segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 371

 


Stanislaw Ponte Preta (Do Teatro de Mirinho: A burocracia do buraco)


Ato único

Cena — Na repartição onde se aceita reclamação sobre  buraco.

Personagens — Funcionário que anota buraco e cidadão que  reclama buraco.

Cenário — Quando o pano abre, o palco mostra uma repartição comum, dessas repartições estaduais, onde mosca treina aviação e onde se junta um monte de funcionários, esperando a hora de ir para casa. Ao centro, uma mesa com a inscrição "Buracos Aqui". O funcionário está sentado à margem dessa mesa, fingindo que escreve. O espetáculo começa quando entra o cidadão, vestindo terno, pasta debaixo do braço. Tem cara de quem acredita no Estado.

Cidadão — (Entrando e parando ao lado da mesa) Boa tarde!

Funcionário — (Levantando a cabeça e olhando para o cidadão de alto a baixo) Boa tarde!

Cidadão — Na minha rua tem um buraco.

Funcionário — Um só???

Cidadão — Bom... na verdade tem uma porção de buracos, mas este de que eu falo não é mais um buraco.

Funcionário — O senhor está querendo me gozar?

Cidadão — (Colocando a mão no ombro do funcionário, com medo que ele vá tomar café antes de o atender) O senhor não me entendeu.

Funcionário — (Já tomando aquele ar de superioridade que tinham os funcionários cariocas em 1959 A. C. — isto é, antes de Carlos) Entendi perfeitamente... O senhor chegou aqui dizendo que tinha um buraco.

Cidadão — Eu não. A minha rua.

Funcionário — Pois não... a sua rua. O senhor disse que tinha um buraco, depois que já não era mais buraco. Afinal, qual é o assunto? É buraco?

Cidadão — Sim, buraco. O senhor não me deixou explicar direito. Eu quis dizer que aquilo já não é mais buraco.

Funcionário — Taparam o buraco?

Cidadão — Pior. . . Era um buraco pequeno (faz o gesto), enfim, um buraquinho. Foi crescendo, crescendo, agora é um buracão.

Funcionário — É o maior buraco do bairro?

Cidadão — (Orgulhoso e de peito estufado que nem o Amando da Fonseca) Modéstia à parte, não é por estar na minha presença não, mas lá na redondeza não tem rua com um buraco igual ao da nossa rua.

Funcionário — É preciso acabar com essa proteção.

Cidadão — (Voltando ao ar humilde) O senhor sabe. .. eu ouvi dizer que a gente deve colaborar pra "Operação-Buraco".

Funcionário — (Vestindo o paletó) Meu amigo, eu estou de saída.

Cidadão — Mas eu não vejo mais ninguém aqui, para me atender.

Funcionário — É que metade tem horário de mãe de família, como eu, e a outra metade tem horário de quem mora longe.

Cidadão — Que pena. Eu queria tanto colaborar!

Funcionário — O senhor deixa aí nome e endereço.

Cidadão — Do buraco?

Funcionário — Que buraco, seu? O senhor parece tatu. Só pensa em buraco. Onde já se viu buraco com endereço?

Cidadão — Mas esse de que eu falo, tem. É lá perto de casa.

Funcionário — Bem em frente à sua casa?

Cidadão — Não, senhor. O buraco é mais em cima.

Funcionário — O senhor conhece bem o buraco?

Cidadão — Se eu conheço? (Ar de superioridade) Meu amigo, desde pequenino que eu conheço. Crescemos juntos. O buraco é muito popular lá no meu bairro. Vão até inaugurar uma linha de ônibus para lá.

Funcionário — Linha de ônibus?

Cidadão — Sim, senhor: "Mauá—Buraco, Via Jacaré".

Funcionário — Pelo jeito esse buraco acaba elegendo um deputado. Só falta falar.

Cidadão — Pela idade que tem, já era pra falar.

Funcionário — Tão antigo assim?

Cidadão — O buraco hoje faz vinte anos.

Funcionário — Hoje??? Então vamos comemorar. (Cantam o parabéns)

Funcionário — (Abotoando o paletó) Pois, meu amigo, tive imenso prazer em conhecê-lo. Recomende-me ao buraco. Que esta data se reproduza por muitos e muitos anos.

Cidadão — O senhor vai embora?

Funcionário — Eu tenho que levar minha esposa ao médico.

Cidadão — O senhor não disse que tinha horário de mãe de família?

Funcionário — Ou isso.

Cidadão — (Agarrando o outro pelo braço) O senhor não vai sair sem me atender.

Funcionário — (Tentando se desprender e visivelmente irritado) Me larga, poxa! O senhor pensa que só o seu buraco é que interessa ao governador? Fique sabendo que buraco é que não falta. (Apoplético): Eu já sei o que o senhor quer. Eu já estou farto de ouvir sempre a mesma coisa. (Aos berros): O senhor quer é que a gente tape o buraco, não é?

Cidadão — (Começa a rir) Eu não venho pedir para tapar buraco nenhum. Eu apenas represento o comitê lá da minha rua.

Funcionário — E não é pra tapar o buraco?

Cidadão — Não, senhor. O comitê está estudando o problema e quer saber.

Funcionário — Saber o quê?

Cidadão — Saber oficialmente. Quer que esta nova repartição — já que é especializada em buraco — resolva.

Funcionário — Mas resolva o quê, seu chato?

Cidadão — Se é o buraco que fica na nossa rua ou é a nossa rua que fica no buraco.

(Cai o pano esburacado e os atores caem no buraco do ponto)

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Apollo Taborda França (Grandes Temas da Literatura) O Sapo I



Apollo Taborda França

O SAPO
Curitiba/PR, 1926 – 2017

O SAPO é feio! Ninguém nega,
Assustando muita gente.. .
Sobrevive na refrega,
Povoando o seu ambiente.

É demais enigmático,
Tem olhar sentimental...
Andarilho, carismático,
Sempre um tema universal.

No seu leito de batráquio,
Liberdade é seu luzeiro.. .
Assim, cônscio, esse terráqueo
Filosofa o tempo inteiro.

Sua vida uma ciranda,
Coaxando ganha loa...
É Maestro que comanda
As Orquestras da lagoa.

Diz a ciência que ele é útil,
Para a horta e pro jardim. . .
Que não tem nada de fútil,
Anti-inseto sempre a fim.

Mais de noite que de dia,
Vai à luta sem destino...
Curte tristeza e alegria,
Conformado, peregrino.

Criatura que impressiona,
Toda envolta na magia...
Tem nos ermos sua zona,
Aconchego e fantasia.

Vai levando a vida mansa,
A despeito da maldade...
Do homem que não se cansa,
De enxotá-lo da cidade!
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Leonardo Henke
Curitiba-PR, 1906 – 1986

AO SAPO


Tua vida, pobre sapo,
é de dor toda uma mescla,
vivem os maus a pisa-la,
porque és bom, és manso, és guapo.

Se rasgam-te igual a um trapo,
quedo, nem ergues a fala,
nem há em teus olhos de opala,
de raiva o mínimo fiapo.

Mais do que eu, és justo e sereno;
pois se, num viver ameno,
passo a vida a blasfemar,

tu, ó filósofo eterno,
embora sofras o inferno,
vives feliz a coaxar.
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Serafim França
Curitiba-PR, 1888 – 1967

SAPOS


O Sapo é um bicho hostil, bicho de morte!
Dizem alguns que a teimosia sua
vem do complexo de coió sem sorte.
Passa ele a noite inteira de olho aceso
com intenção de namorar a Lua
e ela lhe vota o seu maior desprezo.
Justíssimo é o desdém, porque o animal
além de feio e bobo e de ser baixo,
na hora de burilar um madrigal
apenas ronca um detestável coaxo.
Por isso é que é um boêmio repudiado,
O beijo dele deve ser gelado
e quem tem sangue frio não tem amores.
Há muito poeta modernista, de hoje,
que vive ao rés-do-chão, arfando o papo,
e embora invoque a Musa a Musa foge
porque poesia é do alto, é asa no azul,
canto heroico e não ronco de paul...
****************************************

Euclides Bandeira
Curitiba-PR, 1877 – 1947

SAPO


Olhai atentamente: é um sapo. Um sapo!,,. E nada
Mais asqueroso do que um sapo!.. . E nada mais
Repugnante do que ele, o rei d'água estagnada,
Verde como a gangrena azebre dos metais.

Mirai-o bem, porém, como eu estou a olhar
Esse que os gorgolões de uma enxurrada crua
Cuspiram da sarjeta — upa! cabriolas no ar,
E estatelou-se de redondo ali na rua.

Caiu, ficou. E mais chato que a laje lisa!
Há de encontrá-lo quem ao transitar embaixo
Dos pés sentir, cedendo, a maciez de um capacho
De musgo fofo a se afundar quando se pisa.. .

A pata de um corcel com ferraduras de aço
Passando a galopar, mais lesto do que um corso,
Talvez sem dó o esmague, ao lhe premir o dorso,
Fazendo-o vomitar as vísceras, o baço...

Mas, ele ali está, quieto, desprevenido,
Descuidado de si, do mal, das traições;
De resto o sapo é assim, parece andar perdido
Sempre em profundas e sérias cogitações.

Ah! quem sabe se nesse animal tão rasteiro
Que mal consegue erguer-se um palmo além do chão.
Não há uma centelha, um vislumbre, um ligeiro
Fulgor de inteligência, um timbre de razão!...

Se tal acontecer, ele que anda de rojo,
E não sabe, sequer, que existem tantos sóis,
Deste nosso paul e de nós, todos nós!
Que náusea há de sentir!. . . Que desprezo e que nojo!

O mundo é um tremendal; envolve tudo a lama:
Era um palácio de ouro assente sobre o lodo:
Tragou-o um terremoto e, incendiado todo,
Sumiu-se. . . Apenas resta uma língua de chama.

A Fé caiu no charco, o Bem em vil marmota...
A liberdade! — a Luz! num grande ceno hiante...
A Justiça — piedade!... — uma ceguinha rota
Aí anda a esmolar de porta em porta,.. Adiante!

Nada resta impoluto; é uma vasa o Universo.
Onde um canto de sol para o altar da Pureza?
Há salpicos de lodo até no próprio verso!
N'alma, no mar, na terra, em toda a natureza!

Ah! o sapo compreende o atascal de misérias
Que afaga a Humanidade... Ao vê-la na asfixia
Ele às vezes, deixando as atitudes sérias,
Assume estranho ar de esplêndida ironia!

Compreende tudo!. .. E quando a lua nova, perdida,
Divaga na amplidão envolta em manto gázeo,
É por nós que ele coaxa uma nênia sentida,
Erguendo para os céus os olhos de topázio.,.

Fonte:
Apollo Taborda França. 10 grandes temas (clássicos) da literatura. Curitiba/PR: Gráfica Vitória, 1989.
Livro enviado por Vânia Ennes.

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Catorze


DOBRADURAS COM SAQUINHOS DE CHÁ

DUAS FORMIGUINHAS se encontram e começam a conversar:

— Oi, amiga!

— Olá, tudo bem?

— Tudo azul. E com você?

— Graças a Deus, tudo na santa paz. Desculpe. Não estou reconhecendo seu rosto. Você não é daqui, pois sim?

— Realmente, não sou. Eu vim de lá...

—  De lá de onde?

—  De um lugar bem distante.

—  Mas você não sabe o nome desse lugar?

—  Acho que é Braspília, Brasmília, algo assim...

—  Você quer dizer Brasília?

— Isso, Brasília. Foi de lá que eu vim...

— Brasília fica no Planalto Central. Realmente um lugar muito distante. E como veio amiga?

—  Não vai acreditar. De carona, dentro de um fogão velho.

—  Fogão velho?

—  Sim.

— E não teve medo de, no caminho, lhe atirarem em algum lugar onde se dispensa coisas sucateadas?

— De forma alguma. A dona do fogão, dona Candinha adora esse velho cacareco e fez questão de trazê-lo na mudança. Os filhos não queriam, mas a boa senhora insistiu tanto que...

— Entendo! E se depois de instalados aqui, acredito numa nova casa, você se visse queimada ou pior, assada no caso da dona Candinha usar o troço?

— Na verdade, dona Candinha pouco usa esse fogão, a não ser para fazer seu chazinho, à noite. De outra banda, minha amiga, o forno não funciona há tempos...

— Menos mal. De qualquer forma, você se arriscou um bocado. Mas mudando de pau pra cavaco, diga amiga, por que resolveu vir embora de Brasília? Um lugar tão simpático, rico... É chamado de “O berço das grandes decisões nacionais”.

— A mim, em particular, não importa o nome pelo qual Brasília seja conhecido. O que me afastou daquela linda e encantadora cidade foram os tamanduás. Pra amiga ter uma ideia, tem tamanduá de tudo quanto é jeito e tamanho, pra tudo quanto é lado que se estique as vistas. E você sabe né: Formiga e tamanduá... Nunca se cruzaram bem... Deu bandeira... É comida na certa.

— Verdade. Aqui, graças a Deus, não temos muitos. Vez ou outra aparece um... Mas é raro.

— Ao contrario de lá, amiga. Os tamanduás partem pra cima da gente, línguas afiadas, como candidatos à política em época de eleições. Na colônia onde fui criada, e vivi a minha vida toda, essas figuras pilosas são conhecidas popularmente como papa-formigas. Um horror, amiga, um horror! Muitas de nossas irmãs e primas constantemente se vêm dizimadas, como judeus em campos de concentração nazista.

— Nem me fale. Nem me fale. Só de pensar, fico com as antenas arrepiadas. Olhe para mim... Jesus, Maria José!

— Pois então. Em vista disso, eu e uma pá de outras da nossa afeição, resolvemos cair no mundo. Só ficaram as mais antigas e essas os tamanduás não querem... Desprezam... Não rendem votos...

— Sei como é. O problema é social...  

— A sorte é que esses animais que todos dizem estar em extinção (o que lhe asseguro não é verdade), lá em Brasília tem mais tamanduás que gente. E pra variar, dando bandeira, ora aqui, ora acolá. A sorte, completando o raciocínio, é que eles, embora tragam na boca um órgão aguçado e estimulado pela fúria, são cegos e surdos. Contudo, amiga, apesar de cegos e surdos, e mesmo com a liberação do ácido que soltamos para irritar nossos predadores, pelo menos para as nossas premências mais urgentes, tal fato não tem valor. Como é do conhecimento da amiga, os infelizes tamanduás possuem um excelente olfato. Em vista disso, sentem o nosso cheiro à dezena de metros de distância. Eu mesma, em muitas ocasiões, me vi frente a frente em várias e quase infelizes barafundas. Escapei por pura sorte do Divino!

— Fez muito bem em se mandar. Ou a qualquer momento acabaria devorada... Apesar de sermos em maior número e consideradas de um lado como pragas para a agricultura, e, de outro, exemplo de organização social, nada podemos contra os tamanduás. Eles estão no poder... E, pior: tem a força.

— Tirou as palavras de minha boca. Creia amiga, apesar dos pesares, estou feliz agora. Aqui parece um pedaço do paraíso.

— E é. Pode ter certeza. Engraçado! Estamos aqui papeando, tricotando e não sei, ainda, seu nome. Como se chama?

— É mesmo. Que coisa! Meu nome é Fu...

— Fu... Fu o quê?

— Fumiguinha. E o seu, minha amiga? Qual é seu nome?

— Ah... Desculpe igualmente a falha. O meu nome é Ota...

— Ota? Ota o quê?

— Ota Fumiguinha...

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

domingo, 6 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 370

 


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 1, 2 e 3


AS TRÊS GRAÇAS


Um doutor em estética do corpo, ao visitar o Museu do Prado, em Madri, achou que as Três Graças, na tela de Rubens, sofriam de celulite, mais acentuada na Graça do centro.

Procurou o diretor do museu e sugeriu-lhe que o quadro fosse submetido a tratamento especial, de modo a ajustar os nus femininos aos cânones de beleza e higidez que hoje cultuamos.

O diretor ouviu-o polidamente e respondeu que nada havia a fazer, pois as obras-primas do passado são intocáveis, salvo quando acidente ou atentado tornam imperativa a restauração. Além do mais, pode ser que no século xvii o que hoje chamamos de celulite fosse uma graça suplementar.

À noite, o esteta inconformado tentou penetrar no museu, foi impedido e preso. Interrogado, explicou que queria raptar o quadro e confiá-lo a famoso especialista em cirurgia plástica, pois o caso não era de restauração nem de regime alimentar. Seria a primeira vez em que uma obra de arte receberia tratamento médico especializado, feito o qual tornaria ao museu.

O homem foi mandado embora, com a advertência de que sua presença não seria mais tolerada em museus espanhóis. E aconselhado a frequentar assiduamente as praias, para se habituar às imperfeições do corpo humano, que formam a perfeição relativa.
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BANDEIRA 2


O modesto servidor foi perguntar ao chefe de seção se não dava jeito de arranjar bandeira 2 para ele. Levou um fora total:

— Que negócio é esse de bandeira 2? Você não é chofer de táxi, o governo não é passageiro de táxi, como é que ele vai te pagar bandeira 2?

— É que eu pensei… Todo mundo lá fora está cobrando bandeira 2. A bandeirada está solta, e se eu não pegar também uma bandeirinha 2, com perdão da palavra, estou… frito.

— Dê o fora, que tenho essa papelada toda para despachar.

Saiu, desbandeirado. Em casa, os meninos pediram-lhe pelo menos bandeira 1, para tomar sorvete. A mulher reclamava bandeira 2, formato grande, para as compras da semana. Abriu o envelope e leu o cartão de Natal com estes dizeres: “Bandeira 2 para você e todos os seus”. Ligou o rádio, escutou: “Salve, lindo pendão da esperança”.

Os colegas se cotizaram para pagar a bandeira 2, encomendada por ele. Vivia enrolado nela, no Pinel.
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BOM TEMPO


Não há nada tão belo como os dias que medeiam entre o inverno e a primavera, observou Eugênio, que gostava de olhar o céu. Nós não temos propriamente inverno, e seria exagero dizer que temos primavera.

Misturando estações, conseguimos fazer uma terceira, temperada, amável, com dias claros, termômetro benevolente, doçura.

Eugênio apreciava tanto esses dias intervalares que convidou parentes e amigos distantes a virem saborear com ele a delícia do tempo. Acudiram em bando, enchendo o pequeno apartamento. Nessa semana o elevador estava em reparo, o aquecedor de gás enguiçou, faltou luz, a empregada despediu-se, mas as noites eram frescas e os dias belíssimos.

Eugênio achou que a natureza compensava bem os incômodos domiciliares. Os hóspedes, não. Quando as coisas melhoraram no edifício, sobreveio um tempo de chuva e vento, que desaconselhava botar o pé na rua. Os hóspedes, não podendo sair de casa, e sentindo-se confortáveis, iniciaram um joguinho, de que Eugênio não participava. Negócio dele era o azul.

“Você está empatando o nosso lazer”, disseram-lhe. “Por que não vai passear?” Eugênio foi para a rua e apanhou a devida pneumonia, por muito amar o bom tempo.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Baú de Trovas XIII (para descontrair)


Maria beijou Aurora
no portão do seu jardim.
— Perdulária, joga fora
o que nega para mim...
ALFREDO DE CASTRO
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A um burro dizia um sábio:
— Pobre animal sofredor,
a muitos convém teu nome,
a bem poucos teu valor...
ANA ATAÍDE FERREIRA DA SILVA
- - - - - -
Carinho pra quê? Me deixe!
Agora estamos casados…
E ninguém dá isca a peixe
depois dos peixes pescados.
ANATOLE RAMOS
- - - - - -
Uma mosca sem valor
pousa, com a mesma alegria,
na cabeça de um doutor,
como em qualquer porcaria!
ANTÔNIO ALEIXO
- - - - - -
Poliglota conhecido,
dominar as línguas logra.
Excetuando-se, é sabido,
as da mulher e da sogra...
ANTÔNIO TORTATO
- - - - - -
Jovens lindas como aquelas
dão trabalho ao hospital,
pois, na esquina, quem, ao vê-las,
não se esquece do sinal?
ANTÔNIO WEBER
- - - - - -
"Barrigudinho!" — brincava,
dando-me bola, a vizinha.
— E tanto ela me invejava,
que ficou barrigudinha...
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -
Vi teus braços... que ventura!
Teu colo... as pernas... que gosto!
Agora, tira a pintura,
que eu quero ver o teu rosto.
BELMIRO BRAGA
- - - - - -
Duvide lá quem quiser,
mas, ó vida, me insinuas:
melhor do que uma mulher,
não há dúvida, só duas...
BENNY SILVA
- - - - - -
A minha sorte ferina
me passou um grande logro;
o teu pai, linda menina,
devia ser o meu sogro.
CALIXTO DE MAGALHÃES
- - - - - -
Dei-te meu livro de trovas,
mas os teus olhos moleques
parecem dizer: "de trovas?..."
melhor se fossem "de cheques".
CARLOS GUIMARÃES
- - - - - -
A mulher quando se arruma,
quanta roupa! Já notou?
E foi sem roupa nenhuma
que Teresa se arrumou...
COLBERT RANGEL COELHO
- - - - - -
Não adianta nada agora,
eu já não perco a cabeça.
Mas, é bom ires embora,
antes que tal aconteça...
COLOMBINA
- - - - - -
O homem tem grande horror
ao vácuo, já descobri:
quando ele se vê vazio,
enche-se todo de si...
DJALMA ANDRADE
- - - - - -
Larápios de mil padrões
há neste mundo dispersos.
Até conheço ladrões
que roubam frases e versos...
ESMERALDO SIQUEIRA
- - - - - -
Meu amor, não cries caso,
se teu caso é se casar...
Se crias caso, não caso;
se não me caso... ora, azar!
FRANCISCO MADUREIRA
- - - - - –
A cova, que nos contrista,
serve, com a mesma avidez,
o talento de um artista
e a burrice de um burguês.
GUMERCINDO JAULINO
- - - - - -
A virtude, em muita gente,
é só falta de ocasião;
quanto virtuoso que sente
não ter sido um bom ladrão!
HÉLIO CHAVES
- - - - - -
De saia curtinha e rente,
estas garotas modernas
só sentam perto da gente
para mostrar-nos as pernas...
HERALDO LISBÔA
- - - - - -
É só, pois sente amizade
pelas mulheres feiosas.
E a mesma fraternidade
sentem por ele as formosas...
ILDEFONSO DE PAULA
- - - - - -
Até que deve a oratória
ser um dom dos mais divinos;
porém, tem levado à glória
muitos sujeitos cretinos...
JACY PACHECO
- - - - - -
Chamaste-me um dia, urgente,
para dizer-me um segredo!
— Nunca um homem tão valente
teve, talvez, tanto medo...
JOSÉ DUARTE COSTA
- - - - - -
Quem passa a vida sisudo,
só pensando em caixa alta,
depois que pode ter tudo,
não tem o que fez mais falta...
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO
- - - - - -
Se todos fazem de si
tão duvidoso conceito,
menina, não queiras ter
a fama sem o proveito...
NOEL DE ARRIAGA
- - - - - -
Ouvi um cão indigente
a meu buldogue inquirir;
— O teu dono é inteligente?
— Se é? Só falta latir!
OLDEMAR LIMA DE ANDRADE
- - - - - -
Fiquei rindo de um gaiato
que caíra em plena praça,
não vi a casca de manga
e — pumba! — perdi a graça...
OLYMPIO S. COUTINHO
- - - - - –
Homens há tão insensatos
e de maneiras tão duras
que em vez de usarem sapatos
devem calçar… ferraduras!
PAULA FARIA
- - - - - -
Aquela jovem tão grácil
possui grandes qualidades:
além da palavra fácil,
tem outras facilidades...
PAULO EMÍLIO PINTO
- - - - - –
Se beijo pagasse imposto
junto aos cofres da moral,
que renda dava o teu rosto
nos bailes de carnaval!...
RENATO VIEIRA DA SILVA
- - - - - –
Quando por fraca poetisa
um critico se derrete,
o leitor logo ajuíza:
essa poetisa promete...
RODRIGUES CRESPO
- - - - - –
Na festa daquela gente,
o discurso que agradou
foi aquele, unicamente,
que depressa terminou...
SEBASTIÃO BENFICA MILAGRE
- - - - - –
O meu olhar é um peralta
que não tem jeito, mocinha:
aquilo que tanto escondes
o sem-vergonha adivinha...
SOARES DA CUNHA
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Nota do Blog: As trovas podem ser feitas rimando apenas o 2. com o 4. verso (sistema ABCB), contudo para efeito de Concursos de Trovas, normatizados pela União Brasileira de Trovadores,  existe a obrigatoriedade de rimar também o 1. com o 3. verso (sistema ABAB)

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

André Masini (Morrer, Dormir... Talvez Sonhar)


Era uma brilhante manhã de sol, e eu acabara de me sentar à mesa do café. A velha empregada aproximou-se com olhar triste, meia sem jeito, e contou-me que na calçada, diante de nosso portão, havia um cãozinho caído.

Corri para o portão, e lá estava ele. Era um Fox Paulistinha, minha raça favorita. Respirava com dificuldade e não esboçava qualquer reação ao ser tocado. Exibia pavorosos sinais de maus-tratos, que prefiro não descrever.

Entrei e liguei para o veterinário. Ao voltar ao portão, encontrei duas crianças: uma menina de uns 9 anos e um menino de uns 6. Estavam sérios, com os olhos tristes fixos no bichinho. Arfavam, como se suas respirações pesadas ajudassem o corpo cansado do animalzinho a continuar respirando. A presença delas ali foi para mim um grande alívio.

É surpreendente como -- nas questões realmente essenciais da vida - coisas terrenas como força, poder, idade, e intelecto revelam-se insignificantes... A companhia daquelas crianças, em toda sua fragilidade, teve mais valor para mim do que se lá tivessem estado presidentes, reis, cientistas, ou gênios da literatura.

Tem gente que pensa, nestes tempos materialistas, que solidariedade significa gente rica dar coisas para gente pobre. Mas solidariedade é muito mais: uma imensa força da natureza humana, que pode ser o bálsamo para as mais profundas e mais essenciais feridas da alma. Muitas vezes, o único bálsamo...

Na calçada estávamos eu, o cãozinho e as duas crianças...

O veterinário chegou, fez um breve exame no bicho, e, discretamente, deu-me a entender que o caso era sem remédio...

Olhei para as crianças num dilema: elas haviam escolhido estar ali e tinham absoluto direito de saber a verdade. Mas eu era um estranho para elas, e revelar-lhes cruamente o terrível ato que iria ocorrer, talvez fosse rude demais...

Acabei pedindo que fossem chamar sua mãe... que ela poderia ajudar, etc... Elas partiram correndo.

O cãozinho estava muito mal, já havia sofrido terrivelmente e era quase um milagre que ainda estivesse vivo, que tivesse conseguido andar até ali.. Ele havia gastado suas últimas forças, seus últimos instantes, sua última intuição... para chegar ao meu portão, à minha casa...

O veterinário foi claro: não havia nada a fazer senão sacrificá-lo e abreviar sua agonia.

Pegamos o cãozinho e o colocamos no carro. Quando íamos partir, as crianças reapareceram, num carro, com sua mãe, trazendo dois potinhos de plástico com comida e água. Eu disse que o estávamos "levando", sem maiores explicações. Despedi-me com um sorriso amarelo, e nunca mais as vi. Guardo delas uma lembrança afetuosa, de respeito e solidariedade.

Vida, morte... chegadas, partidas...

Vinte anos antes, em um dia ensolarado como aquele, eu pousara no aeroporto de Quito, no Equador. Fora para trabalhar, mas chegara como quem cai do céu, como uma criança que nasce para um mundo novo. Tudo era novidade: a língua, os costumes, as cidades, a selva. Aos poucos fui conhecendo aquele estranho mundo, e ele se foi tornando meu lar, minha vida.

Após um ano de intenso trabalho, eu estava tão habituado com aquela vida, que parecia ter estado ali desde o início dos tempos.

Depois, em uma nova manhã ensolarada, eu e outro geólogo voltamos àquele aeroporto para nos despedirmos de nosso mentor, o "velho professor". Num instante ele estava ali, como "sempre" estivera, e no instante seguinte havia partido, para sempre.

Voltei do aeroporto em silêncio, olhando pela janela do ônibus. O dia continuava ensolarado, e a cidade continuava igual, mas o professor já não estava lá para ver nada daquilo...

Subitamente me dei conta de que em breve eu próprio partiria, e também não estaria mais ali, e que aquelas ruas e casas e selvas tão familiares, aquela "minha vida", passariam a ser apenas lembranças.

Partidas... morte...

O veterinário aplicou a injeção no coração do cãozinho.

Em seu instante final, ele saiu do torpor em que estava, enrijeceu-se e chorou alto, com profundos e sentidos soluços que jamais esquecerei... a impressão que tive foi que, apesar de todos sofrimentos que padecera, ele lamentava partir desta vida... A tristeza e a intensidade daquele momento foram imensas. Em minha alma ficou gravada, para sempre, a ideia do apego que o cachorrinho tinha à vida.

Morrer, dormir... talvez sonhar...

Não sei se ele levou lembranças... mas para ele essa dúvida já não importa, nem causa angústia.

A morte faz parte da vida, parte dessa imensa e maravilhosa unidade que é a natureza. Não há outra atitude razoável senão aceitar e respeitar a morte, seja lá o que ela for. E para nós que ficamos, resta o bálsamo da solidariedade.

Voltei para casa. O dia continuava brilhante e ensolarado, e todas as coisas permaneciam como antes: o portão, a calçada, o mundo... mas o cãozinho já não estava mais aqui para ver tudo isso.

* * * * * * * * * * * * * * * * *

O objetivo desse texto poderia ser apenas um reflexão sobre a vida e a morte, mas é mais que isso.

Quando vi aquele heroico cachorrinho -- mesmo irremediavelmente doente e em imenso sofrimento -- chorar e soluçar por ter que deixar este mundo, não pude deixar de pensar nos milhares de outros, que gozam de plena saúde, mas que são friamente assassinados em nosso nome, a cada semana.

Essa foi a herança que o cãozinho deixou: um grito de alerta para que nós, humanos, compreendamos a imensa brutalidade que é essa matança.

Os cães são os maiores companheiros e o maior presente que a natureza nos deu. Eles nos amam incondicionalmente, sua fidelidade é sólida como as mais profundas fibras de suas almas de heróis (que sacrificam sem hesitação suas vidas para defender seus donos), sua alegria e seu carinho são lições que a cada dia nos ensinam a ser melhores e a viver melhor...

Não tenho ideia de o que fizemos para merecer tamanho presente...

Deveríamos agradecer a Deus e à natureza esse presente, e mostrar permanente respeito e carinho por esses seres infinitamente alegres e amigos, e que amam tanto a vida, e que a cada dia nos ensinam a amá-la também .

Mas, ao invés disso, criamos "centros de controle de zoonoses", as malfadadas "carrocinhas", que capturam os cães pelas ruas e os assassinam com bestial frieza!

Às vezes eu penso: o que, afinal, nossa espécie está fazendo na Terra? aonde queremos chegar? Não nos contentamos em estar destruindo cada um dos ecossistemas do planeta, não nos contentamos em nos comportar como verdadeiros playboys mimados, que -- sem qualquer consciência ou segundo pensamento sobre o fato de existirem outros seres -- dilapidamos a herança que a natureza nos deu, numa verdadeira orgia de inconsequência. Não. Além disso tratamos nossos melhores amigos, os cachorros, como se fossem resíduos descartáveis, não seres brilhantes e repletos de vida.

Vi outro dia na TV um certo professor da USP afirmando que a hostilidade da população contra a carrocinha é devida à "ignorância", pois a população não sabe que os cães podem (sic) "causar doenças". Pobre criatura vaidosa. Do alto de seu pedestal, ele nem sequer cogita a hipótese de que o ignorante possa na verdade ser ele próprio. A tal "população", as pessoas, pode perfeitamente saber da possibilidade de um cão transmitir uma doença - bem como da possibilidade de outro ser humano transmitir uma doença - mas nem por isso precisam acreditar que se deve sair por aí praticando extermínios.

O sábio professor nem percebe que seu raciocínio brota do mesmo campo de onde brotaram as maiores monstruosidades da história humana. A mente dissociada do coração é um mecanismo defeituoso e pervertido, que pode levar para absolutamente qualquer direção e fazer estragos sem qualquer limite. Não existe nada mais ignóbil do que a pseudo-sabedoria, que tenta mostrar a "lógica" de atos monstruosos através de argumentos "científicos", mas sem discutir os aspectos éticos da questão.
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Publicado no Jornal O Paraná em 27/abr/2004

Fonte:
Casa da Cultura

Antologia Spina (Inscreva-se!!)

Falta pouco mais de um mês para o encerramento das inscrições da Antologia SPINA.

Quem desejar participar, ainda dá tempo. As pessoas que escrevem SPINA's e não receberam o regulamento, mas desejam recebê-lo e fazer parte da Antologia, deixem um e-mail inbox para Solange Colombara ou Ronnaldo de Andrade que enviaremos. As que receberam e não se decidiram, reforçamos o convite.

Clique no link abaixo para entrar na página SPINA – Nova Forma Poética – Associação Brasileira de Poetas Spinaístas para se inscrever ou para obter mais informações sobre esta nova forma poética
https://www.facebook.com/groups/623841465028682

Esta é a Primeira Antologia exclusivamente de SPINA's. É um marco importante, por mais que não pareça.

Como estudioso de literatura, sei a importância de uma Antologia como essa na vidas dos autores participantes; talvez não imediatamente, mas em um futuro distante. Como, só para ilustrar nossa fala, os primeiros participantes da revista  Noigrandes (1952) dos poetas concretistas.  A revista Praxis (1961?)  da poesia-práxis, criada pelo ex-integrante da poesia Concreta, Mario Chamie, que com seu livro Lavra Lavra (1962) instaura o poema-práxis. Lembremos que o  livro mecionado foi o vencedor do prêmio Jabuti em 1963. E citamos  a Antologia Meus Irmãos Trovadores (1956). Este livro marcou o início do Primeiro Movimento Literário Genuinamente Brasileiro: O Trovismo. Existente até o momento. Muitos dos participantes desses livros/revistas são estudados e referências até hoje. Almejo isso para todos nós!

A Antologia SPINA será o nosso "Primeiro Manifesto" Spinaísta! O caminho é árduo, mas com objetividade, foco, determinação e estudos iremos alcançar, ao menos, parte do que desejamos e somos merecedores.

Vamos unir nossas vozes para que ecoem mais distantes.

Todos os participantes da Antologia ganharão uma página/brinde e participarão com no mínimo 8 SPINA's, além de mais um brinde para aquele que publicar um livro solo por uma das editoras parceiras nossas!

Desejamos a todos paz e bênção!

Os Organizadores
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Nota do blog:
Sobre esta Nova Forma Poética, mais detalhes neste blog em 29 de julho, no link:

Fonte:

Spina (facebook)

sábado, 5 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 369

 


Francisca Júlia (Isabel)


Isabel era uma menina de dez anos mais ou menos.

Desde a mais tenra a infância já mostrava o seu caráter vaidoso, um desejo de aparecer, de realçar, sobressair entre as demais.

Nessa idade tinham-se aguçado tanto as suas más qualidades e se acentuado a sua tendência para o aparato, que toda a vez que lhe faltava um enfeite ao seu vestido ou uma fita ao seu chapéu, revoltava-se, batia o pé, e, apesar de bonita, graciosa mesmo, e de um aspecto agradável, nesses momentos de cólera parecia feia e só inspirava repulsão e antipatia.

Sua mãe, mulher de costumes simples e de boa alma, educada na escola do carinho e da religião, tinha um grande desgosto com isso, e muitas vezes surpreendiam-na com o rosto entre os joelhos, chorando, afogada em soluços.

Chamava a filha para junto de si, sentava-a no colo, anediava-lhe os cabelos, num gesto bom de maternal ternura; dava-lhe bons exemplos, ensinava-lhe o caminho do bem, com uma paciência e resignação x de que só são capazes as mães extremosas.

Certo dia, Isabel aproximou-se de sua mãe e disse-lhe:

— Mamãe, há já alguns dias que resolvi abandonar todas as minhas amigas atuais, porque elas me parecem tão insignificantes!

— Fazes mal, minha filha, falou a mãe com tristeza. Entre as tuas amigas e companheiras há algumas de bons costumes e dignas da tua amizade. Não as abandones.

— Vou deixá-las, sim. Conheço uma menina que é melhor que todas elas. Chama-se Marieta. É elegante como nenhuma, graciosa, espirituosa, veste-se à última moda, e é o alvo da inveja no círculo das minhas colegas. Quero andar em companhia dela, para que todo o seu encanto reflita sobre mim e eu seja invejada também.

À mãe umedeceram-se-lhe os olhos de lágrimas. Envolveu a filha com um olhar de censura e, antes que uma repreensão violenta lhe saísse da boca, chamou a menina para junto de si e falou-lhe com brandura:

— “Certa vez uma semente de arbusto, na aproximação da primavera, ainda estava solta sobre a terra, sem coragem de aí deitar suas raízes, receando crescer ao relento ou sob os ardores do sol. Então deixou-se rolar ao vento, e foi indo, foi indo, até chegar-se ao pé de uma pequena árvore, que ostentava sua galharia verde e exuberante à margem de uma cisterna. Debaixo de sua folhagem havia uma sombra fresca onde crescia um viçoso musgo que se espalhava em feitio de veludoso e macio tapete.

“Foi aí o lugar em que a semente resolveu plantar-se.

“Plantou-se, criou raízes e cresceu.

“Foi crescendo pouco a pouco. Dia a dia iam-lhe surgindo novas folhas, novos brotos, novos galhos, até que, quando a primavera veio, e invadiu a campina inteira, encontrou o arbusto numa florescência bonita, sorrindo numa radiação de mocidade.

“O arbusto, como era muito débil e não tinha forças para lutar contra a violência da ventania, foi estendendo os braços e agarrou-se ao tronco da arvorezinha, que lhe servia de arrimo.

“Aconteceu, porém, que numa noite de tempestade e de trovões, um raio maligno caiu com grande estrondo e cortou a árvore. O arbusto encolheu-se de medo, mas salvou-se.

“No outro dia rompeu o sol, e o seu calor era tão intenso que crestou as folhinhas da pobre planta, lhe queimou o tronco, lhe secou a seiva e a matou.”

— Aí está a minha história, minha filhinha; ela servirá de exemplo para te corrigires. Nunca procures ter o valor que te emprestam os grandes, porque se eles morrem ou decaem do poder e da grandeza, tu cairás também como o pequeno arbusto, humilhada pelo desprezo de todos. Será melhor, pois, que tenhas o valor que te dão as tuas próprias qualidades, tuas próprias virtudes, e faças por sobressair por teu próprio esforço.

Daí em diante Isabel corrigiu-se e hoje é uma excelente menina, querida e simpatizada por todos.

Fonte:
Francisca Júlia. Livro da Infância. Publicado em 1899.

Júlia da Costa (Poemas Escolhidos) II

 

ILUSÕES

Em vão te chamo nos murmúrios vagos
Da doce brisa que fugindo vai;
A voz se perde na procela horrível
Que sobre os mares à noitinha cai.

Em vão te chamo! só responde o eco...
Em vão almejo contemplar a ti;
Medonha nuvem de mistérios cheia
Te induz, ai! Sempre a te ausentar de mi’!

Aéreo sonho, mentirosa sombra
D’um sol no ocaso que a gemer tombou,
Em vão te busco nas mescladas nuvens
D’um céu querido que o luar banhou!

Nos rudes tempos d’ um passado estranho
À luz d’ um círio pela dor erguido,
Lampejam inda as ilusões ditosas
D’ um tempo estranho que lá vai sumido!

Assim, ó sombra, na minh’alma vives
Sem cor, nem luz, a divagar perdida...
Em vão te chamo! minha voz se perde
Por este espaço que chamamos vida!

Em vão te chamo! já me falta o alento!
Em vão procuro assemelhar teu canto!
És como a ave que a trinar na rama
Fugindo inspira ressentido pranto.

– És como a ave que na sombra solta
Os seus prelúdios de saudade infinda,
E que fugindo quando a luz se mostra
Os seus cantares sonorosos finda.
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MELANCOLIA

I

Nunca ouviste, alta noite, um som dorido
Como um eco infiel de teu pensar,
Ir saudoso chorar sobre teu seio,
E murmurar-te cantos de pesar?

Nunca ouviste, no albor, o doce arrulho
Da rolinha que chora amargurada,
Qual lira dedilhada
Em florido sertão? Ou harpa eólia
Pelo tufão tocada?

Nos arroubos celestes de tu’alma
Nunca ouviste um acorde esvaecido,
Pelas verdes palmeiras ciciando
Perpassar merencório entristecido?

Pois como o som dorido, e o vago arrulho
Da pombinha que chora o seu destino,
Desvairada, sem tino; –
É meu triste pensar sonhando o berço
Em que dormiu menino!

II

E o céu lindo! e a primavera vejo
Sorrir-me tão viçosa e amenizada!
Qual nuvem qu’é levada
No arrebol da manhã fulgente e belo,
De risos enfeitada!

E a natura trajando as brancas vestes
Do modesto noivado; – em mês d’ abril
Como a flor o sorrir-se entre perfumes: –
Os seus braços me estende, tão gentil!

E o mundo remanseia brandamente,
Qual ondinha ligeira vaporosa
Em seu berço de rosa!
Áureo, belo, gentil! seduz, fascina!
Imagem caprichosa!

Mas eu tristonha sou, bem como a estrela
Que sozinha cintila n’alvorada!
A saudade tornou minh’alma um lírio
Que descora de dor na madrugada!
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UMA FOLHA AO VENTO

A noite é negra – o areal é triste,
A praia imensa, taciturna e só!
Eu vou descalça caminhando à toa,
Me cega o vento, me sufoca o pó!

Queres seguir-me, caminheiro errante?
Eu vou em busca do meu pátrio lar!
Mas tenho medo deste mar de gelo,
Da voz do vento que me faz chorar.

Deixei meu ninho sobre a fralda escura
De uma montanha que se ergue ao sul!
E vou p’ra o norte procurar meu berço,
Ver as estrelas do meu céu azul.

Queres seguir-me? luminosa aurora
Talvez ressurja nesta noite densa!
Talvez perpassem repentinas auras
Pelas areias desta praia imensa.

Talvez à sombra do arvoredo amigo
Por entre redes de cheiroso orvalho,
Possa minh’alma descansar na pátria
Como a avezinha em florido galho.

Deixei meu ninho sobre a fralda escura
De uma montanha que se ergue ao sul!
E vou p’ra o norte procurar meu berço,
Ver as estrelas do meu céu azul.

Avante! as águas remanseiam tristes,
Aragem mansa me bafeja a fronte...
Alva igrejinha entrevejo ao longe
Por entre flores de encantado monte!

E a brisa geme, – dizendo,
E os sonhos tristes remurmuram lá!
Nota dorida de uma lira amiga
A meus ouvidos silencia já!

A pátria! a pátria! Sonhadora errante
Já vejo luzes no horizonte azul!
Já na minh’ alma desabrocham flores...
Adeus meu ninho... virações do sul!

Foi tudo sonho! A chorar acordo,
Olho e só vejo pelo céu a lua!
Nem as praias brancas, nem aragens meigas,
Só triste a brisa pelo mar flutua!

Fonte:
Júlia Maria da Costa. Flores Dispersas. Santa Catarina, 1867, in Júlia da Costa. Poesia. (org. Zahide Lupinacci Muzart). Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2001.

Monteiro Lobato (Café! Café!)


E o velho major recaiu em cisma profunda. A colheita não prometia pouco: florada magnífica, tempo ajuizado, sem ventanias nem geadas. Mas os preços, os preços! Uma infâmia! Café a seis mil-réis, onde se viu isso? E ele que anos atrás vendera-o a trinta! E este Governo, santo Deus, que não protege a lavoura, que não cria bancos regionais, que não obriga o estrangeiro a pagar o precioso grão a peso de ouro!

E depois não queriam que ele fosse monarquista... Havia de ser, havia de detestar a República porque era ela a causa de tamanha calamidade, ela com seus Campos Sales de bobagem.

Que tempos! Pois até o Chiquinho Alves, um menino que ele vira em fraldas de camisa brincando na rua, não estava agora na chapa oficial para deputado? Que tempos!

E com as magras mãos de velho engorovinhado o major torcia com frenesi os bigodes amarelos de sarro. Todo ele recendia a passado e rotina. Na cabeça já branca habitavam ideias de pedra. Como essas famílias de caboclos que vegetam ao pé dos morros numa choça de palha, cercada de taquara, com um terreirinho, moenda e o chiqueiro e toda a imensidade azul e verde das serras e dos céus a insulá-las da civilização, assim a cabeça do major. As primeiras ideias que ali abicaram, e isso já de sessenta anos, nas remotas eras do bê-á-bá na escola do Ganimedes, meteram a foice na capoeira, fincaram os paus da cerca, aprumaram os esteios da morada, cobriram-na de sapé; e lentamente, à medida que vinham entrando, compelidas pela vara de marmelo e a rija palmatória do feroz pedagogo, foram erigindo a casa mental do nosso herói.

Depois, no começo da vida prática, como administrador da fazenda paterna, novas ideias e novos conhecimentos, filhos da experiência, tiveram guarida na choça daquele cérebro, acrescendo-o de mais uns puxados ou telheirinhos. Juízos sobre o Governo, apreciações sobre Suas Majestades, conceitos transmitidos por pais de família e coronéis da Guarda Nacional, ideias religiosas embutidas pelo roliço padre Pimenta, oráculo da família, receitas para quebrantos, a trenzama toda moral e intelectual da sua psíquica de matuto ricaço, por lá se arrumou com o tempo, apesar do acanhamento da choça e das dependências. Para o chiqueirinho foram as anedotas frescas e as chalaças pesadas aprendidas na botica do Zeca Pirula. E ficou nisso o meu major; se uma ideiazita nova voava para ele, batia de peito em seus ouvidos moucos, como rolinhas em paredes caiadas, caindo morta no chão; ou como borboleta em casa aberta, entrava por uma orelha e saía por outra.

Ficou naquilo o major Mimbuia, uma pedra, um verdadeiro monólito que só cuidava de colher café, de secar café, de beber café, de adorar o café. Se algum atrevido ousava insinuar-lhe a necessidadezinha de plantar outras coisinhas, um mantimentozinho humilde que fosse, Mimbuia fulminava-o com apóstrofes.

— O café dá para tudo. Isso de plantar mantimento é estupidez. Café. Só café.

— Mas, com seu perdão, major, se algum dia, que Deus nos livre, o café baixar e...

— O café não baixa e se baixar sobe de novo. Vocês não entendem dessa história — e depois, olhe, eu não admito ideias revolucionárias em minha casa, já ouviu?

E estava acabado, o pedreiro-livre murchava as orelhas e abalava de rabo encolhido.

Veio, porém, a baixa; as excessivas colheitas foram abarrotando os mercados, dia a dia os estoques do Havre e de Nova York aumentavam. Os preços baixavam sempre, cada vez mais; chegaram a dez mil-réis, a nove, a oito, a seis. O major ria-se e limpando as unhas profetizava:

— Em janeiro o café está a trinta e cinco mil-réis.

Chegou janeiro; o café desceu a cinco mil e quinhentos. “Em fevereiro eu aposto que vai a quarenta!” Foi a cinco.

O major emagrecia. “Em março eu juro pela alma de meu pai, que Deus haja, como o café há de subir a quarenta e cinco mil-réis!” O café em março desceu a quatro.

O major enlouquecia. Estava à míngua de recursos, endividado, a fazenda penhorada, os camaradas desandando, os credores batendo à porta. Já ia para três anos que o produto das safras não bastava para cobrir o custeio. Três déficits sucessivos devoraram-lhe as economias e estancaram as fontes. Mas o velho não desanimava. O cafezal estava um brinco, sem um pezinho de capim. As casas desmoronavam, o mato viçava nos terreiros, invadindo as tulhas, inundando tudo de clara verdura vitoriosa, o caruru já estava cansado de nascer nos lugares proibidos onde outrora, nem bem repontava medroso, já vinha um negro cambaio a arrancá-lo sem dó. O major passava a mandioca assada e canjica: nem pitava mais daqueles longos cigarros de palha, por economia. Todo dinheirinho que entrava das vendas do gado, de pedaços de terra, de empréstimos, de velhas dívidas pagas, tudo ia para o Moloch insaciável do cafezal.

Chegado o tempo da colheita, colhia muito, as safras eram ótimas, porém o produto das vendas nenhum alívio trazia à situação, antes agravava-a com um novo déficit. E como não, se o café estava beirando os três mil a arroba e lhe saía a seis a produção de cada uma?

Aconselharam-lhe o plantio de cereais; o feijão andava caro, o milho dava bom lucro. Nada! O homem encolerizava-se e rugia:

— Não! Só café! Só café! Há de subir, há de subir muito. Sempre foi assim. Só café. Só café!

E ninguém o tirava dali. A fazenda era uma desolação; a penúria, extrema; os agregados andavam esfomeados, as roupas em trapo, imundos, mas a trabalhar ainda, a limpar café, a colher café, a socar café. Os salários, caídos no mínimo, uma ninharia, o quanto bastasse para matar a fome. O velho roía as unhas rancorosamente, vomitando injúrias contra os tempos modernos, contra a estrangeirada, o Governo, os comissários, numa cólera perene, e trabalhava no eito com os camaradas a limpar café, a colher café.

— Sobe, há de subir, há de chegar a trinta mil-réis.

Para sustentar a luta vendeu uma nesga da fazenda — um pedaço da sua própria carne.

Depois vendeu outra, mais outra e outra. O Moloch insaciável, porém, engoliu tudo e pediu mais. Ele vendeu mais: vendeu os pastos, vendeu por fim a casa de morada com todas as benfeitorias e foi residir num ranchinho no cafezal.

A situação piorava, os preços continuavam a cair, o velho já estava sem unhas para roer e sem mandioca para se alimentar. Só possuía o cafezal, sempre limpo, sempre sem um matinho. Um dia desertou uma leva de camaradas: outros seguiram aqueles e em breve Mimbuia viu-se completamente só no seu ranchinho do cafezal. Levantava-se antes de clarear o dia e saía de enxada em punho, numa raiva surda, a capinar, a capinar o dia inteiro como um possesso.

Depois, como o cafezal fosse grande e ele um só, o mato brotou luxuriante, numa alegria verde-clara de vitória. O velho, possesso, dentes cerrados, surdo ao sol e à chuva, seminu, esfarrapado e macilento, baba a escorrer dos cantos da boca, torrado pela soalheira, sujo de terra, já não podendo vencer o mato exuberante, andava a arrancar as ervas mais atrevidas ou graúdas, catando uma aqui, outra ali.

A luta era gigantesca, de vida ou de morte. Pelo cafezal todo as ruas outrora vermelhas e varridas eram extensas faixas do verde vitorioso. A beldroega (1) alastrava-se, o caruru já florescia, o picão derrubava as sementes novas para nova seara mais farta e pujante. Pintassilgos inúmeros trilavam pelo chão banqueteando-se à farta nas sementes dos capins. As rolinhas rebolavam, arrulhando, roliças, de papinho duro. Os tico-ticos, como legiões de bárbaros, tagarelavam fabricando ninhos, pondo ovos, chocando-os, tirando ninhadas famintas. O sol rompia todas as madrugadas, fecundo, forte, vencedor, criando seiva intensa, acariciando as ervas transbordantes. Chuvas contínuas davam à terra magnífica um fofo de alfobre (2).

O velho Mimbuia estava um espectro, já nu de todo, os olhos esbugalhados a se revirarem nas órbitas com desvario. Um espectro sem carnes, só pele calcinada e ossos pontiagudos. Mas quando a boca se abria naquela barba hirsuta, o que vinha era uma coisa só:

— Há de subir, há de subir, há de chegar a sessenta mil-réis em julho. Café, café, só café!…
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Vocabulário:
(1) Beldroega – é um arbusto de folhas suculentas e flores coloridas. Na Índia é silvestre, e consumida há milhares de anos. É cultivada no Oriente Médio e em parte da França. Foi popular na Inglaterra na época de Elisabeth I. Tornou-se daninha em parte da América do Sul e do Norte. Desde a antiguidade tem sido usada na alimentação humana em saladas ou cozida. Toda a planta é comestível. No Egito e Sudão é cultivada comercialmente para o consumo. (wikipedia)

(2) Alfobre – Viveiro, normalmente de plantas. Era utilizado, e ainda é como local onde se colocam as sementes dos produtos que se pretendem cultivar, para, assim que ganham resistência, serem transplantados para um local definitivo de cultivo, de forma a se poder escolher a disposição na terra dos mesmos.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas. Publicado em 1919.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 368

 


Cláudio de Cápua (Quadrinhos) 3



quadrinho em "O Indianópolis"

Texto: Cláudio de Cápua
Desenho: Luis Antonio Adensohn

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

Fernando Sabino (Fumar sem ser Fumante)


O MÉDICO proibiu Mário de Andrade de fumar:

— Se você largar o cigarro, ainda poderá ter uns vinte anos de vida.

E Mário, desencantado:

— De que me adianta viver mais vinte anos sem fumar?

A partir de então, trancava-se no banheiro para acender um cigarrinho, escondendo-se de si mesmo.

E o conhecido médico que um dia fez a solene promessa ao filho:

— Meu filho: dou-lhe a minha palavra de honra que você nunca mais me verá com um cigarro na boca.

Homem de palavra: o filho nunca mais o viu fumando. Tempos depois, ao entrar no escritório do pai, dá com uma fumacinha no ar, e eis o velho atirando rápido alguma coisa pela janela, depois se voltando com ar sonso:

— Que foi, meu filho? Por que está me olhando?

O rapaz se pôs a rir:

— Mas que flagra, hein? Você não tinha dado a sua palavra de honra que nunca mais havia de fumar?

O velho pigarreou, compenetrando-se:

— Meu filho, eu vou lhe dizer uma coisa, saiba de uma vez por todas: cheguei à conclusão definitiva de que honra e cigarro são duas coisas absolutamente incompatíveis.

Deixar de fumar. Conheço um que deixou durante três anos. Um dia viu Charles Boyer segurar delicadamente um cigarro na ponta dos dedos, levá-lo à boca, tirar uma daquelas tragadas francesas de encher o peito, e depois dizer para Michele Morgan “je t’aime”, soltando fumaça. Saiu do cinema, comprou um maço de Hollywood e fumou-o inteiro, um cigarro atrás do outro.

Estou proibido de citar a velha frase atribuída a Mark Twain, a Bernard Shaw, a Churchill: nada mais fácil — já deixaram umas vinte vezes. Pois aqui está o homem que deixou o cigarro. Mais um dia sem fumar! — diz ele, satisfeito, se olhando ao espelho antes de ir dormir. Sabe a data precisa: desde o dia onze de outubro de mil novecentos e setenta e dois (às três e trinta e cinco da manhã). Com isso exatamente nove meses. Está para nascer, de um momento para outro. Está para nascer o homem novo, sem sarro nos dentes ou nos dedos, e sem úlcera de estômago, distúrbio das coronárias, enfisema pulmonar. Vai até a janela e respira fundo o ar puro da noite, batendo com as mãos espalmadas no peito. Vem-lhe a lembrança dos tempos em que a essa hora fumava ali na janela o último cigarrinho antes de se meter na cama — lembrança que ele afasta como fumaça, sacudindo a mão no ar. No fundo sabe que nunca mais será o mesmo, sente-se vagamente viúvo. Há nele qualquer coisa de ex-presidiário ou de défroqué (fora de moda): o cigarro o estigmatizou para sempre. “Mas pelo menos não morrerei de câncer” — conclui ele.

“Fumar é morrer um pouco” — diz um artigo que tenho diante dos olhos: “os fumantes têm uma probabilidade duas vezes maior de morrer na meia-idade do que os que não fumam”.

Sou um homem de meia-idade; e, como deixei de fumar há coisa de meia hora atrás, a minha probabilidade de morrer neste instante ficou reduzida à metade. Resta a outra metade, ou seja, a morte em decorrência de outras causas. Quanto a estas, não creio que haja nada a fazer. Não há outros vícios que eu posso abandonar, a não ser o de viver.

Viver faz tanto mal à saúde quanto fumar. Viver também é morrer um pouco. Faz cair os cabelos e os dentes. Provoca rugas na pele, flacidez nos músculos e artrite nos ossos. Enfraquece a cabeça, combale o organismo e ataca o coração. É o próprio suicídio preconizado pelos que não têm pressa.

E o pior é que os fumantes nem ao menos têm o consolo de saber que estão afugentando a morte quando abandonam o fumo, pois diz aqui o tal artigo: “somente ao fim de dez anos de abstinência tabágica as possibilidades de falecer em consequência do hábito são iguais às das pessoas que não fumam”.

Dez anos? Sei de um que não fuma há nove — portanto durante um ano estará sujeito a morrer por ter fumado. E até hoje ainda sonha que está fumando, acorda engasgado com a fumaça.

Na adolescência cheguei uma ou outra vez a dependurar um cigarro na boca, mas só para parecer que já era homem e não ser barrado no cabaré. Comecei a fumar de verdade aos 20 anos, corrompido por meu amigo Hélio Pellegrino (que hoje não fuma).

Desde então me entreguei alegremente ao vício abominável. Fazer boca para o cigarro era um eufemismo que transcendia o simples cafezinho, para estender-se à própria vida até seu último instante. Pouco importava que fosse reduzida à metade, e daí? Fumar até o momento final, como um condenado — dar a última tragada e enfrentar impávido o pelotão de fuzilamento.

Como um condenado, me vi um dia sem um só cigarro em casa — era de madrugada e chovia. Ainda assim saí à rua para comprar, não poderia dormir sem fumar. Andei como uma alma penada pelas ruas escuras e molhadas de meu bairro, nem um botequim aberto. Já me dispunha a tomar um táxi e mandar seguir para o quinto dos infernos, onde quer que houvesse cigarros à venda. De súbito percebi a escravidão que aquilo significava. Chovia cada vez mais, relâmpagos cortavam a noite.

Nunca mais hei de fumar! — bradei para as potestades dos céus. No dia seguinte me agarrei com ferocidade à surpreendente decisão, fumando a todo momento um cigarro imaginário. Ao segundo dia meu propósito se robusteceu — eu tinha vencido: em breve estaria respirando melhor, sem corizas e pigarros. E ao terceiro dia enlouqueci.

Não sei como não me internaram. Passei a ter ímpetos homicidas dentro de casa, crianças fugindo espavoridas como galinhas. Agarrava-me com todas as forças ao novo vício: o de não fumar. Só falava nisso, só vivia para isso. Depois do primeiro mês a coisa se tornou mais fácil, mas eu vivia triste como se tivesse perdido algum parente próximo e querido. As pessoas me olhavam como quem diz: esse homem esquisito que não sabe onde põe as mãos positivamente já não é o mesmo. E sentado num sofá, vendo os outros fumarem, eu me sentia sem braços como um cavalo.

Com o correr do tempo me acostumei. E para provar que eu deixara mesmo de ser fumante, aceitei com naturalidade o cigarro que me ofereciam, depois de um jantar. Foi então que descobri a verdadeira e única fórmula de vencer o vício do fumo: deixar de fumar sem abandonar o cigarro. Um cigarro como complemento das refeições não faz mal a ninguém. Ou depois de um bom cafezinho — sejam quantas forem as xícaras tomadas diariamente. Um cigarrinho aqui, outro ali — podem mesmo ser tantos quantos os de antigamente, mas com uma diferença: na boca de alguém que, por convicção, deixou de ser fumante. Tudo nesta vida é pura questão de convicção.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Cecília Meireles (Poesias para Crianças) 3


A BAILARINA

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé.

Não conhece nem mi nem fá
mas inclina o corpo para cá e para lá.

Não conhece nem lá nem si,
mas fecha os olhos e sorri.

Roda, roda, roda com os bracinhos no ar
e não fica tonta bem sai do lugar.

Põe no cabelo uma estrela e um véu
e diz que caiu do céu.

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Mas depois esquece todas as danças,
e também quer dormir como as outras crianças.
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O MENINO AZUL

O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.

O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
- de tudo o que aparecer.

O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.

E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.

(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)
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OS CARNEIRINHOS

Todos querem ser pastores,
quando encontram, de manhã,
os carneirinhos,
enroladinhos
como carretéis de lã.

Todos querem ser pastores
e ter coroas de flores
e um cajadinho na mão
e tocar uma flautinha
e soprar numa palhinha
qualquer canção.

Todos querem ser cantores
quando a Estrela da Manhã
brilha só, no céu sombrio,
e, pela margem do rio,
vão descendo os carneirinhos
como carretéis de lã…
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RIO NA SOMBRA

Som
frio.

Rio
sombrio.

O longo som
do rio
frio.

O frio
bom
do longo rio.
Tão longe,
tão bom,
tão frio
o claro som
do rio
sombrio!
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SONHOS DA MENINA

A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?

Sonho
risonho:

O vento sozinho
no seu carrinho.

De que tamanho
seria o rebanho?

A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha ...

Na lua há um ninho
de passarinho.

A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?

Fonte:
Cecília Meireles. Ou isto ou aquilo. Publicado em 1964.