segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 13

 

Isabel Furini (Um caixão para Ruperto)


Quando Ruperto, o erudito, morreu, havia nevado na parte norte da Itália e as crianças brincavam com neve nas ruas. Quando Ruperto morreu, algumas aves revoavam no céu, talvez aproveitando que a neve havia parado de cair. E nessa manhã, quando Ruperto, o erudito, morreu, nascia uma criança albina de um parto difícil, e uma moça, que estava catatônica há meses, levantou-se e começou a dançar, e uma menina triste, que perdera a mãe, depois de ficar no quarto durante muitas semanas, correu até a rua para brincar com a neve. E no mesmo horário em que Ruperto morreu, o padre Antônio viu uma luz expandir-se e afastar-se do lado de fora da igreja.

 Padre Antônio, o pároco do povoado, fora chamado na noite anterior para dar a extrema unção ao Ruperto. Encontrou o moribundo pálido e suado, apesar do frio. A boca muito aberta tentando respirar. Faltava-lhe o ar e ainda assim sua mão direita segurava um lápis pequeno, e a esquerda apertava a borda do livro que tentara terminar durante toda a sua vida. Ele não conseguiu a chave para sair do dicionário perfeito. Como é de costume, os dicionários vão avançando de um verbete a outro verbete, que comente de maneira mais exata o tema estudado.

– Faltou uma palavra, padre, só uma palavra... – disse o moribundo.

O padre pegou o lápis da mão de Ruperto e, ao tentar tirar o livro, o moribundo tentou levantar a cabeça, sem voz e com um olhar de desespero, apertou fortemente o enorme caderno. A obra de sua vida, a obra inacabada. Uma idosa chorava de seu lado.

Ruperto não tinha parentes, mas a vizinha gostava dele apesar de ter fama de louco. Era um homem pacífico. Um estudioso. Alguém que dedica sua vida a escrever um livro, só um livro, não pode ser má pessoa. Só os loucos aferram-se às coisas como se tivessem o poder de perpetuar a existência. Ruperto aferrou-se ao seu dicionário quando sua esposa morreu, passava o tempo lendo e escrevendo, e sua vida foi tomando forma graças a ele. Mas antes de morrer, entendeu que havia fracassado. Fracassado. Bem lhe dissera, há vinte anos, a duquesa Maria Paola, que era impossível terminar uma obra dessas. Era contra Deus fazer um manuscrito em que cada palavra era explicada por outra e essa por outra e essa por outra até por fim voltar à primeira. Voltar? Tentar voltar, porque Ruperto fracassou e não conseguiu voltar à primeira palavra.

O padre, impressionado com a teimosia e o trabalho de Ruperto, decidiu fazer uma pequena homenagem: um caixão redondo.

– Por que, padre? – perguntou curioso Giuseppe, o carpinteiro.

– É para Ruperto continuar sua obra no céu. – respondeu o padre. Ele tentou criar um dicionário em que cada palavra remitia a outros verbetes e desejava que os verbetes esclarecessem uns aos outros, até voltar à primeira palavra. Um círculo aparente. Mas não... – disse o padre, coçando o bigode. Na realidade era uma espiral!

Ao dizer isso, o padre Antônio pensou que o caixão redondo não seria representativo de Ruperto e decidiu pedir para o carpinteiro fazer um caixão em espiral.

– Um caixão espiral? – o pobre homem olhou-o com os olhos enormes. Pela primeira vez em anos abriu os olhos em toda a sua plenitude, pois, acostumado com os mortos, trabalhava a madeira dos caixões com os olhos quase fechados.

– Um caixão espiral? – perguntou novamente.

Em anos de profissão, havia escutado solicitações estranhas e sempre havia obedecido, como a do conde Francesco, que pediu para enterrar o pai em um caixão branco por fora e azul com estrelas prateadas pintadas por dentro, para que se lembrasse do caminho do céu. E aquela senhora que vivia perto rio, depois da ponte, qual era seu nome? Esqueceu, mas se lembrava dos olhos azuis e das lágrimas quando ela solicitou um caixão com a imagem de Santa Lúcia na tampa para a sua irmã. E aquela mulher de mais de 80 anos, que fora abandonada antes do casamento pelo noivo e se manteve virgem, antes de morrer, solicitou um desenho da genitália masculina no lado de dentro da tampa, para ter em morte o que não havia conseguido em vida. Eram tantas as lembranças... Mas um caixão espiral? Nunca ninguém havia solicitado!

Giuseppe estava confuso. Seu tio fazia caixões e lhe havia ensinado a arte. Giuseppe abraçou a profissão de uma maneira quase mística. Achava que era um dever e uma missão dada por Deus. Por isso nunca ficava zangado quando a família de sua esposa zombava dele. Sua esposa queria que ele trabalhasse com seu irmão vendendo frutas no mercado, pois se sentia constrangida de dizer que o trabalho de seu marido era fazer caixões. Mas Giuseppe amava seu trabalho e não cedia às reclamações da esposa. Ele sempre obedecia às solicitações realizadas pelos clientes.

Giuseppe sempre fazia dois moldes, o primeiro para o caixão e outro para a tampa. Ambos de tamanho real. Tinha muito cuidado com os painéis laterais, pois deviam encaixar perfeitamente para serem presos às bordas da base. A medida da tampa precisava ser correta, especialmente a medida dos ângulos, para o ajuste perfeito da tampa, poucos sabiam disso, mas ele escutara alguém dizer ao seu tio que os segredos de um bom caixão são o tipo de madeira usado, os entalhes e o encaixe correto da tampa. Um encaixe torto prejudica o caixão, ainda mais os construídos com madeira nobre. Giuseppe era cuidadoso e o caixão sempre saía de acordo com o molde. Ele observava se todas as partes estavam corretas antes de prender os painéis laterais na base e entre eles. A borda inferior de cada painel deveria estar bem encaixada à base, e a tampa, ajustada corretamente.

Pela primeira vez, Giuseppe não sabia como construir um caixão! Como era um homem honesto, falou:

– Padre Antônio, eu nunca fiz um caixão espiral.

O Padre decidiu pedir ajuda. Reuniram-se então no salão nobre da prefeitura os homens mais inteligentes e todos os que trabalhavam com madeira: marceneiros, carpinteiros, agentes funerários, engenheiros, professores, administradores, decoradores e o próprio prefeito, que estava cansado da administração da cidade e só pensava na próxima viagem a Veneza – Veneza, local de belas mulheres.

O alvoroço produzido no povoado pela forma do caixão foi tal que até as carpideiras deixaram de chorar e começaram a discutir sobre maneiras de fazer um caixão espiral.

– Espiral ou espiralado? – perguntou um marceneiro. – Eu faço formas espiraladas desenhadas na madeira.

Todos respiraram aliviados. O agente funerário ordenou fazer um caixão comum, e com uma faca gravaram imagens de espirais.

Giuseppe continuava desenhando espirais em uma folha.

– Não foi isso o que pedi. – disse o padre Antônio com autoridade. – Eu quero um caixão com forma de espiral.

Novamente começaram as discussões em busca de uma solução. Como fazer um caixão de forma espiral? Espiral dá voltas sobre si mesma. Espiral é um quase círculo que se abre para dar origem a outro quase círculo, que se abre para dar origem a outro quase círculo, que se abre para...

– É impossível fazer um caixão desses! – disse o marceneiro.

– Silêncio! – gritou Giuseppe. – Se ele quer um caixão espiral, terá um caixão espiral.

– Forte o suficiente para suportar o peso do Ruperto? – perguntou o padre.

– Será forte o suficiente. – prometeu o carpinteiro.

E ele mesmo pegou uma madeira de três metros por três e desenhou uma espiral. A espiral começava no centro e girava para a direita. Cada traço afastava-se do centro e crescia em direção ao exterior, como uma fuga premeditada, como o centro de uma galáxia, que se estendia para chegar aos confins de si mesma.

– Padre, o senhor quer uma Via Láctea! – exclamou Giuseppe, que gostava de observar e estudar as estrelas.

E seu lápis tornou-se um instrumento sagrado. E todos fizeram silêncio. O padre Antônio disse que a Via Láctea é uma espiral gigantesca, como o dicionário de Ruperto, que talvez não estivesse brincando com as palavras, mas tentando chegar à palavra primordial que deu origem... origem ao universo! E seus olhos abriram-se tão grandes que pareciam duas fogueiras queimando numa noite escura.

Então Giuseppe, o carpinteiro, homem do povo, falou:

– Padre Antônio, podemos cortar a madeira e deixar um espaço entre as linhas. É isso o que deseja? Um espaço vazio?

– Um espaço vazio! – gritou o padre, que era um homem iluminado.

Um espaço... Era essa a solução. Sempre é necessário um vazio para que Deus possa preencher. Esse foi o mistério que Ruperto procurou durante toda a sua vida e morreu sem saber que, como falaram os pitagóricos, um ponto deu origem ao universo e que a origem das palavras, que deu origem aos verbetes circulares, não era outra palavra como pensava Ruperto, mas um silêncio. O silêncio primordial, o silêncio que antecedeu o Verbo.

Athos Fernandes (Caderno de Poemas) 1


COLHEITAS DE AMOR


I

Tudo era inverno em mim quando chegaste.
O altivo coração, que fora outrora
um Chimborazo ardente de desejos,
enregelado e inerte - adormecera!...

Não mais cantavam pássaros nos ramos.
E as flores todas dos jardins dos sonhos,
hirtas de frio, a tiritar, jaziam
despetaladas pelo chão de neve.

Tudo era inverno em mim quando chegaste.
Sobre o busto de Palas de minha alma
já o corvo augural pousado estava,

grasnando o “never more” da descrença.
Tudo era inverno em mim quando chegaste,
qual fruto sazonado ao sol do estio!

II

Vinhas da Canaã dos meus sonhares
para o deserto hostil dos meus desgostos,
trazendo em teu sorriso alegre e franco
o mágico esplendor de vinte auroras.

Como Ruth a Booz então me deste
do teu ardente amor farta colheita.
Da amendoeira em flor sentei-me à sombra
e fui feliz no vale do teu seio!

Deixei as vinhas de Nabot, malditas,
onde a ambição domina e o vício medra,
como o joio floresce nos trigais...

E não mais precisei, por graça tua,
ó doce Sherazade dos meus sonhos,
colher frutos de amor noutras searas!
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DIZE-ME ENTÃO...

Tu, que não crês no amor, dize-me agora
qual a ilusão que, plácida e risonha,
consola o desespero de quem chora
e inspira o devaneio de quem sonha!

Pediste amor ao pôr do sol e à aurora,
sem ver, na sua súplica tristonha,
que a quem supremo bem do alheio implora,
importa que igual bem sempre reponha.

Procura o teu destino e os teus prazeres,
e saberás que as crenças mais queridas
são fagulhas de Deus na alma dos seres...

E assim verás que o amor nunca encontraste,
porque se o procuravas noutras vidas,
no próprio coração nunca o buscaste!
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PAIXÕES

Posto que homem sou, feito de carne e osso,
sou sujeito a paixões como qualquer mortal.
Vibra e palpita em mim, num constante alvoroço,
todo o sensualismo atávico ancestral!

Domino-o porque sei, desde os tempos de moço,
sobrepor às paixões do instinto um nobre ideal.
O beijo que se paga é sempre um beijo insosso,
todo o amor que se compra é sempre amor banal!

Pode rugir feroz a besta dos desejos!
A carne pede a carne, a boca pede beijos,
mas tu, ó alma boa, o corpo me dominas!

A menos que, por fim, vencida te entregares
à sede de prazer que vem dos lupanares
e à fome de amor comprado às messalinas!
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SOBRE A SAUDADE

Quem sente saudade, sente
pouca esperança também.
Mas como é triste se a gente
nem uma, nem outra, tem.

Sentir saudade é pungente,
ao se esperar quem não vem;
porém, mais sofre o descrente
que nunca espera ninguém!

Assim, no claustro da vida,
o amor nos faz como um monge
que aguarda a luz prometida.

Por que mais vale, por certo,
uma esperança mais longe
que um desengano mais perto.
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VERSOS À ITAPERUNA
(Poema declamado pelo autor na festa que marcou o Primeiro Encontro de Valores Itaperunenses, em 11/09/1976)

I

Eu amo a minha terra e estimo a minha gente
como um filho a seus pais e a seus irmãos germanos.
E embora esteja longe há vinte e tantos anos,
só o meu corpo partiu! A alma ficou presente!

E bem maior não há, neste mundo inclemente,
(Bem por graça de Deus dado aos seres humanos)
do que a glória de ter, em meio aos desenganos,
em reciprocidade o afeto que se sente!

É este, - Itaperuna, - o meu maior anseio:
Ser querido por ti, que me nutriste o seio,
E me mim sempre encontraste a devoção e o apreço.

Ser querido por ti, que eu amo e que venero,
na mesma proporção do muito que te quero,
e não na proporção do pouco que mereço!

II

O certo é que ninguém mais do que eu te adora,
pois que és o meu lugar, o meu berço e o meu teto,
onde de um lar cristão gozando o doce afeto
eu era mais alegre e mais feliz que agora!

Meu céu só tinha então o resplendor da aurora!
E o caminho da vida era florido e reto!
Com a esperança a afagar meu coração inquieto,
não via a dor que punge e a mágoa que devora.

Um dia, Deus o quis, eu te deixei, tristonho.
Que te importa a razão? E porque o fiz, e o sonho
com que embalei meu ser buscando outro destino?

O fato é que parti e encaneci bastante...
Sou um triste que lembra a alegria distante,
sou um velho que chora os tempos de menino!

III

E hoje que estou aqui, tranquilo em teu regaço,
qual um peixe a nadar no lago onde nasceu,
trago-te a saudação e o carinhoso abraço
do menino que sou, que sem querer cresceu!...

Todo o bem que possuo, - Itaperuna, - é teu!
Esta lira que empunho e esse talento escasso.
E o saudável vigor que o teu leite me deu,
pago-te em gratidão nos versos que te faço.

Que riquezas não tem quem te dedica às rimas;
quem busca no cascalho um veio de obras primas,
na bateia do Belo emprega o engenho seu.

Eis a razão por que, à falta do ouro e gemas,
eu te ofereço agora estes humildes poemas:
são pedras sem valor, mas o garimpo é meu!

Fontes:
Athos Fernandes. Shangri-La Poesias. 1979.
Athos Fernandes. Ofir. 1977.

domingo, 11 de setembro de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 13

 

Artur de Azevedo (Plebiscito)

A cena passa-se em 1890.

A família está toda reunida na sala de jantar.

O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.

Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.

Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.

Silêncio.

De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:

- Papai, que é plebiscito?

O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.

O pequeno insiste:

- Papai?

Pausa:

- Papai?

Dona Bernardina intervém:

- Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar que lhe faz mal.

O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.

- Que é? Que desejam vocês?

- Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.

- Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?

- Se soubesse não perguntava.

O Senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:

- Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!

- Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.

- Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?

- Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que e plebiscito.

- Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!

- A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...

- A senhora o que quer é enfezar-me!

- Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, e o menino ficou sem saber!

- Proletário, acudiu o senhor Rodrigues, é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.

- Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!

- Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!

- Oh! Ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: - Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.

O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:

- Mas se eu sei!

- Pois se sabe, diga!

- Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!

E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.

No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...

A menina toma a palavra:

- Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!

- Não fosse tolo, observa dona Bernardina, e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!

- Pois sim, acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão; pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.

- Sim! sim! Façam as pazes!, diz a menina em tom meigo e suplicante. Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito!

Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:

- Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.

O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.

- É boa! brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio; é muito boa! Eu! Eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...

A mulher e os filhos aproximam-se dele.

O homem continua num tom profundamente dogmático:

- Plebiscito.

E olha para todos os lados a ver se há por ali mais alguém que possa aproveitar a lição.

- Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.

- Ah! suspiram todos, aliviados.

- Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...

Fonte:
Artur de Azevedo. Contos Fora da Moda. Publicado originalmente em 1894,

Pedro Melo (Caderno de Trovas)

Magnífico Trovador em Nova Friburgo, 2010 (Líricas/filosóficas) e 2022 (humorismo)
 

A briga passa do ponto,
mas nosso beijo a termina...
O amor, depois de um confronto,
é movido a adrenalina...
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A folha em branco é cruel...
O nada é a sua artimanha...
Ao confrontar o papel,
nem sempre o poeta ganha...!
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Ainda que sejas minha
só nos lençóis do meu sonho,
tu moras em cada linha
das páginas que componho!...
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Altas horas... a alma inquieta...
e, revirando o que sente,
a vigília do poeta
acorda um verso indolente...
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Ao meu lado nesta lida,
os amigos, venho a crer,
são a família que a Vida
me permitiu escolher.
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Chega dezembro… e as pessoas
camuflam seu próprio mal…
Quem dera que fossem boas
não apenas no Natal…
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De que vale o estardalhaço
de quem grita que é cristão,
quando a Bíblia, sob o braço,
não está no coração.
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Em nosso Amor tu te impões...
Eu sou quase teu mascote...
- Mas aceito teus grilhões
e ainda peço o chicote...!
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Em vigília a vida inteira,
me trazendo lenitivo,
a Ilusão é uma enfermeira
que mantém meu sonho vivo...
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Esta saudade tão rude
que faz minha alma deserta
vem desde o tempo em que eu pude
mas não fiz a escolha certa!
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Eu tenho a resposta pronta
e digo que o amor é findo...
Mas o espelho me confronta...
e sabe que estou mentindo...!
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“Eu volto...” Mas acontece
que não voltas... e, cansada,
minha vigília adormece
no colo da madrugada...
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Faz regime... e, por fazê-lo,
se desespera a coitada,
pois sempre tem pesadelo
com rodízios... de salada!…
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Fez a macumba... no entanto,
desesperou-se e sofreu...
- Em vez de “baixar” o santo,
a caxumba é que desceu...
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Há almas cheias de fel,
cujo rancor as emperra:
- Almejam vida do Céu
sem merecer nem a terra...!
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Importando-se comigo
em qualquer ocasião,
Deus é o meu melhor Amigo...
e sempre está de plantão...!
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Meus dias hoje não têm
a luz outrora sentida,
devido à ausência de quem
era a Luz de minha vida!
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Morre a sogra... e o genro, “terno”,
fala com certo cinismo:
“Talvez o calor do inferno
seja bom pra reumatismo...”
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Para esquecer o passado,
tenho um exemplo excelente:
- O rio, mesmo apertado,
só sabe correr... pra frente!
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Passa o tempo... e, enquanto corre
a lembrança vai sumindo...
Mas a saudade não morre:
- Apenas fica dormindo...
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Percorrendo triste rota,
sem quem amou é que sente:
- A Saudade é uma gaivota
planando dentro da gente...
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Pro inferno a sogra desceu
e apavorou a plateia:
O demo até se benzeu
ao ver a cara da “véia”...
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Quanto equívoco...! (Hoje sei...)
Burrada atrás de burrada...
Quantas portas eu tentei
abrir com a chave errada...
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Quero, mas não fujo dela...
que em tudo se faz presente:
— A Saudade é sentinela
em vigília permanente...
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“Quero um homem!” – diz, “acesa”,
a um gatão dentro do trem...
E, para sua surpresa,
ele responde: “Eu também...”
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Quis conquistar teu carinho,
mas tu não quiseste o meu.
- Escolheste outro caminho...
e a solidão me escolheu...
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Se a vida, em seus embaraços,
faz minha vida ser triste,
busco prazer em teus braços...
...e esqueço que a vida existe...!
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Sou peão que, em desatino,
não viu que estava iludido...
Contra o touro do destino,
todo confronto é perdido...!
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Tanto a maldade se eleva
num mundo contrário e horrendo,
que, em confronto com a Treva,
hoje é a luz que está perdendo...
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Tanto a paixão nos deslumbra
e o seu ardor nos seduz,
que, em nosso quarto, a penumbra
é pontilhada de luz...
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Tento esconder como estou,
mas saudade não tem jeito:
- Tua ausência faz um gol
e rasga a rede em meu peito...!

Aluísio de Azevedo (Como o Demo as Arma)

Teresinha era a flor das pequenas lá da fábrica. Todos lhe queriam bem. Ninguém como ela para saber guardar as conveniências e saber cumprir com os seus deveres sem fazer caretas de sacrifício.

Vivia de cara alegre, tocava o seu bocado de piano, sabia arranjar desenhos para os seus bordados, tinha repentes de muita graça, e nunca nenhuma das companheiras lhe apanhara a ponta de um desses escândalos, que são a riqueza das palestras nos lugares em que há muitas raparigas juntas.

Além disso, era de uma economia limpa e natural. Nas suas mãozinhas cor-de-rosa e picadas de agulha o escasso ordenado de costureira parecia transformar-se em moeda forte. Vestido seu nunca ficava fatalmente velho: era já mudar-lhe o feitio; era já trocar-lhe os enfeites, e aí estava Teresinha metendo as outras no chinelo.

– Uma joia! – resumia o gerente da fábrica.

E jurava que, se não fora velho e casado, havia de fazer-lhe a felicidade.

Mas Teresinha, pelo jeito, não queria casar. Por mais de uma vez apareceram-lhe partidos bem aceitáveis, e ela torcera o narizinho a todos, dizendo que ainda era muito cedo para pensar nisso. Um seu vizinho, o Lucas com armarinho de modas e rapaz estimado no comércio, chegou a oferecer-lhe um dote de dez contos de réis; outro, o Cruz também com armarinho e não menos estimado que o primeiro, jurou-lhe numa carta, que faria saltar os miolos, se ela não o tomasse por marido. Teresinha, não quis nenhum dos dois e continuou, muito escorreita no seu vestidinho justo ao corpo, uma flor ao peito, a bolsa de couro na mão, a passar-lhes todos os dias pela porta, no sonoro tique-taque dos seus passos miúdos, indo pela manhã para a fábrica e voltando à tarde para casa, sempre ligeira e saltitante como um pássaro arisco.

Mas, quando lhe morreu a tia com que ela habitava, e a pequena ficou só no mundo, disseram logo:

– Agora é que veremos se ela quebra ou não quebra o capricho!

– Talvez se agregue por aí a qualquer família conhecida… conjecturaram.

– Não! Não será tão tola que se sujeite a isso, podendo dispor de um marido logo que o queira!…

– De um ou de mais!

– Ora! Não falta quem a deseje!

Teresinha, todavia, não se casou, nem foi abrigar-se à sombra de ninguém; ficou morando na mesma casa em que lhe morrera a tia conservando uma criada velha que as acompanhava havia muitos anos. Na fábrica a mesma pontualidade, a mesma linha de conduta, a mesma limpeza e diligência no serviço, na rua – aquele mesmo passinho curto e apressado, que mal deixava aos seus vários pretendentes lobrigar a ponta das suas honestas botinas pretas de salto baixo.

Não obstante, meses depois, principiaram de aparecer-lhe transformações. Notavam todos, lá na fábrica, que a Teresinha já não era aquela rapariga alegre e caprichosa dos primeiros tempos; agora tinha esquisitices de gênio e caía em fundas abstrações, quedando-se horas perdidas a olhar para o espaço, de boca aberta, o trabalho esquecido sobre os joelhos.

– Que terá ela?… – cochichavam as companheiras.

E observavam, com pontinhas de riso brejeiro, que a exemplar Teresinha, – a diligência em pessoa – já não era a primeira a pegar na costura e a última a deixar o serviço.

A partir daí, puseram-se a espreitá-la e a segui-la na rua.

Descobriram logo que Teresinha ao sair do trabalho, em vez de ir para casa, metia-se na Biblioteca Nacional ou nos gabinetes de leitura ou então nas lojas dos livreiros.

E viam-na passar um tempo esquecido a escolher brochuras, a consultar revistas e alfarrábios, fariscando nelas com o nariz enterrado entre as páginas, alguma coisa, que ninguém atinava com o que fosse.

– Querem ver que ela deu para filósofa? – comentaram as outras raparigas.

Uma das mais velhacas da roda afiançou que não seria a primeira Teresa que desse para isso.

E o grande fato é que todo o dinheirinho das economias de Teresinha era lambido pelos vendedores de livros. Já lhe notavam até certa negligência no traje e no penteado.

Uma vez apresentou-se na oficina de sapatos rotos.

– Ó Teresinha! – objurgou-lhe uma amiga. – Tu estás ficando desmazelada!

Por outro lado, o gerente principiava a resmungar: Pois ele queria lá doutoras no estabelecimento!… A senhora dona Teresinha parecia já não ligar a mínima importância ao serviço! O tempo era-lhe pouco para os romances que ela trazia escondidos no bolso! Não! Assim, que tivesse paciência! Mas não havia remédio senão mandá-la passear! Ia-se ali para desunhar na costura e não para contar-se tábuas do teto. E, por isso, que diabo! Pagava-se a todas pontualmente em bom dinheiro! Não se tinha ali ninguém de graça!

Uma ocasião apresentou-se mais tarde, muito pálida, com grandes olheiras. Percebia-se facilmente que passara a noite em claro.

Trazia entre os dedos um volume de Teophile Gautier, marcado em certa página.

Nesse dia trabalhou bastante, com febre. Mal, porém, terminou a obrigação, correu à casa e fechou-se na. sala, defronte do candeeiro de querosene.

Abriu o livro no lugar marcado – Une larme du diable! (uma lágrima do diabo!)

Releu ainda uma vez a singularíssima novela. Aquela extravagante fantasia do rei dos boêmios, a alma doente e sonhadora do eleito da decadência romântica, a imaginação desvairada daquele fumador de ópio, embriagaram-na com uma delícia de vinho traiçoeiro.

Uma lágrima do diabo!

Que haveria verdade nessa lágrima e o que vinha a ser ao certo, esse diabo, de que lhe falavam os poetas, os padres, os professores, as crianças e as velhas?… Já em outros livros encontrara o mesmo que afirmara Gautier: o tal gênio do mal, disfarçado em rapaz bonito, a correr o mundo, para tentar as pobres raparigas. Um alfarrábio religioso de sua tia ensinara-lhe que o maldito andava solto, aí por essas ruas da cidade, janota, barbeado e cheiroso, e que as moças inexperientes precisavam ter todo o cuidado, porque o patife, além de tudo, escondia os cornos e o rabo, e não havia por onde reconhecê-lo.

Definitivamente era muito perigoso para ela arriscar-se sozinha, todos os dias, a cair em semelhante perigo!

E se o encontrasse?…

Santo Deus! Só esta ideia a fazia tremer toda.

E começou a chegar-se muito para os velhos, a afeiçoar-se por eles. Com os moços é que não queria graças; temia-os a todos, principalmente os simpáticos e esmerados na roupa.

– Nada! Nada de imprudências! Pode muito bem ser que eu caia nas mãos do tal!.

Isso, porém, não impediu que a cautelosa Teresinha, um belo dia, ao dobrar uma esquina, desse cara a cara com um belo rapagão louro, de bigodes retorcidos, nariz arrebitado e monóculo.

Cheirava que era um gosto.

– Estou perdida! – balbuciou ela trêmula, estacando defronte do rapaz, sem ânimo de erguer a vista, porque tinha antemão certeza de que o olhar dele havia de cegá-la.

– Desta vez não me escapas! – murmurou o moço.

– Não há dúvida! É ele mesmo! – gaguejou a medrosa, quase a chorar. – Valha-me Nossa Senhora!

E recuou alguns passos.

– Não fujas! – disse o sujeito.

Ela obedeceu logo e até chegou-se mais para o diabo, atraída, presa, vencida, como se aquelas duas palavras fossem as pontas de um tenaz que a segurasse pelas carnes.

Ele passou-lhe o braço na cintura.

– Tenho tanta coisa a dizer-te, minha flor! Se quisesse ouvir-me… Oh! Eu seria o ente mais feliz do mundo! Olha! A tarde está magnífica, vamos nós dar um passeio juntos?

Teresinha não opôs objeção e deixou-se conduzir.

– Mas, Deus! Meu Deus! – lamentava-se ela pelo caminho segurando-se ao braço do demônio. – Estou aqui, estou no inferno!

O demônio levou-a para casa dele e mal entraram, atirou-se-lhe aos pés, cobrindo-a de beijos ardentes.

Ela soluçava.

– Por que choras, meu amor?

Seu hálito queimava. Teresinha via saírem-lhe faíscas dos olhos. E, sempre a tremer, e sem ânimo de recusar nada pedia-lhe compaixão, convencida de que era aquele o último momento da sua vida.

– O diabo não é tão feio como se pinta!… – volveu o moço, afagando-a.

– Ah! Não! Não! Bem o vejo!… – respondeu ela, receosa de contrariá-lo. – Mas, por quem é, não me faça mal!

– Fazer-te mal? Que loucura! Fazer-te mal, eu, que te amo; eu, que há tanto tempo passo horas e horas à espera que saias do serviço para acompanhar-te de longe, sem te perder de vista; o que, sabes? É difícil, porque nunca vi andar tão depressa! Mas esqueçamos tudo! agora és só minha, não é verdade?… Não é verdade que, de hoje em diante me confiarás toda a tua alma e todo o teu coração?…

– Que remédio tenho eu?

– Não imaginas como seremos felizes! Meu ordenado chega perfeitamente para os dois e…

– Quê?… Seu ordenado?…

– Sim, meu amor, eu sou empregado público…

– Empregado? Não é possível!

– Sou, filhinha! Estou a dizer-te! Sou empregado no tesouro; apanhei o lugar por concurso; ganho trezentos mil réis por mês, afora os achegos que aparecem.

– O senhor está gracejando! Diga-me uma coisa, mas não me engane… O senhor não é o diabo?

O rapaz soltou uma risada.

– Pois tu ainda acreditas no diabo? É boa!

– Ora esta!… – murmurou Teresinha. - Se eu desconfiasse!… Agora… paciência! Já não há remédio… Caso-me com o Lucas.

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Demônios (contos) Publicado em 1895.

sábado, 10 de setembro de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 17: Cheiro do Mato

 

Aparecido Raimundo de Souza (Simplesmente a imensidão de estar aqui)

O DIA ACABOU MAIS CEDO. Terminou sorumbático, casmurro, acabrunhado e eu, capiango (1) e apatetado, os pensamentos voando longe, nem me dei conta. Na verdade, quando percebi a falha do desvão, tentei trazer de volta, esses pensamentos, tudo de uma só vez, usando de uma astúcia inventada, meio que sem eira nem beira. Não alcancei êxito. Pois bem! Dancei. Quando atinei com a burrice e percebi o adiantado da noite, a televisão já anunciava o começo de um filme que fazia tempo tinha vontade de assistir. Que loucura! Tudo, hoje, foi tão rápido! Desde as primeiras horas da manhã, a impressão absolvida pela minha cabeça, era a de que o tempo trazia, consigo, uma pressa estranha e maquiavélica, uma decisão tresloucada de querer chegar correndo em algum lugar. E não me enganei. Não sei vinda de onde, recordo, mas juro, havia uma espécie de metamorfose caótica parecida com a de Kafka (2) pairando assarapantada sobre o céu esmaecido da cidade.

Senti, igualmente, uma involuntária alteração de conduta estampada em cada pessoa com quem cruzei pelas ruas. Uma espécie de desolação lastimosa, consternada e hedionda, que podia se ver e sentir no vai-e-vem da multidão afobada, na balbúrdia desembestada dos ônibus que deixavam passageiros com as suas caras de tacho nos pontos de espera, ao longo das avenidas. Até os semáforos abriam e fechavam rápidos demais. Por todos os cantos se ouviam brados horripilantes de insatisfações. Reclamações atípicas cortavam o ar, apimentadas com chuvas de palavrões ensandecidos e respingados de puro ódio e desolação. Um caos!


Lembrava um campo de batalha, eu diria sem medo de errar. Pior, trazia à tona uma arena, tipo um anfiteatro de figuras macabras representando uma peça infernal. Cada ser humano, estampava, no rosto, o vírus do mal, como se possuído pela Cólera de Aquiles (3). De repente, me senti bombardeado, grão-pútrido, preso em meio aos escombros de muros que desabavam de um lado e casas que ruíam de outro. Bem gostaria de fugir de mala e cuia com meus arrepios à tiracolo, para a Noruega. Meu Deus, se lá não fosse tão frio! Em meio a todas as loucuras infrenes e sem explicações plausíveis, qualquer coisa valeria a pena desde que me visse livre e longe do desespero e da instantaneidade que a cada segundo crescia ganhando dimensões maiores ao meu derredor. Para chatear, um carro, o som muito alto, passou barulhento, ao largo da praça, anunciando com estardalhaço incontido, a supremacia do caos irremediável se apossando de tudo.

Entrementes, memorizei Orwell (4), e associei o inferno em que deveria estar metido quando das suas “Horas de ódio”. Não é só uma revolução virtual que a tudo contempla. Impera, de contrapeso, uns quadros enigmáticos, aterradores e reais, onde a massa humana comprimida se debate, embalde, com todas as forças, em busca do eterno não sei o quê! De repente me questiono: o que aconteceu com a droga do mundo? Ficou louco, pirou, assim sem mais nem menos? A resposta está bem aqui diante dos meus olhos, atropelando meu nariz, ou mais precisamente, fustigando os ponteiros do tempo. E se alguém –, penso com meus dissabores saídos da caixinha dos meus medos –, e se alguém atropelasse as horas e parasse os mecanismos dos ponteiros do tempo, ou, via outra, se um louco varrido desse um basta no gigantesco relógio que comanda o Universo?

Quando criança, eu contava com a vantagem de não existir no real, não tinha vida própria. Entretanto, queria que o tempo (o mesmo tempo de hoje) passasse correndo. Que voasse à mil. Detestava as horas que perdia confinado nas carteiras do grupo escolar. Odiava as aulas chatas de matemática. Se pudesse, juro que enfiaria a carcaça do professor numa máquina do tempo e mandava o infeliz embrulhado em papel de presente para a Era Glacial (5). Naquele tempo, naquele tempo, para meu desgosto, não havia máquinas de tempo disponíveis, nem tempo de sobra sobrando para se pensar em algo mais sério, ou em uma solução plausível, por exemplo, que interferisse diretamente no futuro. Hoje, envelhecido, cansado de brigar com o agora, tenho saudades da linearidade do meu tempo de menino, do útil majestoso, das horas que perdia (não perdia, ganhava) nos bancos da escola. Naquela ocasião, eu não atinava com tal grandiosidade... sequer imaginava que o amanhã é um nunca que pode não chegar e o hoje, o agora que atropela.

Ainda agora, aos sessenta e nove, tenho vontade de voltar às noites e aos dias dos meus idos de quinze para dezesseis. Revisitar aqueles Instantes agradáveis que pareciam mais longos e amenos, sem os atropelos ríspidos que hoje pesam sisudos sobre os telhados de vidros das cidades. Todas as cidades e capitais, se revestem de telhados de vidros. As pessoas, não veem, mas são de vidros. Naquele tempo, ou “no longínquo que se quedou inerte, e enterrado”, percebo que o passado não se dizimou. Persiste e não para de ficar cada vez mais distante. Ou seria mais próximo? Vai se saber! Houve dias, dentro daquele outrora, onde eu e ela, a minha namoradinha de vestidinho curto e franjinha cobrindo os olhos, éramos felizes e não sabíamos. Com intuito de tentar explicar, eu não percebia, tampouco entendia ou imaginava a grandiosidade eloquente de estar vivendo.

Vivendo e sonhando. Sonhando e vivendo, a bel prazer das coisas sem noção. De fato, à luz de tornar as coisas inteligíveis, que por agora me norteiam, eu burro aos extremos, não atinava em aprender coisas novas e a criar vínculos duradouros que vivenciassem o “a depois”, de mãos dadas, com o meu futuro. Não me importava, igualmente, com o presente que logo chegaria (ele estava logo ali, aos meus pés) e me levaria (como me levou e me deixou), aos trancos e barrancos por veredas não percorridas. Naquele tempo, ou no tempo dos meus dias forasteiros, eu não sabia, nem me dava conta de que a Felicidade plena e gentil, se escondia faceira, bonançosa e estrepitosa, saltitante e real, bem aqui... Meus Deus, bem aqui dentro de meu peito.  
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Notas de rodapé:

1 – Capiango – Larápio borra-botas, uma espécie de gatuno de meia tigela.   

2 – Kafka – Referência ao escritor Franz Kafka, autor do romance “A Metamorfose”.

3 – A Cólera de Aquiles –  No poema “A Ilíada”, de Homero, Aquiles se contempla como o homem da solidão. Por conta, alimenta a ideia de que é revestido de um heroísmo individual que só ele possui.  

4 – Orwell – Autor da obra “1984”. Aliás, um tema bastante presente em nossos dias. O escritor sinaliza o Estado, como um todo controlando os passos da sociedade e impondo as suas ordens a ferro e a força.

5 – Era glacial – Denominação a qualquer período em que camadas espessas de gelo cobrem vastas áreas da Terra.

Fonte
Texto e notas enviadas pelo autor.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XLVI


AMIEL
 
Não, nem no sonho a perfeição sonhada
Existe, pois que é sonho.  Ó Natureza,
Tão monotonamente renovada,
Que cura dás a esta tristeza?
O esquecimento temporário, a estrada
Por engano tomada,
O meditar na ponte na incerteza...

Inúteis dias que consumo lentos
No esforço de pensar na ação,
Sozinho com meus frios pensamentos
Nem com uma 'sperança mão em mão.

É talvez nobre ao coração
Este vazio ser que anseia o mundo,
Este prolixo ser que anseia em vão,
Exânime e profundo

Tanta grandeza que em si mesma é morta!
Tanta nobreza inútil de ânsia e dor!
Nem se ergue a mão para a fechada porta,
Nem o submisso olhar para o amor.
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NÃO QUERO IR ONDE NÃO HÁ A LUZ
 
Não quero ir onde não há a luz,
Do outro lado abóbada do solo,
Ínfera* imensa cripta, não mais ver
As flores, nem o curso ao sol de rios,
Nem onde as estações que se sucedem
Mudam no campo o campo.  Ali, no escuro,
Só sombras múrmuras*, êxuis* de tudo,
Salvo da saudade, eternas moram;
Região aos mesmos íncolas* incógnita,
Dos naturais, se os tem, desconhecida.
Ali talvez só lírios cor de cinza.

Surgirão pálidos da noite imota*.
Ali talvez só pelo som as águas,
Como a cegos, serão, e o surdo curso,
No côncavo sossego lamentoso,
Se acaso à vista habituada aclare,
Será como um cinzento tédio externo.

Não quero o pátrio sol de toda a terra
Deixar atrás, descendo, passo a passo,
A escadaria cujos degraus são
Sucessivos aumentos de negrume,
Até ao extremo solo e noite inteira.

Para que vim a esta clara vida?
Para que vim, se um dia hei de cair
De haste dela? Para que no solo
Se abre o poço da ida? Por que não
Será sem fim [?...]
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* Vocabulário:
Ínfera = que fica abaixo, inferior.
Múrmuras = murmurantes.
Êxuis = desterrados.
Íncolas = moradores, habitantes.
Imota = parada, quieta.

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NÃO QUERO IR ONDE NÃO HÁ LUZ II
 
Não quero ir onde não há luz,
De sob a inútil gleba não ver nunca
As flores, nem o curso o ao sol dos rios,
Nem como as estações que se renovam
Reiteram a terra.  Já  me pesa
Nas pálpebras que tremem o oco medo
De nada ser, e nem ter vista ou gosto,
Calor, amor, o bem e o mal da vida.
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NÃO QUERO MAIS QUE UM SOM DE ÁGUA
 
Não quero mais que um som de água
Ao pé de um adormecer.
Trago sonho, trago mágoa,
Trago com que não querer.

Como nada amei nem fiz
Quero descansar de nada.
Amanhã serei feliz
Se para manhã  há estrada.

Por enquanto, na estalagem
De não ter cura de mim,
Gozarei só pela aragem
As flores do outro jardim.

Por enquanto, por enquanto,
Por enquanto não sei quê...
Pobre alma, choras sem pranto,
E ouves como quem vê.
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NÃO QUERO ROSAS, DESDE QUE HAJAM ROSAS.
 
Não quero rosas, desde que hajam rosas.
Quero-as só quando não as possa haver.
Que hei de fazer das coisas
Que qualquer mão pode colher?

Não quero a noite senão quando a aurora
A fez em ouro e azul se diluir.
O que a minha alma ignora
É isso que quero possuir.

Para quê?... Se o soubesse, não faria
Versos para dizer que inda o não sei.
Tenho a alma pobre e fria...
Ah, com que esmola a aquecerei?…
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NÃO SEI SER TRISTE A VALER
 
Não sei ser triste a valer
Nem ser alegre deveras.
Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Assim também, sem saber?

Ah, ante a ficção da alma
E a mentira da emoção,
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão
Florir sem ter coração!

Mas enfim não há diferença.
Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
O que nela é florescer
Em nós é ter consciência.

Depois, a nós como a ela,
Quando o Fado a faz passar,
Surgem as patas dos deuses
E ambos nos vêm calcar.

'Stá bem, enquanto não vêm
Vamos florir ou pensar.

Francis Scott Fitzgerald (Este lado do Paraíso)


Romance de estreia de Fitzgerald, “Este lado do paraíso” alcançou sucesso imediato quando foi publicado originalmente em 1920. Este livro é o retrato de uma geração jovem desiludida com a guerra, conhecida como Geração Perdida. Fitzgerald foi o porta-voz de sua época, identificando-se com a juventude americana elegante e irreverente.

Podemos facilmente dizer que o livro trata-se de um romance de formação por nos mostrar a trajetória de Amory desde seus primeiros anos, ainda criança - uma das partes mais interessantes do livro é a que concentra-se na mãe do personagem -, até o momento em que ele, já formado e tendo passado por uma guerra, encontra-se sem direção.

Nascido em berço de ouro, Amory Blaine foi mimado por sua mãe, Beatrice, uma mulher que reunia as qualidades esperadas de uma dona-de-casa rica da virada do século XX. Ela era bonita, interessante, propensa a doenças misteriosas e com um fraco por vícios em bebidas e medicamentos. Nada além do normal dentro daquela sociedade. Beatrice praticamente criou Amory sozinha, já que o pai do rapaz ausenta-se durante todo o romance. A educação era, de fato, vista como assunto de mulheres. E Amory foi educado de forma muito próxima pela mãe durante seus anos de infância, o que parece tê-lo marcado para sempre. Se Fitzgerald colocou tal construção como crítica ao apego entre uma mãe e um filho fica à interpretação do leitor.

É interessante perceber como Amory passa de um jovem que tem tudo - dinheiro, status e convicções firmes - para alguém que não possui grandes certezas, alquebrado pelo mundo que o rodeia, a qual não mais sente-se pertencente. O Amory que acompanhamos durante mais da metade do romance exibindo seu intelecto, fazendo farras com os colegas, tendo diversos encontros e usando o mundo como se fosse seu parque de diversões é bem diferente do rapaz que encontramos da metade para o final da história, quando ele já está com as ilusões por terra e enxerga o mundo e a si mesmo como coisas irremediáveis.

O estilo muda conforme Amory vai perdendo as bases fundamentais que sustentavam sua personalidade. O que começa como prosa muda para poemas, diários, cartas e teatro. Não há uma constante porque aquela era uma época de mudanças - tal qual o é esta. A guerra, a crise econômica, o rompimento com Rosalind, seu primeiro e mais intenso amor (claramente baseada em Zelda), a pandemia, a falta de perspectivas, tudo deprime aqueles personagens, que continuam tentando encontrar seus lugares, quer seja numa profissão, quer seja num casamento tradicional, seguindo os passos da geração anterior que já não se encaixam naquele contexto, pois os valores vitorianos foram rompidos no início do século XX.

Amory é um jovem rico, de família tradicional, e que cumpre os requisitos da alta sociedade da época. Vai para um internato, estuda numa faculdade de ponta, entra para uma fraternidade, é benquisto pelos colegas - e até mesmo um pouco invejado. Mas, conforme vai se aventurando por leituras de autores clássicos, como Tolstói, políticas e filosóficas, Amory tem sua visão de mundo modificada. Isso dialoga com a experiência que teve na pré-adolescência, nos poucos anos em que morou junto com os tios, no meio do nada, onde viveu à parte do círculo de riquezas e benefícios que lhe cercaram desde o berço. Embora ele fosse um jovem rico para quem tudo estava ao alcance, o mundo que se desenhava à sua frente era mais complexo e ele, seja por suas leituras, seja pela experiência de ter morado com os tios num local afastado e visto algo para além de si mesmo e do luxo com o qual crescera, não conseguia simplesmente ignorar aquilo que percebia. Sua sede por tornar-se alguém - ter uma definição que fosse além dos muros do nascimento - cresceu de tal modo que afetou os rumos de sua vida, impregnando para sempre Amory de um sentimento de desilusão.

Com uma narrativa vibrante, um tom fortemente autobiográfico e sua ironia típica, o autor nos revela a imaturidade e a insensatez dos jovens deslumbrados pelo progresso. Um dos maiores escritores americanos do século XX, Francis Scott Fitzgerald publicou, além de contos e ensaios, os romances Os belos e malditos (1922), O grande Gatsby (1925), Suave é a noite (1934) e O último magnata (1941).

Francis Scott Fitzgerald captou como ninguém o que era ser jovem numa América ainda jovem. E o conseguiu fazendo o que para muitos escritores é conveniência, mas em seu caso era coragem: levando sua vida para sua arte de forma inédita.” Daniel Piza, trecho do prefácio.

Fontes:
Ed. Record
Mia Sodré. Este Lado do Paraíso: os ecos de uma Geração Perdida. In Querido Clássico. nov. 2020.

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Nélio BessanT (Caderno de Trovas) 3

 

Contos e Lendas do Paraná - 12 (Município de Ponta Grossa: Tesouro do Capão da Onça)


 Lá pelo mês de junho de 1932, o coronel Brasílio França procurou desvendar o que havia de realidade sobre o lendário tesouro do padre fantasma, segundo o Jornal Diário dos Campos. O Capão da Onça é um local ao leste da cidade, rumo a Itaiacoca, onde está situada a fazenda do coronel João Carneiro Ribas, além do rio Verde, próximo às terras da fazenda Modelo. Do matagal insulado no meio da campina, como um oásis, onde, em remotas eras, foi caçada uma onça, adveio o nome para a região.

Sobre ele há narrativas fantásticas. Narrativas, onde, como sempre, aparecem lendas de tesouros enterrados, jesuítas e assombrações terríficas. Carroceiros e boiadeiros evitam fazer pousada nas proximidades, pois muitos outros que ali estavam descansando da jornada, foram bruscamente despertados com pedradas, toques lúgubres de sinos e gritos angustiosos. Outros juram, “de pés juntos”, que viram um padre macilento que desaparecia após fazer sinais.

Nas proximidades, há alguns anos atrás, o coronel Jordão Ribas da Silva possuía uma fazenda, nela habitava um polonês, ainda jovem. Certo dia, andando a reunir uma rês tresmalhada, este lavrador aproximou-se do local assombrado, viu um sacerdote que o chamava. Aproximou-se respeitosamente do clérigo. E o polonês ouviu as seguintes palavras, ditas com doçura: “meu filho, tem um tesouro enterrado e te escolhi para o herdares. Acompanha-me”. Disse o fantasma. E tomando uma das mãos do lavrador, o padre fantasma conduziu-o a determinado local, dizendo que cavasse a terra e usasse, como bom cristão, do ouro que outrora os jesuítas ali depositaram. E desapareceu.

O polonês, radiante, correu à casa em busca de ferramentas, com as quais desenterraria do seio avaro da terra o ouro precioso, que lhe proporcionaria o conforto que até ali o destino lhe sonegara. Num instante, voltou o polonês com uma pá nas mãos e mil sonhos ensandecidos na cabeça. O ouro!

Era o destino, personagem sempre perverso, mas poderoso, que até os deuses governava, que lhe negara uma vida melhor. Mas, Deus, por intermédio de seu sacerdote finado, o presenteava com o ouro. E quantas coisas ele faria. Seria como o bom padre, um bom cristão. E assim, chegou ao local designado pela aparição, titubeando. Mas hesitou. Seria ali?

Tomara boa nota dos indícios? Mas, agora duvidava! No entanto, pôs mão à obra. Cavou, cavou, sem que o loiro e vil metal surgisse encoberto com carvões, como reza a tradição. Fez novas e incessantes escavações. Tudo inútil! Entretanto, ele, em pleno dia e são de espírito, tinha perfeita consciência de todas as minúcias da estranha aparição do padre e de suas palavras. E profundamente abalado, perdeu o senso de humor e o juízo! Várias outras pessoas têm, em diferentes épocas, procurado o tesouro do Capão da Onça.

Atraído pela lenda, por fatos ou previsões mais ou menos justificáveis, o coronel Basílio França, honrado e conceituado comerciante de nossa cidade, tem explorando o capão da onça, procurando o legendário tesouro dos jesuítas.

O Capão da Onça é um dos locais mais procurados pela população, por ser mais próximo da cidade. Devido ao grande fluxo de visitantes, ocorre a degradação do meio ambiente, como o desaparecimento da vegetação e dos animais, principalmente dos pássaros.

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná.
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) 8


ABISSAL

O poema estava ali, entre os destroços,
Intocado, escondido, submerso,
Incompleto de palavras e de versos,
Entre algas e corais e entre ossos...
Visão turva, pouca luz e oxigênio,
Tempo escasso para o mergulhador
Cauteloso, observando cada cor,
Cada letra desenhada por um gênio...

A emoção fluía livre e se perdia
Na corrente abissal dos sentimentos;
Ofegante, triste e só, por uns momentos,
O nadador emocionou-se com o que lia...

Era um trecho tão triste... dizia assim:
Meu amor, de tanta dor de tanto pranto,
Acabei criando um mar, pois chorei tanto
Que afoguei meu próprio amor dentro de mim.
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MINHA SOMBRA

Sob a luz fria da Lua,
minha sombra me seguia.
Estranhei ao vê-la nua
como um flash de poesia.
Tê-la em mim, beijando a rua
era mais que fantasia,
para que meu sonho flua,
minha dor se distancia.

Quando a noite atenua
sua escuridão sombria,
o Sol logo se insinua

E a Lua, por ironia,
some e leva a forma nua
da sombra... que me seguia.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NUM CLIC

Tu finges que não lês o que eu digito,
Mas guardas meu silêncio no teu peito,
Teu coração que é sempre insatisfeito,
Espera muito mais do que eu não grito.

Teus olhos, entretanto, me percorrem,
Socorrem-te no amor que te provoca,
Teu corpo me procura... quem te toca
São gotas lacrimais que, em vão, escorrem.

Para curtir-me é simples: basta apenas
Um clic e a mensagem é automática:
E chega fria, triste... sintomática,
Mas traz as tuas lágrimas serenas.

Eu sinto o teu sentir... mudo a mensagem
E ao clicar, escolho um coração,
Pois pode ser que minha intenção
Transforme...em emoção... a nova imagem.

Num clic, aciono o celular,
Mas o que eu digitei, por ironia,
Passou a ser um pingo de poesia,
Do tanto que eu queria te falar.

Enfim, busco no meu computador,
Um ícone maior que me permita
Fazer da minha tecla, que te grita,
Só uma frase aflita: Meu amor!
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PERSPECTIVA

Dentro dos olhos que se fecham sobre a vida,
O teu sorriso se condensa em fantasia,
A tua tela é pulsante e colorida
E a tua vida faz da tinta, a poesia.

Tudo é revisto com sutis perspectivas,
E cada traço geométrico que traças,
Longe das frias lentes das objetivas,
É muito mais que imagem fora das vidraças.

Surrealista na intenção, porém real
Na dimensão que a metafísica alcança,
A tinta dança na pureza do vitral
Que o teu olhar vai colorindo de esperança.

O todo é tudo e quando tudo é tempo e pó,
Cada partícula do tempo que se ausenta
Vai transformando a essência de estar só
Na emoção que o teu silêncio experimenta.

E é nessa doce ocasião de libertar
O teu sorriso sobre a mágica das tintas,
Que tu libertas, com teu jeito de sonhar,
No coração, a emoção com que te pintas.
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PÓLEN

Algumas flores antecipam primaveras...
E outras tantas atravessam estações.
São sempre assim, as emoções... como as quimeras,
Que, sem esperas, acalentam corações.

Algumas dores vão e vêm... quem as aguarda,
Nunca se ocupa com as próprias fantasias,
Veste só roupas para guerras, usa a farda
Da amargura e se despe da alegria.

Se a tristeza é uma flor despetalada,
Que ao secar, não poliniza nem produz,
O amor é luz nas mãos sutis de um jardineiro

Tão fascinado com a flor polinizada
Que o enternece, abençoa e seduz
Pois faz, da cor, o seu mais doce mensageiro.
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QUANDO A SAUDADE ME VISITA

A cada dia que a saudade me visita,
não vem sozinha, traz o afeto pela mão,
meu coração acha a saudade tão bonita,
que é incapaz de aceitar a solidão.

O meu sorriso se instala e a dor aflita
não mais se irrita, ao perceber que a suavidade,
de uma lembrança, passa a ser tão irrestrita,
que até se agita dentro da felicidade.

Minha saudade é soberana e infinita ,
ela é que  filtra a dor que mora no passado
e o resultado é uma alegria tão bendita,
que o meu amor sempre caminha do seu lado.

E quando a vida que me dão, não me completa,
por ser repleta de arrogância e falsidade,
levo a saudade para dentro do poeta
e deixo o sonho transitar... em liberdade.

Fonte:
Luiz Poeta. Nuvens de Versos. Campo Mourão/PR: Edição JFeldman, 2020.

Machado de Assis (Jogo do Bicho)

Camilo, — ou Camilinho, como lhe chamavam alguns por amizade, — ocupava em um dos arsenais do Rio de Janeiro (marinha ou guerra) um emprego de escrita. Ganhava duzentos mil réis por mês, sujeitos ao desconto de taxa e montepio. Era solteiro, mas um dia, pelas férias, foi passar a noite de Natal com um amigo no subúrbio do Rocha; lá viu uma criaturinha modesta, vestido azul, olhos pedintes. Três meses depois estavam casados.

Nenhum tinha nada; ele, apenas o emprego, ela as mãos e as pernas para cuidar da casa toda, que era pequena, e ajudar a preta velha que a criou e a acompanhou sem ordenado. Foi esta preta que os fez casar mais depressa. Não que lhes desse tal conselho; a rigor, parecia-lhe melhor que ela ficasse com a tia viúva, sem obrigações, nem filhos. Mas ninguém lhe pediu opinião. Como, porém, dissesse um dia que, se sua filha de criação casasse, iria servi-la de graça, esta frase foi contada a Camilo, e Camilo resolveu casar dois meses depois. Se pensasse um pouco, talvez não casasse logo; a preta era velha, eles eram moços, etc. A ideia de que a preta os servia de graça, entrou por uma verba eterna no orçamento.

Germana, a preta, cumpriu a palavra dada.

— Um caco de gente sempre pode fazer uma panela de comida, disse ela.

Um ano depois o casal tinha um filho, e a alegria que trouxe compensou os ônus que traria. Joaninha, a esposa, dispensou ama, tanto era o leite, e tamanha a robustez, sem contar a falta de dinheiro; também é certo que nem pensaram nisto.

Tudo eram alegrias para o jovem empregado, tudo esperanças. Ia haver uma reforma no arsenal, e ele seria promovido. Enquanto não vinha a reforma, houve uma vaga por morte, e ele acompanhou o enterro do colega, quase a rir. Em casa não se conteve e riu. Expôs à mulher tudo o que se ia dar, os nomes dos promovidos, dois, um tal Botelho, protegido pelo general*** e ele. A promoção veio e apanhou Botelho e outro. Camilo chorou desesperadamente, deu murros na cama, na mesa e em si.

— Tem paciência, dizia-lhe Joaninha.

— Que paciência? Há cinco anos que marco passo...

Interrompeu-se. Aquela palavra, da técnica militar, aplicada por um empregado do arsenal, foi como água na fervura; consolou-o. Camilo gostou de si mesmo. Chegou a repeti-la aos companheiros íntimos. Daí a tempos, falando-se outra vez em reforma, Camilo foi ter com o ministro e disse:

— Veja V. Exª. que há mais de cinco anos vivo marcando passo.

O grifo é para exprimir a acentuação que ele deu ao final da frase. Pareceu-lhe que fazia boa impressão ao ministro, conquanto todas as classes usassem da mesma figura, funcionários, comerciantes, magistrados, industriais, etc., etc.

Não houve reforma; Camilo acomodou-se e foi vivendo. Já então tinha algumas dívidas, descontava os ordenados, buscava trabalhos particulares, às escondidas. Como eram moços e se amavam, o mau tempo trazia ideia de um céu perpetuamente azul.

 Apesar desta explicação, houve uma semana em que a alegria de Camilo foi extraordinária. Ides ver. Que a posteridade me ouça. Camilo, pela primeira vez, jogou no bicho. Jogar no bicho não é um eufemismo como matar o bicho. O jogador escolhe um número, que convencionalmente representa um bicho, e se tal número acerta de ser o final da sorte grande, todos os que arriscaram nele os seus vinténs ganham, e todos os que fiaram dos outros perdem. Começou a vinténs e dizem que está em contos de réis; mas, vamos ao nosso caso.

Pela primeira vez Camilo jogou no bicho, escolheu o macaco, e, entrando com cinco tostões, ganhou não sei quantas vezes mais. Achou nisto tal despropósito que não quis crer, mas afinal foi obrigado a crer, ver e receber o dinheiro. Naturalmente tornou ao macaco, duas, três, quatro vezes, mas o animal, meio homem, falhou às esperanças do primeiro dia. Camilo recorreu a outros bichos, sem melhor fortuna, e o lucro inteiro tornou à gaveta do bicheiro. Entendeu que era melhor descansar algum tempo; mas não há descanso eterno, nem ainda o das sepulturas. Um dia lá vem a mão do arqueólogo a pesquisar os ossos e as idades.

 Camilo tinha fé. A fé abala as montanhas. Tentou o gato, depois o cão, depois o avestruz; não havendo jogado neles, podia ser que... Não pôde ser; a fortuna igualou os três animais em não lhes fazer dar nada. Não queria ir pelos palpites dos jornais, como faziam alguns amigos. Camilo perguntava como é que meia dúzia de pessoas, escrevendo notícias, podiam adivinhar os números da sorte grande. De uma feita, para provar o erro, concordou em aceitar um palpite, comprou no gato, e ganhou.

 — Então? perguntaram-lhe os amigos.

— Nem sempre se há de perder, disse este.

 — Acaba-se ganhando sempre, acudiu um; a questão é tenacidade, não afrouxar nunca.

 Apesar disso, Camilo deixou-se ir com os seus cálculos. Quando muito, cedia a certas indicações que pareciam vir do céu, como um dito de criança de rua: “Mamãe, por que é que a senhora não joga hoje na cobra?” Ia-se à cobra e perdia; perdendo, explicava a si mesmo o fato com os melhores raciocínios deste mundo, e a razão fortalecia a fé.

 Em vez de reforma da repartição veio um aumento de vencimentos, cerca de sessenta mil réis mensais. Camilo resolveu batizar o filho, e escolheu para padrinho nada menos que o próprio sujeito que lhe vendia os bichos, o banqueiro certo. Não havia entre eles relações de família; parece até que o homem era um solteirão sem parentes. O convite era tão inopinado, que quase o fez rir, mas viu a sinceridade do moço, e achou tão honrosa a escolha que aceitou com prazer.

 — Não é negócio de casaca?

— Qual, casaca! Coisa modesta.

— Nem carro?

— Carro...

 — Para que carro?

— Sim, basta ir a pé. A igreja é perto, na outra rua.

— Pois a pé.

Qualquer pessoa atilada descobriu já que a ideia de Camilo é que o batizado fosse de carro. Também descobriu, à vista da hesitação e do modo, que entrava naquela ideia a de deixar que o carro fosse pago pelo padrinho; não pagando o padrinho, não pagaria ninguém. Fez-se o batizado, o padrinho deixou uma lembrança ao afilhado, e prometeu, rindo, que lhe daria um prêmio na águia.

Esta graçola explica a escolha do pai. Era desconfiança dele que o bicheiro entrava na boa fortuna dos bichos, e quis ligar-se-lhe por um laço espiritual. Não jogou logo na águia “para não espantar”, disse consigo, mas não esqueceu a promessa, e um dia, com ar de riso, lembrou ao bicheiro:

— Compadre, quando for a águia, diga.

— A águia?

Camilo recordou-lhe o dito; o bicheiro soltou uma gargalhada.

— Não, compadre; eu não posso adivinhar. Aquilo foi pura brincadeira. Oxalá que eu lhe pudesse dar um prêmio. A águia dá; não é comum, mas dá.

— Mas porque é que eu ainda não acertei com ela?

— Isso não sei; eu não posso dar conselhos, mas quero crer que você, compadre, não tem paciência no mesmo bicho, não joga com certa constância. Troca muito. É por isso que poucas vezes tem acertado. Diga-me cá: quantas vezes tem acertado?

— De cor, não posso dizer, mas trago tudo muito bem escrito no meu caderno.

— Pois veja, e há de descobrir que todo o seu mal está em não teimar algum tempo no mesmo bicho. Olhe, um preto, que há três meses joga na borboleta ganhou hoje e levou uma bolada...

Camilo escrevia efetivamente a despesa e a receita, mas não as comparava para não conhecer a diferença. Não queria saber do déficit. Posto que metódico, tinha o instinto de fechar os olhos à verdade, para não a ver e aborrecer. Entretanto, a sugestão do compadre era aceitável; talvez a inquietação, a impaciência, a falta de fixidez nos mesmos bichos fosse a causa de não tirar nunca nada.

Ao chegar à casa achou a mulher dividida entre a cozinha e a costura. Germana adoecera e ela fazia o jantar, ao mesmo tempo que acabava o vestido de uma freguesa. Cosia para fora, a fim de ajudar as despesas da casa e comprar algum vestido para si. O marido não ocultou o desgosto da situação. Correu a ver a preta; já a achou melhor da febre com o quinino que a mulher tinha em casa e lhe dera “por sua imaginação”; e a preta acrescentou sorrindo:

— Imaginação de nhã Joaninha é boa.

Jantou triste, por ver a mulher tão carregada de trabalho, mas a alegria dela era tal, apesar de tudo, que o fez alegre também. Depois do café, foi ao caderno que trazia fechado na gaveta e fez os seus cálculos. Somou as vezes e os bichos, tantas na cobra, tantas no galo, tantas no cão e no resto, uma fauna inteira, mas tão sem persistência, que era fácil desacertar. Não queria somar a despesa e a receita para não receber de cara um grande golpe, e fechou o caderno. Afinal não pôde, e somou lentamente, com cuidado para não errar; tinha gasto setecentos e sete mil réis, e tinha ganho oitenta e quatro mil réis, um déficit de seiscentos e vinte e três mil réis. Ficou assombrado.

— Não é possível!

Contou outra vez, ainda mais lento, e chegou a uma diferença de cinco mil réis para menos. Teve esperanças e novamente somou as quantias gastas, e achou o primitivo déficit de seiscentos e vinte e três mil réis. Trancou o caderno na gaveta; Joaninha, que o vira jantar alegre, estranhou a mudança e perguntou o que é que tinha.

— Nada.

— Você tem alguma coisa; foi alguma lembrança...

— Não foi nada.

Como a mulher teimasse em saber, engendrou uma mentira, — uma turra com o chefe da seção, — coisa de nada.

— Mas você estava alegre...

— Prova de que não vale nada. Agora lembrou-me... e estava pensando no caso, mas não é nada. Vamos à bisca.

A bisca era o espetáculo deles, a Ópera, a Rua do Ouvidor, Petrópolis, Tijuca, tudo o que podia exprimir um recreio, um passeio, um repouso. A alegria da esposa voltou ao que era. Quanto ao marido, se não ficou tão expansivo como de costume, achou algum prazer e muita esperança nos números das cartas. Jogou a bisca fazendo cálculos, conforme a primeira carta que saísse, depois a segunda, depois a terceira; esperou a última; adotou outras combinações, a ver os bichos que correspondiam a elas, e viu muito deles, mas principalmente o macaco e a cobra; firmou-se nestes.

— O meu plano está feito, saiu pensando no dia seguinte, vou até aos setecentos mil réis. Se não tirar quantia grossa que anime, não compro mais.

Firmou-se na cobra, por causa da astúcia, e caminhou para a casa do compadre. Confessou-lhe que aceitara o seu conselho, e começava a teimar na cobra.

— A cobra é boa, disse o compadre.

Camilo jogou uma semana inteira na cobra, sem tirar nada. Ao sétimo dia, lembrou-se de fixar mentalmente uma preferência, e escolheu a cobra-coral, perdeu; no dia seguinte, chamou-lhe cascavel, perdeu também; veio à surucucu, à jiboia, à jararaca, e nenhuma variedade saiu da mesma tristíssima fortuna. Mudou de rumo. Mudaria sem razão, apesar da promessa feita; mas o que propriamente o determinou a isto foi o encontro de um carro que ia matando um pobre menino. Correu gente, correu polícia, o menino foi levado à farmácia, o cocheiro ao posto da guarda. Camilo só reparou bem no número do carro, cuja terminação correspondia ao carneiro; adotou o carneiro. O carneiro não foi mais feliz que a cobra.

Não obstante, Camilo apoderou-se daquele processo de adotar um bicho, e jogar nele até estafá-lo: era ir pelos números adventícios. Por exemplo, entrava por uma rua com os olhos no chão, dava quarenta, sessenta, oitenta passos, erguia repentinamente os olhos e fitava a primeira casa à direita ou à esquerda, tomava o número e ia dali ao bicho correspondente. Tinha já gasto o processo de números escritos e postos dentro do chapéu, o de um bilhete do Tesouro, — coisa rara, — e cem outras formas, que se repetiam ou se completavam. Em todo caso, ia descambando na impaciência e variava muito. Um dia resolveu fixar-se no leão; o compadre, quando reconheceu que efetivamente não saía do rei dos animais, deu graças a Deus.

— Ora, graças a Deus que o vejo capaz de dar o grande bote. O leão tem andado esquivo, é provável que derrube tudo, mais hoje, mais amanhã.

— Esquivo? Mas então não quererá dizer...?

— Ao contrário.

Dizer quê? Ao contrário, quê? Palavras escuras, mas para quem tem fé e lida com números, nada mais claro. Camilo elevou ainda mais a soma da aposta. Faltava pouco para os setecentos mil réis; ou vencia ou morria.

A jovem consorte mantinha a alegria da casa, por mais dura que fosse a vida, grossos os trabalhos, crescentes as dívidas e os empréstimos, e até não raras as fomes. Não lhe cabia culpa, mas tinha paciência. Ele, em chegando aos setecentos mil réis, trancaria a porta. O leão não queria dar. Camilo pensou em trocá-lo por outro bicho, mas o compadre afligia-se tanto com essa frouxidão, que ele acabaria entre os braços da realeza. Faltava já pouco; enfim, pouquíssimo.

— Hoje respiro, disse Camilo à esposa. Aqui está a nota última.

Cerca das duas horas, estando à mesa da repartição, a copiar um grave documento, Camilo ia calculando os números e descrendo da sorte. O documento tinha algarismos; ele errou-os muita vez, por causa do atropelo em que uns e outros lhe andavam no cérebro. A troca era fácil; os seus vinham mais vezes ao papel que os do documento original. E o pior é que ele não dava por isso, escrevia o leão em vez de transcrever a soma exata das toneladas de pólvora...

De repente, entra na sala um contínuo, chega-se-lhe ao ouvido, e diz que o leão dera. Camilo deixou cair a pena, e a tinta inutilizou a cópia quase acabada. Se a ocasião fosse outra, era caso de dar um murro no papel e quebrar a pena, mas a ocasião era esta, e o papel e a pena escaparam às violências mais justas deste mundo; o leão dera. Mas, como a dúvida não morre:

— Quem é que disse que o leão deu? perguntou Camilo baixinho.

— O moço que me vendeu na cobra.

— Então foi a cobra que deu.

— Não, senhor; ele é que se enganou e veio trazer a notícia pensando que eu tinha comprado no leão, mas foi na cobra.

— Você está certo?

— Certíssimo.

Camilo quis deitar a correr, mas o papel borrado de tinta acenou-lhe que não. Foi ao chefe, contou-lhe o desastre e pediu para fazer a cópia no dia seguinte; viria mais cedo, ou levaria o original para casa...

— Que está dizendo? A cópia há de ficar pronta hoje.

— Mas são quase três horas.

— Prorrogo o expediente.

Camilo teve vontade de prorrogar o chefe até ao mar, se lhe era lícito dar tal uso ao verbo e ao regulamento. Voltou à mesa, pegou de uma folha de papel e começou a escrever o requerimento de demissão. O leão dera; podia mandar embora aquele inferno. Tudo isto em segundos rápidos, apenas um minuto e meio. Não tendo remédio, entrou a recopiar o documento, e antes das quatro horas estava acabado. A letra saiu tremida, desigual, raivosa, agora melancólica, pouco a pouco alegre, à medida que o leão dizia ao ouvido do amanuense, adoçando a voz: Eu dei! eu dei!

— Ora, chegue-se, dê cá um abraço, disse-lhe o compadre, quando ele ali apareceu. Afinal a sorte começa a protegê-lo.

— Quanto?

— Cento e cinco mil réis.

Camilo pegou em si e nos cento e cinco mil réis, e só na rua advertiu que não agradecera ao compadre; parou, hesitou, continuou. Cento e cinco mil réis! Tinha ânsia de levar à mulher aquela notícia; mas, assim... só...?

— Sim, é preciso festejar esse acontecimento. Um dia não são dias. Devo agradecer ao céu a fortuna que me deu. Um pratinho melhor à mesa...

Viu perto uma confeitaria; entrou por ela e espraiou os olhos, sem escolher nada. O confeiteiro veio ajudá-lo, e, notando a incerteza de Camilo entre mesa e sobremesa, resolveu vender-lhe ambas as coisas. Começou por um pastelão, “um rico pastelão, que enchia os olhos, antes de encher a boca e o estômago”. A sobremesa foi “um rico pudim”, em que havia escrito, com letras de massa branca este viva eterno: “Viva a esperança!”. A alegria de Camilo foi tanta e tão estrepitosa que o homem não teve remédio senão oferecer-lhe vinho também, uma ou duas garrafas. Duas.

— Isto não vai sem Porto; eu lhe mando tudo por um menino. Não é longe?

Camilo aceitou e pagou. Entendeu-se com o menino acerca da casa e do que faria. Que lhe não batesse à porta; chegasse e esperasse por ele; podia ser que ainda não estivesse em casa; se estivesse, viria à janela, de quando em quando. Pagou dezesseis mil réis e saiu.

Estava tão contente com o jantar que levava e o espanto da mulher, nem se lembrou de presentear Joaninha com alguma joia. Esta ideia só o assaltou no bonde, andando; desceu e voltou a pé, a buscar um mimo de ouro, um broche que fosse, com uma pedra preciosa. Achou um broche nestas condições, tão modesto no preço, cinquenta mil réis — que ficou admirado; mas comprou-o assim mesmo, e voou para casa.

 Ao chegar, estava à porta o menino, com cara de o haver já descomposto e mandado ao diabo. Tirou-lhe os embrulhos e ofereceu-lhe uma gorjeta.

— Não, senhor, o patrão não quer.

 — Pois não diga ao patrão; pegue lá dez tostões; servem para comprar na cobra, compre na cobra.

 Isto de lhe indicar o bicho que não dera, em vez do leão, que dera, não foi cálculo nem perversidade; foi talvez confusão. O menino recebeu os dez tostões, ele entrou para casa com os embrulhos e a alma nas mãos e trinta e oito mil réis na algibeira.

Fonte:
Publicado originalmente em Almanaque Brasileiro Garnier, 1904.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 27

 

Luís da Câmara Cascudo (A Missa dos Mortos)

(Região Sudeste)

De todas as coisas, porém, capazes de arrepiar cabelo, e que ouvi em minha infância ouro pretana, nenhuma tão tremenda como a Missa dos Mortos, na Igreja das Mercês de Cima.

Quem m'a contou é pessoa conhecida em toda a cidade de Ouro Preto, e exercia funções incompatíveis com o uso da falsidade em suas informações.

Foi João Leite, o saudoso João Leite, pardo, miudinho, anguloso, sempre montado em seu cavalinho branco, minúscula montaria de hábitos austeros, que se contentava de viver da escassa relva do adro da Igreja.

Seria possível que uma pessoa estimável e honesta como João Leite, sacristão de confiança de uma irmandade, zelador de um templo, tivesse coragem de depois de pregar uma mentira envolvendo mortos respeitáveis, fosse tranquilamente dormir na sacristia, tendo ao lado um cemitério?

Tenho dúvidas. João Leite era ele próprio uma figura mista, metade deste mundo, metade do outro. Suas origens eram misteriosas. Foi enjeitado, com horas de nascido, à porta da Santa Casa, em época que não se sabe. Não se sabe, ainda, quando começou a funcionar como sacristão das Mercês. As mais velhas pessoas da cidade já o conheciam desde criança, nesse mister, com a mesma cara, sempre com o mesmo cavalinho branco.

Quando alguém indagava de João Leite suas origens ou o tempo que servia Nossa Senhora das Mercês, em sua Igreja, João Leite sorria e não respondia nada Um belo dia, há alguns anos, foi encontrado morto diante do altar-mor, deitado no chão, com as mãos sobre o peito, arrumadinho como se estivesse dentro de um caixão. O cavalinho branco sumiu sem que dele ninguém desse notícias.

Pois João Leite, segundo narrativa que lhe ouvi, já lá vão mais de trinta anos, assistiu a uma Missa dos Mortos.

Morando na sacristia do templo cuja conserva lhe era confiada, achava-se recolhido altas horas da noite, quando ouviu bulha na capela. A noite era fria e João Leite estava com a cabeça coberta para esquentar-se melhor. Descobriu-a e abrindo os olhos viu claridade.

Seriam ladrões? Mas a Igreja era pobre e qualquer ladrão, por mais estúpido que fosse, saberia que a Igreja das Mercês, sendo paupérrima, não dispunha de prataria, de qualquer outra coisa de valor mercantil. Enfim, podia ser, raciocinou João Leite.

Estava nessa dúvida quando ouviu sussurrado por vozes cavas em coro, o "Deus vos salve" do começo da ladainha.

Ergueu-se e foi resolutamente pelo corredor até a porta que dá para a nave. A Igreja estava toda iluminada, altares, lustres; e completamente cheia de fiéis.

No altar-mor, um sacerdote paramentado celebrava missa.

João Leite estranhou a nuca do padre, muito branca, não se lembrando de calvície tão completa no clero de Ouro Preto.

Os fiéis que enchiam a nave trajavam todos de preto, e entre eles alguns de cogulas, e algumas senhoras com o hábito das Mercês; todos de cabeças baixas.

Quando o Padre celebrante se voltou para dizer o Dominus Vobiscum, João Leite verificou que era uma simples caveira que ele tinha em lugar da cabeça.

Assustou-se, e nesse momento reparando nos assistentes, agora de pé, viu que também eles não eram mais do que esqueletos vestidos. Procurou logo afastar-se dali, e, caminhando, deu com a porta que deitava para o cemitério completamente escancarada.

O melhor que tinha a fazer, fez. Recolheu-se à cama, cobriu a cabeça, transido de medo, e ficou quietinho ouvindo o sussurro das vozes orando, o tinir da campainha na "Consagração" e no Domine nom sum dignus, até que voltou de novo o pesado silêncio das frias noites de Vila Rica.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. Projeto Livro para Todos.