terça-feira, 19 de março de 2024

Machado de Assis (O Oráculo)

Conheci outrora um sujeito que era um exemplo de quanto pode a má fortuna quando se dispõe a perseguir um pobre mortal.

Leonardo (era o nome dele) começara por ser mestre de meninos, mas tão mal se houve que no fim de um ano perdera o pouco que possuía e achou-se reduzido a três alunos.

Tentou depois um emprego público, arranjou as cartas de empenho necessárias, chegou mesmo a dar um voto contra as suas convicções, mas quando tudo lhe sorria, o ministério, na forma do geral costume, achou contra si a maioria da véspera e pediu demissão. Subiu um ministério do seu partido, mas o infeliz tinha-se tornado suspeito ao partido por causa do voto e teve uma resposta negativa.

Auxiliado por um amigo da família, abriu uma casa de comércio; mas, tanto a sorte, como a velhacaria de alguns empregados, deram com a casa em terra, e o nosso negociante levantou as mãos para o céu quando os credores concordaram em receber uma certa quantia inferior ao débito, isto em tempo indeterminado.

Dotado de alguma inteligência e levado pela necessidade mais que pelo gosto, fundou uma gazeta literária; mas os assinantes, que eram da massa dos que preferem ler sem pagar a impressão, deram à gazeta de Leonardo uma morte prematura no fim de cinco meses.

Entretanto, subiu de novo o partido a que ele sacrificara a sua consciência e pelo qual sofrera os ódios de outro. Leonardo foi a ele e lembrou-lhe o direito que tinha à sua gratidão; mas a gratidão não é a bossa principal dos partidos, e Leonardo teve de ver-se preterido por algumas influências eleitorais de quem os novos homens dependiam.

Nesta sucessão de contratempos e azares, Leonardo não chegara a perder a confiança na Providência. Doam-lhe os golpes sucessivos, mas uma vez recebidos, ele preparava-se para tentar de novo a fortuna, fundado neste pensamento que havia lido, não me lembra aonde: “.

Preparava-se, pois, a tentar novo assalto, e para isso tinha arranjado uma viagem ao norte, quando viu pela primeira vez Cecília B..., filha do negociante Atanásio B...

Os dotes desta moça consistiam nisto: um rosto simpático e cem contos limpos, em moeda corrente. Era a menina dos olhos de Atanásio. Só constava que tivesse amado uma vez, e o objeto do seu amor era um oficial de marinha de nome Henrique Paes. O pai opôs-se ao casamento por antipatizar com o genro, mas parece que Cecília não amava muito Henrique, visto que apenas chorou um dia, acordando no dia seguinte tão fresca e alegre como se lhe não houvesse empalmado um noivo.

Dizer que Leonardo se apaixonou por Cecília é mentir à história, e eu prezo, antes de tudo, a verdade dos fatos e dos sentimentos; mas é por isso mesmo que eu devo dizer que Cecília não deixou de fazer alguma impressão em Leonardo.

O que causou profunda impressão no ânimo do nosso mal-aventurado e conquistou desde logo todos os seus afetos, foram os cem contos que a pequena trazia em dote. Leonardo não hesitou em abençoar o mau destino que tanto o perseguira para atirar-lhe aos braços uma fortuna daquela ordem.

Que impressão produziu Leonardo no pai de Cecília? Boa, excelente, maravilhosa. Quanto à menina, recebeu-o indiferente. Leonardo confiou em que venceria a indiferença da filha, visto que já possuía a simpatia do pai.

Em todo o caso desfez a viagem.

A simpatia de Atanásio foi ao ponto de fazer de Leonardo um comensal indispensável. À espera do mais, o mal-aventurado Leonardo foi aceitando aqueles adiantamentos.

Dentro de pouco tempo era ele um íntimo da casa.

Um dia Atanásio mandou chamar Leonardo ao gabinete e disse-lhe com ar paternal:

— Tem sabido corresponder à minha estima. Vejo que é um bom moço, e segundo me disse tem sido infeliz.

— É verdade, respondeu Leonardo, sem poder conter um sorriso de júbilo que lhe assomou aos lábios.

— Pois bem, depois de estudá-lo tenho resolvido fazê-lo aquilo que o céu não me concedeu: um filho.

— Ah!

— Espere. Já o é pela estima, quero que o seja pelo auxílio à nossa casa. Tem, desde já, um emprego no meu estabelecimento.

Leonardo ficou um pouco enfiado; esperava que o próprio velho fosse oferecer-lhe a filha, e apenas recebia dele um emprego. Mas depois refletiu; um emprego era aquilo que depois de tanto cuidado vinha encontrar; não era pouco; e daí podia ser que lhe resultasse mais tarde o casamento.

Assim, respondeu beijando as mãos do velho:

— Oh! obrigado!

— Aceita, não?

— Oh! sem dúvida!

O velho ia levantar-se quando Leonardo, tomando subitamente uma resolução, fê-lo conservar-se na cadeira.

— Mas escute...

— O que é?

— Não quero ocultar-lhe uma coisa. Devo-lhe tantas bondades que não posso deixar de ser inteiramente franco. Eu aceito o ato de generosidade com uma condição. Amo D. Cecília com todas as forças de minha alma. Vê-la é aumentar este amor já tão ardente e tão poderoso. Se o coração de V. S. leva a generosidade ao ponto de me admitir na sua família, como me admite na sua casa, aceito. De outro modo é sofrer de um modo que está acima das forças humanas.

Em honra da perspicácia de Leonardo devo dizer que, se ele ousou arriscar assim o emprego, foi por ter descoberto em Atanásio uma tendência para dar-lhe todas as felicidades.

Não se enganou. Ouvindo aquelas palavras, o velho abriu os braços a Leonardo e exclamou:

— Oh! se eu não desejo outra coisa!

— Meu pai! exclamou Leonardo abraçando o pai de Cecília.

O quadro tornou-se comovente.

— De há muito, disse Atanásio, que eu noto a impressão produzida por Cecília e pedia no meu íntimo que uma tão feliz união se pudesse efetuar. Creio que agora nada se oporá. Minha filha é uma menina sisuda, não deixará de corresponder ao seu afeto. Quer que lhe fale já ou esperemos?

— Como queira...

— Ou antes, seja franco; possui o amor de Cecília?

— Não posso dar uma resposta positiva. Creio que não lhe sou indiferente.

— Eu me incumbo de investigar o que há. Demais, a minha vontade há de entrar por muito neste negócio; ela é obediente...

— Oh! forçada, não!

— Qual forçada! É sisuda e há de ver que lhe convém um marido inteligente e laborioso...

— Obrigado!

Separaram-se os dois.

No dia seguinte devia Atanásio instalar o seu novo empregado.

Nessa mesma noite, porém, o velho tocou no assunto de casamento à filha. Começou por perguntar-lhe se acaso não tinha vontade de casar-se. Ela respondeu que não havia pensado nisso; mas disse-o com um sorriso tal que o pai não hesitou em declarar que tivera um pedido formal da parte de Leonardo.

Cecília recebeu o pedido sem dizer palavra; depois, com o mesmo sorriso, disse que ia consultar o oráculo.

O velho não deixou de admirar-se com esta consulta de oráculo e interrogou a filha sobre a significação das suas palavras.

— É muito simples, disse ela, vou consultar o oráculo. Nada faço sem consultar; não dou uma visita, não faço a menor coisa sem consultá-lo. Este ponto é importante; como vê, não posso deixar de consultá-lo. Farei o que ele mandar.

— É esquisito! mas que oráculo é esse?

— É segredo.

— Mas posso dar esperanças ao rapaz?

— Conforme; depende do oráculo.

— Ora, tu estás caçoando comigo...

— Não, meu pai, não.

Era necessário conformar-se à vontade de Cecília, não porque realmente fosse imperiosa, mas porque no modo e no sorriso com que a moça falou o pai descobriu que ela aceitava o noivo e apenas fazia aquilo por espírito de casquilhice (comportamento sem sentido, tolo).

Quando Leonardo soube da resposta de Cecília não deixou de ficar um tanto atrapalhado. Mas Atanásio tranquilizou-o comunicando ao pretendente as suas impressões.

No dia seguinte é que Cecília devia dar a resposta do oráculo. A intenção do velho Atanásio estava decidida; no caso de ser contrária a resposta do misterioso oráculo, ele persistiria em obrigar a filha a casar com Leonardo. Em todo o caso far-se-ia o casamento.

Ora, no dia aprazado apresentaram-se em casa de Atanásio duas sobrinhas dele, casadas ambas, e de muito tempo retiradas da casa do tio pelo interesse que tinham tomado por Cecília quando esta quis casar-se com Henrique Paes. A menina reconciliou-se com o pai; mas as duas sobrinhas, não.

— A que lhes devo esta visita?

— Vimos pedir-lhe desculpa do nosso erro.

— Ah!

— Tinha razão, meu tio; e, demais, parece que há um novo pretendente.

— Como souberam?

Cecília mandou-nos dizer.

— Vêm então opor-se?

— Não; apoiar.

— Ora, graças a Deus!

— Nosso desejo é que Cecília se case, com este ou com aquele; é todo o segredo da nossa intervenção em favor do outro.

Feita assim a reconciliação, Atanásio participou às sobrinhas o que havia e qual a resposta de Cecília. Disse igualmente que era aquele o dia marcado pela moça para dar a resposta do oráculo. Riram-se todos da singularidade do oráculo, mas resolveram esperar a resposta dele.

— Se for contrária, apoiar-me-ão?

— Decerto, responderam as duas sobrinhas.

Os maridos destas chegaram pouco depois.

Enfim apareceu Leonardo de casaca preta e gravata branca, trajo muito diverso daquele com que os antigos iam buscar as respostas dos oráculos de Delfos e de Dodona. Mas cada tempo e cada terra com seu uso.

Durante todo o tempo em que as duas moças, os maridos e Leonardo estavam de conversa, Cecília demorava-se no seu quarto consultando, dizia ela, o oráculo.

A conversa versou a respeito do assunto que reunia a todos.

Enfim, seriam oito horas da noite quando Cecília apareceu na sala.

Todos foram a ela.

Depois de feitos os primeiros cumprimentos, Atanásio, meio sério, meio risonho, perguntou à filha:

— Então? que disse o oráculo?

— Ah! meu pai! o oráculo disse que não!

— Então o oráculo, continuou Atanásio, é contrário ao teu casamento com o sr. Leonardo?

— É verdade.

— Pois sinto dizer que sou de opinião contrária ao sr. oráculo, e como a minha pessoa é conhecida enquanto a do sr. oráculo é inteiramente misteriosa, há de fazer-se o que eu quiser, mesmo apesar do sr. oráculo.

— Ah! não!

— Como, não? Queria ver isso! Se eu aceitei essa ideia de consultar bruxarias foi para brincar. Nunca me passou pela cabeça ceder lá às decisões de oráculos misteriosos. Tuas primas são de minha opinião. E demais, eu quero desde já saber que bruxarias são essas... Meus senhores, vamos descobrir o tal oráculo.

A este tempo apareceu um vulto na porta e disse:

— Não precisa!

Todos voltaram-se para ele. O vulto deu alguns passos e parou no meio da sala. Tinha um papel na mão.

Era o oficial de marinha de que falei acima, trajando casaca e luva branca.

— Que faz aqui o senhor? perguntou o velho espumando de raiva.

— Que faço? Sou o oráculo.

— Não aturo caçoadas desta natureza. Com que direito se acha neste lugar?

Henrique Paes por única resposta deu a Atanásio o papel que trazia na mão.

— Que é isto?

— E a resposta à sua pergunta.

Atanásio chegou-se para a luz, tirou os óculos do bolso, pô-los no nariz e leu o papel.

Durante este tempo, Leonardo tinha a boca aberta sem compreender nada.

Quando o velho chegou ao meio do escrito que tinha na mão, voltou-se para Henrique e disse com o maior grau de assombro:

— O senhor é meu genro!

— Com todos os sacramentos da igreja. Não leu?

— E se isto for falso!

— Alto lá, acudiu um dos sobrinhos, nós fomos os padrinhos, e estas senhoras as madrinhas do casamento de nossa prima D. Cecília B... com o sr. Henrique Paes, o qual se efetuou há um mês no oratório de minha casa.

— Ah! disse o velho caindo numa cadeira.

— Mais esta! exclamou Leonardo procurando sair sem ser visto.

Epílogo

Se perdeu a noiva, e tão ridiculamente, nem por isso Leonardo perdeu o lugar. Declarou ao velho que faria um esforço, mas que ficava para corresponder à estima que o velho lhe tributava.

Mas estava escrito que a sorte tinha de perseguir o pobre rapaz.

Daí a quinze dias Atanásio foi acometido de uma congestão de que morreu.

O testamento, que fora feito um ano antes, nada deixava a Leonardo.

Quanto à casa, teve de liquidar-se. Leonardo recebeu a importância de quinze dias de trabalho.

O mal-aventurado deu o dinheiro a um mendigo e foi atirar-se ao mar, na praia de Icaraí.

Henrique e Cecília vivem como Deus com os anjos.

Fonte:
Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1866 in ASSIS, Machado de. Contos Recolhidos. Disponível em Domínio Público

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 12 –


ANTÔNIO THOMAZ BOTTO 
1902 - 1959

Nasceu em Portugal e morreu, atropelado, no Rio de Janeiro, tendo sido, o seu corpo, transportado para Lisboa. Foi amigo íntimo de Fernando Pessoa. Considerado um dos iniciadores da poesia moderna em seu pais.

Homem que vens de humanas desventuras,
que te prendes à vida e te enamoras,
que tudo sabes e que tudo ignoras,
vencido herói de todas as loucuras;

que te debruças, pálido, nas horas
das tuas infinitas amarguras
e na ambição das coisas mais impuras,
e és grande simplesmente quando choras;

que prometes cumprir e que te esqueces,
que te dás às virtudes e ao pecado,
que te exaltas e cantas e aborreces.

arquiteto do sonho e da ilusão,
ridículo fantoche articulado,
- eu sou teu camarada e teu irmão!
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BRANCA DE GONTA COLAÇO 
1880-1945

Poetisa, prosadora, declamadora e conferencista. 'Figura das mais brilhantes na arte literária de Portugal.

NAQUELA TARDE

Naquela tarde em que nos encontramos
"para o último adeus" - nas garras frias
do "desgosto sem fim" que sempre achamos
qualquer separação de poucos dias...

Tarde de amor em que nos apartamos.
presas das mais acerbas nostalgias,
- talvez porque os protestos que trocamos
valessem mil celestes alegrias -,

houve um momento - foi um sonho de Arte!
em que um raio de sol veio beijar-te,
com tanto ardor, em rutilâncias tais,

(que eu fiquei muda, a olhar, num gozo infindo,
o beijo que te dava o sol tão lindo...
Mas o teu rosto alumiava mais . . .
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FERNANDO CALDEIRA 
1842-1894

Poeta inspirado, pintor e autor de teatro muito aplaudido em seu país.

'A VIDA

Abri meus olhos ao raiar da aurora
e parti. Veio o sol e, então, segui-a,
a sombra, que eu julgava guiadora,
a minha própria sombra fugidia.

E foi subindo o sol; ao meio-dia
escondeu-se-me aos pés a sombra;
agora se volvo o olhar onde passei outrora,
vejo-a a seguir-me, a sombra que eu seguia.

A gente é o sol de um dia; sobe, avança,
passa o zênite, e vai na imensidade
apagar-se no mar, onde se lança...

E a vida é a própria sombra; meia-idade,
somos nós que a seguimos, e é a Esperança;
depois segue-nos ela: é a Saudade.
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FERNÃO RODRIGUES LOBO SOROPITA 
(1562 - ?)

Fernão Rodrigues Lobo Soropita - Amigo e admirador de Camões, advogado e humanista. Preparou e dirigiu a primeira edição das "Rimas de Luiz de Camões", aparecida em 1595, precedida de um elogioso prefácio. Teria findado seus dias no convento d'Arrabida. 

Em 1606 ainda vivia, uma vez que, nesse ano, parodiou "A Primavera", de Francisco Rodrigues Lobo, de quem era parente.

Claros olhos azuis, olhos formosos,
que o lume destes meus escurecestes,
olhos que o mesmo Amor d'amor vencestes,
com vivos raios sempre vitoriosos;

olhos serenos, olhos venturosos,
que ser luz de tal gesto merecestes,
ditosos em render quantos rendestes,
e em nunca ser rendidos mais ditosos.

Que morra eu por vos ver, e que vos traga
nas meninas dos meus perpetuamente
cousa é que justamente Amor ordena.

Mas que de vós não tenha mais que a pena,
com que Amor tanta fé tão mal me paga,
nem o diz a razão, nem o consente.
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JOSÉ DA SILVA MENDES LIAL 
1823-1886

Poeta, autor dramático, acadêmico e político. Foi, sobretudo, notável na poesia herOica.

Seu teatro chegou a competir com o de Garret, nas preferências do público e da crítica. Foi ministro plenipotenciário de Portugal, em Madri e em Paris. Conselheiro, Par do Reino, Presidente da Câmara dos Deputados, Sócio e Secretário da Academia Real de Ciências. Escreveu vários romances e muitas peças teatrais. Algumas de suas poesias, como "Napoleão no Kremlin", "O Pavilhão Negro" e "Ave César!" tornaram-se conhecidíssimas, pois são, realmente, obras admiráveis.

"STABAT MATER"

Mulher que tanto amais, mulher que sofreis tanto,
ardente coração, espírito piedoso,
a quem chorais, a quem? O pai, o irmão, o esposo?
Uma ilusão perdida? Um súbito quebranto?

Dos mundanos desdéns, que vos tomam de espanto,
desejais recatar a dor que já foi gozo?
Ou desejais sumir, em delirar saudoso,
nas rosas do pudor as pérolas do pranto?

Mulher, seja qual for o vosso mal profundo,
secreto desengano ou sonho temerário,
não julgueis morta a flor, o porvir infecundo.

O rosto erguei com fé na paz do santuário:
Conforto, exemplo, guia e estrela, e aurora ao mundo,
achais a Virgem-Mãe no cimo do Calvário!
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MARQUESA DE ALORNA 
1750-1839

D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lancastre - Famosa poetisa e escritora, considerada a "Madame de Stael portuguesa". Seus "salões" ficaram célebres em Portugal, pois eram freqUentados pela nata dos literatos da época, entre os quais Alexandre Herculano, que muito a admirava.

Eu cantarei um dia da tristeza
por uns termos tão ternos e saudosos,
que deixem aos alegres invejosos
de chorarem o mal que lhes não pesa.

Abrandarei das penhas a dureza,
exalando suspiros tão queixosos,
que jamais os rochedos cavernosos
os respeitam da mesma natureza.

Serras, penhascos, troncos, arvoredos,
ave, fonte, montanha, flor, corrente,
comigo hão de chorar de amor enredos.

Mas, ah! que adoro uma alma que não sente!
Guarda, Amor, os teus pérfidos segredos,
que eu derramo os meus ais inutilmente.
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NARCISO DE LACERDA 
1858-1913

Veio muito cedo para o Brasil, onde se alistou no Exército Brasileiro; mas, aos 17 anos voltou para Portugal, quando passou a ocupar cargos do serviço público. Recebeu, como poeta, os elogios de Camilo, João de Deus e Silva Pinto. Foi excelente sonetista.

Se creio em ti, meu Deus! Pois quem há posto
lumes no céu e rosas na campina,
na pedra o musgo, a relva na colina
e a fé nas almas cheias de desgosto?

Se creio em ti! Pois quem há dado ao rosto
da mulher dois faróis de luz divina
e à rocha a gota de água cristalina
e a sombra aos dias cálidos de Agosto?

Se creio em ti, meu Deus!... Quando eu, outrora,
quis meus olhos cerrar à luz da aurora,
por que não visse pelo ar disperso

tanto sonho de amor, que em vão sonhara,
lembrei-me, então, de quanto me ensinara
a voz de minha mãe, junto ao meu berço...
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NOEL DE ARRIAGA 
1918 - 1993

Nasceu na Praia da Aguda, perto do Porto (Portugal), tendo-se formado na Faculdade de Direito de Lisboa. Tem-se dedicado à literatura infantil; e é especialista em problemas de turismo. Publicou, entre outros, os seguintes livros de poesia: "Barco sem leme", "A noite é cúmplice", "Pecados breves, breves recados", "A canção que o vento me trouxe".

DESLUMBRAMENTO

Quando num labirinto andei perdido,
labirinto de sonhos e esperanças,
uma voz segredava-me ao ouvido:
- "O amor é belo enquanto o não alcanças,

Não tenhas pressa que depressa
cansas do que mais hás de ter apetecido".
Receoso de colher desesperanças,
não tocava no fruto proibido.

Porém quando a distância se faz perto,
tornando certo quanto fora incerto,
e a cingir-te em meus braços me disponho,

quando da realidade me avizinho
e do sonho me afasto eu adivinho
que a realidade excede o próprio sonho!
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NUNES CLARO 
1878-1948

Poeta admirável, de um lirismo cantante e precioso.

Partiste, e a serra idílica do vento,
do mar, das névoas, mais das grandes luas,
manda dizer-te, amor, neste momento,
que. ficou triste, com saudades tuas.

E que, no inverno, enquanto o céu cinzento
tremer nos ramos e chorar nas ruas,
vestirá, com teu lindo pensamento,
as pedras pobres e as roseiras nuas.

E diz mais - que em abril, quando aí saias,
penses, ao ver florir perto as olaias,
naqueles que deixaste sem ninguém.

no sol, nas ervas, no luar, na altura.
- Só não te diz, porque é de pedra dura,
que tu penses, um pouco, em mim também!
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PEDRO ANTÔNIO CORREIA GARÇÃO 
1724-1772

Junto com Reis Quita, foi um dos fundadores da "Arcádia Ulissiponense". Foi perseguido pelo Marquês de Pombal, que mandou prendê-lo. Ficou oito meses incomunicável, não se sabendo, ainda hoje, a causa determinante desse fato.

Por incrível coincidência, morreu exatamente no instante em que sua esposa chegava à prisão com uma ordem de soltura para o poeta.

Escreveu odes, comédias, epístolas, sonetos. A "Cantata de Dido", segundo Garret, "é uma das mais sublimes concepções do engenho humano, uma das mais perfeitas obras executadas pela mão do homem".

De Correia Garção, um soneto que dedicou "A uma senhora a quem o autor chamava sua mãe":

Comigo minha mãe brincando, um dia,
a namorar c'os olhos me ensinava;
mas Amor, que em seus olhos, me esperava,
com mil brilhantes farpas me feria.

De quando em quando mais formosa ria,
porque incapaz do ensino me julgava;
porém tanto a lição me aproveitava,
que suspirar por ela já sabia.

Em poucas horas aprendi a amá-la:
ditoso se tal arte não soubera,
não me custara a vida não lográ-la.

Certo, que aprender menos melhor era;
pois não soubera agora desejá-la,
nem de tão louco amor enlouquecera!
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RAIMUNDO ANTÔNIO BULHÃO PATO 
1829-1912

Amigo íntimo de Almeida Garret e Alexandre Herculano. Segundo Nuno Catharino Cardoso, "com a morte de Bulhão Pato, desapareceu, em Portugal, o último representante do romantismo".

CONFISSÃO

Fui na infância católico exaltado;
tudo era para mim edificante;
ver o altar, ver o trono cintilante,
ouvir, na igreja, a voz do órgão sagrado!

Foi se apagando o amor arrebatado,
e a ciência levou-me, num instante,
com o sopro glacial e penetrante,
o edifício de luz do meu passado!

Deitei-me aos pés dos grandes missionários,
na eloquência e na fé extraordinários;
mas nenhum me deu sombras de esperança!

O crenças infantis, talvez agora,
volteis a mim, ardentes como outrora:
diz-se que um velho torna a ser criança!...
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TEIXEIRA DE PASCOAIS
1878- 1952

Teixeira de Pascoais (pseudônimo de Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos) Poeta lírico e prosador de rara inspiração. Na forma, é um romântico que não conseguiu deixar de ser um clássico. A natureza tem papel importante em sua obra. E a poesia possui exuberância verbal. 

À UMA OVELHA

Entre as meigas ovelhas pobrezinhas,
que eu guardo, pelos montes, uma existe
que anda, longe, balindo, sempre triste,
e vive só das ervas mais sequinhas.

Que pressentes na alma? que adivinhas?
Etérea voz de dor acaso ouviste?
Que foi que tu, nas nuvens, descobriste?
Não és irmã das outras ovelhinhas!

Sobes às altas fragas escarpadas,
e contemplas o sol que desfalece
e as primeiras estrelas acordadas..

E assim paras, a olhar o céu profundo,
faminta dessa relva, que enverdece
os outeiros e os vales do Outro Mundo.
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VIRGÍNIA VITORINO
1898 - 1967

Uma das mais populares poetisas de Portugal. Sonetista notável. Alma vibrante e plena de sentimento. Escritora de teatro, professora.

Não venhas ver-me, não! De que servia?
Nem eu tenho coragem para tanto.
Gostava muito, sim, mas todo o encanto
da tua grande ausência acabaria.

É tornar-te a perder. Num certo dia,
tu partes novamente, e todo o pranto,
ou pouco ou muito - não importa quanto -
nunca o compensa uma hora de alegria.

Mas se eu não posso ter outro desejo!
Se eu, não te vendo a ti, nada mais vejo!
Como é que, sendo assim, não te hei de ver?

Responde-te a minha alma comovida:
- Vale mais ter um mal por toda a vida
do que alcançar um bem para o perder.
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Literatura Chinesa

Conjunto de obras literárias escritas e publicadas ao longo da história da China.

Existem duas tradições na literatura da china: a literária e a popular ou coloquial. A última remonta a mais de mil anos antes da era cristã e permanece até nossos dias. No princípio consistia em poesia mais tarde em teatro e romance, e depois foi incorporando obras históricas, relatos populares e contos. Os intelectuais da classe oficial que ditavam os gostos literários, não a creditavam digna de estudos por a considerarem inferior, sendo que, até o século XX, este tipo de literatura não obteve o reconhecimento da classe intelectual. Seu estilo brilhante e refinado marca os princípios da tradição literária ortodoxa, que começou há 2.000 anos.

ÉPOCA CLÁSSICA
A época clássica é correspondente a da literatura grega e romana. As etapas de formação tiveram lugar do século VI ao IV a.C. nos períodos da dinastia Chou (c. 1027-256 a.C.). Desta época são as obras de Confúcio, Mencio, Laozi (Lao-tsé), Zhuangzi e outros grandes filósofos chineses. Culminou com a recopilação dos chamados cinco clássicos, ou clássicos confucianos, além de outros tratados filosóficos

A obra poética mais importante do período clássico foi o Shijing (Livro das odes ou Clássico da poesia), antologia de poemas compostos em sua maioria entre séculos X e VII a.C. A lenda diz que foi o próprio Confúcio quem selecionou e editou os 305 poemas que formam a obra. Trata-se de poemas simples e realistas da vida camponesa e cortesã.

O estilo aristocrático ou cortesão alcança sua máxima expressão com os poemas de Chu, estado feudal ao sul da China central que foi a terra de Qu Yuan, primeiro grande poeta chinês.

Durante a dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.) as tendências realista e romântica: deram lugar à escolas poéticas. Os versos de Chu foram o começo de um novo gênero literário, o fu, o poema em prosa. Mais tarde, a poesia se enriqueceu com canções populares reunidas por Yüeh-fu, no século II a.C.

Os primeiros trabalhos em prosa formam, junto com o Shijing, os cinco clássicos. São o I Ching (Anais do Chin), livro de adivinhações; o Shujing (Livro dos documentos), um conjunto de antigos documentos de Estado; o Liji (Memória sobre os ritos), coleção de códigos governamentais e rituais, e o Chunqiu (Anis da primavera), a história do estado de Lu desde 722 até 481 a.C. Do século VI até o III a.C. foram escritas as primeiras grandes obras da filosofia chinesa, como os Analectos de Confúcio, aforismos recompilados por seus discípulos; os eloquentes debates de Mencio, discípulo de Confúcio; o Doodejing (Clássico da forma e sua virtude), atribuído a Lao Tsé, fundador do taoísmo, e os ensaios de Zhuangzi, o outro grande filósofo taoísta. Também são importantes os ensaios de Mozi, Xunzi e Han Fei Zi. Sima Qian escreveu o Shiji (Memórias históricas), história da China até a dinastia Han. Os discípulos de Confúcio criaram, as bases da tradição literária da prosa chinesa, adotando uma linguagem literária própria, diferente da linguagem falada.

ÉPOCA MEDIEVAL
Do século III ao século VII d.C., a China estava dividida em estados rivais, porém com a difusão do budismo vindo da Índia e a invenção de um tipo de imprensa viveu um dos períodos mais brilhantes da história de sua literatura.

Durante os períodos de agitação política, poetas encontraram refúgio e consolo no campo. Alguns eram ermitãos e criaram uma escola de poesia a que chamaram Campo e jardim. Outros escreveram os melhores poemas populares chineses, como os de amor atribuídos a poetisa Tzu-yeh. O melhor poeta destes séculos turbulentos foi Tao Qian, também conhecido por Tao Yuanming, que cantava as alegrias da natureza e da vida solitária.

A melhor poesia chinesa foi escrita durante a dinastia Tang (617-907), da qual se conservam mais de 49.000 poemas escritos por 2.200 poetas. Os três poetas mais famosos foram Wang Wei, filósofo e pintor; Li Po, líder taoísta da escola romântica, e seu amigo e rival Tu Fu, meticuloso em seus esforços para conseguir um realismo preciosista, cuja obra influenciou o poeta Po Chu-i, que utilizava a poesia como um meio para a crítica e a sátira.

Durante a dinastia Song (960-1279), Su Tung-po foi o melhor poeta chinês de tsu (estilo poético que fixa o número de versos e seu comprimento segundo o tom e o ritmo). A poetisa chinesa Li Qingzhao alcançou grande popularidade por seus versos tsu sobre sua viuvez. Han Yu, mestre da prosa Tang, exigia a volta da escrita direta e simples do estilo clássico.

A tradição literária prolongou-se na dinastia Song com Ouyang Xiu, mais conhecido por suas maravilhosas descrições de paisagem. Os engenhosos ensaios de Su Xun são os melhores do estilo clássico.

O teatro propriamente dito não se desenvolveu até o final do período medieval. Na época Tang, os atores já ocupavam um lugar importante entre os artistas populares e se agrupavam em companhias profissionais, que atuavam em teatros construídos para receber milhares de pessoas.

ÉPOCA MODERNA
A época moderna começa no século XIII e chega até nossos dias.

No século XIV, a narrativa popular chinesa foi cada vez mais importante. Dois dos primeiros romances desta época, Sanguozhi Yanyi (Histórias romanceadas dos reinos) e Shuihuzhuan (À beira d'água), podem ser considerados a épica em prosa do povo chinês. Cao Xueqin escreveu o romance realista Hongloumeng (Sonho do quarto vermelha).

No século XVII, apareceram numerosas coleções de breves histórias. A mais popular é Jinguqiguan (Contos maravilhosos do passado e do presente), composto de 40 histórias.

No século XX, influenciados pela literatura ocidental, os escritores chineses, guiados por Hu Shi, começaram uma revolução literária conhecida como o renascimento chinês. Intencionavam utilizar a linguagem coloquial com fins literários. Com ensaios e histórias mordazes atacavam a sociedade tradicional, e escritores como Lu Xun (pseudônimo de Zhou Shuren) ajudaram ao avanço da revolução socialista.

Durante os anos da Revolução Cultural (1966-1978) os artistas e escritores se adaptaram as necessidades do povo e a influência burguesa ocidental foi atacada duramente. Desde então tem se permitido uma maior liberdade de expressão, tolerando-se o renovado interesse pelas ideias e as formas ocidentais.

Fontes:

segunda-feira, 18 de março de 2024

Edy Soares (Oceano de Trovas) – 6 –

 

Arthur de Azevedo (O Gramático)

Havia na capital de uma das nossas províncias menos adiantadas certa panelinha de gramáticos, sofrivelmente pedantes. Não se agitava questão de sintaxe, para cuja solução não fossem tais senhores imediatamente consultados. Diziam as coisas mais simples e rudimentares num tom pedantesco e dogmático, que não deixava de produzir o seu efeito no espírito das massas boquiabertas.

Dessa aluvião de grandes homens destacava-se o Dr. Praxedes, que almoçava, merendava, jantava e ceava gramática portuguesa.

Esse ratão, bacharel formado em Olinda, nos bons tempos, era chefe de seção da Secretaria do Governo, e andava pelas ruas a fazer a análise lógica das tabuletas das lojas e dos cartazes pregados nas esquinas. "Casa do Barateiro, -sujeito: esta casa; verbo, é; atributo, a casa; do barateiro, complemento restritivo." O Dr. Praxedes despedia um criado, se o infeliz, como a soubrette das Femmes Savantes, cometia um erro de prosódia.

E quando submetia os transeuntes incautos a um exame de regência gramatical?

Por exemplo: encontrava na rua um menino, e este caía na asneira de perguntar muito naturalmente:

-Sr. Dr. Praxedes, como tem passado?

-Venha cá, respondia ele agarrando o pequeno por um botão d0 casaco: "Sr. Dr. Praxedes, como tem passado?" - que oração é esta?

-Mas... é que estou com muita pressa...

-Diga!

-É uma oração interrogativa.

-Sujeito?

-Sr. Dr. Praxedes.

-Verbo?

-Ter.

-Atributo?

-Passado.

-Bom. Pode ir. Lembranças a seu pai.

E, com uma ideia súbita, parando:

-Ah! venha cá! venha cá! Lembranças a seu pai - que oração é esta?

-É uma oração... uma oração imperativa.

-Bravo! - Sujeito?

-Está oculto... é você... Você dê lembranças a seu pai.

-Muito bem. Verbo?

-Dar.

-Atributo?

-Dador.

-Lembranças é um complemento...?

-Objetivo.

-A seu pai...?

-Terminativo.

-Muito bem. Pode ir. Adeus.

* * *
Depois de aposentado com trinta anos de serviço, o Dr. Praxedes recolheu-se ao interior da província, escolhendo, para passar o resto dos seus gloriosos dias, a cidadezinha de ***, seu berço natal. Aí advogava por muito empenho, continuando a exercer a sua missão de oráculo em questões gramaticais.

Raramente saia à rua, pois todo o tempo era pouco para estar em casa, respondendo ás numerosas consultas que lhe dirigiam da capital e de outros pontos da província.

* * *
A cidadezinha de *** dava-se ao luxo de uma falha hebdomadária, o Progresso, propriedade do Clorindo Barreto, que acumulava as funções de diretor, redator, compositor, revisor, paginador, impressor, distribuidor e cobrador.

Ninguém se admire disso, porque o Barreto -justiça se lhe faça -dava mais uso à tesoura do que à pena. O vigário, que tinha sempre a sua pilhéria aos domingos, disse um dia que aquilo não era uma tesoura, mas um tesouro.

Entretanto, se no escritório do Progresso a goma-arábica tinha mais extração que a tinta de escrever, não se passava caso de vulto, dentro ou fora da localidade, que não viesse fielmente narrado na folha.

Por exemplo.

"O Sr. Major Hilarião Gouveia de Araújo acaba de receber a grata nova de que seu prezado filho, o jovem Tancredo, acaba de concluir os seus preparatórios na Corte, e vai matricular-se na Escola Politécnica, da referida Corte.

"Cumprimentamos cheios de júbilo o Sr. Major Hilarião, que é um dos nossos mais prestimosos assinantes, desde que fundou-se a nossa falha."

* * *
Em fins de maio de 1885, a notícia do falecimento de Victor Hugo chegou à cidadezinha de ***, levada por um sujeito que saíra da capital justamente na ocasião em que o telégrafo comunicara o infausto acontecimento.

O Barreto, logo que soube da notícia, coçou a cabeça e murmurou:

-Diabo! não tenho jornais... Como hei de descalçar este par de botas? A notícia da morte de Victor Hugo deve ser floreada, bem escrita, e não me sinto com forças para desempenhar semelhante tarefa!

Todavia, molhou a pena, que se parecia um tanto com a espada de certos generais, e rabiscou: Víctor Hugo.

Ao cabo de duas horas de cogitação, o jornalista não escrevera nem mais uma linha...

* * *
Mas, oh! Providência! nesse momento passou pela porta da tipografia o sábio Dr. Praxedes, a passos largos, medidos e solenes, e uma idéia iluminou o cérebro vazio de Clorindo Barreto.

-Doutor Praxedes! Doutor Praxedes! exclamou ele. Tenha vossa senhoria a bondade de entrar por um momento. Preciso falar-lhe.

O Dr. Praxedes empacou, voltou-se gravemente e, conquanto embirrasse com o Barreto, por causa dos seus constantes solecismos, entrou na tipografia.

-Que deseja?

O redator do Progresso referiu a notícia da morte do grande poeta, confessou o vergonhoso embaraço em que se achava, e apelou para as luzes do Dr. Praxedes.

Este, com um sorriso de lisonjeado, sorriso que logo desapareceu, curvando-se-lhe os lábios em sentido oposto, sentou-se a mesa com a gravidade de um juiz, tirou os óculos, limpou-os com muito vagar, bifurcou-os no nariz, pediu uma pena nova, experimentou-a na unha do polegar, dispôs sobre a mesa algumas tiras de papel, cujas arestas aparou cuidadosamente com a... com o tesouro, chupou a pena, molhou-a três vezes no tinteiro infecundo, sacudiu-a outras tantas, e, afinal escreveu:

"Falecimento. -Consta, por pessoa vinda de ~ ter falecido em Paris, capital da França, o Sr. Victor Hugo, poeta insigne e autor de várias obras de mérito, entre as quais um drama em verso, Mariquinhas Delorme (Marion Delorme) e uma interessante novela intitulada Nossa Senhora de Paris (Notre-Dame de Paris)

"O ilustre finado era conde e viuvo.

"O seu falecimento enluta a literatura da culta Europa.

"Nossos sinceros pêsames à sua estremecida família."

* * *
O Dr. Praxedes saiu da tipografia do Progresso, e continuou o seu caminho a passos largos, medidos e solenes.

Ia mais satisfeito e cheio de si do que o próprio Sr. Víctor Hugo quando escreveu a última palavra da sua interessante novela.

O Barreto ficou radiante, e, examinando a tira de papel escrita pelo gramático, exclamou, comovido pela admiração:

-Nem uma emenda!

Fonte:
AZEVEDO, Artur de. Contos Possíveis. Publicado em 1889. Disponível em Domínio Público