quinta-feira, 2 de maio de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (Como um barquinho de papel navegando em águas procelosas)

 (Com carinho, para Heitor Melo Magalhães )

EM UMA PISCINA de plástico retangular de três mil litros de água cercada pela calmaria de um quintal de muros altos, uma simplória réplica de um bote feito pelo avô do pequeno Heitor (de seis anos) à custa de uma simples folha de papel arrancada às escondidas do caderno de sua mãe, a jovem Luana Cristina, o guri terrivelmente travesso lança à agua de um azul límpido e transparente, com muito cuidado e uma pitada enorme de esperança o seu frágil brinquedo construído pelo pai de sua mãe. Essa embarcação pintada com vários lápis coloridos (ele não sabe, não entende, mas cá entre nós), é extremamente franzino e raquítico. Em razão desse evento, o brinquedo de folha de papel se acha depauperado (debilitado), quase sem forças. Se projeta aos olhos do piá como um paquete (embarcação pequena) ágil e cauteloso, soberbo e indestrutível. Ele foi construído à base de sonhos e fantasias, se fez conhecido por carregar muitas histórias de sua dona nas antigas aulas da faculdade de enfermagem. 

E agora, do nada, a folha à imagem de um navio, desliza suavemente enlevado pela brisa amena que sopra sem pressa e parece dançar sorridente na sua lerdeza, sobre as ondas diminutas que se formam por baixo de seu casco quase todo encharcado. Bem sabemos, Heitor desconhece o futuro da criação que lhe foi dada de bom grado. Nem sempre o destino aos nossos olhos é um lago sereno, ou uma piscina de plástico retangular com capacidade para três mil litros de água no escondido de um quintal de muros altos. Às vezes, um diminuto vapor de papel pintado pode se encontrar em águas de traços estranhos, ou em situações perigosas e caóticas, onde o risco de naufragar no próximo minuto se faz cada vez mais presente –, ou melhor –, cada vez mais flagrante e iminente. As cálidas águas tranquilas da piscina, num repente podem dar lugar às correntezas impetuosas. Sendo assim, o que deveria ser um divertimento caseiro para um inocente sem visão do agora, menos ainda do porvir, pode se tornar em uma luta ferrenha pela sobrevivência. 

Nessas águas, o transatlântico de Heitor enfrenta tempestades inesperadas. Se depara com chuvas torrenciais invisíveis, e se vê colhido por ventos fortes que o fazem bater perigosamente contra a borda da piscina e também em decorrência da sua frágil construção delicada. Para piorar o quadro, ondas gigantescas açoitadas pelas batidas das mãozinhas do pirralho ao encontro das águas, ameaçam engolir a tenra folha a cada novo milésimo de segundo. Entretanto, apesar das intempéries, a piroga segue lisonjeira e destemida pervagando em frente. Peleja com o fôlego de um leão indomável e não se entrega aos percalços da má sorte que ronda a sua trajetória. Aos tapas e beijos, sopapos e petelecos, a débil folha de caderno transformada numa espécie do lendário Titanic, navega trôpego aos olhos do seu dono e senhor, com a coragem indômita de um Sansão, de um Super-Homem, de um herói afoito e peitudo, invencível, aguerrido e resoluto, que sabe e mesmo se conscientizando pequeno, possui a força hercúlea de continuar avançando, tentando não soçobrar. 

Cada sopapo que o atinge, é um desafio novo. Cada vento que sopra, um teste de resistência. Apesar dos pesares, a minúscula nau de papel segue altaneira e feliz. Vai capengando aos trancos e barrancos, desviando daqui e dali entremeado por uma imensidão de pedras submersas, não vistas à olho nu, porém, evitando os redemoinhos que tentam, a todo custo, arrastá-lo de sua rota para os recônditos de um fundo profundo e medonhamente colossal, ainda que daquele mar abarbarado (barbarizado) e mavórcio (bélico) que lhe parece indomável. O navegante do pequeno menino é uma espécie de metáfora transladada da vida. Apesar de inválido, sequioso por pleitear açambarcando uma margem segura, é capaz de encarar sem medos ou receios, as diversidades com resistência e determinação. Essa simples réplica do gigante dos sete mares do pequeno Heitor, a bem da verdade, nos ensina uma lição impecável e grandiosa: mesmo circundado nas ondas mais ebulitivas (ferventes) e irrequietas (ainda que de uma piscina montada num fundo de quintal) podemos apreciar a beleza e o arroubo escondidos, e não só ver, mas sentirmos a primazia e a esperança brotarem do nada em toda a sua elegância e formosura. 

Há a chance de navegar, bem ainda, de contrapeso, o desafio imperturbável de explorar e de chegar a destinos nunca antes visitados ou imaginados. Mesmo uma simples réplica de papel colorida pode realizar grandes viagens, obviamente se o seu comandante tiver a coragem de desacatar e afrontar o obscuro, ou aquilo que não está visível e palpável aos sentidos e mais, igualmente é e se faz, se mostra superior e, como tal, pugna a insultar o acaso e a vencer contrastando o anônimo. O heteróclito (eclético) não é um bicho de sete cabeças. O funambulesco (ridículo) ou o desconhecido não é o fim da linha; tampouco o ponto final; menos ainda o término da viagem. Representa, acima de nossa visão, a venustidade (graça), a força motriz, a galhardia que nos impulsiona, ou a sapiência que nos leva (ainda que a toque de caixas, a imaginar, como o pequeno Heitor) ou dito de forma mais clara e concisa, para nos lembrarmos sempre... haja o que houver, nunca devemos desistir, notadamente jamais abandonarmos os nossos sonhos e objetivos. 

Fonte: Texto enviado pelo autor

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