terça-feira, 4 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 338


Rachel de Queiroz (O Pó ao Pó)

    
Meu amigo Afrânio Soares faz uma enquete sobre incineração de mortos e eu lhe pirateio a ideia, porque esse assunto de queima de defunto sempre foi muito da minha predileção. Não sei por que se faz objeção a esse método de disposição de cadáveres que tem a favor de si uma tradição milenar e inúmeros outros elementos de conveniência, economia e estética.

Sobre a tradição milenar, não digo novidade nenhuma: a pira era instituição fundamental em grande parte das civilizações primitivas. Na velha antiguidade todos os povos cremavam os seus mortos — com exceção dos egípcios que os embalsamavam, dos judeus que os depunham em sepulcros e dos chineses que os enterravam, Mas os gregos, que foram os mestres do nosso mundo, usavam a pira para consumir os seus mortos, como ainda hoje o fazem indianos e mais povos asiáticos.

Diz-se que foi o cristianismo que acabou com a incineração dos cadáveres, em respeito pelo corpo humano, batizado e remido por Nosso Senhor, e destinado a refazer-se na Ressurreição Final. Mas acho que é até heresia, duvidar-se dos poderes de Deus, pensar que Ele não poderia ressuscitar um homem das suas cinzas, se o pode ressuscitar depois de consumido pela terra, devorado pelos bichos, dissolvido pelas águas.

E aqueles que são mortos pelo fogo, em incêndios, por lança-chamas, em guerra? Então esses perdem o direito de voltar à carne no dia do Juízo Final?

Com a incineração dos corpos acaba-se a maioria dos ritos fúnebres, os velórios, a lenta decomposição de alguém que amamos exposto no caixão à luz e ao calor dos círios, ao cheiro adocicado da cera derretida e das flores que murcham. E isso ainda não é nada, quando pensamos na repugnante operação que se vai processar debaixo da terra, até que só fiquem do morto os ossos limpos do esqueleto.

Já o fogo purifica tudo. Apressa, dignifica. Neste instante você é defunto, um instante mais é cinza. Pó ao pó, como diz a Escritura. E às suas cinzas, ao próprio resto pulverizado do seu invólucro mortal, podem-se dar os destinos mais variados jogá-las ao mar, onde serão dissolvidas nas grandes águas, atirá-las à terra, onde talvez ajudem a brotar uma flor ou uma fruta e, mesmo, quem sabe, a piedade dos filhos há de guardá-las em santuário doméstico, pequeno depósito, relicário do ausente querido.

Acaba-se o horror dos cemitérios. Os mortos já não serão importunos nem incômodos — já não haverá o problema angustioso de alojá-los. A gente morre, quem nos ama chora, reza, fecha-se o caixão, abre-se o forno — e está tudo liquidado. Rapidamente. Limpamente.

Por mim, não quero outro destino para esta fatigada carcaça. Joguem a cinza pelo mundo, porque o mundo todo eu amei; e talvez algum punhadinho seja levado pelo vento até ao Ceará.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Correia Garção (Poemas Escolhidos)


SONETOS

1
Cheios de espessa névoa os horizontes,
Espantosas voragens vem saindo!
Foi-se o Sol entre as nuvens encobrindo,
Voltando para o mar os quatro Etontes

Caiu a grossa chuva pelos montes,
Os incautos pastores aturdindo;
E engrossados os rios vão cobrindo
Com embate feroz as curvas pontes

Com medonho estampido, navorosos.
Os longos ecos dos trovões soando.
A rezar nos pusemos temerosos.

Parou a chuva; correm sussurrando
Os torcidos regatos vagarosos;
Não me atrevo a sair, fico jogando.
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2
Ao som dos duros ferros que arrastava,
A lira de ouro Corydon tangia:
De Márcia o doce nome repetia,
Mas no meio do canto soluçava.

No rosto macerado, que enfiava,
O lacrimoso pranto reluzia,
E nos olhos, que aos altos céus erguia,
O pensamento intrépido voava.

Não se assombra de ventos insofridos,
Nem com ousado lenho arar intenta
O polo do futuro nebuloso;

Menos chora terrenos bens perdidos.
De pouco um peito grande se contenta:
Antes quer ser honrado que ditoso.
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3

Três vezes vi, Marília, de alva lua,
Cheio de luz o rosto prateado,
Sem que dourasse o campo matizado,
A linda aurora da presença tua.

Então subindo à serra calva e nua,
De um íngreme rochedo pendurado,
Os olhos alongando pelo prado,
Chamava, mas em vão, a morte crua.

Ali comigo vinham ter pastores,
Que meus suspiros férvidos ouviam,
Cortados do alarido dos clamores.

Tanto que a causa do meu mal sabiam,
Julgando sem remédio minhas dores,
Por não poder-me consolar, fugiam.
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CANTATA DE DIDO


Já no roxo oriente branqueando,
As prenhes velas da troiana frota
Entre as vagas azuis do mar dourado
Sobre as asas dos ventos se escondiam.
A misérrima Dido,
Pelos paços reais vaga ululando,
C'os turvos olhos inda em vão procura
O fugitivo Eneias.
Só ermas ruas, só desertas praças
A recente Cartago lhe apresenta;
Com medonho fragor, na praia nua
Fremem de noite as solitárias ondas;
E nas douradas grimpas
Das cúpulas soberbas
Piam noturnas, agoureiras aves.
Do marmóreo sepulcro
Atônita imagina
Que mil vezes ouviu as frias cinzas
De defunto Siqueu, com débeis vozes,
Suspirando, chamar: – Elisa! Elisa!
D'Orco aos tremendos numens
Sacrifícios prepara;
Mas viu esmorecida
Em torno dos turícremos altares,
Negra escuma ferver nas ricas taças,
E o derramado vinho
Em pélagos de sangue converter-se.
Frenética, delira,
Pálido o rosto lindo
A madeixa sutil desentrançada;
Já com tremulo pé entra sem tino
No ditoso aposento,
Onde do infido amante
Ouviu, enternecida,
Magoados suspiros, brandas queixas.
Ali as cruéis Parcas lhe mostraram
As ilíacas roupas que, pendentes
Do tálamo dourado, descobriam
O lustroso pavês, a teucra espada.
Com a convulsa mão súbito arranca
A lâmina fulgente da bainha,
E sobre o duro ferro penetrante
Arroja o tenro, cristalino peito;
E em borbotões de espuma murmurando,
O quente sangue da ferida salta:
De roxas espadanas rociadas,
Tremem da sala as dóricas colunas.
Três vezes tenta erguer-se,
Três vezes desmaiada, sobre o leito
O corpo revolvendo, ao céu levanta
Os macerados olhos.
Depois, atenta na lustrosa malha
Do prófugo dardânio,
Estas últimas vozes repetia,
E os lastimosos, lúgubres acentos,
Pelas áureas abóbadas voando
Longo tempo depois gemer se ouviram:

«Doces despojos,
Tão bem logrados
Dos olhos meus,
Enquanto os fados,
Enquanto Deus
O consentiam,
Da triste Dido
A alma aceitai,
Destes cuidados
Me libertai.

«Dido infelice
Assaz viveu;
D'alta Cartago
O muro ergueu;
Agora, nua,
Já de Caronte,
A sombra sua
Na barca feia,
De Flegetonte
A negra veia
Sulcando vai.

Fonte:
Correia Garção. Obras poéticas. publicação em 1778.

Correia Garção (1724 – 1772)

Pedro António Correia Garção, nasceu em Lisboa/Portugal em 13 de junho de 1724 e faleceu em 10 de novembro de 1772.

Estudou Literatura Clássica no Colégio dos Jesuítas, em Lisboa, e frequentou o curso de Direito na Universidade de Coimbra, não terminando-o. Em 1756, juntamente com Cruz e Silva, Teotónio Gomes de Carvalho e Manuel Nicolau Esteves Negrão, fundou a Arcádia Lusitana, utilizando como pseudônimo arcádico Coridon Erimanteu.

Foi escrivão na Casa da Índia e dirigiu a Gazeta de Lisboa de 1760 a 1762. Casado e apreciador da convivência social, manteve relações com estrangeiros, facilitadas pelo domínio do inglês, do francês e do italiano, e também com alguns portugueses das classes mais privilegiadas.

Devido a problemas financeiros, passou a viver na Quinta da Fonte Santa e em 1771 foi detido no Limoeiro, por razões não esclarecidas, onde veio a falecer.

Tentou a criação de um teatro nacional com a redação de alguns textos dramáticos (na comédia Assembleia insere-se a célebre Cantata de Dido) e também dedicou alguma atenção ao gênero epistolar e à poesia de circunstância. Esforçou-se sobretudo no sentido de cultivar os gêneros greco-latinos.

Admirador de Horácio, fundiu o horacianismo com a poesia do cotidiano e atingiu assim o melhor da sua obra. Para além do poeta latino, também seguiu os quinhentistas portugueses Sá de Miranda, António Ferreira, Camões e Diogo Bernardes.

Fonte:
Infopédia

Lygia Fagundes Telles (A Estrutura da Bolha de Sabão)


Era o que ele estudava. "A estrutura, quer dizer, a estrutura" - ele repetia e abria a mão branquíssima ao esboçar o gesto redondo. Eu ficava olhando seu gesto impreciso porque uma bolha de sabão é mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem sonho. Película e oco. "A estrutura da bolha de sabão, compreende?" Não o compreendia. Não tinha importância. Importante era o quintal da minha meninice com seus verdes canudos de mamoeiro, quando cortava os mais tenros, que sopravam as bolas maiores, mais perfeitas. Uma de cada vez. Amor calculado, porque na afobação o sopro desencadeava o processo e um delírio de cachos escorriam pelo canudo e vinham rebentar na minha boca, a espuma descendo pelo queixo. Molhando o peito. Então eu jogava longe canudo e caneca. Para recomeçar no dia seguinte, sim, as bolhas de sabão. Mas e a estrutura? "A estrutura" - ele insistia. E seu gesto delgado de envolvimento e fuga parecia tocar mas guardava distância, cuidado, cuidadinho, ô! a paciência. A paixão.

No escuro eu sentia essa paixão contornando sutilíssima meu corpo. Estou me espiritualizando, eu disse e ele riu fazendo fremir os dedos-asas, a mão distendida imitando libélula na superfície da água mas sem se comprometer com o fundo, divagações à flor da pele, ô! amor de ritual sem sangue. Sem grito. Amor de transparências e membranas, condenado à ruptura. Ainda fechei a janela para retê-la, mas com sua superfície que refletia tudo ela avançou cega contra o vidro. Milhares de olhos e não enxergava.

Deixou um círculo de espuma. Foi simplesmente isso, pensei quando ele tomou a mulher pelo braço e perguntou: "Vocês já se conheciam?" Sabia muito bem que nunca tínhamos nos visto mas gostava dessas frases acolchoando situações, pessoas. Estávamos num bar e seus olhos de egípcia se retraíam apertados. A fumaça, pensei. Aumentavam e diminuíam até que se reduziram a dois riscos de lápis-lazúli e assim ficaram. A boca polpuda também se apertou, mesquinha. Tem boca à-toa, pensei. Artificiosamente sensual, à-toa. Mas como é que um homem como ele, um físico que estudava a estrutura das bolhas, podia amar uma mulher assim? Mistérios, eu disse e ele sorriu, nos divertíamos em dizer fragmentos de idéias, peças soltas de um jogo que jogávamos meio ao acaso, sem encaixe.

Convidaram-me e sentei, os joelhos de ambos encostados nos meus, a mesa pequena enfeixando copos e hálitos. Me refugiei nos cubos de gelo amontoados no fundo do copo, ele podia estudar a estrutura do gelo, não era mais fácil? Mas ela queria fazer perguntas. Uma antiga amizade? Uma antiga amizade. Ah. Fomos colegas? Não, nos conhecemos numa praia, onde? Por aí, numa praia. Ah. Aos poucos o ciúme foi tomando forma e transbordando espesso como um licor azul-verde, do tom da pintura dos seus olhos. Escorreu pelas nossas roupas, empapou a toalha da mesa, pingou gota a gota. Usava um perfume adocicado. Veio a dor de cabeça: "Estou com dor de cabeça", repetiu não sei quantas vezes. Uma dor fulgurante que começava na nuca e se irradiava até a testa, na altura das sobrancelhas. Empurrou o copo de uísque. "Fulgurante." Empurrou para trás a cadeira e antes que empurrasse a mesa ele pediu a conta. Noutra ocasião a gente poderia se ver, de acordo? Sim, noutra ocasião, é lógico. Na rua, ele pensou em me beijar de leve, como sempre, mas ficou desamparado e eu o tranquilizei, está bem, querido, está tudo bem, já entendi. Tomo um táxi, vá depressa, vá. Quando me voltei, dobravam a esquina. Que palavras estariam dizendo enquanto dobravam a esquina? Fingi me interessar pela valise de plástico de xadrez vermelho, estava diante de uma vitrina de valises. Me vi pálida no vidro. Mas como era possível. Choro em casa, resolvi. Em casa telefonei a um amigo, fomos jantar e ele concluiu que o meu cientista estava felicíssimo. Felicíssimo, repeti quando no dia seguinte cedo ele telefonou para explicar. Cortei a explicação com o felicíssimo e lá do outro lado da linha senti-o rir como uma bolha de sabão seria capaz de rir. A única coisa inquietante era aquele ciúme. Mudei logo de assunto com o licoroso pressentimento de que ela ouvia na extensão, oh, o teatro. A poesia. Então ela desligou.

O segundo encontro foi numa exposição de pintura. No começo aquela cordialidade. A boca pródiga. Ele me puxou para ver um quadro de que tinha gostado muito. Não ficamos distantes dela nem cinco minutos. Quando voltamos, os olhos já estavam reduzidos aos dois riscos. Passou a mão na nuca. Furtivamente acariciou a testa. Despedi-me antes da dor fulgurante. Vai virar sinusite, pensei. A sinusite do ciúme, bom nome para um quadro ou ensaio.

"Ele está doente, sabia? Aquele cara que estuda bolhas, não é seu amigo?" Em redor, a massa fervilhante de gente, música. Calor. Quem é que está doente? eu perguntei. Sabia perfeitamente que se tratava dele mas precisei perguntar de novo, é preciso perguntar uma, duas vezes para ouvir a mesma resposta, que aquele cara, aquele que estuda essa frescura da bolha, não era meu amigo? Pois estava muito doente, quem contou foi a própria mulher, bonita, sem dúvida, mas um tanto grosseira, fora casada com o primo de um amigo, um industrial meio fascista que veio para cá com passaporte falso, até a Interpol já estava avisada, durante a guerra se associou com um tipo que se dizia conde italiano mas não passava de um contrabandista.

Estendi a mão e agarrei seu braço porque a ramificação da conversa se alastrava pelas veredas, mal podia vislumbrar o desdobramento da raiz varando por entre pernas, sapatos, croquetes pisados, palitos, fugia pela escada na descida vertiginosa até a porta da rua, espera! eu disse. Espera. Mas que é que ele tem? Esse meu amigo. A bandeja de uísque oscilou perigosamente acima do nível das nossas cabeças. Os copos tilintaram na inclinação para a direita, para a esquerda, deslizando num só bloco na dança de um convés na tempestade. O que tinha? O homem bebeu metade do copo antes de responder: não sabia os detalhes e nem se interessara em saber, afinal, a única coisa gozada era um cara estudar a estrutura da bolha, mas que ideia!

Tirei-lhe o copo e bebi devagar o resto do uísque com o cubo de gelo colado ao meu lábio, queimando. Não ele, meu Deus. Não ele, eu repeti. Embora grave, custosamente minha voz varou todas as camadas do meu peito até tocar no fundo onde as pontas todas acabam por dar, que nome tinha? Esse fundo, perguntei e fiquei sorrindo para o homem e seu espanto. Expliquei-lhe que era o jogo que eu costumava jogar com ele, com esse meu amigo, o físico. O informante riu. "Juro que nunca pensei que fosse encontrar no mundo um cara que estudasse um troço desses", resmungou ele voltando-se rápido para apanhar mais dois copos na bandeja, ô! tão longe ia a bandeja e tudo o mais, fazia quanto tempo? "Me diga uma coisa, vocês não viveram juntos?" - lembrou-se o homem de perguntar. Peguei no ar o copo borrifando na tormenta. Estava nua na praia. Mais ou menos, respondi. Mais ou menos eu disse ao motorista que perguntou se eu sabia onde ficava essa rua. Tinha pensado em pedir notícias por telefone mas a extensão me travou. E agora ela abria a porta, bem-humorada. Contente de me ver? A mim?! Elogiou minha bolsa. Meu penteado despenteado. Nenhum sinal da sinusite. Mas daqui a pouco vai começar. Fulgurante.

"Foi mesmo um grande susto" - ela disse. "Mas passou, ele está ótimo ou quase - acrescentou levantando a voz. Do quarto ele poderia nos ouvir se quisesse. Não perguntei nada.

A casa. Aparentemente, não mudara, mas reparando melhor, tinha menos livros. Mais cheiros. Flores de perfume ativo no vaso, óleos perfumados nos móveis. E seu próprio perfume. Objetos frívolos - os múltiplos – substituindo em profusão os únicos, aqueles que ficavam obscuros nas antigas prateleiras da estante. Examinei-a enquanto me mostrava um tapete que tecera nos dias em que ele ficou no hospital. E a fulgurante? Os olhos continuavam bem abertos, a boca descontraída. Ainda não.

"Você poderia ter se levantado, hein, meu amor? Mas anda muito mimado", disse ela quando entramos no quarto. E começou a contar muito animada a história de um ladrão que entrara pelo porão da casa ao lado, "a casa da mãezinha", acrescentou afagando os pés dele debaixo da manta de lã. Acordaram no meio da noite com o ladrão aos berros pedindo socorro com a mão na ratoeira, tinha ratos no porão e na véspera a mãezinha armara uma enorme ratoeira para pegar o rei de todos, lembra, amor?

O amor estava de chambre verde, recostado na cama cheia de almofadas. As mãos branquíssimas descansando entrelaçadas na altura do peito. Ao lado, um livro aberto e cujo título deixei para ler depois e não fiquei sabendo. Ele mostrou interesse pelo caso do ladrão mas estava distante do ladrão, de mim e dela. De quando em quando me olhava interrogativo, sugerindo lembranças mas eu sabia que era por delicadeza, sempre foi delicadíssimo.

Atento e desligado. Onde? Onde estaria com seu chambre largo demais? Era devido àquelas dobras todas que fiquei com a impressão de que emagrecera? Duas vezes empalideceu, ficou quase lívido. Comecei a sentir falta de alguma coisa, era do cigarro? Acendi um e ainda a sensação aflitiva de que alguma coisa faltava, mas o que estava errado ali? Na hora da pílula lilás ela foi buscar o copo d'água e então ele me olhou lá do seu mundo de estruturas. Bolhas. Por um momento relaxei completamente: não sei onde está, mas sei que não está, eu disse e ele perguntou, "Jogar?" Rimos um para o outro.

"Engole, amor, engole" - pediu ela segurando-lhe a cabeça. E voltou-se para mim, "preciso ir aqui na casa da mamãezinha e minha empregada está fora, você não se importa em ficar mais um pouco? Não demoro muito, a casa é ao lado", acrescentou. Ofereceu-me uísque, não queria mesmo? Se quisesse, estava tudo na copa, uísque, gelo, ficasse à vontade. O telefone tocando será que eu podia?...

Saiu e fechou a porta. Fechou-nos. Então descobri o que estava faltando, ô! Deus. Agora eu sabia que ele ia morrer.

Fonte:
Conto publicado em 1978, em livro da autora, de mesmo nome do conto.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 337


Nota:

Novas delegacias da União Brasileira dos Trovadores:

Campo Mourão/PR - Sinclair Pozza Casemiro

Lages/SC - José Atanásio Pinto

Sinclair Pozza Casemiro (Uma Mão Lava a Outra)


Isso é sério. E é também uma cacofonia, eu sei. Cacofonia é um vício de linguagem; uma sucessão desagradável de sons, segundo Dr. Francisco Borba e todos os dicionaristas, gramáticos e linguistas de que eu me lembre... Mas é muito verdadeiro e então, apesar do vício, figura malquista na língua, o povo anda repetindo "uma mão lava a outra" pelos séculos dos séculos, amém.

O que vou contar aqui aconteceu com o Seu Gancedo, nosso amigo e professor nessas andanças do Caminho de Peabiru. Com ele e sua esposa, Dinorah, grávida de sua primeira filha na ocasião.

Moravam num sítio, no município de Engenheiro Beltrão, viviam ali felizes, porém batalhando nas dificuldades próprias do lugar e dos tempos, ainda sem muita estrutura no campo. Quando chovia, por exemplo, o que era uma dádiva para as lavouras, era um suplício para os doentes ou para aqueles que precisassem sair de casa por qualquer outro motivo urgente.

E um dia, choveu, choveu. O casal precisava ir à cidade, ela tinha consulta, ele tinha interesses urgentes para tratar. E eles tinham um trator que enfrentava qualquer tropeço daquele chão misterioso. Então, foram.

Num determinado ponto, uma subidinha complicada, seu Gancedo precisou parar, deu um probleminha no motor. Estavam já muito tristes, desanimados, quando decidiram buscar ajuda na casa do sítio que dali se avistava, muito perto. O coração de Dinorah se encheu de esperança, se avivou, seus lábios se descontraíram.

Mas, não é que o dono da casa (e do sítio) mesmo reconhecendo o casal, não eram amigos, apenas conhecidos, não socorreu? Isso mesmo! Viu a mulher, grávida, ouviu o apelo do marido, mas não pôde atender, estava sem condições de ir até ao trator, não saberia mesmo o que fazer e ficou por isso mesmo. A princípio seu Gancedo não entendeu, ficou entre a perplexidade, a vergonha e a revolta, um tanto desolado. Dinorah, então, na sua costumeira candura, não conseguia mesmo compreender aquilo de jeito nenhum. Por que seria tanta indiferença? Aquilo não era comum, as pessoas no sítio costumavam ser solidárias, mesmo desconhecendo-se.

Ficaram os dois, conjeturando: será isso, será aquilo, afinal, o que poderia ser responsável por atitude tão mesquinha?

Inconformados, seguiram de volta à estrada, com o olhar e o peito doloridos pelo que entendiam como injustiça. O sitiante possuía até um veículo, o que poderia ter sido a solução fácil de seus problemas, afinal. Poderia ter oferecido uma carona e nem precisava ser para Seu Gancedo, levasse a Dinorah que ele se arranjava por lá mesmo. E, o olhar fixo no caminho, seguiam, devagar, equilibrando-se no barro liso, até chegarem de volta ao trator e...ficar esperando sabe-se mais pelo quê. De repente, ouviram o ronco de um outro trator, a esperança renasceu. Mas, quem era? O próprio sitiante, que passou por eles dirigindo uma carreta e seguiu, sossegado. Os olhos do casal acompanharam–no, silentes, não havia o que se fazer.

Mais à frente, não é que a carreta do insensível sitiante emperra e barranca? Isso mesmo! Caiu, encostou na ribanceira da estrada, num barranco, coisa que seu Gancedo não teria deixado acontecer se fosse ele o motorista. Aquilo era sinal de "barbeiro". Mas, lá estava a carreta, poderosa, nas mãos de um incompetente (e maldoso) motorista, encalhada na estrada. E... vuuuuumm.... vuuuumm.....vuuuuuuuuuuuumm..., nada!

Aí então aconteceu a maior: o "navalha" desce, com as mãos na cintura ou no bolso, sei lá, mas com atitude de não sei mais o quê fazer e... olha para o trator e o casal! Meu Deus, mas como agir agora? Ele não lhes tinha negado ajuda? E só mesmo um outro trator e a colaboração de um outro motorista para tirá-lo dali!

E seu Gancedo? O que você acha que ele fez?

É... espicaçou o homem, "tá vendo, seu orgulhoso?" Negou ajuda, como o outro fez? Deu risada, zombou da desgraça e humilhação do outro?

Quem conhece o seu Gancedo sabe o que ele fez: foi de encontro ao necessitado, mais que ele ainda, deu sua mão e o acompanhou até a carreta, a Dinorah, muito calma e segura acompanhando com os olhos toda aquela cena. Assim também era ela, o casal se combinava.

Dinorah esperou, às margens da estrada. Seu Gancedo assumiu o volante da carreta e tirou-a do barranco, era mesmo algo fácil de resolver para um bom motorista, nem precisou do trator. Devolveu-a para o arrogante e já bastante arrependido sitiante, que, assim, acabou sendo recompensado com o bem pelo mal que fizera.

Chateado, ofereceu ao casal a esperada carona e seguiram, juntos, até Engenheiro Beltrão, deixando o trator do casal para ser consertado depois, por um mecânico que Seu Gancedo traria.

Acontece? Sim, e muito... Por isso que é bom a gente não esquecer esse ditado antigo, mal escrito e mal exemplo porque é cacofônico, mas muito verdadeiro: uma mão lava a outra.

Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri…). Campo Mourão: Sisgraf, 2005.

Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos) V


Obs do blog: O primeiro verso e título de cada poema é do poeta colocado abaixo do título, com a página e livro onde se encontra.
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EU SEI QUE VOAREI, NA IMENSIDADE

João Baptista Coelho, in "Um outro livro de Job", p. 75.

Eu sei que voarei, na imensidade
Do reino da palavra que é magia
Se as brancas asas gráceis da Poesia
Me derem essa pura caridade.

Com alma solta em franca liberdade
Planarei sobre o mar e a maresia
E tudo o que até aqui não entendia
Verei na limpidez de uma verdade.

Nesse dia em que a treva se dilui
Serei mais do que algum dia já fui
Numa grandeza de alma sem ter fim.

E este mundo será meu por completo
Que no imenso infinito eu me projeto
E já não caibo inteiramente em mim.
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MEU IRMÃO, VEM COMIGO VER O MAR


Glória Marreiros, in "Terra de Ninguém", p. 33

Meu irmão, vem comigo ver o mar
Chão e calmo em constante movimento
Berço da vida e fonte de alimento
Com espuma que é renda de um altar.

Esquece a dor de um barco a naufragar
Abandona-te às ondas e ao bom vento
Que o mar é esse líquido elemento
Que os homens trazem de volta à luz do lar,

Mãe de lendas por tantas gerações
Ó mar tu é que irmanas as nações
Nascidas pelos cantos deste mundo.

Reino do céu azul, brumas e medos
Só tu sabes os bens e os segredos
Que guardas no teu seio tão profundo.
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NOS TRISTES OLHOS MAL SUSTENHO O PRANTO

João Xavier de Matos, in "Cem Sonetos Portugueses", p. 50

Nos tristes olhos mal sustenho o pranto
Por ver como é tão pobre e diminuta
A alma que no peito trago enxuta
De trovas que lhe tragam novo canto.

Não tem razão de ser um tal espanto
Que ser pequeno é fado que me enluta
E, aos poucos, vai matando, qual cicuta
Que tomo pela mão do desencanto.

Ser pouco talvez tenha uma virtude
Se a alma o reconhece e não se ilude
Com sonhos de grandeza bem fadada.

No concerto do mundo todos cabem:
Mais vale o que de nós outros não sabem
Do que nós deles não sabermos nada.
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QUIS O TEMPO QUE NESTE TEMPO ESPERE


Joaquim Sustelo, in "No Silêncio do Tempo", p. 74
Quis o tempo que neste tempo espere
Lento, o correr das horas e dos dias
E o vento vai ditando as profecias
Com que o tempo o meu peito sangra e fere.

Por muito que eu estime e considere
O saber que em teu seio me trazias
Eu noto que também tu me escondias
O limbo que a vil morte nos confere.

Passa em mim sem causar ruína ou dano
Faz do meu ser um templo mais humano
Liberto de dor, mal, culpa ou pecado.

Estarei aqui pronto a receber
A vida que me queiras conceder
Cumprindo humildemente esse meu fado.
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SINTO O SANGUE GELAR-SE-ME NAS VEIAS


José Barreto, in "Cânticos de Paixão e Outras Cores", p, 24

Sinto o sangue gelar-se-me nas veias
Quando no peito morre uma esperança
Ou se solta um cabelo de uma trança
Onde o ouro brilhava sem ter peias;

E quando a luz que havia nas ideias
Se extingue sem deixar qualquer herança
Que no futuro seja uma lembrança
Dos povos que cantaram epopeias.

E o meu corpo minado pelo frio
Ganha a dureza gélida de um rio
A que os polos dão alma de glaciar.

Sou branca massa de água deslizando
Que sobe um mar de mágoa abominando
Onde eu não sou capaz de me afogar.

Fonte:
Domingos Freire Cardoso. Por entre poetas. Ilhavo/Portugal, 2016.
Livro enviado pelo poeta.

Sílvio Romero (Melancia e Coco Mole)


(Folclore do Sergipe)

Havia um homem que gostava muito de uma moça e queria casar com ela. Um dia ele foi chamado pras guerras e disse à moça que não casasse com outro, que quando ele voltasse casaria com ela. Para ninguém desconfiar o rapaz tratava a moça por – Melancia – e a moça o tratava por – Coco Mole.

Um dia se despediram muito chorosos e ele partiu para as guerras.

Todo dia aparecia casamento para esta moça, porém ela não queria, com sentido no seu querido. Passados alguns anos e, aparecendo um dia um casamento, o pai da moça decidiu que ela havia de aceitar. Ela fez o gosto do pai, e, quando foi no dia do casamento, o seu namorado chegou das guerras, indagou logo pela moça e soube que ela se casava naquele mesmo dia.

O rapaz ficou muito triste e não quis comer.

Um caboclo, que era pajem dele, perguntou-lhe por que estava tão triste. Sabendo da história, disse-lhe: "Não tem nada, meu amo. Deixe estar que eu arranjo tudo!"

Havia uma árvore no fundo do quintal da casa da moça, onde ela costumava ir conversar com o antigo namorado. O caboclo ensinou ao amo que fosse para debaixo da árvore, que lhe garantia que a moça iria lá ter. Ele fez o que o caboclo recomendou, e este se dirigiu para casa da noiva.

Chegando lá encontrou já todos os convidados, o noivo e a noiva já preparados, só faltando o padre para os casar. O caboclo pediu licença para fazer uma saúde à noiva, chegou-se para junto dela e disse:

"Eu venho lá de tão longe
Corrido de tanta guerra
Melancia, Coco Mole
É chegado nesta terra"

Todos bateram palma e disseram: "Bravo! Caboclo, faça outra saúde". O caboclo retrucou:

"Não há bebida tão boa
Como seja o aluá
Melancia, Coco Mole
Vos espera no lugar

Todos bradaram: "Muito bem! Caboclo!… faça outra saúde!"

O caboclo entusiasmado continuou:

"Moça, que estais tão bonita
Não vos lembrais do passado
Melancia, Como Mole
Vos manda muito recado"

Aí a moça levantou-se e disse que ia beber água. Saiu caladinha pela porta do quintal e foi direitinho à árvore onde ela costumava ir conversar com seu antigo namorado, que era o do peito. Chegando aí, encontrou-o e ao mesmo tempo a um padre que já ali se achava apalavrado para os casar.

Fonte:
Sílvio Romero, Folclore brasileiro; cantos e contos populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

domingo, 2 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 336



NOTA DO BLOG:

Ontem não houveram postagens em virtude de ter ficado boa parte do dia sem luz, devido a serviços de manutenção da Companhia Elétrica (COPEL) na região.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Joubert de Carvalho


Um jornalista de São Paulo, amigo do Aristeu Brandespim (diretor da revista NP), de passagem por Maringá, almoçou conosco e a certa altura indagou: “Onde fica a Rua Joubert de Carvalho? Eu gostaria de fotografá-la”. A pergunta nos deixou surpresos, por dois motivos: primeiro porque não existia aqui nenhuma rua com esse nome; segundo porque de repente nos demos conta do absurdo que era a Câmara Municipal até então não haver prestado tal homenagem ao célebre autor da bela canção xará da cidade. Respondi ao jornalista: “Por enquanto não temos a rua que você procura, mas volte a Maringá no próximo ano, que a teremos”. Brandespim acrescentou: “Assino embaixo. Vamos providenciar”.

Na edição seguinte da revista NP, setembro de 1958, saiu na última página o artigo em que reivindiquei da Câmara a criação da Rua Joubert de Carvalho. Nem precisava gastar muitos argumentos, porque a justificativa era óbvia. Manuel Tavares, n’A Tribuna de Maringá, e Ivens Lagoano Pacheco, no O Jornal, deram total apoio. O vereador Alceu Hauare apresentou o projeto, a aprovação foi unânime, e o prefeito Américo sancionou com as honras devidas.

No dia 21 de abril de 1959, pousou no Aeroporto Gastão Vidigal o avião que trouxe Joubert pela primeira vez a Maringá. Com a presença das personalidades mais representativas da cidade e um grande número de admiradores do famoso compositor, descerrou-se na esquina da antiga Rua Bandeirantes com a Avenida Duque de Caxias, no prédio da Companhia Melhoramentos, a placa de bronze com a indicação: Rua Joubert de Carvalho. Banda, rojões, discursos, aplausos, e aquela multidão cantando em coro: “Maringá, Maringá, / para haver felicidade /é preciso que a saudade / vá bater noutro lugá...”

Várias outras vezes Joubert de Carvalho visitou Maringá. Numa delas para a inauguração do seu busto na praça Raposo Tavares, em frente à antiga estação rodoviária. A história é interessante. No início de 1972, Brandespim e eu estávamos no Rio de Janeiro, telefonamos para Joubert e ele nos convidou para um lanche em seu apartamento, na Rua Paula Freitas, Copacabana. Numa sala onde o compositor tinha seu piano, vimos um busto dele, de bronze, presente de um escultor amigo. Sem pestanejar, sentenciei, em coro com o Brandespim: “Esta bela peça não pode ficar escondida aqui; o lugar dela é numa praça pública em Maringá”.

Joubert sorriu e comentou: “Já até pensei nisso, mas não posso dar uma de oferecido. Se algum dia receber um pedido oficial do prefeito de Maringá, tudo bem”. Pois então, tudo bem. Voltando para casa, procuramos o prefeito Adriano Valente, contamos a história, Adriano achou a ideia ótima e de imediato mandou datilografar o ofício solicitando ao grande músico que doasse o busto à cidade e que aqui viesse para a inauguração. Foi outro momento inesquecível. Com o tempo, a praça foi ficando feia, mas o busto de Joubert continua lá, à espera de que naquele espaço se construa algo à sua altura.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 14-5-2020)

Fonte:
texto enviado pelo autor

Li Bai (Poemas Escolhidos)


ACORDANDO EM UM DIA DE PRIMAVERA
Sonhar viver? Viver um sonho?
        Por que se preocupar?
Viver sempre bêbado,
        Dormir o resto do tempo.
É o que faço. Ao acordar
        eu vi um pássaro cantando entre as flores.
Eu perguntei: “Que dia é hoje?”
        “Primavera”, responderam.
“O currupião canta”. Eu suspirei.
        Aquele canto me tocava.
Eu me servi um copo
        e cantei esperando
        que a lua aparecesse.
No fim de minha canção,
        estava tudo esquecido.
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ADEUS A MENG HAORAN


A oeste do pavilhão da Grua amarela,
          Despedimo-nos, velho amigo.
Entre as flores e a bruma de março
          desces rumo à aldeia de Yang.
A vaga silhueta de tua solitária vela
          desaparece no espaço esmeralda,
E só resta o Grande Rio
          Que corre para o infinito do céu.
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BEBENDO SOZINHO SOB O LUAR


Entre as flores
         um jarro de vinho
        bebo sozinho
Ergo o copo,
        convido a lua,
Com minha sombra e eu
        já somos três.
Mesmo que a lua
         não saiba beber
e que minha sombra
         em vão me acompanhe,
eu me alegro
          festejando a primavera
          neste instante.
Eu canto,
        a lua me acompanha.
Eu danço,
        e minha sombra tropeça,
        e me estende o braço.
Ainda sóbrio,
         que a festa prossiga!
Bêbados,
        cada segue seu caminho!
Ligados para sempre
        simples amigos,
na Via-Láctea,
         Um ao outro,
Nos esperaremos.
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DIÁLOGO SOBRE A MONTANHA


Há quem me pergunte
         por que eu vivo
         nestas verdes colinas,
sem responder, eu sorrio,
        com o coração sereno:
flores de pessegueiro
         flutuam na água:
tudo vai embora e se apaga.
        Aqui é outra, a terra.
e outro, o céu.
        Nada em comum
com o mundo dos humanos
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NA CASA DA SENHORA XUN


Hospedo-me
         ao pé da montanha dos Cinco Pinheiros.
Profunda solidão
          e nada para me alegrar...
Rude é o trabalho
         dos camponeses
         no outono.
Ouço a mulher
            da fazenda vizinha
            socar o trigo
           no frio da noite.
A mulher que me hospeda se ajoelha
          para me oferecer
          um prato suculento
          de arroz.
A comida no prato
          brilha como pérolas
          sob a lua.
Perturbado,
          eu me lembro daquela lavadeira
          que ofereceu à sua visita
         um prato de arroz.
Agradeço três vezes,
           mas não consigo
engolir um só bocado.
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PENSAMENTOS


Diante de minha janela
        O brilho do luar.
Ou é a geada
         cintilando no chão?

Levanto a cabeça
        E contemplo a lua.
Baixo a cabeça -
        Saudades de minha terra natal!
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VISITA AO MONGE TAOÍSTA

Os latidos do cão se perdem
         no barulho da água
         depois da chuva,
A flor do pessegueiro
         se cobre de orvalho.
No fundo da floresta
         vez em quando
        um cervo.
Perto da torrente,
        ao meio dia,
        nenhum bater de sino.
A ponta fina dos bambus perfuram
        a névoa azulada
A cascada se agarra
        ao pico esmeralda
Ninguém sabe dizer
        onde ele foi,
E eu aqui, triste
        apoiado
ao tronco do pinheiro.

Fonte:
Sérgio Capparelli e Sun Yuqi

Aparecido Raimundo de Souza (Rubem Fonseca em Xeque)


A imensa arte de um grande escritor que só faz arte

NOTA DO ENTREVISTADOR: A reportagem abaixo, foi realizada em 2018, pouco antes de Rubem Fonseca lançar seu último livro, CARNE CRUA (na Livraria Travessa, na Visconde de Pirajá, em Ipanema), livro onde reuniu 26 crônicas curtas e  inéditas. Infelizmente, o escritor  veio à óbito, episódio que ocorreu em 15 de abril deste ano de 2020. Rubem Fonseca faleceu no Hospital Samaritano, aos 94 anos, após sofrer um infarto fulminante. Quando de nossa entrevista, em sua residência, fez questão de nos presentear com um de seus livros A Coleira do cão, lembrança que guardamos com muito carinho em nossa biblioteca pessoal. Descanse em paz, meu amigo.
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Estou aqui no Rio de Janeiro, ou mais precisamente na rua General Urquiza, no Leblon, tomando um delicioso café no apartamento de um cara que escreveu vários livros, entre eles, Coleira do cão, Feliz Ano Novo, Agosto, O Cobrador,  O Caso Morel, A Grande Arte, Vasta Emoções, O Selvagem da ópera, Diário de um Fescenino, O Doente Molière,  e outros mais. Ao todo, 30 títulos. Falo desse personagem mundialmente conhecido nas nossas letras, não só na esfera  nacional, como, igualmente, na internacional.

Não é outro o nosso entrevistado de hoje, senão o meu amigo JOSÉ RUBEM FONSECA, ou simplesmente RUBEM FONSECA. Mineiro de Juiz de Fora, nas Minas Gerais, onde nasceu aos 11 de maio de 1925. Rubem Fonseca é contista, romancista, ensaísta e roteirista brasileiro. Viúvo de Thea Maud, falecida em 1997 e pai de três filhos, Maria Beatriz, José Alberto e José Henrique Fonseca (este último, cineasta). Não podemos nos esquecer também dos seus cinco netinhos.

Aparecido: Vamos começar pelo final. Que prêmios o senhor ganhou como escritor:
Rubem: Aparecido, foram tantos. Vamos ver se me lembro de  alguns. Ganhei o Jabuti em 1970, 1984, e 1993. Antes o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte em 1979 e 2000. Em 2003 ganhei o Prêmio Camões, depois o Prêmio da Casa de Las Américas, em 2005, o Prêmio da ABL de Ficção, Romance, Teatro e Conto em 2007 e o Machado de Assis em 2015.

Aparecido: Além de exercer as funções que enumerei acima, o senhor teve alguma formação profissional?

Rubem: Sim. Me formei em direito na Faculdade Nacional de Direito, hoje UFRJ.

Aparecido: Chegou a exercer a profissão?

Rubem: Por pouco tempo. Meus colegas de faculdade e depois, no cotidiano do dia a dia viviam dizendo, melhor dizendo, viviam me criticando que como advogado eu era um excelente escritor. (Risos)

Aparecido: O senhor também fez uma rápida incursão pela polícia aqui do Rio de Janeiro. Procede essa informação?

Rubem: Perfeitamente. Em 1952, trabalhei como comissário de polícia prestando serviços no 16º Distrito Policial, em São Cristóvão.

Aparecido: Não gosto de fazer esse tipo de pergunta. Acho meio piegas, peço, todavia ao senhor que me perdoe. Qual foi seu primeiro livro?

Rubem: Nada a desculpar, Aparecido. Fique a vontade para perguntar o que quiser. Eu é que agradeço por saber que seu público leitor tem interesse em conhecer mais acentuadamente um pouco a meu respeito e a respeito do meu trabalho.  Meu livro de estreia foi um livro de contos, ao qual dei o nome de Os prisioneiros. Saiu em 1963.

Aparecido: Como escritor, o senhor deve ter a sua preferência por este ou por aquele autor.  Estou vendo aqui que a sua biblioteca é  imensa e bastante diversificada. Poderia enumerar alguns autores que já leu?
Rubem: Com toda certeza. Tirando os clássicos, como Jorge Amado,  José Lins do Rego, Machado de Assis,  Érico Veríssimo, eu tive o prazer de ler Nélida Piñon, todos, Ferreira Gullar, todos, Ariano Suassuna, todos, Luiz Fernando Veríssimo, alguns, Lya Luft, alguns, Moacyr Scliar, todos, Mailson Furtado e Carol Bensimon. Infelizmente a literatura brasileira não é vista com bons olhos. Não é bem difundida. Temos uma gama muito grande de escritores ótimos e gabaritados, mas o brasileiro por natureza tacanha, não gosta de ler. Ele não foi educado para isso. Em paralelo, as grandes editoras não prestigiam os escritores como deveriam, notadamente os que estão chegando agora. Apenas uma meia dúzia sobrevive de direitos autorais.

Aparecido: O senhor falou que as grandes editoras não prestigiam os escritores, notadamente os que estão chegando agora. A que o senhor atribui esse descaso?

Rubem: As grandes empresas editoriais que estão no mercado dão mais valor aos “empacotados”, e seus forasteiros, quando deveriam  se debruçar aos talentos que surgem a cada dia e que, por carência de um olhar mais acentuado, acabam se perdendo no obscuro do anonimato.

Aparecido: O que seria para o senhor os “empacotados”?

Rubem: (Risos) “Empacotados”, Aparecido, são todos os autores estrangeiros, ou seja, os não nascidos no Brasil, mas que vivem aqui, no meio de nós. Perceba. Faço referência aquelas figuras que surgiram do nada, talvez nem saibam para que lado fica o Brasil e, apesar disso, infestam as estantes de nossas livrarias  como  se fossem piolhos em cabecinhas de crianças. A exemplo eu traria à baila Ben Sherwood, Andressa Urach, Jojo Moyes, Nicholas Sparks, E. L. James, Zoé Valdés,  S. J. Watson, Stephenie Meyer, L. J. Smith, etc., etc. Com isso, autores emergentes deixam de prosperar e ter seu destaque à luz do sol.

Aparecido: Alguns críticos consideram seus escritos pornográficos. O senhor é um escritor que descamba para esse lado considerado para muitos, ou por muitos  como se fosse um autor obsceno?

Rubem: Sou literalmente devasso, sem ser expressamente deplorável.

Aparecido: Me fale um pouco de seu romance Bufo Spallanzani. Faço referência a ele, por três motivos distintos. a) Foi o livro que mais edições ganhou desde que o senhor o publicou; b) acabou virando um longa metragem e  c) porque a mim, me pareceu retratar, ainda que indiretamente, um pouco da sua vida. O personagem central é um escritor, vive da literatura,  contudo, de repente...

Rubem: Esse romance é um conto repleto de citações de e sobre outros autores e livros, além de muitas digressões sobre a arte de escrever narrativas. O personagem central, Ivan Canabrava narra acontecimentos de sua vida em flashback, ora aos leitores, ora a Minolta, sua namoradinha adolescente, amiga, amante e confidente. Várias histórias se entrelaçam, se misturam, se abraçam e se completam. Dividi a trama em cinco longas partes: 1) Foutre ton encrier, 2) Meu passado negro, 3) O relógio do Pico do Gavião, 4) A prostituta das provas e 5) A maldição. Na verdade, Aparecido são episódios da vida do narrador. Depois de se ocultar em uma casa, com uma menina adolescente, durante dez anos, o personagem Ivan descobre o amor e a literatura e se torna um escritor famoso. Durante esse tempo ele assumiu uma  nova identidade e, até mesmo fisicamente, se  tornou um homem diferente. Seu grande êxito, como autor consagrado, permite que leve uma  vida confortável. E a certeza de que não serão descobertas as suas imposturas e  os seus terríveis mistérios. Enfim tudo isso lhe dá a necessária tranquilidade para escrever seus livros. Até o dia em que a milionária Delfina Delamare aparece morta em seu carro. No porta–luvas do automóvel da mulher assassinada, um policial curioso encontra um livro de Gustavo com a dedicatória: “Para Delfina, que sabe que a poesia é uma ciência tão exata  quanto a geometria”. Para surpresa e horror de  Gustavo, esse policial começa a suspeitar dele.  O marido da morta, supondo que o escritor fosse amante dela, lhe faz uma série de ameaças. É isso. Se eu falar mais, estaria tirando a virgindade contida no romance sem me desfazer da calcinha que o reveste.  (Risos).

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Texto de Rubem Fonseca do livro “Histórias Curtas”

A LUTA CONTRA O PRECONCEITO RACIAL.

Decidi que iria lutar contra essa falsa noção de que existem raças superiores. Os defensores dessa ideia acreditam que ela é uma teoria científica comprovada. Essa crença tem sido usada para toda sorte de barbaridades, escravidão, exclusão, carnificinas. Mas o que eu podia fazer? Pensei em comprar uma metralhadora para matar racista, mas não sabia onde comprar uma metralhadora. Pensei em uma porção de coisas tolas e insensatas, mas afinal tive uma boa ideia: pichar as paredes da cidade com a frase ABAIXO O RACISMO.

Fonte:
Texto enviado pelo jornalista Aparecido Raimundo de Souza (Vila Velha/ES)

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 335


Stanislaw Ponte Preta (Cara ou Coroa)


Cara — Meu marido é um homem muito regrado, queridinha. Dorme sempre cedo, não fuma e não bebe uma gota.

Coroa — Pressão arterial.

Cara — O jogo foi pontilhado de incidentes, com jogadas bruscas de ambos os times, chegando os jogadores às agressões mútuas, sob o olhar complacente do árbitro.

Coroa — Jogo amistoso.

Cara — Tu é besta, seu! A moçada num fizero nada por causa de que faltou fibra, tá? Se é o meu ali eles entrava bem.

Coroa — Rubro-negro.

Cara — Você me encontra às três no café e vamos até lá bater um papo com ele. Depois, se você quiser, podemos ir a um cinema qualquer pra fazer hora.

Coroa — Funcionário público.

Cara — Que bobagem. Comemos um sanduíche e pronto, estamos almoçados. Comer em restaurante demora muito.

Coroa — Véspera de pagamento.

Cara — Essas bebidas estrangeiras são de morte. É tudo falsificado. A mim é que elas não pegam. Sempre que posso evitar de tomar uísque, gim e outras bombas, eu evito.

Coroa — Cachaceiro.

Cara — Meu bem, sou eu.. Olha, você vai jantando e não precisa se incomodar de guardar comida para mim. O chefe resolveu adiantar aqui uns processos e eu estou com cerimônia de me mandar e deixá-lo sozinho na repartição.

Coroa — Boate.

Cara — É o cúmulo a importância que os semanários dão a essas mocinhas do Arpoador. Umas sirigaitas muito sem-vergonhas, tirando retrato quase nuas, para essas reportagens
frívolas. Eu, hem?

Coroa — Feia.

Cara — O aumento do custo de vida no Brasil é uma consequência lógica do desenvolvimento do País, insuflado pelo crescimento da população e outros fenômenos dos quais só podemos nos orgulhar.

Coroa — Rico.

Cara — As crianças de hoje devem ser educadas através de métodos da moderna pedagogia, baseados em estudos da psicologia infantil. Na fase atual é um verdadeiro crime os pais gritarem ou baterem nos filhos.

Coroa — Solteira.

Cara — Trago comigo recortes com comentários sobre as minhas atuações. Gostei imensamente de lá. Eles adoram a bossa-nova e eu só não fiquei mais tempo porque senti
saudades da nossa terra.

Coroa — Cantor voltando do estrangeiro.

Cara — A beldade em questão é professora diplomada e relutou muito em aceitar o convite para se candidatar, pois adora o magistério. Lê muito e seu ator favorito é Somerset Maugham, adora poesia e gosta de praia. Não joga, não fuma e não bebe.

Coroa — Candidata a miss.

Cara — O Rio é muito mais lindo do que imaginava. Copacabana é um sonho das Mil e uma noites que se tornou realidade. O Pão de Açúcar é uma beleza e, quando voltar ao
Brasil, gostaria de ir ver Brasília.

Coroa — Visitante ilustre, no Galeão.

Cara — Um dia ainda hei de me dedicar ao lar, sem prejuízo de minha carreira.

Coroa — Atriz.

Cara — Minha peça é uma sátira aos costumes modernos, pois minha intenção era dar um cunho social à trama. A mensagem nela contida é o protesto popular contra as injustiças da sociedade.

Coroa — Autor estreante.

Cara — Os compromissos que assumimos para com o povo nos obrigam a combater as forças imperialistas, o capital colonizador, os grandes trustes, toda e qualquer opressão sobre o operariado e suas justas reivindicações.

Coroa — Deputado da esquerda.

Cara — É nosso dever combater sem tréguas as constantes tentativas de subverter as massas, as sistemáticas infiltrações no meio das classes operárias, os falsos representantes do povo, que se arvoram em seus defensores para fins inequívocos.

Coroa — Deputado da direita.

Cara — Tudo faremos pela vitória. Um abraço para os meus  familiares.

Coroa — Jogador de futebol.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Carlos Drummond de Andrade (Poesias Avulsas) IV


DESTRUIÇÃO

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se veem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.
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ELEGIA 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guardas chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas por entre os mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
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O AMOR ANTIGO


O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige, nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor
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SENTIMENTAL


Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçadas na mesa todos completam
esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!

- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
"Neste país é proibido sonhar.”
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VERBO SER


Que vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor. Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer?
Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender.
Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser
Esquecer.

Fernando Sabino (Ao Bom Bebedor Meia Garrafa Basta)


A primeira vez que provei bebida alcoólica foi aos 11 anos. Estávamos acantonados nos galpões vazios da antiga Feira de Amostras, ali onde é hoje o Aeroporto Santos Dumont. Havia latas de doce vazias, invólucros sem conteúdo, rótulos sem produto — restos da última exposição: nada que satisfizesse a nossa gula. Em companhia de outro pivete (que acabaria regenerado tornando-se hoje um competente cirurgião), arrombei a janela de um galpão que supúnhamos cheio de comedorias, para acabarmos apanhados em pleno malfeito pelo vigia do lugar. (O que nos valeu um esculacho pouco digno da nossa condição de escoteiros.) Até que alguém mais esperto descobriu num desvão da antiga feira um depósito de garrafas cheias.

Cheias de que? Só vim a saber quando vi os mais velhos fazendo correr uma garrafa de mão em mão, e bebendo pequenos goles furtivos entre risinhos de malícia. Fui buscar meu caneco de folha e pedi que me dessem um pouco. Tanto insisti que acabaram se enchendo, e encheram o caneco para se verem livres de mim. Eu imaginava que aquilo tivesse o gosto delicioso de alguma soda limonada, groselha ou guaraná. E virei tudo de uma vez só.

Era cachaça pura.

Só não morri ali mesmo porque quis Deus me experimentar ao longo da vida, propiciando-me generosamente outras espécies de bebida. Mas passei a noite delirando, depois de haver vomitado a própria alma até o rabo. Hoje sinto náuseas ao mais leve cheiro de cachaça.

Enquanto escrevo, entre um gole e outro de uísque, penso se serei capaz de me revestir da seriedade que o assunto exige. A sabedoria, que faz de beber uma arte, talvez repouse nos mesmos princípios de proporção, equilíbrio e harmonia que regem as outras artes. E que estabelecem o primado da qualidade sobre a quantidade. Beba bem e viva melhor — seria o slogan que eu proporia a uma campanha publicitária de apologia da bebida.

A essa altura já ouço o leitor abstêmio comentar, indignado: — Apologia da bebida. Esse cretino ousa sugerir publicidade para um dos mais terríveis males que afligem a humanidade.

Ouso sugerir que a humanidade é afligida não pelo álcool, mas pelo alcoolismo. A arte de bem beber se contrapõe justamente ao vício de beber mal. O álcool em si não é bom nem mau, e existe desde que o homem é homem. Todas as civilizações conhecidas produziram alguma espécie de bebida alcoólica. O mal não está no que entra no homem, mas no que dele sai, como afirmou Cristo. Ele próprio não consagrou a água, o leite ou a Coca-Cola: consagrou o pão e o vinho, como alimentos do corpo e do espírito.

É preciso respeitar a bebida — não saber beber é que constitui um dos mais terríveis males que afligem a humanidade. Esta é uma lição que eu gostaria de saber de cor antes de beber e não na manhã seguinte, como geralmente me acontece.

Um cientista sueco, por sinal que Prêmio Nobel, descobriu recentemente uma substância capaz de neutralizar a toxidez do álcool, impedindo sua metabolização no organismo, sem impedir seus agradáveis efeitos no cérebro. Esta descoberta terá, em relação à bebida, o mesmo impacto que a pílula teve em relação ao sexo: agora é que eu quero ver o que será da humanidade, bebendo sem parar, e se sentindo fisicamente cada vez melhor.

Aos 15 anos tomei o primeiro grande pileque de minha vida. De gim, que até hoje me sabe a loucura e tem o gosto de consequências fatais. Na manhã seguinte fui curar minha ressaca enfrentando a ressaca ainda mais poderosa do mar no Posto Dois. Se não morri de beber na véspera, poderia ter morrido afogado. Mas eu era jovem, e como todo jovem, imortal.

Até que chegou o momento, com alguns chopes de permeio, de finalmente me iniciar no uísque, a que permaneci fiel. Era um baile no Automóvel Clube, em Belo Horizonte, e o uísque da moda era Old Parr. Tomado com guaraná! Entrei no uísque como se fosse refrigerante, e entrei bem. Meu irmão me encontrou em coma alcoólica debaixo do chuveiro aberto, ainda vestido no elegante dinner-jacket da minha primeira festa a rigor — rigorosamente ensopado e vomitado.

Com tantos fracassos sucessivos, não sei como não caí na mais intransigente das abstinências. É que em pouco surgia a hora da verdade, no grupo de quatro amigos já composto para a vida inteira. Encharcados de chope e literatura, enchíamos de desvario a silenciosa noite de Minas, convertendo a bebida em indispensável combustível de nossa rebeldia. Rebeldia contra que? Contra tudo. Tínhamos de beber para justificar a embriaguez da mocidade em que vivíamos.

Deixemos que falem os entendidos — no caso, os mestres Luís Lobo e Leopoldo Adour da Câmara. Assim se expressam eles no seu admirável receituário “A Arte do Rabo de Galo”, um “breve discurso em torno de copos e garrafas”: “Não há motivo para criticar a bebida em razão dos que se embriagam. Como ninguém critica a comida simplesmente porque há gente capaz de comer até morrer de indigestão.”

Falou. Ou melhor, falaram — e está falado: como a comida, assim a bebida, em quantidade razoável, é perfeitamente inofensiva, tendo o efeito de estimular o apetite, ajudar a digestão, relaxar os nervos e tornar a vida mais agradável.

Mas, aqui entre nós, onde ficam os limites do razoável?

Não será, certamente, na primeira dose. Esta apenas prepara o caminho para a segunda. E a segunda dose... Já dizia o prefeito de Rochester a Henrique Savile (dois indivíduos de quem eu nunca ouvira falar, mas competentes, desde que citados pelos autores acima mencionados): “Oh, aquela segunda dose; é o mais sincero, o mais sábio, o mais imparcial amigo nosso; diz a verdade sobre nós mesmos e força-nos a dizer a verdade sobre os outros. Barra a lisonja das nossas bocas e a desconfiança dos nossos corações; coloca-nos acima da política dos preconceitos de cortesia, os quais nos fazem mentir de dia com receio de sermos traídos à noite.”

E a terceira dose?

A partir da terceira dose, reconheço, as coisas se complicam um pouco. Se a humanidade está atrasada de três uísques, como dizia Humphrey Bogart, ao recuperar o atraso a gente se vê de súbito, copo vazio na mão, ante o dilema de tomar mais um ou se dar por satisfeito com a recuperação. E é aí que intervém a já referida sabedoria da dupla Lobo e da Câmara, afirmando: “Um bom conselho em relação à quantidade é parar de beber quando sentir que dá para beber mais um, porque dois será demais. Este um provavelmente também o será.”

Por isso é que um velho amigo meu, conhecido pelo hábito de sempre tomar mais um, afirmava outro dia num bar que, de sua parte, jamais passava de três uísques. Ante o protesto geral, insistiu, com a mais cínica das convicções: “Eu só tomo três; depois do terceiro me transformo noutro sujeito, e este sim, bebe como gente grande.”

Fiquemos, pois, no terceiro. Ainda que a contagem varie de bebedor para bebedor, podendo começar a partir do terceiro, ou mesmo ser regressiva, como no lançamento de foguetes.

Por falar em foguetes: e a ressaca? Entendidos de lado, falo de experiência própria: não há cura mais eficiente do que evitá-la. Como se sabe, (ou não se sabe?) — a ressaca começa pelo cigarro fumado. Mesmo pelos que não fumam: quatro horas de permanência num ambiente fechado e cheio de fumaça pode corresponder até a vinte cigarros fumados. Há outras causas, é óbvio — a partir da bebida de má qualidade. É incrível como tantos que se dizem bons bebedores são capazes de aceitar como bebida legítima as mais grosseiras falsificações. No entanto, um mínimo de atenção e cuidado ao beber seria o suficiente para denunciá-las. O bom uísque, por exemplo, não morde a gente: cai bem, sem causar estranheza, sem chamar atenção sobre a língua, redondo dentro da boca, sem arestas, sem azinhavre nas bordas, sem largar ferrugem ao longo da garganta, sem deixar gosto de lápis no esôfago, sem levantar poeira no estômago. O bom uísque, enfim, é aquele sobre o qual não resta a menor dúvida.

Falou.

Falei — e não disse. Ao fim de minhas digressões, vejo que não cheguei a sair do princípio, ou seja, sinto que mal cheguei a entrar no assunto. Agora é tarde: só me resta tomar mais um e dar por atingido o meu propósito (ou despropósito, se preferirem) de enaltecer a bebida como fator de bom entendimento entre os homens. Ou, pelo menos, do homem consigo mesmo.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 334


José J. Veiga (A Máquina Extraviada)


Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste sertão, e finalmente posso lhe contar uma importante. Fique o compadre sabendo que agora temos aqui uma máquina imponente, que está entusiasmando todo o mundo. Desde que ela chegou - não me lembro quando, não sou muito bom em lembrar datas - quase não temos falado em outra coisa; e da maneira que o povo aqui se apaixona até pelos assuntos mais infantis, é de admirar que ninguém tenha brigado ainda por causa dela, a não ser os políticos.

A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam jantando ou acabando de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com os gritos dos choferes e seus ajudantes (a máquina veio em dois ou três caminhões) muita gente cancelou a sobremesa ou o café e foi ver que algazarra era aquela.

Como geralmente acontece nessas ocasiões, os homens estavam mal-humorados e não quiseram dar explicações, esbarravam propositalmente nos curiosos, pisavam-lhes os pés e não pediam desculpa, jogavam pontas de cordas sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar ou se machucar que saísse do caminho.

Descarregadas as várias partes da máquina, foram elas cobertas com encerados e os homens entraram num botequim do largo para comer e beber. Muita gente se amontoou na porta mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque um deles, percebendo essa intenção nos curiosos, de vez em quando enchia a boca de cerveja e esguichava na direção da porta. Atribuímos essa esquiva ao cansaço e à fome deles e deixamos as tentativas de aproximação para o dia seguinte; mas quando os procuramos de manhã cedo na pensão, soubemos que eles tinham montado mais ou menos a máquina durante a noite e viajado de madrugada.

A máquina ficou ao relento, sem que ninguém soubesse quem a encomendou nem para que servia. Ë claro que cada qual dava o seu palpite, e cada palpite era tão bom quanto outro.

As crianças, que não são de respeitar mistério, como você sabe, trataram de aproveitar a novidade. Sem pedir licença a ninguém (e a quem iam pedir?), retiraram a lona e foram subindo em bando pela máquina acima - até hoje ainda sobem, brincam de esconder entre os cilindros e colunas, embaraçam-se nos dentes das engrenagens e fazem um berreiro dos diabos até que apareça alguém para soltá-las; não adiantam ralhos, castigos, pancadas; as crianças simplesmente se apaixonaram pela tal máquina.

Contrariando a opinião de certas pessoas que não quiseram se entusiasmar, e garantiram que em poucos dias a novidade passaria e a ferrugem tomaria conta do metal, o interesse do povo ainda não diminuiu. Ninguém passa pelo largo sem ainda parar diante da máquina, e de cada vez há um detalhe novo a notar. Até as velhinhas de igreja, que passam de madrugada e de noitinha, tossindo e rezando, viram o rosto para o lado da máquina e fazem uma curvatura discreta, só faltam se benzer. Homens abrutalhados, como aquele Clodoaldo seu conhecido, que se exibe derrubando boi pelos chifres no pátio do mercado, tratam a máquina com respeito; se um ou outro agarra uma alavanca e sacode com força, ou larga um pontapé numa das colunas, vê-se logo que são bravatas feitas por honra da firma, para manter fama de corajoso.

Ninguém sabe mesmo quem encomendou a máquina. O prefeito jura que não foi ele, e diz que consultou o arquivo e nele não encontrou nenhum documento autorizando a transação. Mesmo assim não quis lavar as mãos, e de certa forma encampou a compra quando designou um funcionário para zelar pela máquina.

Devemos reconhecer - aliás todos reconhecem - que esse funcionário tem dado boa conta do recado. A qualquer hora do dia, e às vezes também de noite, podemos vê-lo trepado lá por cima espanando cada vão, cada engrenagem, desaparecendo aqui para reaparecer ali, assoviando ou cantando, ativo e incansável. Duas vezes por semana ele aplica caol nas partes de metal dourado, esfrega, sua, descansa, esfrega de novo - e a máquina fica faiscando como joia.

Estamos tão habituados com a presença da máquina ali no largo, que se um dia ela desabasse, ou se alguém de outra cidade viesse buscá-la, provando com documentos que tinha direito, eu nem sei o que aconteceria, nem quero pensar. Ela é o nosso orgulho, e não pense que exagero. Ainda não sabemos para que ela serve, mas isso já não tem maior importância. Fique sabendo que temos recebido delegações de outras cidades, do estado e de fora, que vêm aqui para ver se conseguem comprá-la. Chegam como quem não quer nada, visitam o prefeito, elogiam a cidade, rodeiam, negaceiam, abrem o jogo: por quanto cederíamos a máquina. Felizmente o prefeito é de confiança e é esperto, não cai na conversa macia.

Em todas as datas cívicas a máquina é agora uma parte importante das festividades. Você se lembra que antigamente os feriados eram comemorados no coreto ou no campo de futebol, mas hoje tudo se passa ao pé da máquina.

Em tempo de eleição todos os candidatos querem fazer seus comícios à sombra dela, e como isso não é possível, alguém tem de sobrar, nem todos se conformam e sempre surgem conflitos. Felizmente a máquina ainda não foi danificada nesses esparramos, e espero que não seja. A única pessoa que ainda não rendeu homenagem à máquina é o vigário, mas você sabe como ele é ranzinza, e hoje mais ainda, com a idade. Em todo caso, ainda não tentou nada contra ela, e ai dele. Enquanto ficar nas censuras veladas, vamos tolerando; é um direito que ele tem. Sei que ele andou falando em castigo, mas ninguém se impressionou.

Até agora o único acidente de certa gravidade que tivemos foi quando um caixeiro da loja do velho Adudes (aquele velhinho espigado que passa brilhantina no bigode, se lembra?) prendeu a perna numa engrenagem da máquina, isso por culpa dele mesmo. O rapaz andou bebendo em uma serenata, e em vez de ir para casa achou de dormir em cima da máquina. Não se sabe como, ele subiu à plataforma mais alta, de madrugada rolou de lá, caiu em cima de uma engrenagem e com o peso acionou as rodas. Os gritos acordaram a cidade, correu gente para verificar a causa, foi preciso arranjar uns barrotes e labancas para desandar as rodas que estavam mordendo a perna do rapaz. Também dessa vez a máquina nada sofreu, felizmente. Sem a perna e sem o emprego, o imprudente rapaz ajuda na conservação da máquina, cuidando das partes mais baixas.

Já existe aqui um movimento para declarar a máquina monumento municipal - por enquanto. O vigário, como sempre, está contra; quer saber a que seria dedicado o monumento. Você já viu que homem mais azedo?

Dizem que a máquina já tem feito até milagre, mas isso - aqui para nós - eu acho que é exagero de gente supersticiosa, e prefiro não ficar falando no assunto. Eu - e creio que também a grande maioria dos munícipes - não espero dela nada em particular; para mim basta que ela fique onde está, nos alegrando, nos inspirando, nos consolando. O meu receio é que, quando menos esperarmos, desembarque aqui um moço de fora, desses despachados, que entendem de tudo, olhe a máquina por fora, por dentro, pense um pouco e comece a explicar a finalidade dela, e para mostrar que é habilidoso (eles são sempre muito habilidosos) peça na garagem um jogo de ferramentas, e sem ligar a nossos protestos se meta por baixo da máquina e desande a apertar, martelar, engatar, e a máquina comece a trabalhar.

Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e não existirá mais máquina.

Fonte:
Conto publicado em 1968, em José J. Veiga. A Máquina Extraviada.

Teresinka Pereira (Poemas Recolhidos) VI


ABSURDO

Os maiores pecados
sob o poder da igualdade.
A natureza mutilando
as criaturas
e exigindo seu amor!

Na água, no céu,
no meio da rua
um incêndio de dores:
mas a alma bendiz
a noite, os lábios incontidos
selando a ignorância poderosa.

Coragem!
Atacar o absurdo deserto
seria evidência
de frustração.
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AGORA É PRECISO RECONHECER


O mundo
é uma cabeça em chamas
embora poucos queiram
acreditar.

A verde espessura
das florestas
e o azul do mar
se acabaram
esperando a consciência
humana
liberar-se da ambição,
do abuso
e da demanda
de comodidades.

Agora é preciso
reconhecer
que o ar, a água e a terra
valem mais que o dinheiro.
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FOME DE AMOR


Se estivesses aqui
eu iria te olhar amando
e dar-te-ia a minha mão
deixando que o silêncio
nos dissesse que a felicidade
é fácil a qualquer hora.

A fome de amor
geme na madrugada
e como Narciso insatisfeito
olho-me só e devoro-me
nos próprios sonhos
para não morrer de tédio.

Um estranho cansaço
me invade o pensamento
e me obriga a desfazer o passado
esperando outra vez a ilusão...

Quanto eu gostaria de ter forças
para olhar-te os olhos na distância!
****************************************
 

MUNDO DE PAPEL

Não há ainda um bom
tratado de ecologia
porque o filósofo
verde
é tão invisível para nós
como as luzes de Saturno...
Haverá um dia
em que o papel
será uma velha lembrança
como a areia do deserto
será o ouro da utopia.
Mas agora, enquanto nós,
os escritores, ainda somos
de carne e osso,
vivemos em uma
montanha de papel.
****************************************
 

NÃO VIVEMOS

Não vivemos, só morremos.
Isso nos dizem na escola,
na igreja e na família.
Dizem que a morte é bela,
mas a mim me parece sórdido
que os vivos dependam
das mortes dos heróis
para seguir vivendo
sua própria morte.

A primavera vem a meio passo
e morre antes da última flor.
A luz do dia é linda,
mas é durante a noite
que nos aliviamos
de nossa tristeza de viver.

O sol é mais humilde que a flor
e os sonhos são
muito mais eloquentes
que as vitórias do amor.

É uma total alucinação viver
sem um sonho puro porque
cada manhã a luz aberta
nos rouba do tempo
e do ébrio segredo da vida.
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PAIXÃO


Nem mesmo o tempo
pode impedir-me!
Tenho uma língua panorâmica,
olhos famintos
e pés invisíveis:
estou apaixonada!
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PREPARAÇÃO


Onde está o amor,
se há tanta solidão
no caminho da vida?

Onde está o sol
se a noite chegou tão cedo
à manhã de semear?

Onde está o sorriso,
se a poesia se endureceu
ouvindo o ódio na véspera
desta não merecida guerra pessoal?

Fonte:
Poemas enviados pela poetisa.

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Cinco


DE QUANDO O TIRO SAI PELA CULATRA

“Minha casa era modesta, mas eu estava seguro, não tinha medo de nada“.
De “O Divã” de Roberto Carlos e Erasmo Carlos.


NO LUGAR ONDE EU MORO, ou seja, na casa de meus pais, a coisa anda pra lá de feia. Além do pai e da mãe, doze outras bocas famintas ajudam a aumentar as despesas, contando, é claro, as quatro do fogão. Embora essas não sejam humanas, consomem o gás da botija para manter as panelas com os fundos de suas bundas quentinhas. Ao todo, somos seis homens e quatro mulheres de tirar o sossego do Papa, computadas, igualmente, sem as do vídeo que não funciona. Os números de pés chegam a vinte e sete, incluindo os três da geladeira e quatro do fogão. Felizmente esses não utilizam sapatos.

Cabe aqui uma explicação. O refrigerador ficou capenga em decorrência da mudança. Os carregadores (mais desastrados que apressados, ou as duas coisas juntas) fizeram a gentileza de quebrar um deles, na descida do caminhão. Para que as pessoas se situem, nos escondemos do tempo numa chácara de cinco mil metros quadrados, ao redor da cidade. A construção é bastante antiga e espaçosa, além de engraçada, extremamente engraçada. Existe, nela, uma escada interna em formato de caracol ligando o andar térreo ao superior. Nesse piso, vários quartos se alinham juntamente com dois banheiros extras. De manhã, mesmo com esses dois banheiros extras, é um verdadeiro inferno, com toda a galera querendo, ao mesmo tempo, fazer uso das privadas.

Se alguém não consegue segurar as necessidades mais prementes urge correr nos fundos do quintal (tem uma parte que é só mato), para não sujar as calças com os excrementos. É uma opção não muito acertada, todavia, melhor que ruminar um bolo malcheiroso querendo explodir para fora de qualquer forma. Não dormimos em beliches, mas em colchonetes espalhados pelo assoalho. Meus velhos são os únicos que utilizam uma cama de ferro acomodada em lajotas, presente do Tio Firmino, que morreu ano passado, do coração. Na entrada dos lavabos, meu irmão Luiz afixou uma espécie de prateleira presa a braçadeiras de ferro, onde são guardadas as escovas de dente, da dentadura de vovô e de cabelos, somadas aos tubos de pastas e outras quinquilharias de uso estritamente indispensável ao embelezamento matinal.

Temos o Pavio, sujeito bom que ajuda meus pais nos afazeres diários. Não me recordo, se o incluí na contagem das cabeças, bocas e pés, mas que diferença isso faz agora?  Pavio é considerado membro da família. Uma espécie de criado, na realidade. O coitado só não fala.  Ficou mudo depois que perdeu a língua num assalto. Os bandidos que o renderam, além de levarem todos os pertences, um fusquinha 68, alguns trocadinhos e os tênis, acharam por bem lhe faturar também o órgão da fofoca, perdão, do paladar. Quem botou esse apelido de Pavio, no Pavio, foi á mamãe, que o tirou de Pinóquio, de Collodi, seu livro de cabeceira. 

Meu irmão mais novo, o Zazinho, engajou no exército. É quase tenente. Quando está de folga (permanece muito tempo no quartel), a gente costuma lhe apresentar a vassoura de piaçava para varrer o quintal. O cara fica muito irado, porque a vassoura não tem cabo e ele, para dar conta do recado, precisa se curvar sobre a própria barriga. Papai colocou na sala um sofazinho sem braços. À noite, para assistirmos a televisão de onze polegadas, desligamos o lampião de gás sobre a estante. Temos luz elétrica lá para dentro, quero dizer, lá para cima, porém, o Beto – meu outro irmão (que estudou eletricidade), ainda não achou tempo de puxar a fiação e botar os bicos de luz nos cômodos faltosos.

No imenso quintal, plantamos de tudo. Da alface, para a salada, ao arroz com feijão. Mamãe ganhou um louro que detesta dar o pé. E o mais engraçado. Não gosta que lhe catem os piolhos. Não repete nada do que falamos, vive de olho num gato sem rabo que a Mariana, a consanguínea do meio faturou quando completou quinze anos. Aliás, essa aí é a menina dos olhos de papai. Ele ficou cego de uma vista, por causa da diabete e Mariana é quem o leva todo mês, a tira colo, na caixa para receber a aposentadoria e sair pagando depois, as contas. A nossa rua não é propriamente o que poderíamos chamar de avenida. Está mais para um beco apertado. Não tem saída. Ela termina num encosto de morro que não leva a lugar nenhum. Tio Chico (irmão de papai), a apelidou de ‘via curta’. Não dá mão. Nem pé. Quando o bauzão do mercado entra para vir fazer a entrega das compras, ou um carro de passeio estaciona em outros portões, os motoristas se vêm com os nervos em frangalhos. Chegam a arrancar os cabelos, mesmo aqueles que foram benfazejados pela calvície prematura. Os que não são carecas, falam mal, esbravejam e xingam o prefeito.

O melhor dia, aqui em casa é realmente o domingo. A família, em peso, se reúne em derredor da velha mesa de cozinha para o almoço. Alguém põe sempre para assar uma carne de traseiro. Arrastamos o móvel da vitrola até a varanda e a coisa só não fica cem por cento animada quando o braço do toca-disco resolve não pousar a agulha de cristal nos velhos setenta e oito rotações. Temos consciência que papai está no fundo do poço (a doença que o definha, aos poucos, lembrando, a cegueira, o deixa desanimado, na maioria das vezes), contudo, o mais importante, está direto ao nosso lado, dando o devido apoio e procurando manter a moral erguida e a família unida, igual arroz grudento tipo “unidos venceremos”.

Vamos falar, agora, do poço.  O nosso é desses artesianos, quase cinquenta e dois metros de fundura. Papai, de quinze em quinze dias costuma mandar o Pavio ir lá no fundo para averiguar não sei exatamente o quê. Acho que deve ser para se certificar como está a água, que jorra em abundância e enche não só a nossa caixa como a de mais uma meia dúzia de vizinhos. Temos mania de dizer que Pavio vai e volta do fundo do poço, com uma velocidade incrível, e quando sai do buraco, vem içado num grande balde, preso a fortes correntes do tempo em que vovó e vovô, andavam de bicicleta de uma roda só. 

Papai, de quando em vez, tem umas recaídas brabas. Nessas ocasiões, se tranca, no quarto, para chorar escondido, no colo de mamãe. Meio que apavorada, ela se transforma numa espécie de santa: nessas ocasiões, não fala com ninguém, não atende nenhum de nós e só tem olhos para o esposo (afinal, são quase quarenta e cinco anos de convivência).  Toda vez que isso acontece, ou seja, quando papai se enfurna no colo de mamãe, ficamos apreensivos, pensando que talvez papai, desiludido com a vida, acabe por decidir findar com a existência.

Desde o ano passado, papai encasquetou que está dando muito trabalho, e, em vista disso, por se considerar um trambolho, pularia da ponte. Até então ninguém levou fé. Até sábado retrasado, pelo menos. Meu pai esperou Mariana ir para o trabalho. Sem que ninguém desse pela coisa locou um táxi na pracinha e quando chegou na parte mais alta, no chamado vão central da morte, fingindo um ligeiro mal estar, pediu para que o motorista parasse. Precisava vomitar, teria dito ao motorista. O motorista, coitado, vendo a agonia do cidadão, encostou. Papai saltou e lentamente se achegou da amurada. Olhou para o vazio do mar imenso. Fez pior, subiu na amurada. O motorista do táxi, um sujeito baixo e corpulento, de mãos e pés pequenos, rosto com papada, cabeça arredondada, como uma batata sob um solidéu, apreensivo, imediatamente fechou os olhos. Às apalpadelas, se segurando no carro, tremendo pior que caniço em ventania, chegou o mais rápido que pode, tentando evitar que seu passageiro fizesse a besteira.

Sem contar que o maluco que ameaçava pular, meu querido pai, nem pagara a corrida. Quando voltasse, teria que acertar com o dono do carro. Contudo, quando chegou para segurar meu velho, o cidadão não teve escolha. Precisou abrir os olhos. Ao fazê-lo, se borrou. Deu de cara com o mar imenso. E mais que o mar, com a altura. Não deu outra. Frente ao medo, desmaiou. Papai, que pensava em saltar, sair furtivamente da vida, sem considerar seus dias de glória nem temer o castigo que se abateria sobre seus costados, de repente mudou de ideia e despulou das garras da morte iminente. Correu apressado, afoito, temendo que o pobre motorista viesse a óbito.  Nesse corre-corre sinalizou para outros que cruzavam. Conclusão: prevaleceu a solidariedade da galera. Juntou uma pá de gente e todos se uniram. Levaram o pobre do motorista, para o pronto socorro mais próximo, o semblante deste, branco, mais alvo que rosto de mármore repousando num museu. Era possível enxergar sua alma através da pele. Graças a Deus, com esse peripaque do infeliz, papai tirou definitivamente essa história de querer se suicidar.

Ele e o tal motorista (seu Adão do Fiat 147 amarelo) estão vivos até hoje. Ficaram amigos. Todo final de semana, o referido senhor vem aqui para casa. Sentam ao sol, num banco de madeira, com ares plenos do dever cumprido. O futuro que os contempla, deixa sobre suas carcaças, uma vazia perspectiva a se derramar na eternidade.  Pelo sim, pelo não, mas pelo sim, que pelo não, o incidente serviu para unir dois medrosos abestalhados. Um de pular, e o outro, de perder o valor da corrida. As más línguas atestam o contrário. À boca miúda, observam que papai, na hora agá, tremeu na base, vendo o motorista revirando os olhos e entrando em pânico. Por seu turno, o motorista, com medo de altura, ao olhar para baixo, empalideceu, descorou e por essa razão, desfaleceu boquiaberto. Nessa lengalenga do campeonato, vai se saber! Aliás, é humanamente difícil, senão impossível, de se compreender. E cá entre nós, compreender para quê?! 

Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.