segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Contos e Lendas da África (O leopardo de pele lisa)

Local:
Cidade do rei Mborakinda

Personagens:
Rei Mborakinda
Ilâmbe, a princesa
Ra-Marânge, médico
Njĕgâ (leopardo)
Kabala (cavalo mágico)
Ogula-Ya-Mpazya-Vazya, o feiticeiro

Isso aconteceu na cidade onde o rei Mborakinda, adorado por todos, vivia com suas esposas e filhos.

Mborakinda amava muito sua filha Ilâmbe. Tentava agradá-la de todas as maneiras possíveis e a cercava de criados. Quando a princesa ficou adulta, declarou que não queria que ninguém a pedisse em casamento. Ela escolheria seu marido.

— Além do mais, não me casarei com nenhum homem que tenha qualquer mancha na pele, por menor que seja — afirmou Ilâmbe.

Apesar de seu pai não concordar com tal desejo, não a proibiu. Começaram a surgir pretendentes que se apresentavam ao rei dizendo:

— Desejo me casar com sua filha Ilâmbe.

Mborakinda sempre respondia:

— Você deve falar com ela diretamente.

Então o rapaz ia comunicar suas intenções à princesa:

— Vim pedi-la em casamento.

A resposta de Ilâmbe era sempre a mesma:

— Você tem uma pele lisa, sem nenhuma mancha sequer?

Se a resposta fosse afirmativa, a princesa acrescentava:

— Preciso ver por mim mesma. Venha ao meu quarto.

E lá o homem se despia completamente. Se durante esse exame Ilâmbe encontrasse uma pinta ou cicatriz, por menor que fosse, apontava para a marca e dizia:

— Você tem uma mancha aqui! Não me casarei com você!

Quando o pretendente tentava argumentar, explicando que sua pele era completamente lisa, exceto por aquela marca, a princesa o interrompia:

— Não! Mesmo que seja uma mancha minúscula, não me casarei com você!

E assim todos eram rejeitados, pois ela sempre encontrava alguma cicatriz ou qualquer erupção na pele. Após tantas recusas, a fama da linda filha do rei Mborakinda, que não aceitava nenhum pretendente por conta de manchas na pele, chegou a outros países.

Mesmo assim, muitos queriam desposá-la. Alguns animais chegavam a se transformar e assumir uma forma humana, mas também eram rejeitados. 

O Leopardo ficou sabendo da reputação da princesa e disse:

— Ah, essa linda mulher! Ouvi dizer que é linda e que ninguém consegue conquistá-la. Também farei minha tentativa, mas antes vou consultar RaMarânge.

Foi visitar o médico feiticeiro e lhe contou tudo sobre a linda filha do rei Mborakinda que não aceitava ninguém por ser tão criteriosa com seus pretendentes.

— Eu já estou muito velho e não faço mais feitiços — disse Ra-Marânge. — Vá falar com Ogula-ya-mpazya-vazya.

E assim o Leopardo fez. O feiticeiro Ogula fez seu ritual de sempre: pulou em uma fogueira e saiu de lá em transe. Então perguntou ao Leopardo qual era seu desejo. Njĕgâ contou toda a história novamente e pediu para ter um corpo humano sem nenhuma mancha. Ogula preparou uma poção poderosa, que o transformaria em um homem alto, elegante, forte e perfeito. O Leopardo voltou à sua aldeia e contou seus planos a seu povo. Também preparou o corpo de seus familiares para transformações, caso necessário. Após adotar um nome humano — Ogula — o Leopardo foi falar com o rei:

— Desejo me casar com sua filha Ilâmbe.

A chegada de Ogula na corte de Mborakinda impressionou a todos que, admirados com sua beleza, exclamaram:

— Vejam que homem lindo! Que belo rosto e que porte!

Após fazer o pedido ao rei, Ogula recebeu a resposta padrão: que fosse conversar diretamente com a princesa para saber se ela gostaria. Quando chegou à casa de Ilâmbe, ela ficou imediatamente encantada com sua beleza.

— Eu te amo. Estou aqui para me casar com você — disse Ogula. — Você já rejeitou muitos, e sei o motivo, mas acredito que ficará satisfeita comigo.

— Imagino que já tenham contado a razão de minhas recusas — respondeu a princesa. — Verei se você tem o que eu quero. Entraremos no quarto e você me mostrará sua pele.

Dentro do quarto, Ogula-Njĕgâ retirou suas roupas refinadas e Ilâmbe o examinou meticulosamente dos pés à cabeça. Não encontrou um único arranhão. A pele de Ogula parecia a de um bebê.

— Sim! Encontrei meu homem! — exclamou Ilâmbe. — Eu te amo e me casarei com você.

Estava tão animada que continuou examinando a bela pele de seu noivo por mais alguns minutos. Então saiu e pediu a seus criados que trouxessem comida e água para ele. Ogula continuou na casa por alguns dias, sem vontade de voltar à sua cidade natal, pois se sentia amado por Ilâmbe. 

No terceiro dia, Ogula foi dizer ao rei Mborakinda que queria levar Ilâmbe para morar com ele. O rei consentiu.

Enquanto o leopardo transformado em homem estava no palácio, o feiticeiro do rei previu que algo de ruim adviria desse casamento. No entanto, como a princesa fazia questão de escolher seu marido, o rei não interveio. 

Após o fim da cerimônia e do banquete, o rei Mborakinda chamou sua filha para conversar:

— Ilâmbe, minha filha, você agora começa sua jornada.

— Sim, pois amo meu marido.

— Ama mesmo? — perguntou seu pai.

— Sim.

— Então lhe darei seu ozendo (presente de casamento). 

O rei deu a ela alguns presentes e disse:

— Vá até aquela casa — e apontou um local na cidade, entregando-lhe uma chave — e, ao chegar lá, abra a porta.

Era o lugar onde o rei guardava seus encantamentos de guerra e outras poções.

— Ao entrar, verá dois kabala (cavalos) lado a lado — continuou o rei. — Pegue o que estiver olhando para o chão com um olhar perdido e deixe lá o que tem um aspecto mais vivaz. Você notará que o que você deve pegar manca um pouco. Mesmo assim, ele é o correto.

— Mas pai, por que não posso pegar o cavalo mais saudável e deixar o fraco? — argumentou Ilâmbe.

— Não! Pegue o que estou mandando — respondeu o rei, com um sorriso enigmático.

A recomendação do rei Mborakinda não era sem motivo. O cavalo com melhor aspecto era apenas bonito. O outro poderia salvá-la com sua inteligência, caso necessário.

Ilâmbe apanhou o cavalo indicado por seu pai e voltou para o palácio. Estava tudo preparado para sua viagem. O rei ordenou que alguns criados a acompanhassem, para carregar a bagagem e ajudá-la a se adaptar à nova cidade. Os recém-casados se despediram e partiram, ambos montados no Kabala.

A viagem durou muitos dias. Ogula-Njĕgâ, mesmo sob a forma humana, ainda possuía os mesmos instintos e gostos — estava há muitos dias sem comer carne crua. Ao passarem pela floresta onde havia animais selvagens, sua sede de sangue se intensificou. Chegaram a uma grande planície que terminava em outra floresta. Antes de atravessarem o campo aberto, seu desejo por caça ficou incontrolável e disse a Ilâmbe:

— Minha esposa, espere aqui com o Kabala e seus criados enquanto vou na frente. Volto logo.

Entrou na floresta e voltou a assumir a forma de leopardo. Capturou um pequeno animal e o devorou, depois mais outro. Satisfeito, lavou suas patas e boca em um riacho, voltou à forma humana e retornou para onde estava sua esposa.

Ilâmbe olhou-o atentamente e notou nele uma expressão dura e estranha.

— Onde você esteve? O que fez? — perguntou ela.

Ele deu uma desculpa qualquer e continuaram. 

No dia seguinte, fez a mesma coisa. Pediu para que esperasse em determinado lugar enquanto adentrava a floresta. Voltou a ser leopardo e caçou novamente. Ilâmbe não fazia ideia do que estava acontecendo. O Cavalo sabia e revelaria mais tarde que era capaz de falar, mas ainda não era o momento oportuno.

A viagem continuou dessa forma até chegarem à cidade do Leopardo.

Como já previamente preparado, sua mãe e outros moradores também haviam assumido uma forma humana para receber Ilâmbe. No entanto, o casal não ficou muito tempo em companhia deles, pois ficaram cada um em sua casa. 

Nos primeiros dias, Ogula tentou ser o mais amável possível com Ilâmbe, para que ela não suspeitasse de nada, mas sua sede de sangue não o abandonava. Passou a inventar desculpas para se ausentar:

— Tenho negócios a resolver em outra cidade.

E saía para caçar como leopardo, voltando tarde da noite. Isso se repetia frequentemente. Depois de algum tempo, Ilâmbe decidiu iniciar uma plantação e ordenou que seus criados homens limpassem o terreno escolhido. Ogula-Njĕgâ se escondia na floresta ao redor da lavoura para capturar e comer algum dos trabalhadores. O grupo sempre voltava com um criado a menos. Um a um, todos os servos foram desaparecendo. Ninguém além do Leopardo e seus familiares sabia o que se passava. Certa noite, em suas andanças de caça, Ogula-Njĕgâ encontrou uma dama de companhia de sua esposa e a devorou. Foi a primeira serviçal mulher a desaparecer. 

Algumas das vezes em que o Leopardo se ausentava, Ilâme sentia-se solitária e ia olhar Kabala. Com o desaparecimento da criada, o cavalo achou que era hora de se pronunciar sobre o que acontecia. A princesa acariciava sua crina quando ele disse:

— Ah, Ilâmbe, você não percebe o perigo vindo em sua direção.

— Que perigo? — perguntou a princesa.

— Que perigo? Se seu pai não tivesse me enviado junto com você, o que aconteceria? — perguntou o Cavalo. — O que acha que aconteceu com seus criados? Você não sabe, mas eu sei. Pensa que simplesmente desapareceram? Pois então saiba o que aconteceu: seu marido os devorou! Por isso sumiram.

A princesa não acreditou em suas palavras e contestou:

— Por que ele faria isso?

— Se você duvida, espere até todos os criados desaparecerem.

Duas noites mais tarde, mais uma dama de companhia sumiu. Algum tempo depois, Ogula-Njĕgâ saiu para caçar, com a intenção de, caso não apanhasse nenhum animal, devorar sua esposa.

Ilâmbe se sentiu solitária e foi até o estábulo ver seu cavalo.

— Eu não avisei? A última criada sumiu. Você será a próxima — advertiu ele. — Darei um conselho. Fique pronta para fugir esta noite, assim que a oportunidade surgir. Encha uma cabaça com amendoins, outra com sementes de cabaceira e uma terceira com água. Traga-as para mim, eu as usarei na hora certa.

A mãe do Leopardo passava pela rua e ouviu a conversa. “Por que Ilâmbe conversa com o Cavalo como se ele fosse gente?”, pensou ela, mas não comentou nada com sua nora.

Ogula-Njĕgâ voltou ao cair da noite. Não disse nada, mas estava com uma expressão séria. Ilâmbe estava inquieta e o olhar de seu marido a amedrontava.

Mais tarde, quando estavam prestes a ir dormir, ela perguntou:

— Por que você está com essa cara? Está bravo com alguma coisa?

— Não, não estou. Por que pergunta?

— Porque você parece estar incomodado com algo.

— Não, está tudo bem — respondeu ele. — Preocupações comuns. Amanhã tenho de acordar cedo.

Ogula-Njĕgâ, incomodado com as suspeitas de sua esposa, decidiu não matá-la naquela noite e esperar até o dia seguinte.

Ilâmbe não conseguiu dormir. O Leopardo saiu logo cedo, dizendo que tinha coisas a resolver, mas que voltaria logo. Enquanto seu marido estava fora, a princesa sentiu-se solitária e foi conversar com o cavalo, que considerou aquele o momento ideal para fugirem. Partiram imediatamente, sem avisar ninguém da aldeia e levaram consigo as três cabaças. Não podiam perder tempo, disse o Cavalo, pois quando o Leopardo descobrisse, iria atrás deles a toda velocidade. Kabala corria o mais rápido que podia, olhando para trás de vez em quando para averiguar se não estavam sendo seguidos.

Depois de algum tempo, Ogula-Njĕgâ voltou da aldeia e, ao chegar em casa, não encontrou Ilâmbe. Chamou sua mãe e perguntou sobre sua esposa. 

— Eu vi Ilâmbe conversando com o Kabala dela — respondeu a mãe. — Já faz dois dias que estão falando um com o outro.

O Leopardo saiu à procura deles e encontrou suas pegadas.

— Que vergonha! — gritou. — Minha esposa fugiu! Mas eu a encontrarei ainda hoje.

No mesmo instante transformou-se novamente em leopardo e saiu em disparada. Demorou algum tempo até que os fugitivos notassem seu perseguidor. Kabala, ao virar a cabeça, viu o Leopardo se aproximando em saltos rápidos que faziam seu corpo se esticar rente ao chão.

— Eu não avisei? Ele está atrás de nós! — o Cavalo gritou ofegante, com espuma pingando de sua boca.

Quando o Leopardo chegou mais perto, Kabala pediu para Ilâmbe pegar a cabaça com amendoins e espalhá-los pelo chão. Ogula-Njĕgâ, ao ver os amendoins, parou para comê-los. Com isso, o Cavalo conseguiu ganhar distância sobre seu perseguidor. Logo o felino já havia retomado a corrida e se aproximava dos dois. O Cavalo então pediu para Ilâmbe jogar as sementes de cabaceira. Mais uma vez, o Leopardo parou para comê-las e os fugitivos abriram vantagem novamente.

Após terminar de comer, o Leopardo voltou a persegui-los aos saltos e se aproximou novamente. Kabala mandou que Ilâmbe atirasse a terceira cabaça no chão com força, para que ela se quebrasse com o impacto. Assim o fez. A água que estava dentro da cabaça se transformou em um grande e largo rio, criando uma barreira entre eles e o Leopardo. Sem saber o que fazer, Njĕgâ gritou:

— Ilâmbe! Que vergonha! Ah, se eu conseguisse te pegar! — e foi embora.

— Não sabemos o que ele vai fazer agora — disse o Cavalo. — Talvez ele dê a volta para nos surpreender. Há uma cidade aqui perto, o melhor a fazer é ficarmos lá um ou dois dias para tentar despistá-lo. 

E acrescentou:

— Mulheres não são permitidas nessa cidade. Por isso, eu transformarei seu rosto e você se vestirá como um homem. Tenha muito cuidado durante os banhos. Se descobrirem seu disfarce, lhe matarão.

Ilâmbe concordou e Kabala mudou sua aparência. Os moradores se impressionaram ao ver aquele belo homem entrando na aldeia.

— Vejam, um forasteiro! Olá, estranho! Como encontrou o caminho até aqui?

— Por acaso — respondeu a jovem. — Estava cavalgando e encontrei uma trilha que me trouxe até aqui.

Foi convidada a uma das casas, onde foi acolhida e informada sobre os horários das refeições e outras atividades. No segundo dia, ao andar pela cidade, os homens comentaram:

— Ele se porta como uma mulher!

— Sério? Você acha mesmo?

— Sim! Eu vi claramente — tornou o primeiro.

Os problemas de Ilâmbe não terminariam aí. Os homens queriam confirmar suas suspeitas e disseram a ela:

— Amanhã vamos todos ao rio tomar banho e você virá conosco.

A princesa foi perguntar a Kabala o que fazer.

— Avisei para que tomasse cuidado! — repreendeu ele. — Mas não se preocupe, transformarei todo seu corpo no de um homem.

Durante a noite, Kabala a transformou e a advertiu novamente:

— Vou avisar mais uma vez. Amanhã, durante o banho com os outros, você pode se despir, pois está com o corpo de um homem. Mas é apenas temporário. Ficaremos aqui apenas mais um dia e uma noite, depois partiremos.

Na manhã seguinte, após todos cumprirem suas atividades, foram tomar banho. Ao chegarem ao rio, os aldeões estavam ansiosos para comprovar se o forasteiro era na verdade uma mulher, mas, ao admirarem seu belo corpo, perceberam seu engano. Ao saírem da água, um deles disse ao acusador de Ilâmbe:

— Como pôde dizer que era uma mulher? Veja que homem forte ele é!

Ilâmbe, transformada em homem, irritou-se ao ouvir aquilo e gritou:

— Você pensou que eu fosse uma mulher? — disse ela ao perseguir e estapear seu difamador.

Todos voltaram à cidade.

Naquela noite, o Cavalo falou para Ilâmbe:

— Eis o que você deve fazer amanhã: logo cedo, pegue seu revólver e me mate. Ao ouvir o disparo, os homens virão acusá-la de ter me matado sem razão. Não responda e não diga nada a eles. Corte-me em pedaços e os atire no fogo. Depois, bem cedo na manhã seguinte, antes de todos acordarem, recolha as cinzas cuidadosamente e espalhe-as na entrada da aldeia. Você verá o que vai acontecer.

A jovem fez conforme ordenado. Após espalhar as cinzas, ela imediatamente se viu novamente como mulher e montada em seu cavalo. Partiram no mesmo instante.

Naquele dia, à tarde, chegaram à cidade do rei Mborakinda. Uma vez lá, contaram (ou melhor, o Cavalo contou) tudo o que havia acontecido. Ilâmbe se sentia envergonhada por todos os apuros que sua exigência por um marido de pele lisa havia lhe causado.

— Ilâmbe, minha filha, veja os problemas que você causou a si mesma — disse o rei. — Para você, uma mulher, fazer tal exigência foi um exagero. Se eu não tivesse enviado Kabala com você, o que teria acontecido?

Todo o povo deu as boas-vindas a Ilâmbe, que voltou para sua casa e nunca mais falou nada sobre peles lisas.

Fonte: texto por Robert Hamill Nassau, in Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 1. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

Aparecido Raimundo de Souza (Era pra ser outra coisa)

O CHICO MARRETA conversa animadamente com seu pai. Seu velho gosta muito de ler. Quando está em casa, devora os livros de romance como um faminto diante de um prato de comida. Todavia, em matéria de gramática para ser usada numa simples carta, não sabe diferenciar um “O” de qualquer outro objeto redondo.

Chico Marreta: — Pai, você sabe qual a diferença da palavra “porquê” junto para “por que” separado?

Pai: — Essa até a cadelinha aqui de casa, a Jujú, sabe responder.

Chico Marreta: — Então manda vê.

Pai: — “Porquê” junto tem chapeuzinho e “por que” separado não tem.

Chico Marreta: — Pelo amor de Deus, pai. Nada a ver.

Pai: — E qual a diferença?

Chico Marreta: — “Porquê” junto, com chapeuzinho, como o senhor mencionou é usado para apresentar um motivo e “por que” separado, é quando se vai responder a uma pergunta formulada.

Pai: — Manda outra.

Chico Marreta: — “Haver” junto de “A ver” separado?

Pai: — “Haver” junto é quando duas pessoas estão olhando para a mesma coisa. E “A ver” separado, é quando só uma pessoa está a espiar para algo que ainda não distinguiu a silhueta.

Chico Marreta: — Errou feio, pai. “Haver” junto, é usado no sentido de existir e “A ver” separado é uma comparação. Vou mandar uma bem “facinha.” “Conserto” com “S” e “Concerto” com “C”?

Pai: — “Conserto” com “S” é um Conserto de um sapato furado, de uma camisa sem botão. Já “Concerto” com “C” é o sapato consertado e a camisa sem botão dispensada de qualquer tipo de serviço futuro a ser feito.

Chico Marreta: — Pai, “Conserto com “S” se faz quando o senhor repara ou acerta alguma coisa que estava danificada e “Concerto” com “C” é quando o senhor vai ao teatro assistir a uma apresentação musical.

O pai se retorce na cadeira de balanço, se serve de um pedaço de pão com queijo trazido pela empregada e encara o filho:

— Agora é minha vez, seu espertinho. Me explica “Coser” com “S” e “Cozer” com “Z?”

Chico Marreta: — Pai, essa é mel na chupeta. Com “S” dá a ideia de costurar. Com “Z” se usa quando se coloca alguma coisa numa panela para cozinhar. Quando a mãe cose as suas camisas rasgadas, ela cose com “S”. Quando faz as nossas refeições, ela coze com “Z”.

Pai: — Estava careca de saber. Só queria ter certeza se você é um garoto estudioso. Agora outra: A diferença de “Apreçar” com Cê-cedilha de “Apressar” com dois esses?

Chico Marreta: — Eu nem preciso pensar, pai. Respondo na lata. “Apreçar” com “cê-cedilha” é quando o senhor, em seu trabalho lá no mercado, remarca os preços das mercadorias nas gôndolas com aquela maquininha chata. “Apressar” com dois esses é quando o senhor dorme demais, perde a hora de ir para bater o cartão e sai acelerado feito um maluco.

Pai: — Ok, sabichão. “Deferir” com “E” para “Diferir” com “I.?”

Chico Marreta: —  O senhor defere com “E” ou concede um pedido meu, por exemplo, quando peço para sair com meus coleguinhas para ir jogar bola no campo perto do antigo aeroporto E Diferir com “I,” quando o senhor não diferencia a mamãe da dona Cristina, aquela moça que tem idade pra ser a sua filha, com quem o senhor está enroscando.

O pai, olha em direção da cozinha: — Fala baixo seu idiota. Pare de gritar. Quer que a sua mãe escute e me arranque os olhos?

Chico Marreta: — Desculpa, pai. A mãe não está. Foi ao mercado com a nossa empregada. Mas tome cuidado. Se ela descobre... o senhor dará com os burros n’água.

Pai (aos sussurros): — Vamos mudar o rumo da conversa. Manda outra. Esquece o papo que estamos levando. Belinha pode chegar sem que notemos...

Chico Marreta: — “Inflação” com “L” de “infração” com “R”.

Pai: — Essa eu mato o pau e mostro a cobra...

Chico Marreta: — Como é que é, pai?

Pai: — Errei na colocação da frase. Eu mato a cobra e mostro o pau... a ordem dos tratores não altera o viaduto...

Chico Marreta (as gargalhadas): — Cuidado para o senhor não se descuidar com a mamãe na hora de transar com ela. Ao invés de falar o nome da sua esposa, se esquecer e cair na esparrela ferindo uma das sagradas leis do matrimônio...

Furioso e descontrolado, o pai pula da cadeira de balanço, derruba o pão com queijo no tapete e parte com tudo para cima do filho e o agarra inopinadamente pela gola da camisa: — Como é que é fedelho? Repita!

Chico Marreta: — Nada, pai. Só disse para o senhor tomar cuidado com a desvalorização do dinheiro e não cair sem paraquedas e ainda por cima pisoteando uma lei.

O pai espuma de raiva e sem soltar o guri, vocifera: — Não entendi, seu monte de verme. Desembuche. Que lei?

Chico Marreta:  — “Infração” com “R” é passar a mamãe para trás, violando o seu casamento de quinze anos. Se essa droga cair nos ouvidos dela, certamente o senhor a deixará pê da vida e fará (se Deus me livre uma fofoqueira aqui da rua “bater pra ela”) se for descoberto por conta das suas saidinhas com a dona Cristina...

O pai, completamente transtornado, parte de novo para cima do filho, e, desta feita, com mais fúria, lhe descarrega uma chuvarada de tapas no meio das ventas: — Desgraçado, filho do capeta. Vou te comer vivo. Não fale nunca mais nessa dona Cristina aqui dentro de casa. Está proibido, ouviu? 

Culmina tirando a cinta da calça aplicando umas boas lambadas nos costados do pobre garoto.

Pai: — Maldito. Fique esperto. Não me tire do sério...

Chico Marreta não se dá por vencido: Aos prantos, se contorcendo de dor, em face dos açoites, segue na provocação ao pai. Berra.

— Experto com “X” ou com “S?!”

O sujeito cai novamente, desta vez distribuindo tapas e bofetões no escutador de novelas do pobre e indefeso filho.

Fonte: enviado por Aparecido Raimundo de Souza, de Lisboa, Portugal.     

domingo, 31 de dezembro de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 34

 

Mensagem na Garrafa – 68 –

Paulo Coelho
Rio de Janeiro/RJ (1947)

SOLIDÃO

Sem a solidão, o Amor não permanecerá muito tempo ao seu lado.

Porque também o Amor precisa de repouso, de modo que possa viajar pelos céus e manifestar-se de outras formas.

Sem a solidão, nenhuma planta ou animal sobrevive, nenhuma terra é produtiva por muito tempo, nenhuma criança pode aprender sobre a vida, nenhum artista consegue criar, nenhum trabalho pode crescer e se transformar.

A solidão não é a ausência do Amor, mas o seu complemento.

A solidão não é a ausência de companhia, mas o momento em que nossa alma tem a liberdade de conversar conosco e nos ajudar a decidir sobre nossas vidas.

Portanto, abençoados sejam aqueles que não temem a solidão. Que não se assustam com a própria companhia, que não ficam desesperados em busca de algo com que se ocupar, se divertir, para julgar.

Porque quem nunca está só já não conhece mais a si mesmo.

E quem não conhece a si mesmo passa a temer o vazio.

Mas o vazio não existe. Um mundo gigantesco se esconde em nossa alma, esperando para ser descoberto. Está ali, com sua força intacta, mas é tão novo e tão poderoso que temos medo de
aceitar sua existência.

Porque o fato de descobrir quem somos nos obrigará a aceitar que podemos ir muito além do que estamos acostumados. E isso nos assusta. Melhor não arriscar tanto, já que podemos sempre dizer: “Não fiz o que precisava porque não me deixaram.”

É mais confortável. É mais seguro. E, ao mesmo tempo, é renunciar à própria vida.

Ai daqueles que preferem passar a vida dizendo “Eu não tive oportunidade”!

Porque a cada dia afundarão ainda mais no poço dos próprios limites, e chegará o momento em que não terão mais forças para escapar dele e encontrar de novo a luz que brilha pela abertura acima de suas cabeças.

E abençoados os que dizem: “Eu não tenho coragem.”

Porque esses entendem que a culpa não é dos outros. E cedo ou tarde encontrarão a fé necessária para enfrentar a solidão e seus mistérios.

E para aqueles que não se deixam assustar pela solidão que revela os mistérios, tudo terá um sabor diferente.

Na solidão, ele descobrirá o amor que poderia chegar despercebido. Na solidão, ele entenderá e
respeitará o amor que partiu.

Na solidão, ele saberá decidir se vale a pena pedir para que retorne, ou se deve permitir que ambos sigam um novo caminho.

Na solidão, ele aprenderá que dizer “não” nem sempre é falta de generosidade, e que dizer “sim” nem sempre é uma virtude.

E aqueles que estão sós neste momento, jamais se deixem assustar pelas palavras do demônio, que diz: “Você está perdendo tempo.”

Ou pelas palavras, ainda mais poderosas, do chefe dos demônios: “Você não importa para ninguém.”

A Energia Divina nos escuta quando falamos com os outros, mas também nos escuta quando estamos quietos, em silêncio, aceitando a solidão como uma bênção.

E nesse momento, a Sua luz ilumina tudo o que está ao nosso redor e nos faz ver quanto somos necessários, quanto a nossa presença na Terra faz uma imensa diferença para o Seu trabalho.

E quando conseguimos essa harmonia, recebemos mais do que pedimos.

E para aqueles que se sentem oprimidos pela solidão, é preciso lembrar: nos momentos mais importantes da vida sempre estaremos sozinhos.

Como a criança ao sair do ventre da mulher: não importa quantas pessoas estejam à sua volta, cabe a ela a decisão final de viver.

Como o artista diante de sua obra: para que seu trabalho seja realmente bom, ele precisa estar quieto e escutar apenas a língua dos anjos.

Como nos encontraremos um dia diante da morte, a Indesejada das Gentes: estaremos sozinhos no mais importante e temido momento de nossa existência.

Assim como o Amor é a condição divina, a solidão é a condição humana. E ambos convivem sem conflitos para aqueles que entendem o milagre da vida.

(do livro de Paulo Coelho. Manuscrito encontrado em Accra)

Silmar Bohrer (Croniquinha) 101

Fala-se, louva-se, encanta-se com os anoiteceres, aqueles mágicos pores do sol.  

Ótimo!  E os amanheceres? 

Meia dúzia de raios do sol e a pequena menina deixa seu ninho.  Ela mesmo, a condoreira corruíra dá os primeiros trinados como que abrindo as portas com os sons do novo dia.

Logo surge uma verdadeira orquestra nas árvores, nos telhados, nas campinas, nas matas.  

E que sons!  

Canarinhos, bem-te-vis,  tico-ticos, os sabiás, as curucacas, as saracuras à beira d'água.  

O amanhecer é pura magia.
Festival da natureza.
Ela é soberana.

Fonte> Texto enviado pelo autor 

Hinos de Cidades Brasileiras (Santos/SP)


por Ernesto Zwarg e Antonio Bruno Zwarg

Santos poema, jardins pela praia
Cidade e porto de mar 
Tens a magia de barcos estranhos 
Na barra esperando adentrar 
Morros, varandas alegres 
Suspensas no arvoredo 
Santos das ruas antigas 
À beira do cais 
Que escondem segredos

Tuas paineiras floridas 
Salgueiros que choram 
Nos velhos canais 
Santos, cuidado menina 
As tuas belezas 
Não percas jamais

Os flamboiants florescentes 
Palmeiras imperiais 
Ilha Urubuqueçaba 
O verde reduto 
Nas ondas do mar

Oh! Santos 
És linda demais !

Carolina Ramos (E os meus cavalos?) parte 5, final

Segue-se, contudo, uma derradeira aventura, improvisada, que ainda envolve um cavalo,  muito embora esse cavalo trotasse em minha vida, anonimamente e por apenas algumas horas.

Para conta-la, no entanto, o salto terá que ser bastante grande. E se digo salto é por que, de repente, lá pelos meus setenta e poucos anos de idade, a vida deu-me de surpresa um derradeiro passeio a cavalo.

Foi em São Bento do Sapucaí, cidade ao pé da serra de Campos do Jordão, que a inusitada aventura aconteceu. 

Há dias, lá estávamos hospedados, meu marido, eu e a neta Mariana, que teria no máximo uns cinco ou seis anos de idade.

Às tantas, Mariana demostrou que gostaria de passear a cavalo. Algumas gotinhas do sangue da avó, estimuladas pelo contato mais íntimo com a natureza, devem ter-lhe borbulhado nas veias.

O avô Cláudio pôs-se ao largo, logo descartando a ideia. Pegando o pião na unha, aceitei a proposta com entusiasmo, esquecida até mesmo das naturais restrições impostas pela idade.

Neta e avó logo cedo, deliciavam-se a passear, sem pressa pela estrada pouco movimentada, ladeada por altas árvores que, vez ou outra, cediam espaço generoso para que a paisagem se impusesse, tépida e dourada de sol.

Em conversa animada, seguiam ambas a passo lento, em suas montarias, quando, de repente, sucedeu exatamente aquilo que em linguagem popular pode ser chamado de "repeteco" daquilo que acontecera lá em Campos do Jordão, na Lagoinha - já relatado com minúcias.

Desta vez, um gato, amoitado à beira do caminho, saltou atravessando subitamente a estrada, com risco de ser atropelado pelas patas do cavalo por mim montado que, por sua vez, "passarinhou" violentamente, erguendo-se nas patas traseiras em toda sua altura!

Para mim, motivo de júbilo! Um mata saudades delicioso que me permitiu constatar, feliz, que meus tradicionais dotes de boa amazona, embora adormecidos, ainda estavam perfeitamente em dia... E isto na casa dos setenta! - Exultei, como se de repente tivesse retornado à primavera daqueles deliciosos quinze anos... tão longínquos!

Entretanto, ao tentar casar minha emoção com a da netinha, percebi decepcionada, que, Mariana, olhos muito assustados, ameaçava chorar, implorando, urgentemente, para que a ajudasse a descer do seu cavalo.

Tentei acalmá-la.

- O que é isso, querida?! A vovó está acostumada com cavalos desde pequenininha! O meu assustou-se... mas eu não estou assustada, não! Até que gostei do que aconteceu! Desde menina, quando um cavalo se erguia nas patas, pondo-se em pé, é que eu mais gostava! E olhe... Nunca um deles me derrubou! Nunca, mesmo, querida!

- Mas eu quero descer! - choramingava Mariana inconformada, sem dar ouvidos ao discurso.

E então, desisti de acalmá-la... Fiz o que a neta pedia, uma vez que o seu derradeiro argumento me convenceu plenamente.

De olhos marejados, Mariana, enfática, fez-me uma só pergunta... E, o tom angustiado dessa pergunta atou-me de pés e mãos;

- Mas, vó... e se o MEU cavalo resolver fazer a mesma coisa que o SEU cavalo fez?!...

Acudiu-me a imagem daquele rapaz de nariz empinado estatelado no chão, embora, graças a Deus, ileso. E foi o suficiente! - Sem mais argumentos, curvei-me ao veemente pedido da neta.

Foi também naquele exato momento, que minha inesperada e derradeira aventura hípica encerrou-se em definitivo. Convenhamos, até que já era hora!

Neta e avó voltaram para casa a pé... a puxar pelas rédeas dois pangarés dóceis, sem dúvida felizes por não terem alguém a lhes pesar no lombo.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Daniel Maurício (Olhares) 2


Alma Borboleta
Nos teus olhos embaçados
Uma gota de lua
Insiste em te manter acordada
Mesmo já tão cansada
Das dores da madrugada
Agarra-se a um ponto de luz.
Ardem as veias intoxicadas...
Mas a alma borboleta
Sempre criança espoleta
Não deixa de visitar o jardim.
Beija uma flor
Colhe palavras
Como se fossem ramalhetes
Pra colorir seus versos e bilhetes
Espalhando tanto amor.
Na carona do vento plana suave
Tão leve como uma nave
Economiza energia
Pois sabe que vem outro dia
E por entre nuvens tem que atravessar.
Voa borboleta destemida
Pois meu olhar
É unguento pra tuas feridas
Uma flor desenho pra te alegrar.
Uma lágrima solitária
= = = = = = = = = 

APEDREJAMENTO

As pedras
criam asas,
nas mãos
da intolerância.
= = = = = = = = = 

A tarde
vai fechando
os olhos.
Os pardais
nos beirais
chilreiam.
Minha mãe
chuleia
uma meia.
Meus olhos
fixos
nos quadros,
no relógio
que eternamente
marca seis horas.
= = = = = = = = = 

A vida passa
menos pro velhinho
da praça
que parece ter encruado
com o tempo.
= = = = = = = = = 

Cabelo de sol
levanta as estrelas
dissipando a noite,
aquece a minha alma
calejada de solidão.
Cabelo de sol
acalma meu peito aflito
que revive o pulsar da paixão.
Cabelo de sol
queimas minha pele
num beijo desprotegido
que deseja muito mais
que um amor de verão.
= = = = = = = = = 

Com o tempo,
alguns lugares
algumas pessoas
algumas casas
ainda me olham
saudosos.
Mas a minha
Jaguariaíva
continua
ardendo
no meu peito.
= = = = = = = = = 

DESPEDIDA

Um olhar perdido
no infinito,
Casas e árvores
correm.
Meus olhos
presos no
espelho
do automóvel
e eu imóvel, 
vejo uma mão
que acena.
Minha mãe.
Meu Deus!
Eu penso.
Adeus?
Me pergunto.
O vento bate
em meu rosto,
estou indo
embora.
= = = = = = = = = 

ECLIPSE

A tímida lua
Vestiu-se
De vermelho
Sob os olhares
Curiosos
Nuamente linda
Toma banho
De sol.
= = = = = = = = = 

FOLHAS SECAS

As folhas secas
são almas
de borboletas
aprendendo
a voar.
= = = = = = = = = 

 Na memória dos tempos
Arde a fogueira improvisada
Onde causos e risadas
Se misturavam às refeições.
O cheiro gostoso de café no ar
Acorda o acampamento
Que sem nenhum lamento
Se levanta pra tocar o gado com amor.
Mas no caminho mais uma carcaça
Faz da onça o alvo da caça
Que aos poucos por aqui, quase acabou.
Mas ao se pronunciar "Jaguariaíva"
Ruge o espírito da onça altiva
Margeando o "rio da onça ruim".
= = = = = = = = = 

O ESPELHO

O espelho que há
em tuas palavras
não me deixa
mentir.
= = = = = = = = = 

o presente
voa apressado
para o futuro,
transformando- se
em passado.
Passarinho
colorido
torna-se
encantado.
= = = = = = = = = 
Daniel Maurício. Olhares. Curitiba/PR: Ed. do Autor, 2021.
Enviado pelo poeta.

Geraldo Pereira (Preciosos Alfarrábios)

Este lixo que sai assim, de meu gabinete de trabalho, em casa, na preparação para a mudança, de um velho sobrado para um apartamento novo e bem cuidado, guarda muito das minhas saudades, nostálgicas lembranças de meus ganhos e de minhas perdas! Livros que se desatualizaram na corrida do desenvolvimento da ciência e da técnica, sublinhados ainda, grifados, na importância e na valia das citações e que me serviram de roteiros definitivos, na condução profissional e no magistério. Mas, sobretudo, os meus papéis, que não cabem mais no espaço da acomodação moderna, manifestações de meu espírito, paridas nas horas de meus enlevos e de minhas dores. Aqui e ali expressões dos ardores d'alma, recordações da infância, vivida e revivida, então, da adolescência inquieta e da juventude, do mesmo jeito, irrequieta. Recordações, até, dos amores e dos desamores, de encontros e de desencontros!

Retratos, também, fotografias que o tempo marcou, descolorindo personagens e camuflando paisagens, fisionomias mudadas, agora, recantos transmudados, igualmente, crianças que cresceram e adultos que envelheceram, gente, enfim, sofrendo a metamorfose do tudo. Velhos que se foram, tangidos da vida! Cartões de todo tipo, os de Natal e os de cumprimentos, de aniversários passados e de idades vencidas ou aqueles dos sentimentos e do pesar. 

Convites, os de formatura, a do colégio e a da faculdade ou aqueles do matrimônio, que me trouxe da família a graça! E os afetos das filhas, em letras dos inícios, fazendo do pai o herói que não é, os de agosto e os de outubro, o Dia dos Pais e o natalício. Telegramas e cartas, escusas e saudações, parabéns e congratulações. Nada ou quase nada que possa reanimar traços do sofrimento, reduzido às cinzas, pois!

Mexendo e remexendo esses alfarrábios, alguns carcomidos já, identifico as primeiras de minhas crônicas, escritas à mão, antes da modernidade do hoje, do computador e do teclado, do monitor expondo palavras e juntando vocábulos, armando frases e construindo períodos. Crônicas, inclusive, de um começo tão precoce, que sequer foram publicadas, devaneios, então, dos verdes anos. Resgates, vejo agora, de meus pretéritos, nessa nostalgia de meus tempos. Reflexões daqueles antanhos! Discursos, também, que fiz nos princípios, aqui no Recife, mesmo, no Colégio Nóbrega, de tantas lembranças e em São Paulo, quando fui eleito orador da turma, representando os alunos brasileiros. Um tupiniquim falando para quatrocentões! Coragem que só a juventude deixa expor, em considerações, sobretudo, a propósito da pátria que é o Nordeste, tão injustiçado!

São quatro décadas, pelo menos, de recordações e de lembranças, coisas trazidas de casa, ainda, do sobrado azul onde nasci, onde pontificou meu pai e pontifica a minha mãe, a permearem a vida e as coisas do meu ontem mais recente, de dez ou de vinte anos pra trás, de casa, também, mas da minha do agora! Pedacinhos de saudades que se juntam, então, no grande quebra-cabeças do existir humano, dando por resultado o ganho das vitórias, que suplanta aquele das perdas experimentadas e sentidas. Um quebra-cabeça que ao final, depois de armado e completado, em parte já, mostra uma grande estrada, larga e asfaltada, mas repleta de percalços, de pedras no caminho e de enormes buracos no passeio dos andantes, nos quais os tropeços são inevitáveis e nos quais sucumbem os incautos, penitentes deste mundo de Deus e dos homens! Mas, é possível prever: "Vim, vi e venci!".

Lixo que não é lixo e luxo que não é luxo! Somente aqueles que experimentaram o deleite e o êxtase da existência, na manjedoura ou no dourado leito, mesmo que em momentos mais que efêmeros, podem se permitir o sentimento e as reminiscências. Ninguém resgata-o, inteiramente, pesaroso, senão nas horas do pranto. E ninguém recupera na memória o tempo da aflição, sem que novamente esteja sob os impulsos dos humores pessimistas. Sou assim, gosto de rebuscar o passado e sei de tudo e de todos, até os meus limites! Tenho profundo interesse pelos amigos do outrora, pela gente que comigo foi gente e se os perdi de vista, francamente, não foi pelo querer de meus afetos!

A vida é bela, afinal! Vale a pena, com tudo que é ruim e com tudo que perturba! Viva a vida, então!

Fonte> Geraldo Pereira. A medida das saudades. Recife/PE, 2006. Disponível no Portal de Domínio Público

Estante de Livros (“O arqueiro”, de Paulo Coelho)

Publicado pela primeira vez no Brasil, o novo livro de Paulo Coelho chega em edição com capa dura e ilustrações em duas cores. Uma história rica em ensinamentos sobre como ter uma vida plena e repleta de propósito.

O arco é a vida: dele vem toda energia; a flecha é o intento; o alvo é o objetivo a ser alcançado. Através de uma parábola sobre arquearia, Paulo Coelho nos ensina a persistir em nossos objetivos, buscar paz de espírito e sermos gratos pela jornada que percorremos.

Após receber uma visita inesperada, Tetsuya, o melhor arqueiro do país, transmite seus conhecimentos a um jovem da aldeia onde vive. Assim, conhecemos o caminho do arco, que nos inspira a seguir nossa intuição e a viver plenamente.

Em entrevista obtida no blog do autor, ele conta porque escreveu o livro:

Você também é arqueiro – o que o atraiu no esporte? 

Eu achava que era muito elegante quando era jovem. Eu disse a mim mesmo: Um dia farei isso. Então comecei a morar nos Pireneus, onde tinha uma pequena casa, e conheci alguém por acaso. Essa pessoa começou a me ensinar como usar o arco e flecha e me ensinou o básico do tiro com arco. É passar de uma tensão extrema a um relaxamento total, no exato momento em que você abre a mão. E é realmente elegante, porque você precisa de postura para atirar bem. Trata-se de aprender a se concentrar e fazer esse tipo de exercício não por fazer exercício, mas por fazer algo que você deseja. E assim aprendi.

Como suas experiências com o tiro com arco influenciaram a escrita deste livro?

Foi, de certa forma, um resumo da minha experiência no tiro com arco. E, claro, eu precisava de uma diretriz, uma história. Ao ler, você aprende tudo o que aprendi, tudo o que precisava. Atirar flechas não é simplesmente acertar um alvo em branco, mas realmente tentar ver o mundo através do arco. O momento de tensão total antes de você abrir a mão, a conexão. Se você atinge a meta ou não, é irrelevante. Mas o que importa é tornar-se o arco, a flecha e o alvo

Alguma experiência específica inspirou você a escrever O Arqueiro?

Um dia eu estava sentado em minha casa nos Pireneus e pensei como era incrível o tiro com arco, e quis escrever um livro sobre minha experiência. Queria escrevê-lo pelo menos para ler ou condensar para mim mesmo. Tentei ensinar a mim mesmo o que aprendi instintivamente. Às vezes, quando você aprende, você tem que sentar e entender o que aprendeu. Ao fazer isso, escrevi o livro. Está em suas mãos agora.

Como você acha que Santiago de Compostela influenciou seus livros e, especificamente, este?

A peregrinação de Santiago de Compostela é isto: você conhece o seu destino e vai em direção a ele. Isso me influenciou muito no sentido de que eu sabia que tinha que focar em um ponto e seguir em frente.

O Arqueiro fornece orientações simples para uma vida bem vivida. Você acha que uma fábula ou alegoria é o modo mais eficaz de ensinar o que você aprendeu sobre as verdades essenciais da vida?

É um livro curto, você não precisa complicar as coisas.*Risos* Na verdade, a vida é simples. Complicamos muito. E uma fábula ou alegoria fala com as partes ocultas de nós mesmos. Você aprende a essência da vida prestando atenção às coisas simples que o cercam. Esta é basicamente a ideia do ARQUEIRO. Estou falando de tudo, desde amizade e muito mais: a importância do arco, a importância da concentração. No final das contas, é a vida. Você aprende vivendo sua vida plenamente

Você já teve um mentor como Tetsuya? Se sim, que ensinamentos você aprendeu?

Não no sentido metafórico que uso em meu livro. Tive um mentor no sentido de que precisava aprender o básico de como atirar, como evitar me machucar. Sou muito grato a ele porque foi ele quem me ensinou o que sei. Mas no final das contas, como eu disse, você aprende fazendo alguma coisa. Algo que você ama. Então, realmente, você não precisa de um mentor – você só precisa das etapas. Uma vez dados os passos, você pode seguir em frente, e repetir e repetir até que um dia, não é que isso se torne automático, mas de alguma forma, seu subconsciente assume o controle de si mesmo e segue em frente.

Você tenta seguir o exemplo de Tetsuya quando orienta escritores mais jovens?

Eu não oriento escritores mais jovens. Quem sou eu para orientar alguém sobre qualquer coisa? Claro que recebo convites para Master Classes, mas nunca aceito porque não tenho nada para ensinar. Acho que escrever é uma experiência por si só.

Você pode nos contar sobre as influências espirituais e religiosas em sua escrita? Como você se sente sobre O ALQUIMISTA sendo usado por muitos leitores como um guia espiritual, e você vê os leitores recorrendo ao ARQUEIRO da mesma forma?

Claro, espero que nos passos de O ARQUEIRO as pessoas vejam a mesma jornada que existe em O ALQUIMISTA. Claro, eles são diferentes. O ALQUIMISTA é um livro de viagem e, embora O ARQUEIRO também o seja, espero que as pessoas usem O ARQUEIRO para ajudá-las a aprender o básico da vida. Eu realmente espero isso.

O que você espera que os leitores tirem de O Arqueiro?

É impossível dizer o que ele espera, porque todos os leitores vivenciam o livro de maneiras diferentes. Recebo muitas cartas sobre meus livros e, às vezes, eles veem coisas que eu não vi e me contam sobre elas. Fico muito feliz em lê-los, porque aprendo com eles. Aprendo com eles, sobre mim.

Fonte: https://paulocoelhoblog.com/2020/11/10/today-the-archer-in-english/ . 10 nov. 2020. (traduzido do Inglês por Jfeldman)