segunda-feira, 24 de abril de 2023

Alba Christina Campos Netto (História de suspense)

Já era tarde quando Antônio telefonou.

- Recebi seu conto para a revista. Está bom, mas...

- Mas... o que?

- Para dizer a verdade não gostei. Está chato, sabe? Não é que não esteja bom, mas aquilo não é Você ... Entende, não?

- Sim, entendo.

- Você pode substituí-lo?

No momento estava difícil imaginar histórias. Mil e uma ocupações tomavam-me o tempo.

- Você tem muita pressa?

- Ora, se tenho... gosto de ler suas histórias.

- É que me sobra pouco tempo, agora que tenho o bebê... Mas conte comigo.

- Está bem. Dou dez dias de prazo.

- Bom. Se eu não puder levar, você pode vir buscar?

- Ah, que pergunta...

No dia seguinte fiquei pensando no assunto. A empregada havia faltado e o serviço acumulou. Minha máquina estava emprestada. As ideias fugiam-me da cabeça. e eu queria me livrar logo daquele encargo. Além de tudo, precisava aproveitar enquanto Cláudia dormia, para escrever o bendito conto.

Foi então que me lembrei: havia deixado meus óculos em casa de Betty, quando fui ver televisão. E agora? Tinha de ir buscar.

Nem bem saí de casa, reparei que um velho me seguia. De onde surgiu, não reparei. Fui andando, e ele atrás de mim. No ponto do ônibus olhava-me, com olhar insistente. Em dado momento começou a sorrir.

Era um tipo de homem do povo, vestido com simplicidade. Baixinho, magro, feio, mas tinha olhos brilhantes, que chamavam a atenção. Resolvi entrar numa loja. Andei, olhando os balcões, fugindo das vendedoras que vinham procurar servir. Passei nisto uns vinte minutos - o tempo que julguei necessário para o velho ter sumido - quando vi que a loja dava saída para a outra rua, onde também passava um ônibus para a casa de Betty.

- Ótimo, pensei.

Havia uma fila grande. Esperei uns minutos, e quando o ônibus chegou, vi com surpresa, que lá estava o velho outra vez, atrás de mim. Comecei a ficar com medo.

O ônibus parou, foram todos entrando, e quando o velho acabou de entrar, o fiscal mandou fechar a porta.

Apressei-me a passar a borboleta, mas assim que me sentei, o velho sentou-se ao meu lado.

Pensei que iria me dirigir a palavra, mas ele continuava mudo, os olhos brilhando, fixos em mim.

Quis voltar. A rua onde Betty morava era meio deserta, e eu não poderia me aventurar, com um desconhecido louco me perseguindo. Mas para meu sossego, ele desceu do ônibus bem antes de mim.

Contei a Betty o sucedido.

- Preciso de um copo d'água. Estou cansada, até...

- Mas também esses tarados... Outro dia um veio da cidade até aqui, me seguindo.

- Pois, é. Ainda bem que desistiu, viu que não sou de nada.

Na saída Betty acompanhou-me até o portão.

- Cuidado, hein, por essa rua deserta.

Segui, muito confiante, ao ponto do ônibus. Não havia ninguém na rua, felizmente. O ônibus chegou, parou, e quando eu ia subindo, vejo que alguém subia também. E quem poderia ser senão o velho personagem do dia?

O mais depressa que pude, procurei lugar perto de alguém, para evitar que ele se sentasse de novo ao meu lado. Tive vontade de pedir a alguém no ônibus que me acompanhasse até em casa. Mas alguns minutos depois, sem que eu percebesse, ele já havia desaparecido. Daí por diante, eu olhava de todo lado. Pelo caminho para casa ia vendo se tinha gente em volta, a quem pudesse pedir socorro. Mas o velho desistira, mesmo. Nem sinal.

Continuei meu caminho sossegada, e quando ia abrindo o portão de casa, ouvi uma voz suave, me chamando;

– Por favor, moça, preciso só dizer uma palavrinha.

Fiquei dura ao ver novamente o velho.

– Não tenha medo, minha filha. Só queria pedir um favor, importante. Conhece o Mendonça, seu vizinho, aquele daquela casa? - e apontou a casa da esquerda.

- Conheço, disse trêmula.

- Pois vá à casa dele hoje mesmo. Ele vai para a Europa a semana que vem. É preciso impedir essa viagem a todo custo. Diga à esposa dele que de modo algum o deixe viajar. Entendeu bem? Ele não deve embarcar de modo algum.

- Só isso, perguntei, morrendo de medo, louca para entrar em casa e vê-lo sumir.

- E se algo acontecer, continuou ele, avise a esposa que procure dentro do baú velho, embrulhado num papel verde, embaixo das fotografias da família...

Aquela conversa misteriosa foi me fazendo ficar gelada, e devo ter virado sorvete quando vi que o velho sumira, como por encanto. Tamanho pavor se apoderou de mim, que nem entrei em casa, pois não havia ninguém. Corri para a casa do dr. Mendonça, onde entrei esbaforida. Fui contando toda a história a dona Adélia, que não se mostrou assustada.

- Que brincadeira de mau gosto. 

– Mas quem seria? Para saber que o dr. Mendonça vai a semana que vem para a Europa, para falar no baú com as fotografias da família?

- Ora, alguém que deve conhecer o Mendonça, ou saber da vida dele. Quanto ao baú velho com fotografias de família, quase todo mundo tem. não é? Beba um copo d'água e não pense mais nisso.

Mesmo assim, pedi que me acompanhasse de volta.

Passaram-se, os dias e o dr. Mendonça embarcou. Eu ainda pensava no velho, com medo que ele aparecesse para ajustar contas. Estava com aquela ideia fixa, quando, uma tarde, vi que a casa ao lado estava cheia de gente. Uma irmã de dona Adélia veio me chamar, dizendo que dona Adélia recebera um cabograma, avisando que o dr. Mendonça havia falecido a bordo, de um colapso cardíaco.

Entrei com as pernas bambas. Dona Adélia olhava-me alucinada. Nenhuma de nós sabia o que dizer. Nem murmurar "meus sentimentos", ou coisa parecida, eu pude.

- E o que mais disse ele? perguntou-me. Que procurasse no baú velho, não foi?

- Sim, disse eu, arrepiada.

- Venham comigo, disse dona Adélia levantando-se da cadeira, e puxando as irmãs e amigas pela mão.

Eu as segui, por solidariedade, ou por curiosidade, não sei. Entramos num quarto, lá no fundo do quintal, onde havia montes de coisas velhas guardadas: livros, vestidos, móveis antigos, uma porção de quinquilharias, e o velho baú.

Abriu-o, depois de tirar de cima um montão de revistas empoeiradas.

- Cartões de Natal, participações de noivado, convites de casamento, para que guardar tudo isso, Adélia?

- Aqui estão as fotografias. E aqui o embrulho verde.

Fui ficando tonta, enquanto dona Adélia desembrulhava.

– Ora, nada demais, o retrato de meu avô, falecido há vinte anos. Já está meio apagado. 

Todas devem ter ficado horrorizadas ao olhar para mim - ao reconhecer no retrato o velho que me havia seguido, dei um grito, e teria caído se uma senhora não me segurasse.

Mas Cláudia já está acordando, eu preciso ir vê-la. Felizmente terminei o conto. Há uma hora estou escrevendo, e eis tudo que pude imaginar. Só resta esperar a revista sair, e ver se Antônio realmente preferiu esta história à outra.

Fonte:
Cláudio de Cápua. Era uma vez… (coletânea de contos). Comptexto: outubro 1989.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LIII

 VERSOS À CARA
 
MOTE:
Sem ter chicote nem vara,
manda-me a minha razão
atirar versos à cara
dos que me roubam o pão!
Antonio Aleixo
Vila Real de Santo Antonio/Portugal, 1899 – 1949, Loulé/França

GLOSA:
Sem ter chicote nem vara,
eu tento fazer justiça,
de uma forma simples, clara,
menosprezando a cobiça!
 
Pensando, assim, concentrado,
manda-me a minha razão
(por ser eu apaixonado)
responder com o coração.
 
É uma maneira bem rara,
revidando os malfeitores
atirar versos à cara,
transformando-os em leitores!
 
É com minha poesia
que os trarei de volta ao chão,
pondo fim a glutonia
dos que me roubam o pão!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

   NOSSOS VINHOS
 
MOTE:
 Andando pelos caminhos
da vida ao alvorecer,
lembrei-me de nossos vinhos,
bebidos ao bel prazer!
Carmen Pio
Porto Alegre/RS

GLOSA:
Andando pelos caminhos
do meu hoje, tão contente,
eu visto os sonhos de arminhos
e enfeito a vida da gente!
 
Eu sinto em mim, a fragrância
da vida ao alvorecer
que explode, então, nessa ânsia
de vontade de viver!
 
Recordações são carinhos
realizando desejos...
lembrei-me de nossos vinhos,
lembrei-me de nossos beijos!
 
Fiquei ébria de paixão,
ao recordar o beber
dos vinhos do coração,
bebidos ao bel prazer!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

   SEMEANDO ROSAS
 
MOTE:
Nas horas mais dolorosas,
teimosos, no seu lirismo,
há poetas semeando rosas
entre as rochas de um abismo!
Carolina Ramos
Santos/SP

GLOSA:
Nas horas mais dolorosas,
cheias de melancolia
surgem poesias preciosas
falando de nostalgia!
 
Os poetas, são assim,
teimosos, no seu lirismo,
à tristeza dão um fim,
num eterno sincronismo!
 
As aragens tão cheirosas
provam de um modo profundo:
há poetas semeando rosas
nos quatro cantos do mundo!
 
As rosas crescem faceiras
nascidas do romantismo,
entre campos e ladeiras,
entre as rochas de um abismo!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

   NOSSAS MANHÃS
 
MOTE:
De manhã, sugando amores,
nesses teus lábios de paz,
provo todos os sabores,
nos sabores que me dás.
Flávio Roberto Stefani
Porto Alegre/RS

GLOSA:
De  manhã, sugando amores,
teus carinhos divinais
têm o perfume das flores
e o gosto de quero mais!
 
Eu sacio os meus  desejos
nesses teus lábios de paz,
pois o néctar dos teus beijos,
meus anseios, satisfaz!
 
Eu vejo todas as cores
nesse meu mundo encantado;
provo todos os sabores,
nele, eu amo e sou amado!
 
Esse momento tão lindo
só felicidade traz
e me embriago, sorrindo,
nos sabores que me dás.
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   MEUS  VERSOS
 
MOTE:
Versos soltos ou fragmentos
são as trovas que componho
que amenizam meus tormentos
e dão mais vida ao meu sonho!
Joamir Medeiros
Natal/RN

GLOSA:
Versos soltos ou fragmentos
eu escrevo nos meus versos,
são cânticos ou lamentos
que ecoam nos universos!
 
Com muita imaginação,
são as trovas que componho
pois brotam do coração
e nelas, minha alma, ponho!
 
São bonitos pensamentos
que a trova me faz criar,
que  amenizam meus tormentos
e até me ensinam a amar!
 
Sendo eu, um trovador
nunca , me quedo, tristonho;
as trovas levam a dor
e dão mais vida ao meu sonho!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas X. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Agosto 2003.

Contos e Lendas do Mundo (África) O filho do médico e o rei das cobras

Muito tempo atrás, um médico sábio, ao morrer, deixou uma esposa e um bebê. Na idade apropriada, o menino foi batizado com o nome escolhido por seu pai: Hassee’boo Kareem’ Ed Deen’.

Quando o garoto terminou seus estudos e já sabia ler, sua mãe o enviou a um alfaiate para aprender a profissão. Não conseguiu. Depois, o mandou até um ourives e ele tampouco foi capaz de dominar esse ofício. O menino tentou diversos trabalhos, sem sucesso em nenhum deles. Enfim, sua mãe disse: 

— É melhor você ficar em casa por um tempo — e essa proposta lhe agradou.

Um dia, Hassee’boo perguntou à sua mãe qual era a profissão de seu falecido pai. Ela contou que ele havia sido um grande médico.

— E onde estão os livros dele? — indagou o menino.

— Faz muito tempo que não os vejo, — respondeu a mãe — mas devem estar no quarto dos fundos. Vá procurá-los.

Hassee’boo vasculhou a casa até encontrá-los, mas estavam praticamente destruídos por insetos. Não foi possível aproveitá-los.

Tempos depois, quatro vizinhos foram à sua casa e pediram à mulher:

— Seu filho pode vir conosco cortar lenha na floresta?

O trabalho consistia em cortar madeira, carregá-la em burros e vendê-la na cidade, onde era usada em fogueiras.

— Claro. — respondeu ela. — Amanhã comprarei um burro para que ele comece a trabalhar com vocês.

No dia seguinte Hassee’boo, montado em seu burro, saiu com seus quatro novos companheiros. Trabalharam muito e ganharam bastante dinheiro durante seis dias. No sétimo, uma chuva muito forte levou todos a se abrigarem em uma caverna.

Hassee’boo sentou-se sozinho. Como não havia nada para fazer, ele começou a bater uma pequena pedra no chão. Surpreendeu-se com o ruído surdo que o solo fazia, como se estivesse oco. Chamou os outros e disse:

— Parece que há um buraco aqui embaixo.

Bateu a pedra no chão novamente para que ouvissem. Decidiram investigar a causa. Bastou cavarem um pouco para descobrirem um buraco fundo como um poço, repleto de mel até a borda. Desistiram de cortar lenha e decidiram coletar e vender o mel.

Como queriam retirar tudo o mais rápido possível, pediram para Hassee’boo entrar no poço e ir recolhendo o mel, que seria colocado em vasos e levado para ser vendido na cidade. Trabalharam por três dias seguidos e ganharam muito dinheiro.

Quando sobrou apenas um pouco de mel no fundo, pediram que o menino retirasse tudo o que restava e foram buscar uma corda para içá-lo de volta. Mas a verdade é que os quatro decidiram deixar o menino no buraco e dividir o dinheiro. Quando Hassee’boo acabou de juntar o mel, gritou para que lançassem a corda, mas não obteve resposta. Após três dias sozinho no poço, finalmente entendeu que fora abandonado por seus companheiros.

Os quatro lenhadores foram até a casa da mãe de Hassee’boo e disseram que o menino tinha se separado deles na floresta. Chegaram a afirmar que ouviram o rugido de um leão. Garantiram ter procurado o menino, porém não encontraram nenhum rastro dele nem do burro.

A mãe de Hassee’boo chorou muito, como era de se esperar, e os quatro vizinhos ficaram com todo o dinheiro. Enquanto isso, o menino andava pelo fundo do buraco em busca de uma saída, comendo restos de mel, dormindo e pensando no que fazer.

No quarto dia, enquanto pensava, viu um grande escorpião no chão e o matou.

Imediatamente algo lhe ocorreu:

— De onde veio esse escorpião? Deve haver uma abertura em algum lugar. Vou tentar encontrá-la.

Olhou em volta até perceber um pequeno facho de luz que surgia de uma fresta minúscula. Apanhou sua faca e escavou até abrir um buraco largo o suficiente para que pudesse passar. Atravessou a abertura e saiu em um local que nunca havia visto antes.

Notou uma trilha à sua frente. Seguiu por ela até encontrar uma casa muito grande, cuja porta estava entreaberta. Lá dentro, viu que as portas eram douradas e tinham chaves de pérola nas fechaduras, também douradas. A casa estava cheia de lindas cadeiras incrustadas de joias e pedras preciosas. Na antessala, encontrou um sofá coberto por uma colcha deslumbrante e se deitou para descansar.

Assim que adormeceu, alguém o colocou em uma cadeira. Acordou com uma voz dizendo:

— Não o machuque, vamos acordá-lo suavemente.

Abriu os olhos e se viu cercado por várias cobras. Uma delas tinha cores muito vivas.

— Olá! Quem é você?

— Sou Sulta’nee Waa’ Neeo’ka, rei das cobras. Esta é minha casa. E você, como se chama?

— Eu sou Hassee’boo Kareem’ Ed Deen’.

— De onde veio?

— Não sei de onde eu vim, nem para onde vou.

— Bem, não se preocupe com isso agora. Vamos comer. Imagino que esteja com fome. Eu estou, pelo menos.

O rei ordenou que seus criados trouxessem comida. Foram servidas lindas frutas. Todos comeram e beberam enquanto conversavam.

Ao final da refeição, o rei quis saber mais sobre Hassee’boo. O menino contou tudo o que havia acontecido até então. Depois pediu ao anfitrião que falasse um pouco de si.

— Minha história é um tanto longa, mas posso lhe contar. — disse o rei das cobras. — Há muito tempo, saí desta casa e fui morar nas montanhas de Al Kaaf. Queria mudar de ares. Um dia encontrei um estranho que passava por ali e perguntei a ele:

“De onde você é?”

“Estou vagando pelo deserto”, ele respondeu.

“E quem é seu pai?”

“Meu nome é Bolookee’a e meu pai era um sultão. Quando ele morreu, encontrei um pequeno baú, dentro do qual havia uma bolsa com uma caixinha de latão. Nessa caixinha encontrei um pergaminho guardado dentro de um pano de lã. O texto falava sobre um profeta. Dizia tantas coisas boas e maravilhosas a seu respeito que tive vontade de conhecê-lo. No entanto, quando comecei a perguntar às pessoas sobre ele, me disseram que ainda não havia nascido. Então jurei que andaria pelo mundo até encontrá-lo. Deixei minha cidade e minhas propriedades. Desde então estou vagando, mas ainda não o encontrei.”

“E onde você espera achar esse homem, se ele ainda não nasceu?”, perguntei ao andarilho. “Se você tivesse um pouco de água de serpente, conseguiria se manter vivo até encontrá-lo. Mas talvez seja um conselho inútil, pois não há água de serpente nessas redondezas.”

“Bem, devo continuar minha jornada. Adeus.”

E assim nos despedimos e ele seguiu seu caminho. Andou até o Egito, onde encontrou um homem que também lhe perguntou:

“Quem é você?”

“Me chamo Bolookee’a. E quem é você?”

“Meu nome é Al Faan’. Aonde você está indo?”

“Deixei minha casa e minhas propriedades para procurar o profeta.”

“Ah! Há coisas melhores a se fazer do que procurar um homem que ainda não nasceu. Vamos até o rei das cobras pedir uma poção mágica. Depois, iremos até o Rei Salomão e pegaremos seu anel. Com ele, dominaremos os gênios e os ordenaremos a atender todos os nossos pedidos.”

Nesse momento Bolookee’a disse:

“Eu conheci o rei das cobras na montanha de Al Kaaf.”

“Vamos até lá então”, disse Al Faan’.

Al Faan’ queria o anel de Salomão porque sabia que com ele teria grandes poderes mágicos: controlaria os gênios e os pássaros. Bolookee’a queria apenas conhecer o grande profeta.

“Tudo bem”, concordou Bolookee’a.

Os dois levaram uma armadilha até Al Kaaf, dentro da qual colocaram um copo de leite e outro de vinho. Eu caí na armadilha como um tolo. Entrei na gaiola, bebi todo o vinho e fiquei bêbado. Os dois então fecharam a porta e me levaram.

Quando recuperei os sentidos, vi que estava preso e era carregado por Bolookee’a. “Não se pode confiar nos filhos de Adão. O que querem de mim?”, perguntei.

“Queremos uma poção para usarmos em nossos pés e caminharmos sobre a água sempre que isso for necessário em nossa jornada”, responderam.

Concordei e disse para seguirmos em frente.

Chegamos a um bosque com muitas árvores. Quando me viram, elas foram dizendo, uma a uma, “Eu sou remédio para isso’”, “Eu sou remédio para aquilo’”, “Eu sou remédio para a cabeça”, “Eu sou remédio para os pés”, até que uma das árvores disse: “Se alguém passar minha seiva nos pés, poderá andar sobre as águas”.

Revelei aos homens o que a última árvore havia me dito. Era o que procuravam. Retiraram uma grande quantidade de líquido de suas folhas e me levaram de volta à montanha. Lá, eles me libertaram e seguiram seu caminho.

Quando enfim alcançaram o mar, usaram a seiva e caminharam sobre a superfície da água. Andaram muitos dias até chegarem nas proximidades do palácio do rei Salomão. Então fizeram uma parada para que Al Faan’ preparasse suas poções.

Ao entrarem no palácio, encontraram o rei Salomão dormindo e a mão com o anel estava apoiada em seu peito. Os gênios do rei vigiavam seu sono.

Bolookee’a se aproximou e um dos gênios disse:

“Aonde você vai?”

“Vim aqui com Al Faan’, e ele vai pegar o anel do rei.”

“Vá embora”, respondeu o gênio. “Saiam daqui, ou seu amigo morrerá.”

Al Faan’, já com suas poções prontas, pediu para Bolookee’a apenas esperar. Aproximou-se do rei para pegar o anel, mas deu um grito ensurdecedor e foi lançado por uma força invisível a uma distância impressionante.

Levantou-se acreditando que as poções ainda faziam efeito e correu novamente em direção ao rei. Uma forte rajada de ar soprou sobre ele, reduzindo-o a cinzas instantaneamente.

Uma voz falou a Bolookee’a, que permanecia no mesmo lugar:

“Vá embora. Esta criatura miserável está morta.”

O andarilho fugiu do palácio e, quando chegou novamente à praia, colocou a poção em seus pés para atravessar as águas. Continuou vagando pelo mundo por muitos anos.

Em uma de suas andanças, certa manhã, encontrou um homem sentado no chão. Após trocarem cumprimentos, Bolookee’a perguntou:

“Quem é você?”

“Me chamo Jan Shah. E você?”

Bolookee’a se apresentou e quis saber a história de seu novo amigo. O homem, que ora chorava, ora sorria, fez questão de que o andarilho contasse a sua primeiro. Após ouvi-la, começou:

“Sente-se comigo e contarei minha história do começo ao fim. Meu nome é Jan Shah. Meu pai é Tooeegha’mus, um grande sultão. Ele costumava caçar na floresta todos os dias. Certa vez, pedi para que me levasse junto. Ele disse não, que seria melhor eu ficar em casa. Chorei bastante e como meu pai me amava muito, por eu ser filho único, não suportou me ver naquele estado e consentiu que fosse caçar com ele.

“Entramos na floresta acompanhados de vários criados. Chegamos ao acampamento, comemos e nos dividimos em grupos.

“Seguimos, eu e mais sete escravos, até encontrarmos uma gazela. Fomos atrás dela, sem conseguir capturá-la, até chegarmos ao mar. O animal entrou na água e, junto com mais quatro escravos, continuei perseguindo-o de barco. Os outros três voltaram e se reuniram ao grupo de meu pai. Conseguimos apanhar a gazela, mas tivemos de nos afastar bastante da costa. Então fomos pegos por um forte vento, que nos desviou do caminho, e nos perdemos.

“Um dos três escravos que voltaram contou a meu pai sobre a gazela e o barco. O sultão começou a gritar que seu filho havia se perdido e, ao retornar à cidade, decretou luto por considerar que eu estava morto.

“Enfim conseguimos chegar a uma ilha com muitos pássaros. Encontramos frutas e água doce. Após comermos, subimos em uma árvore e dormimos até a manhã seguinte.

“Remamos até outra ilha deserta. Como na anterior, colhemos frutas e dormimos em uma árvore. Durante a noite, ouvimos vários animais selvagens uivando e rugindo perto de nós.

“Quando amanheceu, saímos de lá o mais rápido possível. Chegamos a uma terceira ilha. Ao procurar comida, encontramos uma árvore cheia de frutos parecidos com maçãs. Ao nos aproximarmos, ouvimos uma voz que dizia para não tocarmos na árvore, pois ela pertencia ao rei. Então avistamos vários macacos vindo em nossa direção. Pareciam muito contentes em nos ver. Deram-nos muitas frutas, as quais comemos até nos saciar.

“Um dos macacos propôs ao seu grupo que eu fosse nomeado sultão. Outro respondeu que de nada adiantaria, pois já na manhã seguinte iríamos embora. Um terceiro argumentou que não conseguiríamos fugir se eles destruíssem nosso barco. E de fato, ao nos preparamos para ir embora no dia seguinte, nossa embarcação estava em pedaços. Só nos restava continuar na ilha com os primatas, que pareciam gostar muito de nós. 

“Certo dia, enquanto eu caminhava, encontrei uma grande casa com uma inscrição na porta: Qualquer um que vier a esta ilha terá dificuldades em deixá-la, pois os macacos estão em busca de um homem que seja seu rei. Tal homem pensará que não há como fugir daqui, mas há uma saída ao norte. Ao seguir nessa direção, encontrará uma grande planície repleta de leões, leopardos e cobras. O homem deverá lutar com todos eles e, se vencê-los, poderá continuar. Então chegará a outra grande planície, habitada por formigas ferozes, com dentes afiados e do tamanho de cães. Também deverá vencê-las, somente então o caminho estará livre.

“Conversei com meus criados sobre o que fazer, e decidimos que, se fôssemos morrer de qualquer jeito, melhor seria fazê-lo na luta por nossa liberdade.

“Estávamos todos armados e nos pusemos a caminhar. Chegamos à primeira planície e enfrentamos os animais. Dois escravos foram mortos. Na segunda planície, lutamos com as formigas e mais dois criados morreram. Consegui escapar sozinho.

“Perambulei por muitos dias, comendo o que encontrava, até enfim chegar a uma cidade. Lá fiquei por algum tempo em busca de trabalho, mas sem sucesso.

“Um dia um homem veio até mim e perguntou se eu procurava uma ocupação. Ao responder que sim, ele me chamou para sua casa.

“Ao chegarmos lá, ele me mostrou uma pele de camelo e pediu que eu a vestisse. Segundo ele, se eu fizesse aquilo, um grande pássaro me carregaria até uma montanha distante. Uma vez no topo, o tal pássaro arrancaria minha pele de camelo e eu teria de afundar no chão as pedras preciosas que encontrasse. Quando todas as pedras estivessem enfiadas na terra, o homem viria me buscar.

“Tal como ele disse, vestiu-me com a pele e um pássaro veio e me levou até a montanha. Estava prestes a me devorar, mas eu me desvencilhei e o afugentei. Afundei muitas pedras preciosas e então chamei o homem para me tirar dali, mas ele nunca veio.

“Julguei que logo estaria morto e andei por muitos dias por uma enorme floresta, até encontrar uma casa. Era habitada por um velho, que me alimentou até que eu recuperasse minhas forças.

“Fiquei lá por muito tempo. O velho se afeiçoou a mim como se eu fosse seu filho.

“Um dia ele teve de sair e me deixou com um molho de chaves. Disse que eu poderia abrir qualquer porta da casa, exceto uma, que me mostrou apontando o dedo.

“É claro que foi a primeira porta que abri assim que ele saiu. Do outro lado vi um grande jardim onde corria um riacho. Três pássaros pousaram em uma de suas margens e imediatamente se transformaram nas mulheres mais lindas que eu já vi. Observei-as enquanto se banhavam. Depois elas se vestiram novamente, voltaram a se transformar em pássaros e saíram voando.

“Tranquei a porta e saí da casa. Não tinha fome e perambulei sem destino. Quando o velho voltou, percebeu algo estranho e me perguntou o que havia de errado. Contei a ele sobre as lindas moças e disse que estava apaixonado por uma delas. Se não pudesse me casar com ela, certamente morreria.

“‘Impossível’, disse-me o velho. As três donzelas eram filhas do sultão dos gênios e a viagem até a casa delas era uma jornada de três anos.

“Respondi que não me importava. Eu tinha de tornar minha esposa a moça pela qual havia me apaixonado, disso dependia minha vida. Ele então me disse para esperar até que elas voltassem. Eu deveria me esconder enquanto estivessem na água e roubar as roupas da minha amada.

“Assim fiz. Quando voltaram para outro banho, roubei os trajes da irmã mais nova, que se chamava Sayadaa’tee Shems.

“Como esperado, ela saiu do riacho e procurou por suas roupas, sem saber o que estava acontecendo.

“Então eu me apresentei e disse que estavam comigo. Implorou-me para que as devolvesse, pois precisava ir embora. Declarei meu amor e disse que queria me casar com ela. Insistiu dizendo que queria voltar para o seu pai. Respondi que não a deixaria partir.

“Após suas irmãs partirem voando, eu a levei para a casa. O ancião celebrou nosso casamento e me aconselhou a esconder suas roupas, pois se ela as encontrasse, voaria novamente para longe. Cavei um buraco fora da casa e as enterrei.

“Um dia, precisei sair de casa e Sayadaa’tee aproveitou-se de minha ausência, desenterrou as roupas e as vestiu. Mandou seu escravo me avisar que ela havia partido. Também mandou dizer que se eu realmente a amasse deveria ir atrás dela.

“Ao voltar para casa, soube de sua fuga e saí à sua procura. Perambulei por muitos anos até chegar a uma cidade. Um dos moradores quis saber meu nome e quem era meu pai. Respondi que era Jan Sha, filho de Taaeeghamus. Perguntou-me então se eu era o marido de sua senhora. A ouvir o nome dela, Sayadaa’tee Shems, gritei extasiado que sim, era eu mesmo. 

“Levaram-me até ela. Fui apresentado ao seu pai e ela revelou que havíamos nos casado. Todos ficaram felizes.

“Decidimos então visitar nossa velha casa. Um dos gênios de seu pai nos carregou até lá, em uma viagem de três dias. Ficamos na casa por três anos, depois retornamos, e pouco tempo depois de nossa volta minha esposa morreu. Meu sogro me ofereceu outra de suas filhas em casamento como consolo, mas eu estava desolado. Desde então, estou de luto. Essa é minha história.”

E Bolookee’a então seguiu seu caminho, andando sem destino, até morrer.

Sultaanee Waa Neeoka concluiu seu relato dizendo a Hassee’boo:

— Agora, quando você regressar à sua casa, você me matará. 

Hassee’boo ficou indignado ao ouvir aquilo:

— Eu jamais o machucaria, sob nenhuma circunstância. Por favor, me ajude a voltar para casa.

— Mandarei você de volta à sua cidade, — prometeu o rei — mas é certo que você voltará para me matar.

— Eu não seria tão ingrato! — exclamou Hassee’boo. — Juro que jamais farei mal a você.

— Então lembre-se de uma coisa. — pediu o rei das cobras — Quando estiver em sua cidade, não tome banho em lugares com muitas pessoas.

— Me lembrarei, pode deixar. — assegurou Hassee’boo.

O rei então o levou de volta para casa de sua mãe, que ficou radiante ao ver Hassee’boo vivo. 

O sultão da cidade onde vivia Hassee’boo estava muito doente. Seus conselheiros decidiram que a única cura para o soberano seria uma sopa feita com o rei das cobras.

O vizir do sultão, por razões que só ele conhecia, colocou soldados a postos em todos os banhos públicos da cidade, com instruções para capturar qualquer um que aparecesse para se banhar e tivesse uma marca na barriga.

Apenas três dias após ter voltado à sua cidade, Hassee’boo, completamente esquecido do aviso de Sultaanee Waa Neeoka, foi ao banho com outras pessoas. Acabou capturado pelos soldados e levado ao palácio, onde o vizir lhe disse:

— Leve-nos à casa do rei das cobras.

— Não sei onde fica. — respondeu Hassee’boo.

— Amarrem-no! — ordenou o vizir.

Hassee’boo foi amarrado e açoitado até suas costas ficarem em carne viva. Incapaz de suportar a dor, finalmente cedeu:

— Já chega! Eu os levarei aonde quiserem.

Então guiou os soldados até a casa do rei das cobras. Sultaanee Waa Neeoka recebeu-o com a frase:

— Não disse que você voltaria para me matar?

— E o que eu poderia fazer? — justificou-se Hassee’boo. — Veja o que fizeram com minhas costas!

— Quem lhe infligiu esse horror? — perguntou o rei.

— O vizir.

— Então não há esperanças para mim. Mas você mesmo deverá me carregar.

Durante o trajeto, o rei disse a Hassee’boo:

— Serei morto e cozido quando chegarmos à sua cidade. O vizir lhe oferecerá a primeira tigela da minha sopa, mas não a beba. Guarde-a em uma garrafa. Você deverá beber a segunda tigela, que o transformará em um grande médico. A terceira tigela será a cura para a doença do sultão. Se o vizir perguntar se você tomou da primeira tigela, confirme. Mostre a ele a garrafa com a sopa e diga: “Esta é da segunda tigela. É para você”. O vizir morrerá ao bebê-la, e assim ambos teremos nossa vingança.

Tudo ocorreu conforme o rei disse. O vizir morreu, o sultão se recuperou e Hassee’boo se tornou um grande médico, muito querido por todos.

(conto por George W. Bateman)

Fonte:
Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 1. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

domingo, 23 de abril de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 23

 

Ilda Maria Costa Brasil (Reencontro)

Ao acordar, olhos e corpos nostálgicos. Juliette pensa em sair, visitar antigos colegas, no entanto, nestes quinze anos que esteve fora, não mantivera contato com nenhum deles.

Se princípios políticos, morais e sociais modificaram-se, com certeza, mudaram-se de bairro ou, até mesmo, de cidade. Ciente de que sua jornada será tal qual “procurar uma agulha num palheiro”, ainda que tanto desanimada e triste, levantou-se e, após fazer um lanche, partiu em busca de seu passado.

A caminhada faz sua saudade aflorar. Por várias vezes, para e olha à sua volta a procura de mundo em que inteligência e razão eram pré-requisitos amizade, esperança e futuro promissor, elementos que, não só embalaram sonhos, mas valorizaram vínculos afetivos.

Ao tocar na primeira campainha, decepção. Há cinco anos, a moradora comprara o imóvel.   

Em seu rosto, a certeza de que encontraria alguém e, que esse ou essa, dar-lhe-ia notícias dos demais.

Em inúmeras portas, bateu. Nada. Via, em épocas passadas, momentos de felicidade e companheirismo; não podia desistir. Isso não seria o  fim de seu  caminho,  mas o início. No grupo, harmonia e respeito.

Distraída, ao descer a rua, tropeçou numa laje e caiu. Fratura exposta. O taxista que a socorreu, levou-a a emergência do São Lucas. Durante o percurso, avisou a mãe do ocorrido e disse que estava indo a um hospital. Mais tarde, ligaria. 

Juliette, inicialmente, foi atendida por um clínico, que a submeteu a vários exames. Após, encaminhou-a a um cirurgião traumato. Qual surpresa! O médico era um dos ex-colegas que procurava.

– Bruno, não vais acreditar, caí enquanto peregrinava atrás de vocês. Que notícias tens da turma?

– A Juliana está na Austrália; a Berenice, na Nova Zelândia; o César, na Irlanda; a Melissa, em Fortaleza; o Felipe, no Rio de Janeiro; a Bruna, em São Paulo; a Gabriela, no Paraná; o Henrique, em Santa Catarina; a Carol, a Helena e eu, em Porto Alegre, não abandonamos a terrinha.

– Conta-me mais. Como vocês mantiveram o contato?

– Isso fica para amanhã. Temos muito trabalho pela frente. 

No dia seguinte, Juliette, ansiosa,  aguardou  a visita do amigo, o Dr. Bruno.  Esse veio acompanhado das meninas que continuavam morando na cidade. Ela se emocionou ao vê-los.

Carol contou-lhe que Bruno sentiu-se abandonado quando ela fora para a França, ele tinha uma quedinha por ela. Por longo tempo, vivenciou a sensação de abandono e perda. A vida, às vezes, parecia-lhe não ter sentido, aprisiona os bons momentos que, provavelmente, traz registrados em suas lembranças.

A turma tudo fez para animá-lo e, aos poucos, sua insegurança afetiva e social foi superada. O importante foi que ele voltou a viver; resgatou a beleza da vida; deixou de ser a imagem de um passado e traçou um caminho responsável e fantástico, um mundo de amor, ética e profissionalismo. Bruno teve duas ou três namoradas, entretanto, os relacionamentos não eram duradouros. 

Juliette, ao receber alta, passou aos amigos o endereço dos pais e pediu-lhes que mantivessem o contato. Nas suas presenças, sentia-se segura e protegida.

Certo dia, ao oferecer um jantar, em agradecimento, pelos cuidados e carinho recebidos, disse-lhes que o trio tinha lhe ensinado a ver a vida com otimismo e esperança. De repente: 

– Gente, um minuto de atenção. Bruno, queres namorar comigo? O amor que trazemos em nossos corações é que faz de nós, pessoas especiais.

Fonte:

Academia de Artes, Ciências e Letras Castro Alves (em versos)


Augusto Barbosa Coura Neto 
(Acadêmico Correspondente)
Florianópolis/SC

LEMBRANÇAS

Quando relembro minha adolescência,
Ao sabor da aventura... da ambição...
Meus olhos marejam com insistência,
Lágrimas tristes da recordação.

Dentre as saudades no meu coração,
Lembro o meu pai com sua benevolência,
E minha mãe, anjo de paciência,
Forjando em nosso lar a gratidão.

Os meus pais... juventude... nunca mais.
Tudo se desfez... até os ideais,
Afastaram-se de mim as emoções.

Hoje só e tristonho não reclamo,
Sou como o arbusto que perdeu seu ramo,
Deixando de florir as ilusões.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

José Moreira da Silva
Porto Alegre/RS

BREVIÁRIO DA FLOR

​Enquanto a bela flor enfeita o campo,
um pirilampo emite luz incerta 
noutras paragens. E nasce o canto 
em metáforas: o poema desperta

a beleza da flor, as penas brancas
do pássaro a voar no imaginário.
No desenho do corpo da potranca
o garanhão legou seu breviário.

E aquele olhar profundo penetrou, 
foi além da vil carne, em busca d’alma, 
onde o marco poético cravou

moirão de cerne da melhor estirpe. 
Palavras de beleza tal são palmas, 
enfeitam tudo o que na mente existe.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

Ilda Maria Costa Brasil
Porto Alegre/RS

DANÇANDO NO CÉU

Alguns vagalumes dançam no céu
cheios de encantos e muita sedução.
As crianças agiram pela emoção;
fascinados, fizeram o escarcéu. 

 Ao longe, vejo um pé da Flor-do-céu,
arbusto usado para ilustração; 
flor, perfeita, própria à ornamentação,
por ser linda como a Rosa-do-céu, 
 
A brisa noturna e o aroma floral 
despertaram-me agradáveis lembranças 
de férias passadas no litoral.

Num dia, fui flagrada por temporal. 
Com amigos, treinei passos de danças 
por ímpar movimento corporal.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

Maria da Glória Jesus de Oliveira
Porto Alegre/RS

ELES
 
Na bela manhã, pássaros, em revoada,
Pousam no chafariz, esvoaçando penas.
Asas, num bater de alegria atordoada,
Dão mostra dum festival de cores em cenas.

Risonhos jovens, que trilhavam seus caminhos,
Estacaram ao ver o fato hilariante
Dos tão animados e festivos bichinhos
O que justificou a tal surpresa do instante

Sob um ipê-rosa o policial observava
O alarido inusitado e as tantas risadas
O que o levou a reciclar seu sofrido dia

Reunindo na mente as histórias que amava
O tropeço com o oficial das armadas
E que, ao ver jovens e aves, o mal desfazia.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

Maria Efigênia Coutinho
(Acadêmica Correspondente)
Balneário Camboriú/SC

SONHOS

Quando tiver um sonho, construa um altar:
um espetacular altar de rua
que lhe couber em sorte no ato de amar
ainda que imperfeito à luz da Lua!

Quando você sonhar, construa um caminho
de saibro ou granito, pouco importa!
onde a Lua possível seja o linho
dum telhado com janelas e uma porta!

Não há sonho que dure eternamente,
perdemos um a um, sem grande esforço,
sorrimos à deriva pela mente
que nos atrai o pólo ou o seu dorso.

Somos fiéis ao amor pra nosso mérito
porque nele encontramos o que é feérico...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

Sonia Eichenberg Campello
Porto Alegre/RS

O SOL E A ROSA 

Era de manhã e uma rosa que se abria 
Ao sol dourado e cálido, entre março e agosto. 
Ambos vencendo a bruma e a madrugada fria. 
A rosa orvalhada mostrava o alvo rosto. 
  
E tão branca era, ó meu Deus, pura como a santa 
a cujos pés, no altar, estava destinada! 
E o sol, admirado, brilhava para ela. 
A rosa se aquecia aos raios, deliciada. 
  
Caminhos paralelos = vidas separadas. 
aqui na terra o sol não pode descer, não! 
Se as nuvens o encobrem o seu calor é nada. 
  
E a flor, do solo, nunca o próprio talo arranca. 
Será, pra sempre, uma rosa em um botão, 
e permanecerá eternamente branca.

Fonte:

Jaqueline Machado (Aruanda entre nós) Maria Molambo


Maria Molambo ou (Mulambo) nasceu em berço de ouro, cercada de luxos. Seus pais não eram reis, mas faziam parte da Corte de um pequeno reinado. Cresceu bela e delicada. Aos quinze anos foi pedida em casamento pelo rei, para casar com seu filho de quarenta anos. Não foi um casamento por amor, e sim de interesses entre as famílias. Os anos passavam e Maria não engravidava, fato que perturbava o príncipe, já que ele estava envelhecendo e precisava de um sucessor para ocupar o trono.  

Ela era chamada de árvore que não dava frutos. E, em sua época, toda mulher que não tinha filhos era tida como amaldiçoada. Além do sofrimento por causa da união sem amor, não conseguia ter filhos. Ela era uma mulher bondosa que buscava ajudar os mais necessitados. Nas suas andanças, conheceu um jovem viúvo, apenas dois anos mais velho do que ela. O rapaz tinha dois filhos, dos quais cuidava com muito apreço. Eles apaixonaram-se à primeira vista. 

– Vosmice é tudo o que sonhei para a minha vida. – disse o viúvo certa vez. 

Mas não tinham coragem de assumir o amor que sentiam um pelo outro. 

O rei morreu, o príncipe foi coroado. Ela virou a rainha daquele país. O povo a adorava, mas alguns morriam de inveja de sua beleza e posição. E a criticaram pelo fato de ser uma mulher estéril. No dia da coroação, os pobres súditos não tinham o que oferecer a sua rainha que era tão bondosa com eles, então fizeram um tapete de flores para ela andar.

- Em coro, o povo bradava: salve a rainha!

 O rei, tomado de ciúmes, se enfureceu: trancou Maria no quarto e a agrediu. 

- Não me agrida, meu senhor! – suplicava ela.

Mas suas súplicas foram em vão. As agressões passaram a ser uma constante na sua vida, então, ela fugiu do castelo. Não era mais rainha, vestia roupas simples, surradas (daí o apelido Molambo). Sentava nas calçadas à beira de lixos com um gato de rua, não se sabe bem em quais circunstâncias, a história tem seus buracos, ela engravidou. A notícia chegou aos ouvidos do rei. 

- Ela tem que morrer! – sussurrou o rei num ranger de dentes. 

Ordenou aos guardas que amarrassem duas pedras nos pés de Maria e que a jogassem na parte mais funda do rio. Sete dias depois do crime, às margens desse rio, local onde foi morta, começaram a nascer flores que ali nunca haviam nascido. Seus súditos só pescavam naquele lugar onde havia fartura de peixes.

Seu amado, inconformado, mergulhou no rio procurando pelo corpo de sua amada, e o encontrou. O corpo da moça estava intacto, e parecia que ia voltar à vida. Velaram-na. E fizeram uma cerimônia digna de uma rainha. Seu corpo foi cremado. O rei enlouqueceu. E seu amado nunca mais se casou, cultuando-a por toda a vida.

Quando morreu e reencontrou Maria, o céu se fez mais azul e teve início a primavera.

No mundo espiritual, dona Maria Molambo tornou-se uma entidade da linha de esquerda muito cultuada nos dias de hoje nas rodas de Candomblé e nas giras de Umbanda.

É conhecida como Bruxa das Almas. E no mundo espiritual, tem sua legião feminina. Alguns nomes da sua legião: Maria Molambo da Estrada, Maria Molambo dos Véus, Maria Molambo das Rosas, Maria Farrapo, Maria Molambo das Almas, Maria Molambo dos Sete Portais e muitas outras.

Seu campo de atuação de cura se encontra nos abismos internos do ser humano, nas sombras onde residem os demônios que induzem às más práticas e os pensamentos negativos. Energias que viram lixos tóxicos nas entranhas do corpo e da alma, que por ela são removidos com sua vassoura mágica.

Cântico à Maria Molambo

Ó Maria Molambo!
Ó poderosa mulher!
Ó linda rainha,
vem me dar o seu axé.
 
Sei que cuidas de mim,
e me livra de falsos amores ,
sua vassoura varre meu caminho
no meu chão faz nascer flores..
 
Em honra a sua história,
lhe ofereço oferendas,
sendo que dentre delas
estão os meus poemas.

Ó querida bruxa,
com meu nome no caldeirão,
mexe a mistura,
limpando meu coração.

Fonte:
Texto enviado pela autora.