segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Therezinha D. Brisolla (Trov’ Humor) 03

 

Aparecido Raimundo de Souza (Quando as águas do nosso rio interior viram mar?)

A TERRA É COMO o barro. E o barro é encosta, morro e nuvem e é também céu. Deus é o Soberano Espírito como é amor e amor é algo como Deus: não morre nunca, é eterno, sagrado, reluz e resplandece. Celebra em nosso corpo uma concretude interrelacional que é a alma e o espírito fundidos num só corpo e inseridos harmoniosamente no planeta em que vivemos. O título acima é por demais sugestivo e nos leva a questionarmos a nós mesmos. E mais que isso, a nos fazer pensar: quando as águas do nosso rio interior viram mar? Basta estarmos em paz. Melhor dito, deveríamos todos estar em paz.

A paz nos renova, nos conforta, nos reanima. Faz com que todos vivamos em sintonia meridiana com a Natureza. Cultivar a Natureza é agricultar (1) a graça e hortar (2) a graça é ter a quietude e a mansidão para um trilhar e um caminhar prósperos. Elevar o espírito à patamares nunca visitados nos acarreia (3) para bem longe das intempéries, Por conseguinte, não deveríamos ser prolixos, nem nos deixarmos vencer pelos muitos vícios que nos arrastam para o buraco. O buraco, às vezes é raso. Em outras, nos deixa aprisionados e sem volta. Precisamos acreditar piamente num amanhã melhor. Um porvir que revigora.

O simples acreditar, nos fortifica, nos consola e nos vitaliza por dentro. Sem mencionarmos o fato de que edificados por dentro, tudo se torna menos mal e proveitosamente mais saudável. Abonarmos de coração aberto e com Fé naquilo que está por vir, faz com que todas as coisas sejam possíveis e querençosas (4), aprazentes (5) e alcançáveis, bastando apenas que lutemos com perseverança e afinco, força de vontade irrestrita, e, sobretudo, obstinação incondicional. A teimosia (ou repetindo, a obstinação) e a contumácia, precisam ser esmeradas e literalmente obcecadas. O amor é por excelência, a ponte fixa e indestrutível que nos levará ao sucesso, que nos unirá ao futuro e, via igual, afastará de nossas vidas as horas más e repletas de melancolias.

Não existirá nada rotulado de “ruim” ou de “péssimo” para o nosso corpo, se não quisermos, assim como não criará vida as perniciosidades, se estivermos abertos somente para as “COISAS BOAS E AGRADÁVEIS”. As “COISAS BOAS E AGRADÁVEIS” estão ao nosso redor, quase nos atropelando. Carecemos, sem mais delongas, afastar o que nos tira o tino, a rota, a bússola, enfim, tudo que atravanca e que, de alguma forma, direta ou indiretamente nos distancia do foco e nos impede de agarrá-las pelos cabelos. As “COISAS BOAS E AGRADÁVEIS” precisam, ou melhor, devem ser agarradas pelos cabelos.

Mesma linha, sem nós ou amarras, deveremos abrir agora, nesse momento, todas as portas e escancararmos as janelas do mais profundo da alma para os fluídos renovadores que vêm do espaço, objetivando que eles se acheguem e em nós façam morada. A nossa alma é a morada do Pai Maior. É a segunda Casa do Altíssimo. Para que tal milagre se faça concreto, basta unicamente que saibamos destravar as Entradas do Universo pessoal que está presente em cada um de nós, deixando que eles entrem e se espalhem e não só espalhem, ESPELHEM o que o Criador de todas as coisas nos deu e continua nos ofertando de presente, de grado vivificante, a cada novo amanhecer, sem nada, absolutamente nada, nos pedir em troca.
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Notas de rodapé:
1 – Agricultar – Trabalhar com agricultura. No sentido do texto, cultivar a graça.   
2 – Hortar – Lavrar a terra, preparando o chão para qualquer tipo de plantação
3 – Acarreia – Outro modo de dizer conduzir ou mostrar o caminho a ser seguido.
4 – Querençosas – Tudo aquilo que se torna benévolo, afetivo ou benigno.    
5 – Aprazentes – Coisas agradáveis que deleitam ou satisfazem.


Fonte:
Texto e notas enviadas pelo autor.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 8 -


CINDERELA

"Como o lírio entre os espinhos é minha amada entre as donzela."
(Ct. 2.2)


Há tanto desengano que me intriga,
Que, não poucas vezes, me castiga
Sem nenhuma piedade.
Meu refrigério de consolação
E saber onde está meu coração,
Por quem vale a saudade.

Como posso viver sem esse amor?
Só nele encontro todo meu vigor
E paz na solidão.
És a minha princesa desejada,
Encantos raros de afetuosa fada,
Grande amor e paixão.

Busco-te muito! - Almejo teu olhar,
Que, apaixonado, amor quer encontrar
Pra saciar seus desejos...
Do meu caminho clara luz, vem logo!
Não mais demores! Escuta meu rogo!..
- Terás milhões de beijos.

Beijos de cavalheiro apaixonado,
Beijos ternos de um príncipe encantado
Por sua princesa bela.
A vida é breve! Veloz é o tempo!
Em pensamento, eu sempre te contemplo,
Ó minha Cinderela!
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DÁDIVA DE AMOR
"O perfume das tuas vestes é como o perfume do Líbano."
(Ct 4.11)


Pra você, meu amor, mais este dia...
Que ele seja repleto de poesia...
Da primavera dou-lhe seu sorrir
E dos jardins, canteiros a florir.

Pra você, meu amor, todo perfume...
Da mais brilhante estrela dou-lhe o lume;
Aos seus pés, com carinho, quero por
Tudo o que vá lhe dar muito louvor.

É certo que das flores a fragrância
É menor que o aroma da elegância
De você recendendo, sem cessar,
Enchendo de perfume todo o ar.

O brilho, eu bem sei, do seu olhar
É capaz de uma estrela ofuscar;
Mas o que lhe ofereço, com ardor,
É tão-somente amor e mais amor.
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Lume: Luz, clarão, brilho.
Fragrância: Cheiro suave, perfume, aroma.
Recendendo: Espalhando, emitindo, exalando (forte aroma).

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MEU SER
"o amor é a fortaleza que levanta sobre mim."
(Ct.2A)


Amo-te muito e jamais sonhei
Que assim pudesse o amor te amar;
O amor que sinto expressar não sei,
Mas sei que o amor é maior que o mar.

Amo-te como ninguém na vida,
Quero-te tanto, bem mais que ao mundo
Esta semente, n'alma nascida,
Cresceu, cresceu - é o amor profundo.

O amor é imenso e arde em minh'alma,
Mas é, contudo, meu lenitivo;
És o que tenho - minha doce palma -
E isso é o tudo pelo que vivo.

A vida é bela te amando assim,
Na luz do dia, sonho feliz;
Quem dera ter-te bem junto a mim,
Daquele jeito que eu sempre quis.

Em cada hora deste meu tempo,
Nestes minutos do meu viver,
Eu peço às nuvens, imploro ao vento:
Daqui me levem, lá está meu ser!

Amo-te muito e jamais sonhei
Que assim pudesse o amor te amar;
O amor que sinto expressar não sei,
Mas sei que o amor é maior que o mar.
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Lenitivo: Conforto, alívio, consolação.
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O SUPER -HOMEM
"És toda bela, minha amiga, em ti não há mancha alguma." (Ct. 4.7)

Quisera ter feroz força do leão
E o rugir impetuoso do trovão,
Que apavoram, de vez, a natureza;
Na verdade, eu seria um super-homem,
Que haveria de ter grandioso nome,
Só para proteger-te, com certeza.

Quisera ter a cauda da baleia
E ser o teu escudo, ó sereia,
Que me atrai com o timbre da tua voz;
Dispensaria arpejos de instrumentos,
Teria meus ouvidos bem atentos
Somente pra te ouvir - te ouvir a sós.

Quisera ter do vento a rapidez
E te levar comigo, de uma vez,
Para o mistério espacial estrelado;
Bem longe deste mundo, sem preceito,
Terias vida longa, em novo leito,
E o imenso amor de eterno namorado.

Na galáxia, só feita de quimera,
Contigo, meu amor, eu bem quisera
Criar indescritível paraíso;
Meus olhos, co'a visão do teu fulgor,
Veriam a grandeza deste amor,
Estampada na luz do teu sorriso.
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Sereia: Fig- Mulher sedutora.
Timbre: Marca, sina, qualidade de voz.
Arpejos: Modulação prolongada, sucessiva e rápida, dos diversos sons de um compasso num instrumento musical.
Preceito: Regra de proceder, ordem, prescrição.
Quimera: Ilusão, fantasia, ideia sem fundamento.

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Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.

Humberto de Campos (O Ladrão)

Quem lê os jornais desta capital, tem a impressão de que a arte que mais tem progredido, é, no Rio de janeiro, a arte de furtar. Os feitos da gatunagem são, realmente, aqui, tão numerosos e frequentes, que se fica supondo, ao examiná-los, que os nossos gatunos são homens inteligentíssimos, capazes de ludibriar o resto da população.

O caso não é, entretanto, este. Os gatunos não progrediram, não acrescentaram uma página, sequer, ao famoso compêndio do padre Antônio Vieira. O que sucede é coisa diferente: a população ingênua, ou incauta, foi que se tornou mais incauta ou mais ingênua tornando, assim, mais fácil do que outrora, a infração do sétimo mandamento. O caso do comissário Francisco Ambrósio é, mais ou menos, uma viva demonstração dessa verdade.

Funcionário policial de uma argúcia surpreendente, Francisco Ambrósio de Oliveira era apontado em toda a parte como um legítimo espantalho da gatunagem urbana. Não havia meliante, malandro ou desordeiro que ele não conhecesse. O seu faro de perdigueiro, auxiliado por uma perspicácia digna de Sherlock Holmes, constituía, pode-se dizer, o melhor elemento de repressão de que, até hoje, dispôs a policia.

Certa noite, porém, ao entrar, de regresso da ronda, na sua própria casa, ouviu Francisco Ambrósio, de repente, movimentos de gente estranha no pavimento superior. Cauteloso, habituado a essas experiências da própria coragem, galgou, três a três, os degraus da escada, até que observou, espantado, que o visitante noturno se havia homiziado no seu quarto de dormir. Ao abrir o compartimento sofreu, no entanto, uma decepção: a única pessoa que ali se achava era D. Luisinha, a qual, ao escancarar-se a porta, pulou, assustada, da cama, sem saber do que se tratava.

O faro policial é, felizmente, uma virtude que se manifesta contragosto, mesmo, de quem a possui. E assim foi que, sem custo, Francisco Ambrósio descobriu, impondo silêncio com o dedo indicador estirado sobre os lábios, que havia um gatuno debaixo da cama.

- O gatuno está ali debaixo! - rosnou, convicto, ao ouvido da mulher.

E em voz alta, arrancando o revolver do bolso traseiro da calça:

- Quem está aí?

D. Luisinha tremeu, pela sorte do marido.

- Quem está aí? - gritou, de novo, o comissário.

E ia perguntar pela terceira vez. quando a moça, temendo que o ladrão lhe saltasse sobre o esposo, segurou a autoridade pela manga do paletó, puxando-a para fora do quarto, ao mesmo tempo que aconselhava, amorosa:

- Deixa disso, Francisco. Ele, que não responde, é com certeza, porque não é conhecido...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

domingo, 18 de setembro de 2022

Adega de Versos 91: José Antonio Jacob

 

Nilto Maciel (Lampião à Italiana)

Ruggero Figini descobriu o Brasil em 1974. Desembarcou na Bahia e logo tratou de conhecer o Pelourinho. Porém queria muito mais que acarajé e candomblé. Cobiçava um papel no filme Dona Flor e seus dois maridos. De preferência o de um deles. Procurou Bruno Barreto. Talvez estivesse no Rio de Janeiro. E Sônia Braga? Ninguém sabia dela.

Lembrou-se do tempo das filmagens de I Girasoli. Nunca esperara ser trocado por Mastroianni. Desesperou-se, arquitetou escândalos. Imaginou até uma agressão física a De Sica.

Desde menino Ruggero sonhava nos braços das mais belas mulheres da Itália. Um dia ainda contracenaria com Claudia Cardinale, Silvana Mangano, Monica Vitti, Virna Lisa. E ainda escolheria o diretor. Fellini com fulana, Visconti com sicrana, Antonioni com beltrana. E alcançaria o Oscar. Mais de um. Seria famoso no mundo inteiro.

No entanto, os anos se passavam, as atrizes envelheciam, e só lhe sobravam pequenas atuações em filmes medíocres.

E por que não se fazer cineasta? Tudo dependia de encontrar um belo roteiro. Logo alcançaria a fama de Rosselini, Pasolini, Bertolucci. Fossem para o inferno Arnaldo Jabor, Bruno Barreto, Cacá Diegues e todo o alfabeto do cinema brasileiro. Sim, iria dirigir um filme monumental: a vida do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Em italiano o título seria Il Lampione.

Restava encontrar o roteirista. E por que não o já velho amigo Airton Acaiaca? Até porque Airton e Virgulino haviam nascido no Ceará. “Não, Ruggero, Lampião não era cearense. Nem Airton. E onde nascera o roteirista? “Dizem que é mineiro, se não for baiano”. O italiano concluiu: “Melhor assim. Filmaremos em Canudos”. E pôs-se a falar de Antonio Conselheiro.

Para Ruggero, o Lampião do roteirista mais parecia um gângster, um Al Capone. E terminaram se desentendendo. O cineasta chamou Airton de incompetente. Não conhecia a História de seu próprio povo. O brasileiro também não se conteve: “Aventureiro, ator fracassado, impostor”.

Dias depois dessa rusga Ruggero Figini regressou a Roma. Não levava nada, a não ser o roteiro de Acaiaca.

Il Lampione alcançou enorme sucesso na Europa. Não teve, no entanto, a direção de Ruggero, que preferira vender o roteiro a um produtor cinematográfico.

Uma fortuna.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XLVII

INSÔNIA

 
MOTE:
Na mais estreita amizade,
sem a menor cerimônia,
à noite, tua saudade
vem deitar com minha insônia!
Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo/RJ


GLOSA:
Na mais estreita amizade,
numa amizade tão pura,
unem-se à minha ansiedade
lembranças só de ternura.
 
E a saudade, de repente,
sem a menor cerimônia,
se coloca em minha frente
como conselheira idônea.
 
Revivo, então, na verdade,
velhos dias de alegria...
À noite, tua saudade
vem me fazer companhia...
 
Sentindo-me, assim, amado,
numa beleza-fitônia,
tua saudade, ao meu lado,
vem deitar com minha insônia!
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   ... SE MORRESSE A SAUDADE?
 
MOTE:
... E se morresse a saudade?
Fatalmente eu morreria...
Pois, é esta doce maldade
o alimento do meu dia!
Fernando Câncio Araújo
Fortaleza/CE, 1922 – 2013

GLOSA:

... E se morresse a saudade?
O que seria de mim?
Acho que a fatalidade
seria mesmo o meu fim!
 
Se a saudade fosse embora,
fatalmente eu morreria...
pois com ela, sem demora,
iria junto a alegria!
 
Amo a saudade, é verdade,
ela faz bem a minha alma,
pois, é esta doce maldade
que me faz feliz e acalma!
 
Hoje, são as esperanças
que mantêm esta utopia...
São minhas doces lembranças,
o alimento do meu dia!
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   POETA FINGIDOR
 
MOTE:
O poeta é um fingidor
finge tão completatente,
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.
Fernando Pessoa
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

GLOSA:

O poeta é um fingidor
e tem emoções de artista;
nos seus olhos só de amor
há um fingimento altruísta!
 
Se está triste de verdade,
finge tão completamente,
que mostra felicidade,
sem nem mesmo estar contente!
 
Suspira sem sentir dor,
ou chora e a sente gemendo,
que chega a sentir que é dor
aquela  dor que está tendo!
 
Segue, assim, no seu fingir,
num fingir tão inocente
que,  às vezes, chega a sentir
a dor que deveras sente.
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   SEGUNDA VOZ
 
MOTE:
A vida pôs, por maldade,
tanta distância entre nós,
que, quando eu canto, é a saudade
que faz a segunda voz...
Izo Goldman
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

GLOSA:

A vida pôs, por maldade,
entre nós dois, um adeus...
e nessa triste verdade,
marejam-se  os olhos meus!
 
Eu não consigo aceitar
tanta distância entre nós,
quero e preciso sonhar,
pois nos tornamos dois sós!
 
A nossa realidade
é tão triste, tão sem fim,
que, quando eu canto, é a saudade
que canta dentro de mim!
 
Meu canto é quase um lamento
e é essa saudade atroz,
cantando na voz do vento,
que faz a segunda voz…

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas VII. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Maio 2003.

Sammis Reachers (Casemiro, O Profeta)

Impossível coordenar no mesmo período os termos Jardim Nazaré e catar ferro-velho sem elencar o terceiro elemento que completa a equação: Profeta. Seu nome, ao que consta, era Casemiro. Possuía um ferro-velho em sua casa, na rua principal do bairro. Quando o conheci, era já um ermitão. Meus pais diziam que tivera esposa, que aparentemente abandonara o coitado.

Era homem já pelos seus 60 ou mais (ou menos, que a vida trata a cada um com um rigor diferente), senhor de suas rugas e verrugas. Seu cabelo, alvo e sempre desgrenhado, lhe alcançava quase os ombros; seus trajes completavam o arquétipo do eremita: shortões ou calças puídos ao máximo, cheios de reparos aparentes, de costura desleixada e cores indefiníveis, dado o encardido. Suas camisas seguiam o mesmo script. A barba não grande, mas sempre por fazer, era o arremate, a cereja do bolo.

Aquele morador dum bairro suburbano de São Gonçalo bem que poderia ser confundido com um elemento antisocial (nossa língua imensa tem até um nome feio para isso: misantropo) morando numa gruta ou caverna no agreste do país. Fato que contribuía para aumentar a aura de mistério que, ao menos para as crianças da época, o envolvia: Quando eu lhe perguntava por que ele era chamado de Profeta, o desconjuntado fazia uma cara de pensador profundo, e dizia:

– Você não ia entender, garoto...

– Mas, diga, diga que eu entendo sim, seu Profeta.

– Garoto, isso está muito além de sua mente de criança. Sabe, eu vejo mundos...

– Mundos??!!! Caramba!!! Fale sobre esses mundos.

– Esqueça isso, moleque, você é muito jovem para entender. São mistérios...

Por incrível que pareça, este diálogo se repetiu algumas boas vezes, sempre com o mesmo desenlace inconclusivo. E vez após vez o diabrete da curiosidade plantava seu feijão mágico em minhas terras férteis.

Pois bem, as primeiras experiências de mercar reciclagem de todos os moleques do bairro começaram com Profeta – ainda que, depois, fôssemos migrando para ferros-velhos mais distantes, mas que em compensação pagavam melhor. Antecipando-se aos movimentos feministas de igualdade laboral, até meninas se apresentavam naquele entreposto para vender ferragens e garrafas!

Recordo de que era comum na época catarmos ferro e latas principalmente. Essas hodiernas embalagens plásticas dos óleos de soja, ou as latinhas com partes de papelão de alguns leites em pó inexistiam: Era tudo tecido na mais pura lata. Assim, era bem fácil acumular boa quantidade do (já àquela época) desvalorizado material. E, como dito nalgum lugar, não havia coleta de lixo pelos despudorados poderes públicos: A cada esquina e meia havia um lixãozinho a céu aberto.

Chegando diante do ferro-velho do Profeta, um ritual se estabelecia: Apanhávamos alguns soquetes bem pesados, feitos de barras de ferro, e nos púnhamos a amassar todas aquelas latas, uma barulheira infernal. Como o produto era pouco, pouquíssimo valorizado, e nossa carestia era grande, recorríamos a um subterfúgio que, acredito, sempre foi e ainda é praticado em todo o grande mundo: Colocar pedras dentro das latas para que, depois de amassadas, seu peso aumentasse. Ah, doce esporte!

Mas tal subterfúgio nem sempre redundava em logro: Se Profeta, apanhando uma das latas a esmo e a balançando, percebesse o engodo, mandava recolher todo o conteúdo que já estava em sua balança e “ir vender em outro lugar”. Era preciso apuro para amassar bem amassadas as latas com pedras, e não colocar pedras em todas, é claro.

Certa feita, a engenhosidade maléfica de Renato teve uma inspiração, um insight criativo, o qual ele comunicou a uns cinco ou seis moleques da rua. Acontece que a casa de Profeta era protegida não por um muro de alvenaria, mas por um emaranhado de chapas de lata, arames e paus entrelaçados. Um quiprocó dos carambas, que lembrava até algumas obras de arte modernas que eu viria a conhecer. Mas, dentre aquele emaranhado muito bem urdido, Renato percebera uma lacuna. Sim, uma chapa de lata que, se corretamente forçada, daria entrada naquele quintal, ainda que fosse pelo menos a uma criança menor que nós.

O que se seguiu foi vergonhoso, mas julgávamos apenas estar empatando o jogo, pois as balanças de Profeta eram algo suspeitas de sempre “roubar para a casa”, ou a banca, outra prática de universal valência...

Toda noite, íamos até aquele ponto da cerca e, forçando silenciosamente a lataria, embutíamos um dos pequenos para dentro – em geral um dos irmãos menores de Renato, Aguinaldo (“Guinaldo”) ou Ricardo (“Cado” ou “Cadim”). Os pequenos safardanas então surrupiavam o que podiam – garrafas e garrafões, pedaços de alumínio que porventura Profeta houvesse esquecido “do lado de fora”, já que os materiais de mais valor eram guardados dentro de casa, e até ímãs. E, no dia seguinte, lá íamos nós... revender as peças para ele mesmo, Profeta.

Lembro que nos regozijávamos com aquilo, acreditando sermos os maiores malandros de todo o orbe terrestre. Dinheiro fácil e justiça, a desejada justiça, feita contra aquelas balanças viciadas em infidelidade!!!!

Mas a alegria durou pouco. O velho, mesmo com todo aquele traquejo de lelé da cabeça ou doidivanas, certo dia nos disparou, na lata:

– Ei, esse ímã aqui não é meu, não?

Antes que pudéssemos negar, o raciocínio daquele misantropo correu rápido como numa visão, e ele imediatamente associou todas as nossas vendas dos dias anteriores a desfalques – agora ele entendia – em sua própria firma.

O resultado: Além de perdermos a carga que fôramos levar naquele dia, ficamos proibidos de ali comerciar por um bom tempo. E o buraco na cerca, ah, o velho encontrou e tapou no mesmo dia!

Com o tempo, o pobre do Profeta foi diminuindo as atividades, e por fim vendeu a parte da frente de seu terreno para um indivíduo que lá construiu sua casa. Ficando ainda mais isolado, pois sua casa agora ficava “escondida” no terreno dos fundos, ali Profeta faleceu, sozinho e misterioso como sozinho e misteriosamente vivera boa parte de sua vida.

Saudades de Profeta, de suas broncas, seu jeito irritadiço, e das muitas risadas que pude dar com aquele simpático, sim, simpático velhinho ranzinza. Velhinho que, além de me ensinar sem querer a exercitar a imaginação, me dera os rudimentos práticos do ofício de catador: saber diferenciar “metal” de cobre, antimônio de “bloco”, ferro de aço e por aí vai...

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

sábado, 17 de setembro de 2022

Varal de Trovas n. 568

 

Eduardo Affonso (Top)

– Cara, olha como a língua portuguesa é rica: no Dicionário Aurélio constam 435 mil verbetes…

– Top!

– Eu podia dizer que são 435 mil palavras, mas existe uma palavra específica para essas definições que a gente encontra nos dicionários, que é verbete. Este é o termo correto. Verbete não é só a palavra, mas também suas definições, os vários sentidos que ela pode ter, os seus sinônimos…

– Top.

– E veja quantas opções existem para a palavra “palavra”: termo, vocábulo, expressão…

– Top…

– E cada uma com uma nuance.  Por mais que “palavra” e “vocábulo” sejam sinônimos, você nunca vai dizer “vocábulos românticos” ao ouvido de alguém.  Não é por serem sinônimos que podem ser usados, ou empregados, ou utilizados indistintamente.

– Top.

– Temos um vocabulário considerável. “Usar” pode ser o mesmo que “utilizar”, mas depende do contexto. “Usei uma ferramenta” ou “utilizei uma ferramenta”, tanto faz. Mas não há lojas de “roupas utilizadas”.  E ninguém “utiliza drogas” no sentido de “consumir drogas”, mas apenas quando, por exemplo, trabalha com drogas em laboratório.  Viu como é sutil?

– Top…

– E mesmo “sutil” pode ser algo quase imperceptível, ou elegante, sagaz, misterioso, delicado, tênue, fino, suave. Olha quanta sutileza.

– Top.

– O que eu estou querendo dizer é que nós dispomos de um léxico muito vasto – que é uma maneira mais elegante de falar que temos um vocabulário muito grande – para ficar nos valendo sempre dos mesmos termos, entende? Um filme pode ser incrível, ótimo, sensacional, maravilhoso, estupendo, formidável, extraordinário, fascinante, impressionante, magistral, sublime…

– …ou top.

–  … e cada um desses adjetivos… como assim, top?

– Top.

– Sexo quando é gratificante é o quê?

– Top.

– Um churrasco bem servido, com cerveja gelada?

– Top.

– Um aumento de salário? Exame de gravidez negativo? Férias em Noronha? Pênalti a favor no último minuto?

– Top. Top. Top. Top.

– Cara, você precisa desenvolver sua comunicação verbal. Tudo pra você é top. Topa incorporar uma nova palavra por dia? Só hoje você já vai dobrar o seu vocabulário!

– Show.

Myrthes Neusali Spina de Moraes (Caderno de Trovas)


A igreja toda enfeitada,
e a bela noiva no altar.
Que destino... que mancada!
Não veio o noivo casar.
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A saudade nos conforta,
na dor por alguém ausente,
pois abre sempre uma porta
a quem se encontra carente.
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As folhas caem no outono
vão cobrindo todo chão.
As aves nesse abandono,
debandam sem direção.
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Belas flores perfumaram
os jardins de nossas casas.
Os passarinhos cantaram,
bailando, a bater as asas.
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Dos folguedos de criança,
eu tenho muita saudade.
Vovó é a doce lembrança
que me traz felicidade!
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Em fria noite de inverno
eu dispenso o cobertor,
pois teu abraço tão terno
faz-me até sentir calor!
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Já no outono desta vida,
muitos espinhos pisei.
Encontrei uma saída:
em vergeis os transformei.
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Mamãe carinhosa e bela,
que saudade de você...
da história da Cinderela
e do Saci-Pererê.
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Minha mãe, quanta saudade,
do teu tão doce cantar.
Tempo de felicidade,
que hoje só posso sonhar.
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Ninguém foge do destino,
diz um dito popular,
mas, quando se é pequenino,
como nele acreditar?
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No inverno, a formiguinha
trabalhava sem cessar
e a folgada cigarrinha
ficava a cantarolar!
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No inverno, em noite bem fria
e insônia a me torturar,
para espantar a agonia,
faço versos ao luar.
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O inverno chegou depressa
e com muito vento e frio.
O tempo corre e não cessa
de nos fazer desafio.
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O outono já passou,
tão depressa como o vento
e tristonha me deixou
contigo em meu pensamento.
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O peão de boiadeiro,
foi na arena o boi montar,
e o destino traiçoeiro
veio a vida lhe roubar.  
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Primavera, tu chegaste
florindo nossos jardins
e feliz tu nos deixaste,
quando colhemos jasmins!
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Procurei no meu jardim
uma rosa pra lhe dar,
Só encontrei branco jasmim
perfumando todo o ar.
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Quando a saudade dorida
sufocar-lhe o coração,
prossiga com fé na vida,
busque a Deus em oração.
= = = = = = = = = = =

Quando as folhas, sem beleza,
no chão a rodopiar,
é o outono, com certeza,
que anuncia seu chegar.
= = = = = = = = = = =

Quando o inverno acabar
e a  tristeza então sumir,
irei de novo cantar
sem pensar mais em partir.
= = = = = = = = = = =

Se com lágrimas pudesse
fazer o outono voltar,
pediria a Deus em prece
pra de novo te encontrar.
= = = = = = = = = = =

Se um acidente acontece,
sem a pessoa querer,
joga a culpa no destino,
para deixar de sofrer.
 = = = = = = = = = = =

Se você tem um pomar,
guarde bem essa lição:
não deixe de acrescentar
bons sucos à refeição!
= = = = = = = = = = =

Uma florzinha cheirosa
dentro de um livro rasgado
trouxe a lembrança saudosa
daquele outono passado.
= = = = = = = = = = =

Um ratinho muito esperto,
saiu  da toca e correu,
mas um gato estava perto,
(triste destino!...) e o comeu!
= = = = = = = = = = =
 
Violetas e jasmins
florescem na primavera.
Alegram nossos jardins,
perfumando a atmosfera.
= = = = = = = = = = = 

Fernando Sabino (O improvável retorno)


— Você vai sair? — perguntava ela, apreensiva, ao vê-lo apanhar o paletó depois do jantar.

— Sair um pouco, dar uma volta.

— Mal acabou de chegar...

— Vou encontrar um amigo, conversar um pouco.

— Por que não traz seu amigo para conversar aqui?

Ele saía sem responder. Uma noite, afinal, ela protestou:

— Hoje não quero que você saia.

— Por quê? — espantou-se ele.

— Porque toda noite é isso, eu não aguento mais! — e ela começou a chorar: — Não aguento mais, fico com saudade de você.

— Mas que bobagem é essa? — e ele procurava acalmá-la, com um gesto de carinho: — Dou uma volta para espairecer, tomo um café, volto logo para casa. Que é que tem isso de mais?

— Hoje eu não quero! — insistiu ela: Hoje você não sai.

Ele sorriu, condescendente, e se dirigiu para a porta — ela cortou-lhe os passos:

— Eu vou com você.

— Você nem está vestida para sair, vai se demorar... Daqui a pouco estou de volta, que diabo.

Como resposta, ela torceu a chave da porta e retirou-a:

— Neste caso, você também não sai.

— Deixa de bobagem e me dá essa chave.

— Não dou.

— Me dá essa chave! — repetiu ele, já trêmulo de raiva.

Ela se esquivou, vitoriosa, foi estender-se no sofá.

— Olha! — insistiu ele, procurando se conter: — Se você não abrir esta porta, vai se arrepender. Eu saio de casa e nunca mais volto, entendeu?

— Não abro. Quero ver você sair.

— Ah, quer ver?

Ele se voltou, caminhou com decisão até a janela, subiu no parapeito. Olhou-a ainda uma vez, fez um gesto de adeus e saltou na escuridão.

Ela deu um grito de horror e se precipitou também até a janela, olhou para a rua, alguns metros abaixo. Teve tempo de vê-lo se erguer com dificuldade e afastar-se arrastando a perna até dobrar a esquina.

Os dias se passavam e ela não tinha dele a menor notícia. Como ele não voltasse, pôs luto fechado, nunca mais saiu. Dias, meses, anos — envelhecia ali, sozinha naquela casa, e não tolerava que se mudasse nada de lugar, que se mexesse nas coisas dele. Os sobrinhos iam visitá-la, ficavam impressionados:

— Titia, a senhora vivendo aqui tão sozinha, por que não vem morar conosco?

— Quero que ele me encontre aqui quando voltar.

Os amigos e parentes concordavam que o tio sempre fora meio esquisito, esquivo, caladão, jamais voltaria. Se ainda estivesse vivo já se teria arranjado por aí noutro lugar, com outra mulher.

Cinco anos, dez, vinte — vinte e cinco anos! Ela acabara de completar cinquenta, quando um dia teve afinal a primeira notícia dele. Notícia vaga, imprecisa, mas notícia: alguém que chegara do Rio Grande do Sul lhe falou de um fazendeiro com o mesmo nome — falou casualmente, sem saber da história, e ela se acendeu: só podia ser ele, o nome não era tão comum assim. Ficou sabendo que ele tinha ido para o Uruguai, casara-se, tivera filhos, enviuvara e afinal viera terminar com uma fazenda de gado na fronteira. Ela se pôs a escrever cartas sigilosas a quem quer que lhe desse, naquela região, maiores informações. Escreveu-lhe diretamente, ele não respondeu. Tornou a escrever — mandava-lhe cartões no seu aniversário, no Natal.

Chegou enfim uma resposta — algumas linhas lacônicas, porém amigas. Depois de mais alguma troca de cartas, ficou estabelecido que ele voltaria. E voltou. Calado, envelhecido, arrastando a perna que fraturara na queda vinte e cinco anos antes, reinstalou-se na casa como se dali jamais houvesse saído. Ela se enfeitara toda para recebê-lo — discretamente os dois procuravam ignorar as marcas que o tempo lhes impusera. A princípio ela o tratou com silencioso desvelo, buscando cativá-lo pela discrição com que aceitava o silêncio dele sobre tantos anos de ausência.

E agora ele já não fazia tanta questão de sair à noite — em geral, depois do jantar ficava no sofá fumando cachimbo e vendo televisão. Ela tricotava feliz — de vez em quando levantava os olhos e o olhava com amor.

Dois meses se passaram, até que uma noite ela se arriscou a perguntar mansamente, desta vez sem levantar os olhos:

— Ela era bonita?

— Ela quem? — estranhou ele.

— Sua mulher. Eu soube que você se casou com outra, teve filhos, enviuvou…

Ele não respondeu. Mas a essa se seguiram outras perguntas — até que um dia ele, inesperadamente, tornou a sair de casa (pela porta) para nunca mais voltar.

Ela tornou a vestir luto e, a casa sempre arrumada, continua obstinadamente a esperar a sua volta.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 39

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 61

Que semana esta que não vi passar!

O mês foi tão ligeiro! O ano desapareceu na encruzilhada do tempo! Mas . . . é assim mesmo? Sempre foi? "Cosa de loco", dizia o amigo querido, "o tempo leva a gente". Vamos na garupa "do tempo e do vento ", escreveu o mago Érico.

Verdade em verdade, quando nascemos parece que o dito tempo vem junto, entranhado no ser. E somos aos poucos "doutrinados" para o costume de sentir e ouvir falar do tempo. Crescemos ouvindo que "o tempo melhorou, o tempo maltrata, não tenho tempo, o tempo vai esquentar, vai faltar tempo, o tempo é implacável".

Falar do tempo, considerar sobre a ideia do tempo sempre foi difícil e seguirá sendo pelo tempo a fora. Filósofos quase todos pensaram o tempo, cada um segundo a sua visão, seu pensamento, sua filosofia.

Santo Agostinho explica a teoria do tempo no trinômio memória, intenção e espera (presente, passado e futuro) existente na mente dos homens. Segundo ele, "quando o homem mede o tempo, assim o faz por meio da impressão ou percepção que tem dele".

Alguém já disse que somos transeuntes do tempo. Se ele é um passageiro, é vero pensar que seguimos esta trilha que sufoca, que alegra, que empurra, que agita, que entristece, que incita, que põe freios. E assim nos ajuda a viver a qualquer tempo.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XVIII


APÓS A TEMPESTADE


O vento chega e sopra muito forte
anunciando, em trovões, a tempestade,
as folhas arrancadas sem piedade
revoam à mercê da injusta sorte.

Raios cortam o céu de Sul a Norte,
prenúncio de pavor, calamidade,
estrondos são ouvidos na cidade
gerando medo, caos e a própria morte.

Tristonha, a tarde se vestiu de escuro,
e a chuva desabou estrepitosa
como se castigasse o povo impuro.

A noite chega e adentra pela fresta,
céu estrelado e a lua tão formosa
e a Natureza, eu vi, estava em festa!
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CONVERSA NO TREM

- “Esta vida não faz nenhum sentido,”
dizia o passageiro do meu trem,
- “o mundo inteiro, veja, está perdido,
- esperança não há para ninguém.”

Assim falava o homem ressentido
das promessas que, feitas por alguém,
sequer foram cumpridas e incontido
ele se lamentava do desdém.

- “Mas a vida é assim mesmo,” outro dizia,
- “a tristeza anda ao lado da alegria
e a calma vem após a tempestade.”

Por que, então, meu coração sedento
tem que provar a dor e o sofrimento
para alcançar a tal felicidade?
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O MAR

A noite chega e a solidão do mar
vem me trazer, de leve, um vento fino,
a saudade povoa o meu pensar,
enquanto as vagas seguem seu destino.

E o mar, em movimento, quer mostrar
o poder que fascina ao peregrino,
provocador, feliz, quer carregar
dissabores e mágoas... imagino.

E traz em oferenda a tempestade,
fica agitado e cheio de vontade,
erguendo-se em espumas seu furor.

Depois, torna-se calmo e exuberante,
belo e tranquilo, mostra-se pujante,
esquecendo, talvez, da própria dor!
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O PODER DO AMOR

Quanto mais penso no poder que o amor
exerce sobre mim e me fascina,
convenço-me, serás o meu torpor,
não importa o que diz a medicina.

Se estás comigo, sinto o teu calor
e uma paz silenciosa me domina,
o tempo não mais corre com rancor
e o teu olhar, meus olhos, ilumina.

Eu quero me prender neste pecado,
e em teu amor ficar acorrentado
como fiquei nos versos que compus.

E prometo cantar com tal Doçura
uma canção de Paz e de Ventura
que o nosso Amor nos levará à Luz!
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O TEMPO

O tempo não perdoa e passa velozmente
levando de roldão venturas e bonanças,
O sonho, o entusiasmo, a mágoa, o amor ardente
estão presentes, hoje, apenas nas lembranças.

Uma saudade fala ao coração da gente
e promete calar nossas desconfianças
por um momento só, que a vida, certamente,
vai nos cobrar bem caro o fim das esperanças.

E quando a hora chegar, um vulto solitário
há de se aproximar trazendo um vestuário
e sorrindo, dirá; não temas, sejas forte.

E um silêncio trará a sensação terrível:
- a vida chega ao fim sem fazer o impossível,
restando tão somente o fantasma da morte!

Fontes:
- Filemon Francisco Martins. Sonetos & Trovas. RJ: CBJE, 2014.
Livro enviado pelo autor.
- Blog do autor. https://filemon-martins.blogspot.com/

Aparecido Raimundo de Souza (Marlucia)


TEM GENTE que Deus coloca no nosso caminho só para nos dar paz. Que nos empurra para o melhor de nós, que nos guia para a estrada do bem. Gente que é sorriso em dia feio, que é suporte quando parece faltar chão.

Tem gente que pensa e repensa jeitos e maneiras de nos fazer bem, que se preocupa e demonstra o melhor de si. Gente que é abraço, mesmo de longe, e a certeza que tudo vai dar certo. Que empresta coração para a gente morar, que planta pensamentos bonitos nos dias da gente…

Meu coração é muito precioso por isso. Não guarda mágoas nele. Dentro apenas pessoas especiais que marcaram a minha vida. E você, Marlucia, marcou a minha vida, não só ela, todos os meus sonhos, de maneira dupla.

Me deu duas filhas maravilhosas. Amanda e Luana são os retratos vivos de um amor que vingou. Que deixou marcas em nós, e que, por essa razão, será eterno, apesar de hoje estarmos cada um seguindo por sendas diferentes.

Você me lembra aquela passagem conhecidíssima de um cidadão que pediu à Deus uma coisa e recebeu outra. Recorda da historinha? Vou resumir, para não me tornar chato.

... Certa vez, um homem pediu ao Altíssimo uma flor e uma borboleta. Mas o Todo Poderoso lhe deu um cacto e uma lagarta. O pobre homem ficou triste, pois não entendeu o motivo do seu pedido ter vindo errado. Daí pensou: - também, com tanta gente para atender… e resolveu não questionar...

Passado algum tempo, conclui a história, o homem foi verificar o pedido que deixou esquecido. Para sua surpresa, do espinhoso e feio cacto, havia nascido a mais bela das flores e a horrível lagarta se transformou em uma belíssima borboleta... ’.


Com você, Marlucia, tem sido assim. Deus sempre age certo. O seu trilhar é o melhor, mesmo que aos nossos olhos pareça estar dando tudo errado. Se você pediu à Deus uma coisa e recebeu outra, confie. Tenha a certeza de que Ele sempre dará o que você precisa, no momento certo, na hora certa, tudo no tempo DELE.

Nem sempre o que você deseja, é o que você precisa. Como Ele nunca erra na entrega de seus pedidos siga em frente sem murmurar ou duvidar. Resumindo, o espinho de hoje, será à flor de amanhã!

Para você, nesse dia especial, o melhor de mim, para você que deu o melhor de si, para mim, tantos anos atrás. E agora, recebe nesse dia, nesse dia que não é só seu, mas de todos nós, notadamente de nossas filhas Amanda e Luana, como presentes do pai maior, dois netos lindos, maravilhosos. João Eduardo e Heitor. Que Deus lhe abençoe e guarde.

Carinhosamente,
Aparecido


Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Vanice Zimerman (Tela de Versos) 5: Memórias de seda

 

A. A. de Assis (Mãos dadas)


A natureza é solidária. Sem solidariedade nada existiria. Os animais dependem dos vegetais, os vegetais dependem dos minerais, os minerais dependem dos vegetais, os vegetais dependem dos animais... O fantástico círculo da vida.

Há solidariedade em tudo. Veja o corpo humano: funciona como se fosse uma orquestra. O coração, os pulmões, os rins, os ossos, as veias, as mãos, as pernas. Da cabeça ao dedinho do pé, é um time só, coeso e harmônico. Se um dos componentes entra em pane, todo o organismo, em variados graus, sente a diferença.

Solidariedade, mútua ajuda, cooperação. Numa palavra: amor. Tudo na natureza é uma permanente relação de amor. Deveria ser assim também a convivência humana.

Estamos saindo de uma pandemia que causou prejuízo e dor em todos os lugares do mundo, atingindo a humanidade inteira. Foi um período de universal sofrimento, mas ao mesmo tempo uma oportunidade seriíssima para a gente refletir e tentar mudar o jeito de viver.

Os sobreviventes teremos muito o que agradecer, por todo o sempre, à heroica rede de solidariedade que tornou possível enfrentar o desafio até a chegada das vacinas e a recuperação da esperança. Agradecer aos cientistas, aos médicos, profissionais de enfermagem, voluntários para testes, laboratoristas, infectologistas, farmacêuticos, motoristas, seguranças, equipes de limpeza, auxiliares de serviços gerais, enfim a cada um dos que, com valentia e abnegação, se uniram por nós neste gravíssimo momento da história.

Nunca, antes, foi tão visível a fundamental importância da solidariedade, da capacidade humana de amar o próximo. É hora, portanto, de olhar para o céu e pedir a Deus que nos ajude a crescer como pessoas. Sursum corda. Corações ao alto.

Tudo é solidariedade, em toda a natureza. Só o ser humano permanece conscientemente egoísta. Por ambição, por arrogância, por vaidade, voltam-se irmãos contra irmãos, filhos contra pais, amigos contra amigos, colegas contra colegas. A humanidade é uma família doente. Precisa de tratamento urgente.

Quem pode ajudar nesse tratamento? Pais, professores, dirigentes religiosos, jornalistas. Cada um pode contribuir um pouquinho, pelo menos diminuindo a carga de estímulos à discórdia e colaborando mais assumidamente para a valorização dos bons exemplos de paz, justiça, bondade, mútuo respeito.

Podem dizer que insistir nessa linha é romantismo. Que seja. Bendito romantismo. Já brigamos demais. Agora é hora de serenar os ânimos. Discordar, discutir, debater no acidental, mas somar esforços no essencial.

Temos todos, entre nós, múltiplas diferenças. Isso é natural. Mas precisamos uns dos outros, da mesma forma que o coração precisa dos pulmões e os pulmões precisam do coração. Mãos dadas, intenções honestas, solidariedade. Sursum corda.

Fonte:
Blog do autor. Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 11.8.2022

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 12


Alma de sorriso brando,
sua ternura tem alma;
a mãe é santa? até quando,
na aflição seu filho acalma!
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Aqui, quando tu te aqueces,
que a aurora muda de cor...
As nuvens juntam-se em preces,
em preces rubras de amor!
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Cantando vai para a escola,
a criança de pé no chão;
leva a ilusão na sacola
e enche a vida de ilusão!
= = = = = = = = = = =

Comparo a espuma dançando
nas ondas, sempre a cantar,
a bordadeiras, bordando
as saias brancas do mar!
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Entre os véus da noite escura
e, os lençóis da ingratidão,
dorme a criança de alma pura,
sempre à espera de outra mão!
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Lembrei do altar da capela,
dos ritos de um velho sino,
que unindo o meu peito ao dela
selou o nosso destino!
= = = = = = = = = = =

Linda trova pequenina,
gigantesca mundo afora...
Tens nesse olhar de menina
centelhas da luz da aurora!
= = = = = = = = = = =

Logo assim que, o sol se põe,
diz-me o silêncio e acredito,
que sem tinta, alguém compõe
partituras no infinito!
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Meus olhos, cegos sem dor,
teus lábios cegos, sem dono;
somos dois cegos de amor
curtindo o mesmo abandono!
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Minha vida é tão singela,
que a esperança é quem descobre,
que em pobreza de alma bela
há riqueza de alma nobre!
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Na madrugada sem dono,
num silêncio que arrepia,
caem lágrimas sem sono
dos olhos da nostalgia!
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Não lamente os desenganos;
que o tempo com seus desvãos,
vai pondo os calos dos anos
nas rugas de nossas mãos!
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Na voz dos igarapés,
no choro dos manguezais...
Ouve-se a voz das marés
pranteando os seus tristes ais!!!
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No fogão velho apagado,
entre as cinzas do fogão,
vi meus sonhos do passado
soprando a cinza e o carvão!
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No saco de quem mendiga,
sobra o pão que mata a fome;
mas no pão de quem castiga,
falta a massa que se come!
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Num banco velho sem perna,
sobre uma pedra no chão...
Vi nele, a prisão eterna
do mantra da solidão!
= = = = = = = = = = =

O amor tem tanta ternura,
que às vezes, me causa espanto,
quando uma lágrima pura
vira uma gota de pranto!
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O meu amor mais profundo,
não é por amor qualquer...
Mas pelo amor, que há no mundo,
da esposa, mãe e mulher!
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O rio, a mata, a emoção!
A alvorada e o sol poente,
que preito de gratidão
que Deus nos deu de presente!
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O orvalho que rega a planta,
é o mesmo que me seduz;
minha alma, orvalhada, canta,
e orvalha a vida de luz!
= = = = = = = = = = =

Prossigo mesmo sozinho,
sem me sentir no abandono;
tendo Deus em meu caminho
não sinto a idade do outono!
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Se a saudade me persegue,
por capricho ou por maldade,
mesmo que tudo me negue,
não sei viver sem saudade!
= = = = = = = = = = =

Se à tardinha, os versos meus,
revelam triste desgosto,
é a tristeza dando adeus
à solidão do sol posto!
= = = = = = = = = = =

Se tu crês, abre a janela,
que a luz do sol quer te ver;
é a luz mais forte e mais bela
aos olhos do amanhecer!
= = = = = = = = = = =

Sou como as flores caídas,
que aos poucos, sendo pisadas,
vâo adubando outras vidas,
à espera de outras floradas!
= = = = = = = = = = =

Teu peito é um eterno cofre,
ó mãe, com tanta ternura,
que cura a dor de quem sofre
e a dor de quem não tem cura!
= = = = = = = = = = =

Tomei mil drogas fatais,
fiz sessões de acupuntura...
Saudade - é a dor de meus ais,
que a medicina não cura!
= = = = = = = = = = =

Tua tristeza parece,
ó, velho mar, dos meus ais,
o choro triste, da prece,
das mães rezando no cais!...
= = = = = = = = = = =

Varrendo o chão que pisei,
mesmo apesar da distância...
Não tardou, logo encontrei
vestígios de minha infância!
= = = = = = = = = = =

Vejo em tantas reticências
de um mundo que se desfaz,
que há muitos, temendo ausências,
e há poucos, pedindo paz!

Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.

Machado de Assis (O Caso do Romualdo)


Um dia, de manhã, D. Maria Soares, que estava em casa, descansando de um baile para ir a outro, foi procurada por D. Carlota, companheira antiga de colégio, e sócia agora da vida elegante. Considerou isso um benefício do acaso, ou antes um favor do céu, com o fim único de lhe matar as horas aborrecidas. E merecia esse favor, pois de madrugada, ao voltar do baile, não deixou de cumprir as rezas do costume, e, logo à noite, antes de ir para o outro, não deixará de persignar-se.

D. Carlota entrou. Ao pé uma da outra pareciam irmãs; a dona da casa era, talvez, um pouco mais alta, e tinha os olhos de outra cor; eram castanhos, os de D. Carlota pretos. Outra diferença: esta era casada, D. Maria Soares, viúva: — ambas possuíam alguma coisa, e não chegavam a trinta anos; parece que a viúva contava apenas vinte e nove, posto confessasse vinte e sete, e a casada andava nos vinte e oito. Agora, como é que uma viúva de tal idade, bonita e abastada, não contraía segundas núpcias é o que toda a gente ignorou sempre. Não se pode supor que fosse fidelidade ao morto, pois é sabido que ela não o amava muito nem pouco; foi um casamento de arranjo. Talvez não se pode crer que lhe faltassem pretendentes; tinha-os às dúzias.

— Você chegou muito a propósito, disse a viúva a Carlota; vamos falar de ontem... Mas que é isso? que cara é essa?

Na verdade, a cara de Carlota trazia impressa uma tempestade interior; os olhos faiscavam, e as narinas moviam-se deixando passar uma respiração violenta e colérica. A viúva insistiu na pergunta, mas a outra não lhe disse nada; atirou-se a um sofá, e só no fim de uns dez segundos, proferiu algumas palavras que explicaram a agitação. Tratava-se de um arrufo, não briga com o marido, por causa de um homem. Ciúmes? Não, não, nada de ciúmes. Era um homem, com que ela antipatizava profundamente, e que ele queria fazer amigo da casa. Nada menos, nada mais, e antes assim. Mas por que é que ele queria relacioná-lo com a mulher?

Custa dizê-lo: ambição política. Vieira quer ser deputado por um distrito do Ceará, e Romualdo tem ali influência, e trata de fazer vingar a candidatura do amigo. Então este, não só quer metê-lo em casa — e já ali o levou duas vezes — como tem o plano de lhe dar um jantar solene, em despedida, porque o Romualdo embarca para o Norte dentro de uma semana. Aí está todo o motivo do dissentimento.

— Mas, Carlota, dizia ele à mulher, repara que é a minha carreira. Romualdo é trunfo no distrito. E depois não sei que embirração é essa, não entendo...

Carlota não dizia nada; torcia a ponta de uma franja.

— O que é que achas nele?

— Acho-o antipático, aborrecido...

— Nunca trocaram mais de oito palavras, se tanto, e já o achas aborrecido!

— Tanto pior. Se ele é aborrecido calado, imagina o que será falando. E depois...

— Bem, mas não podes sacrificar-me alguma coisa? Que diabo é uma ou duas horas de constrangimento, em benefício meu? E mesmo teu, porque, eu na Câmara, tu ficas sendo mulher de deputado, e pode ser... quem sabe? Pode ser até que de ministro, um dia. Desta massa é que eles se fazem.

Vieira gastou uns dez minutos em sacudir diante da mulher as pompas de um grande cargo, uma pasta, ordenanças, fardão ministerial, correios do paço, e as audiências, e os pretendentes, e as cerimônias... Carlota não se abalava. Afinal, exasperada, fez ao marido uma revelação.

— Ouviu bem? O tal seu amigo persegue-me com os olhos de mosca morta, e das oito palavras que me disse, três, pelo menos, foram atrevidas.

Vieira ficou alguns instantes sem dizer nada; depois começou a mexer com a corrente do relógio, afinal acendeu um charuto. Estes três gestos correspondiam a três momentos do espírito. O primeiro foi de pasmo e raiva. Vieira amava a mulher, e, por outro lado, cria que os intuitos do Romualdo eram puramente políticos. A descoberta de que a proteção da candidatura tinha uma paga, e paga adiantada, foi para ele um assombro. Veio depois o segundo momento, que foi o da ambição, a cadeira na Câmara, a reputação parlamentar, a influência, um ministério... Tudo isso atenuou a primeira impressão. Então ele perguntou a si mesmo, se, estando certo da mulher, não era já uma grande habilidade política explorar o favor do amigo, e deixá-lo ir-se de cabeça baixa. Em rigor, a pretensão do Romualdo não seria única; Carlota teria outros namorados in petto. Não se havia de brigar com o mundo inteiro. Aqui entrou o terceiro momento, o da resolução. Vieira determinou-se a aproveitar o favor político do outro, e assim o declarou à mulher, mas começou por dissuadi-la.

— Pode ser que você se engane. As moças bonitas estão expostas a serem olhadas muita vez por admiração, e se cuidarem que já isso é amor, então nem podem mais aparecer.

Carlota sorriu com desdém.

— As palavras? disse o marido. Não podiam ser palavras de cumprimento? Podiam, decerto...

E, depois de um instante, como lhe visse persistir o ar desdenhoso:

— Juro que se tivesse a certeza do que me dizes, castigava-o... Mas, por outro lado, é justamente a vingança melhor; faço-o trabalhar, e... justamente! Querem saber uma coisa? A vida é uma combinação de interesses... O que eu quero é fazer-te ministra de Estado, e...

Carlota deixou-o falar, à toa. Como ele insistisse, ela prorrompeu e disse-lhe coisas duras. Estava sinceramente irritada. Gostava muito do marido, não era loureira, e nada podia agravá-la mais do que o acordo que o marido procurava entre a conveniência política e os sentimentos dela. Ele, afinal, saiu zangado; ela vestiu-se e foi para a casa da amiga.

Hão de perguntar-me como se explica que, tendo mediado algumas horas, entre a briga e a chegada à casa da amiga, Carlota ainda estava no grau agudo da exasperação. Respondo que em alguma coisa há de uma moça ser faceira, e pode ser que a nossa Carlota gostasse de ostentar os seus sentimentos de amor ao marido e de honra conjugal, como outras mostram de preferência os olhos e o método de mexer com eles. Digo que pode ser; não afianço nada.

Ouvida a história, D. Maria Soares concordou em parte com a amiga, em parte com o marido, posto que, realmente, só concordasse consigo mesma, e acreditasse piamente que o maior desastre que podia suceder a uma criatura humana, depois de uma noite de baile, era entrar-lhe em casa uma questão daquelas.

Carlota tratou de provar que tinha razão em tudo, e não parcialmente; e a viúva diante da ameaça de maior desastre, foi admitindo que sim, que afinal quem tinha toda a razão era ela, mas que o melhor de tudo era deixar andar o marido.

— É o melhor, Carlota; você não está certa de si? Pois então deixe-o andar... Vamos nós à Rua do Ouvidor? ou vamos mais perto, um passeiozinho...

Era um meio de acabar com o assunto; Carlota aceitou, D. Maria foi vestir-se, e daí a pouco saíram ambas. Vieram à Rua do Ouvidor, onde não foi difícil esquecer o assunto, e tudo acabou ou ficou adiado. Contribuiu para isso o baile da véspera; a viúva alcançou finalmente que falassem das impressões trazidas, falaram por muito tempo, esquecidas do resto, e para não voltar logo para a casa, foram comprar alguma coisa a uma loja. Que coisa? Nunca se soube claramente o que foi; há razões para crer que foi um metro de fita, outros dizem que dois, alguns opinam por uma dúzia de lenços. O único ponto liquidado é que estiveram na loja até quatro horas.

Ao voltar para casa, perto da Rua Gonçalves Dias, Carlota disse precipitadamente à amiga:

— Lá está ele!

— Quem?

— O Romualdo.

— Onde está?

— É aquele de barbas grandes, que está coçando o queixo com a bengala, explicou a moça olhando para outra parte.

D. Maria Soares relanceou os olhos pelo grupo, disfarçadamente, e viu o Romualdo. Não ocultou a impressão; confessou que era, na verdade, um sujeito antipático; podia ser trunfo em política; em amor, devia ser carta branca. Mas, além de antipático, tinha um certo ar de matuto, que não convidava a amá-lo. Elas foram andando, e não escaparam ao Romualdo, que vira Carlota e veio cumprimentá-la, afetuoso, posto que também acanhado; perguntou-lhe pelo marido, e se ia naquela noite, ao baile, disse também que o dia estava fresco, que tinha visto umas senhoras conhecidas de Carlota, e que a rua parecia mais animada naquele dia do que na véspera. Carlota foi respondendo com palavras frouxas, entre dentes.

— Exagerei? perguntou ela à viúva no bonde.

— Qual exageraste! O sujeito é insuportável, acudiu a viúva; mas, Carlota, não te acho razão na zanga. Pareces criança! Um sujeito assim não faz zangar ninguém. A gente ouve o que ele diz, não lhe responde nada, ou fala do sol e da lua, e está acabado; é até um divertimento. Já tive muitos do mesmo gênero...

— Sim, mas não tens um marido que...

— Não tenho, mas tive; o Alberto era do mesmo gênero; eu é que não brigava, nem lhe revelava nada; ria-me. Faça a mesma coisa; vai rindo... Realmente, o sujeito tem um olhar espantado, e quando sorri fica mesmo com uma cara de poucos amigos; parece que sério é menos carrancudo.

— E é...

— Bem vi que era. Ora zangar-se a gente por tão pouca coisa! Demais, ele não vai embora esta semana? Que te custa suportá-lo?

D. Maria Soares tinha aplacado inteiramente a amiga; enfim, o tempo e a rua perfizeram a melhor parte da obra. Para o fim da viagem, riam ambas, não só da figura do Romualdo, mas também das palavras que ele dissera a Carlota, as tais palavras atrevidas, que não ponho aqui por não haver notícia exata delas; estas, porém, confiou-as à viúva, não as tendo dito ao marido. A viúva opinou que elas eram menos atrevidas que burlescas. E ditas por ele deviam ser ainda piores. Era mordaz esta viúva, e amiga de rir e brincar como se tivesse vinte anos.

A verdade é que Carlota voltou para casa tranquila, e disposta ao banquete. Vieira, que esperava a continuação da luta, não pôde encobrir o contentamento de a ver mudada. Confessou que ela tinha razão em mortificar-se, e que ele, se não estivessem as coisas em andamento, abriria mão da candidatura; já o não podia fazer sem escândalo.

Chegou o dia do jantar, que foi esplêndido, assistindo a ele vários personagens políticos e outros. De senhoras, apenas duas, Carlota e D. Maria Soares. Um dos brindes de Romualdo foi feito a ela; — um longo discurso, arrastado, cantado, assoprado, cheio de anjos, de um ou dois sacrários, de caras esposas, acabando tudo por um cumprimento ao nosso venturoso amigo. Vieira interiormente mandou-o ao diabo; mas, levantou o copo e agradeceu sorrindo.

Dias depois, seguia Romualdo para o Norte. A noite da véspera foi passada em casa do Vieira, que se desfez em demonstrações de aparente consideração. De manhã, levantou-se este cedo para ir a bordo, acompanhá-lo; recebeu muitos cumprimentos para a mulher, à despedida, e prometeu que daí a pouco iria ter com ele. O aperto de mão foi significativo; um tremia de esperanças, outro de saudades, ambos pareciam pôr naquele arranco final todo o coração, e punham tão-somente o interesse, — ou de amor ou de política, — mas o velho interesse, tão amigo da gente e tão caluniado.

Pouco tempo depois, seguiu o Vieira para o Norte, a cuidar da eleição. As despedidas foram naturalmente chorosas, e por pouco, esteve Carlota disposta a seguir também com ele; mas a viagem não duraria muito tempo, e depois, ele teria de percorrer o distrito, cuidar de coisas que tornavam difícil a condução da família.

Ficando só, Carlota cuidou de matar o tempo, para torná-lo mais curto. Não foi a teatros nem bailes; mas visitas e passeios eram com ela. D. Maria Soares continuava a ser a melhor das companheiras, rindo muito, reparando em tudo, e mordendo sem piedade. Naturalmente, o Romualdo foi esquecido; Carlota chegou mesmo a arrepender-se de ter ido confiar à amiga uma coisa, que agora lhe parecia mínima. Demais, a ideia de ver o marido deputado, e provavelmente ministro, começava a dominá-la, e a quem o deveria, senão ao Romualdo? Tanto bastava para não torná-lo odioso nem ridículo. A segunda carta do marido confirmou-a nesse sentimento de indulgência; dizia que a candidatura tinha esbarrado num grande obstáculo, que o Romualdo destruíra, graças a um imenso esforço, em que até perdeu um amigo de vinte anos.

Tudo caminhou assim, enquanto Carlota, aqui na corte, ia matando o tempo, segundo ficou dito. Já disse também que D. Maria Soares ajudava-a nessa empresa. Resta dizer, que não sempre, mas às vezes, tinham ambas um parceiro, que era o Dr. Andrade, companheiro de escritório do Vieira, e encarregado de todos os seus negócios, durante a ausência. Este era um advogado recente, vinte e cinco anos, não deselegante, nem feio. Tinha talento, era ativo, instruído, e não pouco sagaz, em negócios do foro; para o resto das coisas, conservava a ingenuidade primitiva.

Corria que ele gostava de Carlota, e mal se compreende um tal boato, pois a ninguém confiou nada, nem mesmo a ela, por palavras ou obras. Pouco ia lá; e quando ia procedia de modo que não desse azo a nenhuma suspeita. É certo, porém, que ele gostava dela, e muito, e se nunca lho declarou, menos o faria agora. Evitava até ir lá; mas Carlota convidou-o algumas vezes a jantar, com outras pessoas; D. Maria Soares, que o viu ali, também o convidou, e foi assim que ele achou-se mais vezes do que pretendia em contato com a senhora do outro.

D. Maria Soares desconfiou previamente do amor do Andrade. Era um dos seus princípios desconfiar dos corações de vinte e cinco a trinta e quatro anos. Antes de ver nada, suspeitou que o Andrade amava a amiga, e só tratou de ver se a amiga lhe correspondia. Não viu nada; mas concluiu alguma coisa. Então considerou que esse coração abandonado, tiritando de frio na rua, podia ela recebê-lo, agasalhá-lo, dar-lhe o principal lugar, numa palavra, casar com ele. Pensou nisto um dia; no dia seguinte, acordou apaixonada. Já? Já, e explica-se. D. Maria Soares gostava da vida brilhante, ruidosa, dispendiosa, e o Andrade, além das outras qualidades, não viera a este mundo sem uma avó, nem esta avó se deixara viver até aos setenta e quatro anos, na fazenda sem uns oitocentos contos. Constava estar na dependura; e foi a própria Carlota que lho disse a ela.

— Parece que até já está pateta.

— Oitocentos contos? repetiu D. Maria Soares.

— Oitocentos; é uma boa fortuna.

D. Maria Soares olhou para um dos quadros que Carlota tinha na saleta: uma paisagem da Suíça. Bela terra é a Suíça! disse ela. Carlota admitiu que o fosse, mas confessou que preferia viver em Paris, na grande cidade de Paris... D. Maria Soares suspirou, e olhou para o espelho. O espelho respondeu-lhe sem cumprimento: “Pode tentar a empresa, ainda está muito bonita”.

Assim se explica o primeiro convite de D. Maria Soares ao Andrade, para ir jantar à casa dela, com a amiga, e outras pessoas. Andrade foi, jantou, conversou, tocou piano, — pois também sabia tocar piano, — e recebeu da viúva os mais ardentes encômios. Realmente, nunca tinha visto tocar assim; não conhecia amador que pudesse competir com ele. Andrade gostou de ouvir isto, principalmente porque era dito ao pé de Carlota. Para provar que a viúva não elogiava a um ingrato, voltou ao piano, e deu sonatas, barcarolas, rêveries, Mozart, Schubert, nomes novos e antigos. D. Maria Soares estava encantada.

Carlota percebeu que ela começava a cortejá-lo, e sentiu não ter intimidade com ele, que lhe permitisse dizer-lho por brinco; era um modo de os casar mais depressa, e Carlota estimaria ver a amiga em segundas núpcias, com oitocentos contos à porta. Em compensação disse-o à amiga, que pela regra eterna das coisas negou-o a pés juntos.

— Pode negar, mas eu bem vejo que você anda ferida, insistiu Carlota.

— Então é ferida que não dói, porque eu não sinto nada, replicou a viúva.

Em casa, porém, advertiu que Carlota lhe falara com tal ingenuidade e interesse, que era melhor dizer tudo, e utilizá-la na conquista do advogado. Na primeira ocasião, negou sorrindo e vexada; depois, abriu o coração, previamente aparelhado para recebê-lo, cheio de amor por todos os cantos. Carlota viu tudo, andou por ele, e saiu convencida de que, apesar da diferença de idade, nem ele podia ter melhor esposa, nem ela melhor marido. A questão era uni-los, e Carlota dispôs-se à obra.

Eram então passados dois meses depois da saída do Vieira, e chegou uma carta dele com a notícia de estar de cama. A letra pareceu tão trêmula, e a carta era tão curta, que lançou o espírito de Carlota na maior perturbação. No primeiro instante, a sua ideia foi embarcar e ir ter com o marido; mas o advogado e a viúva procuravam aquietá-la, dizendo-lhe que não era caso disso, e que provavelmente já estaria bom; em todo caso, era melhor esperar outra carta.

Veio outra carta, mas do Romualdo, dizendo que o estado do Vieira era grave, não desesperado; os médicos aconselhavam que tornasse para o Rio de Janeiro; eles viriam na primeira ocasião.

Carlota ficou desesperada. Começou por não crer na carta. “Meu marido morreu, soluçava ela; estão me enganando”. Entretanto, veio terceira carta do Romualdo, mais esperançada. O doente já podia embarcar, e viria no vapor que dali sairia dois dias depois; ele o acompanharia com todas as cautelas, e a mulher podia não ter cuidado nenhum. A carta era simples, verdadeira, dedicada e pôs um calmante no espírito da moça.

Com efeito, Romualdo embarcou, acompanhando o doente, que passou bem o primeiro dia de mar. No segundo piorou, e o estado agravou-se de modo que, ao chegar à Bahia, pensou o Romualdo que era melhor desembarcar; mas o Vieira recusou formalmente uma e muitas vezes, dizendo que se tivesse de morrer, preferia vir morrer ao pé da família. Não houve remédio senão ceder, e por mal dele, expirou vinte e quatro horas depois.

Poucas horas antes de morrer, o advogado sentiu que era chegado o termo fatal, e fez algumas recomendações ao Romualdo, relativamente a negócios de família e do foro; umas deviam ser transmitidas à mulher; outras ao Andrade, companheiro de escritório, outras a parentes. Só uma importa ao nosso caso.

— Diga à minha mulher que a última prova de amor que lhe peço é que não se case...

— Sim... sim...

— Mas, se ela, a todo o transe entender que se deve casar, peça-lhe que a escolha do marido recaia no Andrade, meu amigo e companheiro, e...

Romualdo não entendeu essa preocupação da última hora, nem provavelmente o leitor, nem eu, — e o melhor, em tal caso, é contar e ouvir a coisa sem pedir explicação. Foi o que ele fez; ouviu, disse que sim, e poucas horas depois, expirava o Vieira. No dia seguinte, entrava o vapor no porto, trazendo a Carlota um cadáver, em vez do marido que daqui partira. Imaginem a dor da pobre moça, que aliás receava isso mesmo, desde a última carta de Romualdo. Chorara em todo esse tempo, e rezou muito, e prometeu missas, se o pobre Vieira lhe chegasse vivo e são: mas nem rezas, nem promessas, nem lágrimas.

Romualdo veio à terra, e correu à casa de D. Maria Soares, pedindo a sua intervenção para preparar a recente viúva a receber a fatal notícia; e ambos passaram à casa de Carlota, que adivinhou tudo, apenas os viu. O golpe foi o que devia ser, não é preciso narrá-lo. Nem o golpe, nem o enterro, nem os primeiros dias. Saiba-se que Carlota retirou-se da cidade por algumas semanas, e só voltou à antiga casa, quando a dor lhe consentiu vê-la, mas não pôde vê-la sem lágrimas. Ainda assim não quis outra; preferia padecer, mas queria as mesmas paredes e lugares que tinham visto o marido e a sua felicidade.

Passados três meses, Romualdo tratou de desempenhar-se da incumbência que o Vieira lhe dera, à última hora, e nada mais difícil para ele, não porque amasse a viúva do amigo, — realmente, tinha sido uma coisa passageira, — mas pela natureza mesmo da incumbência. Entretanto, era forçoso fazê-lo. Escreveu-lhe uma carta, dizendo que tinha de dizer-lhe, em particular, coisas graves que ouvira ao marido, poucas horas antes de morrer. Carlota respondeu-lhe com este bilhete:

Pode vir quanto antes, e se quiser hoje mesmo, ou amanhã, depois do meio-dia; mas prefiro que seja hoje. Desejo saber o que é, e ainda uma vez agradecer-lhe a dedicação que mostrou ao meu infeliz marido.

Romualdo foi nesse mesmo dia, entre três e quatro horas. Achou ali D. Maria Soares, que não se demorou muito, e os deixou sós. Eram duas viúvas, e ambas de preto, e Romualdo pôde compará-las, e achou que a diferença era imensa; D. Maria Soares dava a sensação de uma pessoa que escolhera a viuvez por ofício e comodidade. Carlota estava ainda acabrunhada, pálida e séria. Diferença de data ou de temperamento? Romualdo não pôde averiguá-lo, não chegou sequer a formular a questão. Medíocre de espírito, este homem tinha uma dose grande de sensibilidade, e a figura de Carlota impressionou-o de modo, que não lhe deu lugar a mais do que à comparação das pessoas. Houve mesmo da parte de D. Maria Soares duas ou três frases que pareceram ao Romualdo um tanto esquisitas. Uma delas foi esta:

— Veja se persuade a nossa amiga a conformar-se com a sorte; lágrimas não ressuscitam ninguém.

Carlota sorriu sem vontade, para responder alguma coisa, e Romualdo rufou com os dedos sobre o joelho, olhando para o chão. D. Maria Soares levantou-se afinal, e saiu. Carlota, que a acompanhou até à porta, voltou ansiosa ao Romualdo, e pediu que lhe dissesse tudo, tudo, as palavras dele, e a doença, e como foi que começou, e os cuidados que lhe deu, e que ela soube aqui e lhe agradecia muito. Tinha visto uma carta de pessoa da província, dizendo que a dedicação dele não podia ser maior. Carlota falava às pressas, cheia de comoção, sem ordem nas ideias.

— Não falemos do que fiz, disse o Romualdo; cumpri um dever natural.

— Bem, mas eu agradeço-lhe por ele e por mim, replicou ela estendendo-lhe a mão.

Romualdo apertou-lhe a mão, que estava trêmula, e nunca lhe pareceu tão deliciosa. Ao mesmo tempo, olhou para ela e viu que a cor pálida ia-lhe bem, e com o vestido preto, tinha um tom ascético e particularmente interessante. Os olhos cansados de chorar não traziam o mesmo fulgor de outro tempo, mas eram muito melhores assim, como uma espécie de meia-luz de alcova, abafada pelas cortinas e venezianas fechadas.

Nisto pensou na comissão que o levava ali, e estremeceu. Começava a palpitar, outra vez, por ela, e agora que a achava livre, ia levantar duas barreiras entre ambos: — que se não casasse, e que, a fazê-lo, casasse com outro, uma pessoa determinada. Era exigir demais. Romualdo pensou em não dizer nada, ou dizer outra coisa qualquer. Que coisa? Qualquer coisa. Podia atribuir ao marido uma recomendação de ordem geral, que se lembrasse dele, que lhe sufragasse a alma por certa maneira. Tudo era crível, e não prenderia assim o futuro com uma palavra. Carlota, sentada defronte, esperava que ele falasse; chegou a repetir o pedido. Romualdo sentiu um repelão da consciência. No momento de formular a recomendação falsa, recuou, teve vergonha, e dispôs-se à verdade. Ninguém sabia o que se passara entre ele e o finado, senão a consciência dele, mas a consciência bastava, e ele obedeceu. Paciência! era esquecer o passado, e adeus.

— Seu marido, — começou —, no mesmo dia em que morreu, disse-me que tinha um grande favor que pedir-me, e fez-me prometer que cumpriria tudo. Respondi-lhe que sim. Então, disse-me ele que era um grande benefício que a senhora lhe fazia, se se conservasse viúva, e que lhe pedisse isto, como um desejo da hora da morte. Entretanto, dado que não pudesse fazê-lo...

Carlota interrompeu-o com o gesto: não queria ouvir nada, era penoso. Mas o Romualdo insistiu, tinha de cumprir...

Foram interrompidos por um criado; o Dr. Andrade acabava de chegar, trazendo à viúva uma comunicação urgente.

Andrade entrou, e pediu a Carlota para lhe falar em particular.

— Não é preciso, retorquiu a moça, este senhor é nosso amigo, pode ouvir tudo.

Andrade obedeceu e disse ao que vinha; este incidente é sem valor para o nosso caso. Depois, conversaram os três durante alguns minutos. Romualdo olhava para o Andrade com inveja, e tornou a perguntar a si mesmo se lhe convinha dizer alguma coisa. A ideia de dizer outra coisa qualquer começou a turvar-lhe novamente o espírito. Ao ver o jovem advogado tão gracioso, tão atraente, Romualdo concluiu, — e não concluiu mal, — que o pedido do morto era um incitamento; e se Carlota nunca pensara em casar, era ocasião de fazê-lo. O pedido chegou a parecer-lhe tão absurdo, que a ideia de alguma desconfiança do marido veio naturalmente, e atribuiu-lhe assim a intenção de punir moralmente a mulher: — conclusão, por outro lado, não menos absurda, à vista do amor que ele testemunhara no casal.

Carlota, na conversação, manifestou o desejo de retirar-se para a fazenda de uma tia, logo que acabasse o inventário; mas, se demorasse muito tempo iria em breve.

— Farei o que puder para ir depressa, disse o Andrade.

Daí a pouco saiu este, e Carlota, que o acompanhara até a porta, voltou ao Romualdo, para dizer-lhe:

— Não quero saber o que foi que meu marido lhe confiou. Ele pede-me o que por mim mesmo faria: — ficarei viúva...

Romualdo podia não ir adiante, e desejou isso mesmo. Estava certo da sinceridade da viúva, e da resolução anunciada; mas o diabo do Andrade com os seus modos finos e olhos cálidos fazia-lhe travessuras no cérebro. Entretanto, a solenidade da promessa tornou a aparecer-lhe como um pacto que se havia de cumprir, custasse o que custasse. Ocorreu-lhe um meio-termo: obedecer à viúva, e calar-se, e, um dia, se ela deveras se mostrasse disposta a contrair segundas núpcias, completar-lhe a declaração. Mas não tardou em ver que isto era uma infidelidade disfarçada; em primeiro lugar, ele poderia morrer antes, ou estar fora, em serviço ou doente; em segundo lugar, poderia ser que lhe falasse, quando ela estivesse apaixonada por outro. Resolveu dizer tudo.

— Como ia dizendo, continuava ele, seu marido...

— Não diga mais nada, interrompeu Carlota; para quê?

— Será inútil, mas devo cumprir o que prometi ao meu pobre amigo. A senhora pode dispensá-lo, eu é que não. Pede-lhe que se conserve viúva; mas que, no caso de não lhe ser possível, pedir-lhe-ia bem que a sua escolha recaísse no... Dr. Andrade...

Carlota não pôde ocultar o espanto, e não teve só um, mas dois, um atrás do outro. Quando Romualdo concluía o pedido, antes de dizer o nome do Andrade, Carlota imaginou que ia citar o dele mesmo; e, rápido, tanto lhe pareceu um desejo do marido como uma astúcia do portador, que a cortejara antes. Esta segunda suspeita entornou-lhe na alma um grande desgosto e desprezo. Tudo isso passou como um relâmpago, e quando chegou ao fim, ao nome do Andrade, mudou de espanto, e não foi menor. Esteve calada alguns segundos, olhando à toa; depois, repetiu o que já dissera.

— Não pretendo casar.

— Tanto melhor, disse ele, para os desejos últimos de seu marido. Não lhe nego que o pedido me pareceu exceder do direito de um moribundo; mas não me cabe discuti-lo: é questão entre a senhora e a sua consciência.

Romualdo levantou-se.

— Já? disse ela.

— Já.

— Jante comigo.

— Peço-lhe que não; virei outro dia, disse ele estendendo-lhe a mão.

Carlota estendeu-lhe a mão. Pode ser que se ela estivesse com o espírito quieto, percebesse nos modos do Romualdo alguma coisa que não era a audácia de outrora. Na verdade, ele estava agora acanhado, comovido, e a mão tremia-lhe um tanto. Carlota apertou-lha cheia de agradecimento; ele saiu.

Ficando só, Carlota refletiu em tudo o que se passara. A lembrança do marido pareceu-lhe também extraordinária; e, não tendo ela jamais pensado no Andrade, não pôde furtar-se a pensar nele e na simples indicação do moribundo. Tanto pensou em tudo isso, que lhe ocorreu finalmente a posição do Romualdo. Esse homem tinha-a cortejado, parecia querê-la, recebeu do marido, prestes a expirar, a confidência última, o pedido da viuvez e a designação de um sucessor, que não era ele, mas outro; e, não obstante, cumpriu tudo fielmente. O procedimento pareceu-lhe heroico. E daí pode ser que já não a amasse: e foi, talvez, um capricho de momento; estava acabado; nada mais natural.

No dia seguinte, ocorreu a Carlota a ideia de que Romualdo, sabendo da amizade do marido com o Andrade, podia ir comunicar a este o pedido do moribundo, se já o não tinha feito. Mais que depressa, lembrou-se de mandar chamá-lo, e pedir-lhe que viesse vê-la; chegou mesmo a escrever-lhe um bilhete, mas mudou de ideia, e, em vez de pedir-lho de viva voz, determinou fazê-lo por escrito. Eis o que escreveu:

Estou certa de que as últimas palavras de meu marido foram apenas repetidas a mim e a ninguém mais; entretanto, como há outra pessoa, que poderia ter interesse em saber...

 Chegando a este ponto da carta, releu-a, e rasgou-a. Parecia-lhe que a frase tinha um tom misterioso, inconveniente na situação. Começou outra, e não lhe agradou também; ia escrever terceira, quando vieram anunciar-lhe a presença do Romualdo; correu à sala.

— Escrevia-lhe agora mesmo, disse ela logo depois.

— Para quê?

— Referiu aquelas palavras de meu marido a alguém?

— A ninguém. Não podia fazê-lo.

— Sei que não o faria; entretanto, nós, as mulheres, somos naturalmente medrosas, e o receio de que alguém mais, quem quer que seja, saiba do que se passou, peço-lhe que por nenhuma coisa refira a outra pessoa...

— Certamente que não.

— Era isto o que lhe dizia a carta.

Romualdo vinha despedir-se; seguia daí três dias para o Norte. Pedia-lhe desculpa de não ter aceitado o convite de jantar, mas na volta...

 — Volta? interrompeu ela.

— Conto voltar.

— Quando?

— Daqui a dois meses ou dois anos.

— Cortemos ao meio; seja daqui a quatro meses.

— Depende.

— Mas, então, sem jantar comigo uma vez? Hoje, por exemplo...

— Hoje estou comprometido.

— E amanhã?

— Amanhã vou a Juiz de Fora.

Carlota fez um gesto de resignação; depois perguntou-lhe se na volta do Norte.

— Na volta.

— Daqui a quatro meses?

— Não posso afirmar nada.

Romualdo saiu; Carlota ficou pensativa algum tempo.

 “Singular homem! pensou ela. Achei-lhe a mão fria e, entretanto...”

Depressa passou a Carlota a impressão que lhe deixara o Romualdo. Este seguiu, e ela retirou-se à fazenda da tia, enquanto o Dr. Andrade continuou o inventário. Quatro meses depois, voltou Carlota a esta corte, mais curada das saudades, e em todo caso cheia de resignação. A amiga encarregou-se de acabar a cura, e não lhe foi difícil.

Carlota não esquecera o marido; ele estava presente ao coração, mas o coração também cansa de chorar. Andrade que a frequentava, não pensara em substituir o finado marido; ao contrário, parece que principalmente gostava da outra. Pode ser também que fosse mais cortesão com ela, por ela ser menos recente viúva. O que toda a gente cria é que dali, qualquer que fosse a escolhida, tinha de nascer um casamento com ele. Não tardou que as pretensões de Andrade se inclinassem puramente à outra.

 “Tanto melhor” pensou Carlota, logo que o percebeu.

 A ideia de Carlota é que, sendo assim, não ficava ela obrigada a desposá-lo; mas esta ideia não a formulou inteiramente; era confessar que estaria inclinada a casar.

 Passaram-se ainda algumas semanas, oito ou dez, até que um dia anunciaram os jornais a chegada de Romualdo. Ela mandou-lhe um cartão de cumprimento, e ele deu-se pressa em pagar-lhe a visita. Acharam-se mudados; ela pareceu-lhe menos pálida, um pouco mais tranquila, para não dizer alegre; ele menos áspero no aspecto, e até mais gracioso. Carlota convidou-o a jantar com ela daí a dias. A amiga estava presente.

Romualdo foi circunspecto com ambas, e, posto que trivial, conseguia pôr nas palavras uma nota de interesse. O que, porém, realçava a pessoa dele era, — em relação a uma, a transmissão do recado do marido, e a respeito da outra a paixão que sentira pela primeira, e a possibilidade de vir a desposá-la. A verdade é que ele passou uma noite excelente, e saiu de lá encantado. A segunda convidou-o também para jantar daí a dias, e os três reuniram-se outra vez.

— Ele ainda gosta de ti? perguntava uma.

— Não, acabou.

— Não acabou.

— Por que não? Há tanto tempo.

— Que importa o tempo?

E teimava que o tempo era coisa importante, mas também não valia nada, principalmente em certos casos. Romualdo parecia pertencer à família dos apaixonados sérios. Enquanto dizia isso, olhava para ela a ver se lhe descobria alguma coisa; mas era difícil ou impossível. Carlota levantava os ombros.

Andrade supôs também alguma coisa, por insinuação da outra viúva, e tratou de ver se descobria a verdade; não descobriu coisa nenhuma. O amor de Andrade ia crescendo. Não tardou que o ciúme viesse fazer-lhe cortejo. Pareceu-lhe que a amada via o Romualdo com olhos singulares; e a verdade é que estava muita vez com ele.

Para quem se lembra das primeiras impressões das duas viúvas, há de ser difícil ver na observação do nosso Andrade; mas eu sou historiador fiel, e a verdade antes de tudo. A verdade é que ambas as viúvas começavam a cercá-lo de especiais atenções.

Romualdo não o percebeu logo, porque era modesto, apesar de audaz, às vezes; e da parte de Carlota não chegou mesmo a perceber nada; a outra, porém, houve-se de maneira que não tardou em descobrir-se. Era certo que o cortejava.

Daqui nasceram os primeiros elementos de um drama. Romualdo não acudiu ao chamado da bela dama, e esse procedimento não fez mais do que irritá-la e dar-lhe o gosto de teimar e vencer. Andrade, ao ver-se posto de lado, ou quase, determinou lutar também e destruir o rival nascente, que podia ser em breve triunfante. Já isso bastava; mas eis que Carlota, curiosa da alma do Romualdo, sentiu que este objeto de estudo podia escapar-se-lhe, desde que a outra o quisesse para si. Já então eram passados treze meses da morte do marido, o luto estava aliviado, e a beleza dela, com ou sem luto, fechado ou aliviado, estava no cume.

A luta que então começou teve diferentes fases, e durou cerca de cinco meses mais. Carlota, no meio dela, sentiu que alguma coisa batia no coração de Romualdo. As duas viúvas em breve descobriram as baterias; Romualdo solicitado por ambas, não se demorou na escolha; mas o desejo do morto? No fim de cinco meses as duas viúvas estavam brigadas, para sempre; e no fim de mais três (custa-me dizê-lo, mas é verdade), no fim de mais três meses, Romualdo e Carlota iam meditar juntos e unidos sobre a desvantagem de morrer primeiro.

Fonte:
Machado de Assis. Contos avulsos. Publicado originalmente em A Estação, de 15/9/1884 a 15/11/1884.