sábado, 1 de janeiro de 2011

Carolina Ramos (Do Cotidiano)


Fim de tarde. Friozinho abelhudo penetrava por onde quer que lhe fosse permitido entrar, encolhendo ombros e aconchegando corpos.

Pressa. Pressa de voltar para casa. De rever a esposa, os filhos, os entes queridos. Pressa de trocar os sapatos pela comodidade dos chinelos velhos, das meias de lã, ma maioria das vezes furadas no dedão. Pressa de sumir dentro do pijama quentinho. De saborear o jantar fumegante e depois esparramar-se na poltrona, frente à TV para cochilar e falar mal dela.

Fim de tarde fria. Noite a insinuar-se, mais fria ainda.

Sem esposa, nem filhos, sem aquela pressa que movia tantas pernas, Reginaldo caminhava sem motivação maior, arrastando os passos até a lanchonete mais próxima, menos cheia de gente descompromissada, como ele, e, portanto, menos tumultuada pelo vozerio das massas.

Roído de fome, passou a perna por sobre a banqueta redonda, repousando os cotovelos no balcão de formica. Consultou os bolsos. Eles é que ditavam o pedido. Os apelos do estômago eram secundários. Fim de mês. Minguava, no fundo da algibeira, a carteira murcha. Não dava para muito. E, justamente naquele início frio de uma noite que prometia ser gélida, sentia uma fome de cão vadio!

– Um hamburger com fritas. Ah… e um cafezinho pingado.

– Bebida?

Lembrou-se da carteira murcha.

– Não…obrigado. Só o cafezinho.

Aguardou, impaciente.

Chegaram juntos: – o hamburger e o garoto de olhos tristes. Seis ou sete anos, no máximo. Disfarçou, fingindo não vê-lo. Foi puxado pela manga.

– Moço, me dá um dinheirinho? Tô cum fome.

Era tudo que não queria ouvir! Engoliu a saliva que o reflexo, condicionado à chegada do hamburger, lhe fizera crescer na boca.

– Hoje não, meu filho…Não tenho trocado. – Procurou ignorar a presença incômoda do menino, saboreando, com os olhos, a iguaria, cujo aroma lhe excitava as glândulas salivares. Apertou o hamburger com volúpia, fazendo o “catchup” escorrer pelas bordas. Chegou a abrir a boca para a primeira mordida, não consumada.

Ao seu lado, o garoto permanecia fascinado pelo petisco fumegante, entre fritas e folhas de alface.

Reginaldo engoliu em seco. Tivesse dinheiro no bolso e tudo estaria resolvido. O remorso antecipou-se à consumação, importunando-o mais do que a própria fome. Pensou em divir o pitéu. Lambuzou-se todo! Os olhos do garoto continuavam, gulosos, namorando o hamburger.

Capitulou. Pediu um saquinho de papel e encheu-o de batatas fritas. Embrulhou o hamburger num guardanapo e entregou-o, inteiro, à fome que se estampava na carinha esquálida. E achou que seria pouco!

Alegria e surpresa coloriram a face ´pálida do menino que balbuciou qualquer coisa ininteligível e disparou porta afora, temeroso de possível arrependimento.

Sobraram para Reginaldo, desapontamento e frustração total!

Perdera o jantar! A fome continuava firme. E a fuga precipitada roubava-lhe, ainda, a modesta satisfação do espetáculo proporcionado pela sua renúncia. Queria ver morrer a fome do guri! Fome a ser morta por ele! Morte da qual não se arrependeria, jamais! Direito seu!

Contentou-se com o cafezinho morno e duas fritas sobradas no prato. E enfrentou novamente a noite, mais fria do que antes, ignorando os reclamos do estômago vazio.

Meio quarteirão adiante, uma surpresa. Sentado na calçada, encostado à parede, o mesmo garoto, olhos menos tristes, dividia com a mãe, maltrapilha, e com mais duas crianças, sua finada refeição.

O sorriso do menino foi, sem dúvida, o que de mais gratificante recebera da vida!

A caminho da modesta vaga que ocupava, numa casa de cômodos, esqueceu-se da fome. Chegou mesmo a envergonhar-se dela!.

Fontes:
RAMOS, Carolina. Interlúdio: contos.SP: EditorAção, abril 1993.
Imagem = http://www.iplay.com.br

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