e tirou o anel para lavar as mãos. No mesmo instante, foi o mesmo que nunca tivesse existido Branca-Flor. Esqueceu-a como esqueceu o diabo, a montanha Negra, o inferno, a perseguição, tudo. Ficou mais de ano na casa. Por fim, namorou uma das moças, filha do patrão, e tratou casamento com ela. E tornou a passar outro ano.

Num mês de maio, muito sereno e claro, ia ser o casamento. Às vezes o moço parava olhando para fora, para as estradas, ou se detinha diante de uma rosa; ou perscrutava o lago, tentando apanhar uma idéia que lhe fugia. Nas vésperas do casamento, apareceu uma moça muito bonita e pediu para fazer os doces do dia.

– Sou doceira como não há igual no mundo.

A cozinheira experimentou o serviço dela, achou que era assim mesmo, como a moça dizia, e ela principiou o trabalho. Fez manjares finos, cocadinhas, furrundum e pé-de-moleque, papo-de-anjo, baba-de-moça, bem-casados, quindim, queijadinha, espera-marido, pudim, bem-bocado, beijinho.

E o bolo. Ah! o bolo. Alto como uma torre, todo branco de neve, e lá em cima a moça botou um casal de bonecos.

Chegou o dia do casamento, e já estavam todos à mesa para o banquete. O noivo e a noiva, nas suas roupas de gala, sentaram-se à cabeceira da mesa. Então a boneca virou-se para o boneco e perguntou:

– Tu não te lembras daquele dia em que meu pai te mandou plantar mudas de bananeiras e eu então te vali?

Os convidados puseram-se a rir. Nunca tinham visto brinquedo tão interessante. Os risos dobraram quando o boneco ensaiou um passo de dança, sacudiu a cabeça e resmungou com voz grossa:

– Não me lembro. Não me lembro.

E a bonequinha, delicadamente, insistia:

– E não te lembras quando meu pai te mandou plantar feijão verde e eu então segunda vez te vali?

– Não me lembro, não me lembro.

– E não te lembras quando meu pai jogou o anel no fundo do mar e eu mandei um peixinho buscar?

– Não me lembro, não me lembro.

– Não te lembras quando meu pai queria nos matar e nós fugimos num cavalo veloz como vento?

– Não me lembro, não me lembro.

– Não te lembras quando viraste um pescador, e eu, um cisne branco?

– Um cisne branco… – murmurou o boneco. – Um cisne branco… Ai! Não me lembro.

– Não te lembras quando viraste um beija-flor e eu, uma rosa vermelha?

– A rosa… – repetiu o boneco, pensativo, com o dedo na testa. – A rosa vermelha. Ai! Não me lembro.

– Não te lembras quando viraste padre e eu a santa que estava no altar?

Nessa hora, o boneco deu um salto e respondeu:

– Já me lembro!

O moço, que estava sentado ao lado da noiva, levantou-se agitado. Lembrara-se de tudo e queria ver a moça que tinha feito os bonecos.

Encontrou-a toda vestida de noiva, casaram-se e foram muito felizes. Houve muito doce, muita música, uma festa de arromba. Eu ia trazer uns doces e repartir com vocês, mas, quando ia passando na ponte, os cachorros do vigário correram atrás de mim e derrubei os doces n’água.

Fonte:
Ruth  Guimarães. Lendas e fábulas do Brasil. 1964.

terça-feira, 31 de março de 2020

Varal de Trovas n. 225


João Batista Leonardo (Um Sábio Disse)


Intrigante conotação nos seres vivos, num mundo mutante onde a analogia se faz marcante, junto ao nascimento, vivência, morte e continuidade. A terra é viva e todos nós vivos fazemos parte do seu ciclo, intrínsecos nos seus desígnios e embrenhados numa correlação, certamente intrigante e interessante à análise.

Um sábio disse, somos iguais a árvore. Temos um princípio no acaso, uma presente vivência e um mesmo fim. As árvores têm raízes fincadas no chão, fundas ou rasas, absorvendo de acordo com o solo abrangente a qualidade dos nutrientes, alimentando e fixando, tanto as resistentes, frondosas ou franzinas. Semelhante a ela, temos raízes fincadas no solo da abrangência luminosa de nossa gema firmamento, onde estão os valores, conceitos e fraquezas; ali nos sustentamos e sugamos os nutrientes físicos e emocionais, forças mantenedoras da continuidade. Quanto mais rico for nosso solo, nossa gema firmamento, tanto mais forte será nossa árvore.

Assim como ela, temos o tronco, variando de tamanho dependendo da árvore praticada. É a parte mais resistente, com ele nos colocamos de pé, resistimos aos ventos, temporais e percalços da vida, produzimos, sustentamos e alimentamos os galhos.

Os galhos são nossos dependentes familiares, profissionais e materiais. Podem ser mais ou menos fortes de acordo com a qualidade dos tempos vividos. Conceito firmado, na formação da família, no valor econômico conseguido, na reputação profissional, primando o mérito na comunidade evidenciado no equilíbrio participativo.

Dos galhos vem a ramagem contendo nossas flores, frutos, sementes e folhas. As flores representam nossas belezas, qualidades, prazeres e o festejo da formação dos frutos. Tanto mais flores, tanto mais frutos, tanto mais belas flores, tanto melhores frutos. Os frutos nos qualificam como produtores, são os resultados da participação efetiva dentro das deliberações tomadas, são os resultados das determinações do arbítrio, são o quinhão de julgamentos. Como na árvore, nossas sementes produzirão descendentes, filhos e netos, firmando nossa continuidade genética.

As folhas nas árvores refletem sua higidez e têm função de relação com o mundo. Nossas folhas mostram nossa aparência e a relação com pessoas, conhecidos, amigos e profissionais. São as que dão o colorido variado nas árvores porque mudam e são mais abundantes. Como na árvore nossas folhas podem ser pessoas novas, velhas, sadias, doentes, bonitas, feias, boas, más, viçosas e secas. Na árvore as folhas são benéficas, passam, envelhecem, caem viram adubo e fortificam o solo.

Assim também as pessoas passam, as amizades acabam, os conhecidos e profissionais desaparecem, porém sempre deixam o adubo de algum ensinamento, fortificando e enriquecendo nosso solo. "A vida seria muito mais produtiva se pudéssemos nascer com a idade de oitenta anos e gradativamente nos aproximar dos dezoito" (Mark Twain - do livro "Life on the Mississipi").

Nem toda árvore floresce e frutifica e nem por isso perde méritos. Vale aqui o pensamento de Henfil, no livro Diretas Já: "Na árvore, se não houver frutos, valeu a beleza das flores; se não houver flores, valeu a sombra das folhas; se não houver folhas, valeu a intenção da semente". Analogamente, tantas pessoas não florescem, não frutificam, não colhem as oportunidades, são dependentes, pendurados na sociedade e carentes; no entanto, têm valor, prestam-se em oferecimento aos que desejam servir.

A árvore que propicia sombra, ar fresco, beleza e frutos, um dia morrerá e ficará por tempo de lembrança na carcaça, até que a terra a absorva virando alimento. Como as árvores, também morremos e nossas raízes, tronco, galhos, ramagem, flores, frutos e folhas, ficarão por algum tempo na mente daqueles componentes de nossas abrangências.

Árvore e homem, uma analogia intrigante, visto o âmago fisiológico dos seres vivos, a importância da vida de relação e a dependência entre si, não obstante, a árvore vive na constância da sua espécie: "A árvore que produz um fruto amargo, se for alimentada com guloseimas e doces não mudará sua natureza; produzirá o mesmo fruto amargo, e nele não saboreará nenhuma doçura" (Abu Shakur, poeta). O homem não, desde o mais amargo, o mais rude, quando lhe oferecido a doçura da compreensão, a esperança e oportunidade, se transforma numa pessoa boa e aceitável. A árvore é imutável, tem tempo e ciclo obrigatório. O homem é mutável, tem arbítrio e com ações transforma os tempos; pode nascer num chão pobre, porém no exercício do esforço e agarrando boas oportunidades enriquece o solo e vira árvore frondosa.

Ainda a árvore nasce, vive, morre e acaba, o corpo humano também, porém a magnânima diferença está na presença da alma junto aos homens, é eterna e perpetuará num outro tempo muito mais frutuoso e abrangente.

Fonte:
João Batista Leonardo Os tempos da esperança à razão. Maringá: Gráfica Primavera, 2008.

Antônio Sales (Baú de Trovas)


- A certa moça, na rua
bradei com sinceridade:
- Vossa Excelência é a Verdade!
- Por quê? - Porque está tão nua!
- - - - - –

- A fealdade é um direito;
por isso ninguém a acusa.
Mas ser feia desse jeito...
Perdão: a senhora abusa!
- - - - - –

A opinião severíssima
te condena sem razão:
tu serias fidelíssima
se fosses... mulher de Adão.
- - - - - –

— As cobras que tem no anel,
certo médico alopata,
são, de certo, cascavel:
onde ele põe a mão, mata!
- - - - - –

(A um juiz) 
- A tua venalidade
não tem, neste mundo, a gêmea,
foi uma felicidade
não teres nascido fêmea...
- - - - - –

- E difícil que aconteça
dor de cabeça ela ter:
pode a dor aparecer,   
mas não encontra cabeça...
- - - - - –

— Em certo escritor satírico,
de uma irreverência atroz,
nós achamos muito espírito...
quando não fala de nós.
- - - - - –

- Em tua genealogia
Fidalgo, vais longe... Até
que hás de chegar, algum dia,
ao Congo, Angola ou Guiné...
- - - - - –

Eu conheço um plumitivo*,
cheio de vaidade imensa,
que anda sempre pensativo
e apenas pensa que pensa.
- - - - - –

- "Não gosto de ouvir tolices!" -
exclamas, estomagado;
Para que não as ouvisses,
devias ficar calado.
- - - - - –

- Para que não te despraza**
ver gente má pela frente,
precisas primeiramente
não ter espelhos em casa...
- - - - - –

— Passa na estrada um camelo
e um corcunda palpitante
de alegria, disse ao vê-lo:
- "Mas que animal elegante!"
- - - - - –

- Vi um médico fardado...
Que perfeito matador:
quem escape do soldado,
não escapa do doutor...
________________________________
Notas:
Despraza – do verbo desprazer.
** Plumitivo – escritor ou jornalista sem méritos.


Fonte:
R. Magalhães Junior. Antologia de humorismo e sátira. RJ: Bloch, 1998.

Antônio Sales (1868 – 1940)


Antônio Ferreira Sales nasceu em Paracuru/CE, em 1868 e faleceu em Fortaleza/CE, em 1940. foi um romancista e poeta brasileiro que ocupou os cargos de secretário da justiça e do interior no tempo em que General Bezerril governou o estado do Ceará, além de deputado estadual.

É muito lembrado como uma das figuras mais marcantes da literatura cearense por ter fundado a Padaria Espiritual juntamente com Adolfo Caminha, Antônio Bezerra, Lívio Barreto, Henrique Jorge, Juvenal Galeno e vários outros jovens intelectuais que formavam o círculo cultural de Fortaleza do fim do século XIX. A Padaria Espiritual ganhou bastante visibilidade por sua forma irônica e irreverente de criticar a "provincianidade" fortalezense da época em busca de um resgate criativo dos espaços e dos meios de cultura no Ceará, movimento que influenciou a Semana de Arte Moderna . Foi redator do jornal "O Pão", através do qual se divulgavam as ideias da agremiação literária que participava, do qual exerceu o cargo de padeiro-mor. É conhecido também por ser amigo de Machado de Assis e por jamais ter aceitado aos inúmeros convites de compor a, então em fundação, Academia Brasileira de Letras. É o patrono da Academia Cearense de Letras e foi batizado por Rachel de Queiroz como "padrinho e figura suprema das letras no Ceará".

Foi nos cafés da praça do Ferreira que Antônio Sales idealizou a Padaria Espiritual com seus amigos.

Publicou apenas um romance de estética realista regional, com traços também naturalistas, chamado Aves de Arribação, inicialmente publicado em folhetins do Correio da Manhã do Rio de Janeiro onde residia o escritor. Viria a ser publicado em forma de livro apenas em 1913. Substituiu Arthur Azeredo na seção humorística de O País, no Rio. Escreveu, os sonetos humorísticos das Agulhas e Alfinetes, do jornal carioca O Tempo.

Até ser reconhecido como escritor, trabalhou no comércio de Fortaleza com a precoce idade de catorze anos. Anos depois, passaria pela vida de funcionário público, político e jornalista, inclusive no Rio de Janeiro. Mas voltara à capital cearense em 1920, onde vivera até seu falecimento, em 14 de novembro de 1940.

O escritor, amigo de Machado de Assis, ajudara este a fundar a Academia Brasileira de Letras, mas segundo ele, por não discursar bem, não quis dela fazer parte.

Em 1892 fundou um movimento de renascença literária no Ceará chamado de Padaria Espiritual, agremiação que marcou, entre 1892 e 1898, a vida da provinciana capital do Ceará naqueles primeiros dias de República e da qual fizeram parte vários grandes autores cearenses.

A Padaria Espiritual
Antônio Sales foi o responsável por escrever o programa de instalação da Padaria, composta por artigos que definiam o modo e a composição da agremiação.

1 – Fica organizada, nesta cidade de Fortaleza, capital da Terra da Luz, antigo Siará (sic) Grande, uma sociedade de rapazes de Letras e Artes denominada – Padaria Espiritual, cujo fim é fornecer pão de espírito aos sócios em particular e aos povos em geral”.

2 – A Padaria Espiritual se comporá de um Padeiro-mor (presidente), de dois Forneiros (secretários), de um Gaveta (tesoureiro), de um Guarda-Livros, na acepção intrínseca da palavra (bibliotecário), de um investigador das Coisas e das Gentes, que se chamava – Olho de Providência, e os demais amassadores (sócios). Todos os sócios terão a denominação geral de – Padeiros.

3 – Fica limitado em vinte o número de sócios, inclusive a Diretoria, podendo-se, porém, admitir sócios honorários que se denominaram Padeiros-livres. 4 – Depois da instalação da Padaria, só será admitido quem exibir uma peça literária ou qualquer outro trabalho artístico que for julgado decente pela maioria.

Um dos principais traços da Padaria Espiritual foi o regionalismo marcante. Além de todos os sócios ganharem o título de amassadores ou forneiros, dependendo das funções. Cada um tinha também o pseudônimo que sempre recebia um sobrenome de uma planta ou palavra indígena presentes na cultura cearense. O pseudônimo de Antônio Sales era Moacir Jurema.

Obras
    Versos Diversos, poesias (1890)
    Trovas do Norte, poesias (1895)
    Poesias (1902)
    Minha Terra, poesias (1919)
    Aves de Arribação, romance e novela (1914)

Fontes:
R. Magalhães Junior. Antologia de humorismo e sátira. RJ: Bloch, 1998.
Wikipedia

André Kondo (A Máscara)


As tochas incendiavam a coreografia do demônio, que ignorava a santidade do templo às costas. O diabólico rosto parecia flutuar, enquanto o corpo escarlate e branco deslizava em passos firmes, como se a pisar almas. Flautas orquestravam o desfile dos pecados, enquanto tambores marcavam a marcha dos suplícios. Olhares humanos admiravam a entidade de olhos esbugalhados, chifres protuberantes e dentes afiados. O derradeiro passo. Era o fim.

Aplausos. Ensandecidos aplausos.

Nomura abandonou o palco e correu para trás do pano, em que pinheiros de tinta espalhavam seus galhos aprisionados. Seu corpo havia sido possuído pelo demônio. Assustado, retirou a máscara. O bruxulear das tochas que cercavam o palco tomavam a face ainda mais assustadora. Nomura derrubou a máscara, que, do chão, continuava a sorrir.

Estaria enlouquecendo?

Talvez a loucura fosse o preço a pagar. Desde as primeiras performances de Kanami Kiyotsugu e seu filho, Zeami, a arte do teatro Nô nunca havia testemunhado um ator tão talentoso quanto Nomura. Tão talentoso e admirado. Porém, a que preço…

Quando as tochas se apagaram, Nomura buscou refúgio em um tranquilo aposento, nos fundos do templo xintoísta, que em seus rituais originou o Nô.

Despojou-se do peso de sua pomposa pele teatral.

Antes de apagar a lamparina e mergulhar em total escuridão, Nomura se separou da máscara que o consagrara. Depositou-a em uma caixa e a escondeu debaixo do altar do templo. Pensou que, agindo dessa forma, protegido pelos deuses, sobreviveria àquela noite.

Relutante, apagou a luz.

Cricrilar de um grilo próximo. Coaxar de uma rã longínqua. Uma gota pingando na bacia de pedra. Uma folha se desprendendo ao vento... Silêncio.

Nomura sentiu um arrepio. O mundo se calou. Há dez anos, quando ainda não usava máscara, Nomura se equilibrava em meias amarelas e fazia o povo rir, em suas performances de Kyogen, um cômico interlúdio teatral, que havia sido originado para amenizar a austera natureza do teatro Nô. Naquela época, Nomura não gozava de fama; pelo contrário, era motivo de risos entre os espectadores. Em suas atuações, os personagens de Kyogen expõem as tolices e as fraquezas humanas, que todos desejam esconder. Nomura sabia muito bem interpretar esse papel.

Há dez anos, naquela derradeira apresentação cômica, Nomura sentiu-se o mais tolo dos homens. Fazia os outros rirem. E fazia isso sem máscara, vestindo trajes comuns e meias amarelas. Sendo assim, as pessoas riam de sua atuação ou dele próprio? Naquela noite, na primeira fila, Nomura viu a mulher por quem era apaixonado. Ao seu lado, um homem o apontava, dizendo: "Esse é o pior ator que eu já vi em todo o Japão! Esse Nomura não interpreta nada! É apenas um perdedor que finge interpretar um perdedor e um palhaço que finge interpretar um palhaço! Na vida real, ele é muito mais engraçado". Nomura fixou o olhar na garota amada. Ela riu do comentário. Ela riu...

Envergonhado, abandonou o palco sem terminar a apresentação. Fugiu. As risadas se dissipavam com os seus passos que caminhavam para a escuridão. Naquela noite, não quis confraternizar com seus colegas. Não havia o que comemorar. Estava farto de tudo. Caminhou por um longo tempo até embrenhar-se em uma trilha que subia uma montanha coberta de pinheiros. O luar filtrado pelas afiadas folhas bastava para indicar a rota de fuga.

Uma pinha se desprendeu, acertando a cabeça de Nomura. "Maldição!", o grito reverberou por entre os pinheiros, enquanto Nomura apanhava a pinha e a lançava para longe. "Ploc". "O que é isso?".

Ruínas de um antigo templo se arrastavam por entre as árvores. O lintel do portal xintoísta estava ao chão, enquanto as colunas teimavam em se manter de pé, mesmo que em curvados ângulos.

Havia silêncio naquela noite, um silêncio que calava até o som do coração do ator.

Curioso, Nomura explorou o estranho achado. Revirou algumas pedras, levantou madeiras apodrecidas. O que estaria procurando? Não sabia, apenas agia por instinto, como se o destino o tivesse conduzido até ali. "O quê?".

Uma caixa laqueada. Ao contrário de tudo o que havia naquele local, aquela caixa estava muito bem conservada. O altar em que ela estava depositada já havia se esfacelado. Nomura a abriu.

Uma máscara.

Sob a luz do luar, a face do demônio se tomava suave. Mesmo com dentes pontiagudos, o sorriso lhe pareceu simpático. Os olhos esbugalhados vertiam sinceridade. Era o rosto de um demônio, mas era um rosto atraente. Tentador.

"Talvez seja um sinal", Nomura sorriu. "Esta só pode ser uma antiga máscara de teatro Nô. Talvez, uma máscara usada até em rituais xintoístas".

O diabo concordava com Nomura.

"Demônio, quero ser respeitado. Aliás, quero mais... Quero ser admirado! Agora compreendo o que tudo isso significa. Devo tentar novamente, apesar de tantas vezes já ter sido rejeitado, me tornar um respeitável ator de Nô. Com esta máscara, conseguirei!", Nomura ergueu a face do demônio, cujos olhos brilharam. Deitou-a sobre o próprio rosto. Adormeceu entre as ruínas.

"Há um preço a pagar".

"Para ser admirado, aceito qualquer preço".

O demônio sorriu.

***

Nomura despertou, com a máscara sobre o rosto.

Amanhecia.

Assustado, lançou a carranca para longe. "Como?". Na noite anterior, havia colocado a máscara no altar, agora, ela o assombrava em sua face. Olhou á volta. A manhã já invadia as frestas do cômodo.

Havia sobrevivido mais uma noite.

O sacerdote do templo em que Nomura estava hospedado deslizou a porta. Trazia uma bandeja com chá e bolinhos. Olhou para o chão e viu a máscara, com a face voltada para baixo.

— Vejo que já reencontrou seus demônios... Ontem à noite, alguém invadiu o templo — o sacerdote sorriu.

— Perdoe-me, eu estava fora de mim — Nomura envergonhou-se.

— Por que queria se livrar de sua máscara? — perguntou o sacerdote.

— Estou cansado... Desde que a encontrei, não tenho tido paz.

— Curioso — disse o sacerdote, enquanto despejava chá na tigela.

— Estou enlouquecendo... A máscara está me dominando, mal me reconheço no espelho.

— Você não é o único. Neste mundo de aparências, todos vestem máscaras.

Nomura não compreendia.

— Você passou a usar a máscara para impressionar uma garota, não é? — o sacerdote entregou a tigela de chá.

Não houve resposta.

— Como sei? Normalmente, começa assim. Usamos uma máscara para agradar a quem amamos. Certamente, a máscara de um demônio não seria a minha primeira escolha, mas... — o sacerdote balançou a cabeça.

Nomura segurava a tigela, esperando as próximas palavras.

— Pegue um bolinho — o sacerdote ofereceu.

Nomura aceitou, pegando o menor bolinho do prato.

— Por que pegou o bolinho menor? Não queria o maior? — o sacerdote perguntou, pegando o maior de todos.

— Sim, mas peguei o menor, por educação — respondeu Nomura.

— Neste caso, sou mal-educado — o sacerdote gargalhou, cuspindo migalhas entre os dentes.

"Que sacerdote estranho", pensou Nomura.

— Você me acha estranho por não me comportar como um sacerdote, não é?

— Sim.

O sacerdote caminhou até a máscara e a apanhou.

— Isto não passa de um pedaço de madeira. O demônio que teme não está aqui, mas dentro de você.

— Mas foi ela que me deu fama.

— A fama veio de seu talento.

— Não tenho talento. Antes, eu era apenas um ator secundário de Kyogen, um palhaço.

— Naquela época, você não tinha talento?

— Não, pois tudo o que fazia no palco saía naturalmente. Eu não precisava fingir nada e se não precisava fingir, não precisava ter talento para...

— Para mentir? — o sacerdote emendou.

— Aonde quer chegar?

— A questão é: aonde VOCÊ quer chegar?

— Eu...

— Nomura, você não precisa usar uma máscara para que as pessoas gostem de você. No fim, as pessoas acabam se afeiçoando á sua máscara e não ao que está atrás dela. Se quer mesmo ser admirado, seja o que você é de fato. Seja verdadeiro.

— Há muito tempo não sei mais o que é isso. Parece que interpretei a minha vida inteira...

— Para ser feliz, basta ser sincero naquilo que faz — sorriu o sacerdote.

— Ser feliz...

Sim. Ele havia sido feliz. Não precisava de uma sorridente máscara para demonstrar a própria felicidade.

Pouco tempo depois, Nomura subiu ao palco, de meias amarelas. E enquanto toda a plateia ria, Nomura ria junto... de cara limpa.

Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Varal de Trovas n. 224


Amilton Maciel Monteiro ("Corona Vírus”)


Há já noventa e um anos na escola da vida,
no entanto, nem por isso sinto-me formado,
ou pronto para a prova que será sofrida
a quem jamais cuidou de preparo adequado...

Perdoa-me Senhor, por ter desperdiçado,
o tempo que me deste para a pretendida
melhora que não fiz; e sei que sou culpado!
mas, por favor, meu Deus, retarda-me a partida.

De agora em diante, quero usar o que me resta
de prazo para dar à vida melhor festa,
com a presença e a fé de todos os meus irmãos!

Então, meu Deus, nos livre dessa epidemia,
do vírus assassino e que muito judia!
Todo o poder, Senhor, está em Tuas mãos!

Fonte:
Soneto enviado pelo poeta

Fernando Sabino (Com o Mundo nas Mãos)


Bernardo tem 5 anos mas já sabe da existência do Japão. E aponta para o céu com o dedo:

- É atrás daquele teto azul que fica o Japão?

Tenho de explicar-lhe que aquilo é o céu, não é teto nenhum.

- Mas então o céu não é o teto do mundo?

- Não! O céu é o céu. O mundo não tem teto. O azul do céu é o próprio ar. O Japão fica é lá embaixo - e apontei para o chão: - O mundo é redondo feito uma bola. Lá para cima não tem país mais nenhum não, só o céu mesmo, mais nada.

Ele fez uma carinha aborrecida, um gesto de desilusão:

- Então este Brasil é mesmo o fim do mundo. Daqui pra lá não tem mais nada...

Difícil de lhe explicar o que até mesmo a mim parece meio esquisito: o mundo ser redondo, o Japão estar lá em baixo, os japoneses de cabeça pra baixo, como é que não caem? Às vezes, andando na rua e olhando para cima, eu mesmo tenho medo de cair.

Na primeira oportunidade compro e trago para casa um mapa-múndi: um desses globos terrestres modernos, aliás de fabricação japonesa, feitos de matéria plástica e que se enchem de ar, como os balões. O menino não lhe deu muita importância, quando apontei nele o Japão e a Inglaterra, o Brasil, os países todos. Limitou-se a fazê-lo girar doidamente, aos tapas, até que se desprendesse do suporte de metal. Logo se dispôs a sair jogando futebol com ele, não deixei. Consegui convencê-lo a ir destruir outro brinquedo, o secador de cabelo da mãe, por exemplo, que faz um ventinho engraçado - e assim que me vi só, tranquei-me no escritório para apreciar devidamente a minha nova aquisição.

Com o mundo nas mãos, descobri coisas de espantar. Descobri  que a Coreia é muito mais lá para cima do que eu imaginava - uma espécie de penduricalho da China, ali mesmo no costado do Japão. O que é que os Estados Unidos tinham de se meter ali, tão longe de casa? O Vietnã nem me fale: uma tripinha de terra ao longo do Laos e do Camboja. Aliás, a confusão de países por ali, eu vou te contar. Tem a Tailândia e tem Burma, dois países de pernas compridas, tem a Malásia, a Indonésia. A Tasmânia não tem. Pelo menos não encontrei. Continua sendo para mim apenas a terra daquele selo enorme que em menino era o melhor da minha coleção. Dou um piparote no mundo e ele gira diante de meus olhos, para que eu descubra o que é mais que tem. Outra confusão é ali nas Arábias, onde o pau anda comendo: Síria, Líbano, Saudi-Arábia, Iêmen, e o diabo de um país cor-de-rosa chamado Hadramaut de que nunca ouvi falar. Estou ficando bom em geografia.

Duvido que alguém me diga onde fica Andorra. A última pessoa a quem perguntei, me disse que ficava nos limites de Aznavour. Pois fica é logo aqui, encravada entre a França e a Espanha, um paisinho de nada, vê quem pode. E fez aquele sucesso todo no Festival da Canção. Em compensação a Antártida é muito maior do que eu pensava, ocupa quase todo o Polo Sul. E é bem no centro dela que eu tenho de soprar para encher o mundo.

De repente me vem uma ideia meio paranóide. De tanto apalpar o globo de plástico, ele acabou meio murcho, acho que o ar está se escapando. E quando me disponho a enchê-lo de novo, imagino que eu seja um ser imenso solto no espaço, botando a boca no mundo para enchê-lo com meu sopro. O nosso planeta é mesmo uma bolinha perdida no cosmo,  e do tamanho desta que tenho nas mãos é que os astronautas devem tê-lo visto da lua: uma linda esfera de manchas coloridas, com seus oceanos cheios de peixes e singrados  por navios, as cidades agarradas aos continentes, ruas cheias de automóveis, casas cheias de gente, o ar riscado de aviões, de gaivotas, e de urubus... Tudo isso pequenino, insignificante, microscópico, os homens se explorando mutuamente, se maltratando, se assassinando para colher um segundo de satisfação ao longo de séculos de História, não mais que alguns  minutos  em  face  da eternidade. Que aventura mais temerária, a de  Deus, escolhendo caprichosamente este lindo e insignificante planetinha para ele enviar através dos espaços o seu Filho feito homem, com a missão de  redimir a nossa pobre humanidade.

Faço votos que tenha valido a pena e que um dia ela se veja redimida. Até lá, este mundo não passará mesmo de uma bola, como esta que meu filho Bernardo, irrompendo  alegremente no escritório, me arrebata das mãos e sai chutando pela casa.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo Falar. RJ: Record, 1976.

Fernando Sabino (Como Comecei a Escrever)

Quando eu tinha 10 anos, ao narrar a um amigo uma  história  que havia lido, inventei para ela um fim diferente, que me parecia muito melhor. Resolvi então escrever as minhas próprias histórias.

Durante o meu curso de ginásio, fui estimulado pelo fato de  ser sempre dos melhores em português e dos piores em matemática o que, para mim, significava que eu tinha jeito para escritor.

Naquela época os programas de rádio faziam tanto sucesso quanto os de televisão hoje em dia, e uma revista semanal do Rio, especializada em rádio, mantinha um concurso permanente de crônicas sob o título  "O Que Pensam Os Rádio-Ouvintes". Eu tinha 12, 13 anos, e não pensava grande coisa, mas minha irmã Berenice me animava a concorrer,  passando à máquina as minhas crônicas e mandando-as para o concurso. Mandava várias por semana, e era natural que volta e meia uma fosse premiada.

Passei a escrever contos policiais, influenciado pelas minhas leituras do gênero. Meu autor predileto era Edgar Wallace. Pouco  depois passaria a viver sob a influência do livro mais sensacional que já li na minha vida, que foi o Winnetou de Karl May, cujas aventuras procurava imitar nos meus escritos.

A partir dos 14 anos comecei a escrever histórias "mais sérias", com pretensão literária. Muito me ajudou, neste início de carreira, ter aprendido datilografia na velha máquina Remington do escritório de meu pai. E a mania que passei a ter de estudar gramática e  conhecer bem a língua me foi bastante útil.

Mas nada se pode comparar à ajuda que recebi nesta primeira fase dos escritores de minha terra Guilhermino César, João  Etienne  Filho  e Murilo Rubião e, um pouco mais tarde, de Marques Rebelo e Mário de Andrade, por ocasião da publicação do meu primeiro livro, aos 18 anos.

De tudo, o mais precioso à minha formação, todavia, talvez tenha sido a amizade que me ligou desde então e pela vida afora a Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes  Campos, tendo como inspiração comum o culto à Literatura.

Fonte:
Para gostar de ler. vol.4. Ed. Ática, 1998.