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segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Artur Azevedo (A Pele do Lobo)

Comédia em um ato
Escrita em 1875 e representada pela primeira vez no Rio de Janeiro, no Teatro Fênix Dramática, em 10 de abril de 1877

A ANTONIO FONTOURA XAVIER

PERSONAGENS
CARDOSO - subdelegado
AMÁLIA - sua mulher
APOLINÁRIO
PERDIGÃO
JERÔNIMO
MANUEL MARIA
VITORINO
O COMPADRE
UMA PARTE

Dois soldados da polícia

A cena passa-se no Rio de Janeiro

Atualidade.

Ato Único
Sala, secretária, relógio de mesa, etc., etc.

Cena I


CARDOSO, AMÁLIA (Vestidos para a cerimônia e prontos para sair.) UMA PARTE (Que logo sai, à porta do fundo.)

CARDOSO - Sim, senhor; sim,. senhor! Pode ir com Deus. Descanse, que hoje mesmo serão dadas as providências que o caso exige.

PARTE - Às ordens de Vossa Senhoria. (Retira-se.)

CARDOSO - Safa!

AMÁLIA (Erguendo-se.) - Deixar-te-ão desta vez?

CARDOSO- E metam-se!

AMÁLIA - Hein?

CARDOSO - E metam-se a servir o país!

AMÁLIA - Para que aceitaste esta maldita subdelegacia?

CARDOSO (Ainda passeando.) - Eu não aceitei: pedi. Mas já tenho dito um milhão de vezes que os serviços prestados ao país e ao partido pesam muito no ânimo daqueles que me podem fazer galgar mais um degrau na escala social.

AMÁLIA - Deixa-te disso, Cardoso; um degrau dessa tão falada escala social, não vale decerto o sacrifício que te custa essa autoridade de ca-ca-ra-cá. São uns desfrutadores, eis o que são! Hás de ser pago com um pontapé. Verás!

CARDOSO - Hei de ser promovido na primeira vaga que aparecer. O Cantidiano está por pouco a bater a bota. Verás se o lugar é ou não é meu!

AMÁLIA - Fia-te na Virgem e não corras.

CARDOSO - E uma vez que aceitei o cargo...

AMÁLIA - A carga, deves dizer.

CARDOSO - Venha com ele o sacrifício. Antes de tudo o dever!

AMÁLIA - Estamos prontos para sair há duas horas.

CARDOSO (Consultando o relógio de mesa.) - Há duas horas e dois minutos.

AMÁLIA (Embonecando-se ao espelho.) - Creio que não chegamos a tempo para o batizado.

CARDOSO - Que remédio terão eles, senão esperar pelos padrinhos?

AMÁLIA - E o carro na porta há tanto tempo?

CARDOSO - Anda com isso, anda com isso! E metam-se!

AMÁLIA - Hein?

CARDOSO - E metam-se a servir o país!

AMÁLIA - Vamos. Não percamos mais tempo.

CARDOSO - Vamos . (Vão saindo. Batem palmas.)

AMBOS - Bateram.

CARDOSO - Quem é?

APOLINÁRIO (Fora.) - Sou eu.

AMÁLIA - Eu quem?

APOLINÁRIO (No mesmo.) - Um criado de Vossa Senhoria.

CARDOSO - Entre quem é.

AMÁLIA - Temo-la travada! (Entra Apolinário. Pisa macio e fala descansado.)

Cena II
Os mesmos e Apolinário

APOLINÁRIO (À porta do fundo.) - Dá licença, senhor subdelegado?

CARDOSO - Entre, senhor. (Vai outra vez por o chapéu na secretária.)

APOLINÁRIO (Entrando e sentando-se em uma cadeira que deve estar no meio da cena.) - Não se incomode Vossa Senhoria. Estou muito bem. Vossa Senhoria como tem passado?

CARDOSO - Bem, obrigado. O que pretende o senhor?

APOLINÁRIO - Sua senhora tem passado bem, senhor subdelegado?

AMÁLIA - Bem, obrigada. O senhor o que pretende?

APOLINÁRIO - Ah! estava aí, minha senhora? Os meninos estão bons?

AMÁLIA - Que meninos, senhor?

APOLINÁRIO - Os seus filhos, minha senhora.

AMÁLIA - Não os tenho. E esta!
 
APOLINÁRIO - Pois levante as mãos pra o céu e dê graças a Nosso Senhor Jesus Cristo!(Sinais de impaciência em Cardoso e Amália.) Eu tenho três, três! Todos três machos, felizmente. Mas que consumição! Que canseira! Quando não está um doente, está outro; quando não está outro, está outro; quando não está nenhum, está a mãe; quando não está a mãe, está o pai. Às vezes estão, filhos e pais, todos doentes. É preciso chamar a vizinha para dar-nos qualquer coisa. É uma lida, minha rica senhora! Peça a Deus que lhe não dê filhos. Olhe...(Mostra a cabeça.) Não vê?

AMÁLIA - O quê? o quê?

APOLINÁRIO - Já estou pintando... Ainda anteontem... Anteontem não... Quando foi, Apolinário? Segunda... terça... Foi anteontem mesmo... Eu tinha acabado de tomar o meu banhinho e de ouvir minha missinha...

CARDOSO (Interrompe-o.) - Meu caro senhor, tomo a liberdade de preveni-lo que temos muita pressa e não, podemos perder tempo. Íamos saindo justamente quando o senhor entrou...

APOLINÁRIO (Erguendo-se.) - Nesse caso, senhor doutor...

CARDOSO - Perdão, não sou doutor.

APOLINÁRIO - Fica para outro dia... Eu vinha dar minha queixa, mas... (Cumprimenta.) Senhor doutor... minha senhora... (Vai saindo.)

CARDOSO - Venha cá, senhor: já agora diga o que pretende.

APOLINÁRIO (Voltando-se e preparando-se como para um discurso, com força.) - Senhor subdelegado...

CARDOSO - Não é preciso gritar tanto...

APOLINÁRIO - Esta noite fui roubado.

CARDOSO - Diga.

APOLINÁRIO - Dezoito cabeças de criação... dezoito ou dezenove... Ontem esteve em nossa casa um cunhado meu, irmão de minha mulher, empregado no Arsenal de Guerra, e não tenho certeza de que ele levasse alguma galinha consigo, mas creio que não. Em todo caso, foram dezoito ou dezenove cabeças, não falando em um bonito galo de crista, que comprei no mercado, não há quinze dias.

CARDOSO - Muito bem. O senhor chama-se...

APOLINÁRIO - Apolinário, um criado de Vossa Senhoria.

CARDOSO - Apolinário de quê?

APOLINÁRIO - Apolinário da Rocha Reis Paraguaçu (Dando um cartão) Olhe, aqui tem Vossa Senhoria meu nome e morada.

CARDOSO - Bem; pode ir descansado, que serão dadas as providências que o caso exige.

APOLINÁRIO (Preparando-se outra vez para um discurso e elevando muito a voz.) - Ainda não fica nisso, senhor doutor!

CARDOSO - Já tive ocasião de dizer-lhe, primeiro, que não é preciso gritar tanto; segundo, que não sou doutor.

APOLINÁRIO (Com a mesma inflexão, porém baixinho.) - Não fica nisso. Eu conheço o gatuno!

CARDOSO - E por que estava calado?

AMÁLIA (Não se podendo conter.) - Com efeito, Senhor Paraguaçu!

APOLINÁRIO (Atarantado.) - Hein! (Falando com cada vez mais descanso.) Não conheço eu outra coisa! Chama-se Jerônimo de tal, um ilhéu, um vagabundo, que foi há tempo cocheiro de bondes e agora não sai da venda de seu Manuel Maria, ao qual dizem que vende por um precinho de amigo, o que ...     (Ação de furtar.) Vossa Senhoria sabe qual é a venda de seu Manuel Maria? É a que fica mesmo em frente à casa do meu cunhado, do mesmo que esteve ontem em nossa casa, e sobre o qual estou em dúvida se levou ou não alguma galinha. (A Amália.) Mas que bonito galinho, senhora! Vossa Senhoria dava oito mil réis por ele com os olhos fechados... Era branco, branquinho, como aqueles patinhos do Passeio Público. Uma crista escarlate! Que bonito galo!

CARDOSO - Vamos! Não temos tempo a perder! Faça o favor de sentar-se naquela mesa e dar a queixa por escrito.

APOLINÁRIO - De muito bom gosto, senhor doutor. (Obedece.)

CARDOSO - E o senhor a dar-lhe! Já lhe disse que não sou doutor.

APOLINÁRIO - Isso é modéstia de Vossa Senhoria.

AMÁLIA - Parece de propósito, Senhor Paraguaçu.

CARDOSO - Deixa-o para lá. (Vai para junto de Amália.) Que maçador! E metam-se!

AMÁLIA - Não chegaremos a tempo.

APOLINÁRIO (À mesa.) - Esta pena está escarrapachada, senhor subdelegado...

CARDOSO - Vou dar-lhe outra... vou dar-lhe outra...

AMÁLIA - Anda... Tem paciência... Acaba com isso. (Cardoso vai abrir a secretaria e mudar a pena da caneta.)

APOLINÁRIO - Muito obrigado! Que incômodo tem tomado Vossa Senhoria! Mas também não há quem diga à boca cheia: “Aquilo é que é um subdelegado! Zelo até ali... É o pai das partes!”

CARDOSO - Faça o favor de escrever o que tem de escrever...

APOLINÁRIO - Às ordens de Vossa Senhoria . (Escreve.)

CARDOSO (Voltando para junto de Amália.) - Decididamente peço a demissão!

AMÁLIA - Isso já devias ter feito há muito tempo.

CARDOSO - Olha que é bem difícil suportar uma maçada assim... E metam-se!

AMÁLIA - Hein?

CARDOSO - E metam-se a servir o país!

AMÁLIA - Pede demissão, Cardoso, pede demissão.

APOLINÁRIO (Da mesa.) - Senhor subdelegado, faça o favor de me dizer o modo por que devo principiar este requerimento... Em matéria de polícia sou completamente leigo... Diga-me só o cabeçalho... O cabeçalho! o resto vai...

CARDOSO - Aí, Senhor Paraguaçu! O senhor é maçante! Tenho estado a aturá-lo há meia hora!

AMÁLIA (Olhando o relógio.) - Há meia hora e sete minutos.

CARDOSO - Estamos muito apressados, meu caro senhor... não posso estar com isso...

APOLINÁRIO - Eu quis retirar-me quando Vossa Senhoria disse que ...

CARDOSO - Vamos lá! Escreva no alto — Ilustríssimo Senhor .

APOLINÁRIO - O Ilustríssimo Senhor — já cá está.

CARDOSO - Bem (Ditando.) —“O abaixo assinado, morador nesta freguesia, à rua de tal , número tal...”

APOLINÁRIO (Escrevendo.) - ...     número treze...

CARDOSO - “Queixa-se a Vossa Senhoria de que, ontem, às tantas horas da noite...”

APOLINÁRIO - “Queixa-se” é com x ou ch?

AMÁLIA - Ó céus! (Rindo-se.)

CARDOSO - Como quiser! Não faço questão de ortografia.

APOLINÁRIO - Vai com ch. (Acabando.) ...     “da noite”...

CARDOSO - Como está?! (Vendo.) Fulano de tal, tal, tal. Ah! (Ditando.) “Furtaram-lhe tantas galinhas...”

APOLINÁRIO (Escrevendo.) - ...”e um galo de crista”...

CARDOSO - “... as suspeitas de cujo furto faz recair em Fulano de Tal.” (Consultando o relógio.) E metam-se!

APOLINÁRIO (Escrevendo.) - “Fulano de tal, vulgo Barriga-cheia”. Pronto!

CARDOSO - Na outra linha: “Deus guarda a Vossa senhoria.”

APOLINÁRIO - ...     “a Vossa Senhora”...

CARDOSO - Na outra linha: “Ilustríssimo Senhor Subdelegado de tal freguesia.”

APOLINÁRIO - Pronto.

CARDOSO - Assine.

APOLINÁRIO - ...     “Apolinário da Rocha Reis Paraguaçu.” (Erguendo-se.) Pronto.

CARDOSO - Bem; agora pode ir descansado, que serão dadas as providências que o caso exige.

APOLINÁRIO - Com licença, senhor subdelegado... Às ordens de Vossa Senhoria...

CARDOSO - Passe bem.

APOLINÁRIO - Minha senhora...

AMÁLIA - Viva. (Volta-lhe as costas.)

APOLINÁRIO - Sem mais incômodo. (Saída falsa.)

CARDOSO - Safa!

AMÁLIA - Saiamos, saiamos quanto antes! pode vir outro... (Vão saindo.)

APOLINÁRIO (Voltando.) - Ia-me esquecendo, senhor subdelegado...

CARDOSO - Outra vez!

AMÁLIA - Assustou-me até!

CARDOSO - O que mais deseja?

APOLINÁRIO - Hoje, logo depois do almoço, encontrei-me cara a cara com o tal Jerônimo!

CARDOSO - Que Jerônimo, senhor?

APOLINÁRIO - O Barriga-cheia, o tal que me furtou as galinhas...

CARDOSO - E o que tenho eu com isso, não me dirá?

APOLINÁRIO - Direi, sim, senhor. Com licença. (Desce à cena e senta-se.) Chamei-o de ladrão! Disse-lhe assim: “Você é um ladrão!” — Com licença da senhora...

AMÁLIA - E o que tem meu marido com isso?

APOLINÁRIO - É que o sujeito tomou três testemunhas, e diz que me vai processar por crime de injúrias verbais.

CARDOSO - Mas, enfim, faz favor de me dizer para que voltou cá?

APOLINÁRIO - Vim prevenir a Vossa Senhoria de que...

CARDOSO - Vá prevenir ao diabo que o carregue!

APOLINÁRIO (levantando-se.) - Senhor doutor.

CARDOSO (Gritando.) - Já lhe disse que não sou doutor!

APOLINÁRIO (Imitando-o) - Isso é modéstia de Vossa senhoria!

CARDOSO - Saia! Ponha-se ao fresco! Supõe o senhor que sirvo de joguete?

APOLINÁRIO - Mas Vossa Senhoria...

CARDOSO - Saia!

APOLINÁRIO - É que ...

AMÁLIA - Oh! senhor, já é a terceira vez que se lhe diz — saia.

APOLINÁRIO - Minha senhora, eu...(Tornando a sentar-se, com todo o sossego.) Com licença...

AMÁLIA - Oh! isto é demais!

CARDOSO - Então, não ouve!

APOLINÁRIO - Quero justificar-me!

CARDOSO (Ameaçador.) - Cuidado, Senhor Paraguaçu!

APOLINÁRIO - Bem, Vossa Senhoria está em sua casa: manda. (Levantando-se e cumprimentando.) Ás ordens de Vossa Senhoria.

CARDOSO - Viva! Há mais tempo! (Passeia agitado.)

APOLINÁRIO - Minha senhora...

AMÁLIA - Passe bem. (Saída falsa de Apolinário.) Que inferno! que inferno! E metam-se!

APOLINÁRIO (Voltando.) - Acredite senhor doutor, que eu não queria de forma alguma...

CARDOSO (Desesperado.) - Ah! ele é isso? (Agarra uma cadeira e levanta-a, correndo para Apolinário.)

AMÁLIA (Muito aflita.) - Ah! (Suspende o braço de Cardoso. Ficam todos numa posição dramática.)

APOLINÁRIO (Com todo o sangue frio.) — Tableau. (Desaparece.)

Cena III

Cardoso e Amália

CARDOSO - Vês, Sinhá, vês como um homem se deita a perder?

AMÁLIA - Sim, sim, mas vamos, anda daí!

CARDOSO (Caindo na cadeira que tinha nas mãos.) - E que dor de cabeça fez-me este bruto!... E metam-se.

AMÁLIA - Hein?

CARDOSO - E metam-se a servir o país!

AMÁLIA - Espera... vou buscar a garrafinha de água-flórida. (Sai e volta com a garrafinha.)

CARDOSO - Depressa... depressa, Sinhá! (Amália esfrega-lhe as frontes com água-flórida.) Bem...basta... está pronto... Aí! que ferroadas! deita a garrafinha em cima a mesa e vamos, vamos! (Amália deita a garrafinha sobre a mesa e vai dar o braço a seu marido.)

AMÁLIA - Vamos! (Saem e voltam.) Esqueci-me do leque. (Entra à direita baixa.)

CARDOSO (Falando para dentro.) Que demora, Sinhá, que demora! Ainda há de vir alguém, verás! (Passeia.) Então não achas esse leque! Aí! minha cabeça! E metam-se! (Quebra-se alguma coisa dentro.) O que foi isso?! O que foi isso?! (Corre também para a direita baixa.)

AMÁLIA (Dentro.) - O meu frasco de água da Colônia!

CARDOSO (Dentro.) - Que pena!

AMÁLIA (Dentro.) - Ah! cá está o leque! (Voltam à cena, de braço dado e dirigem-se para a porta.)

CARDOSO - Já estou suando. (Procura nos bolsos.) Não tenho lenço.

AMÁLIA - Oh que maçada! Quanto mais pressa, mais vagar. (Sai correndo pela direita baixa.)

CARDOSO - E metam-se, hein! E metam-se a servir o país!

AMÁLIA (Voltando com um par de meias na mão.) - Toma, toma... Apre! (Dá-lho.)

CARDOSO - Isto é um par de meias, Sinhá! Estás a meter os pés pelas mãos! (Restitui-lho.)

AMÁLIA - Como está esta cabeça, meu Deus! (Sai e volta com um lenço.) Toma... Vamos... uf!

CARDOSO - Vamos! (Encaminham-se para a porta. Batem palmas.)

AMBOS - Ah!

CARDOSO (Fora de si.) - Não estou em casa!

JERÔNIMO (Aparecendo, de chapéu na cabeça.) - Licença para um...

Cena IV

Os mesmos e Jerônimo

CARDOSO - Então é assim que se entra em casa alheia?

JERÔNIMO (Sombrio.) - Assim como? A casa da autoridade é uma repartição pública. (Deita no chão a cinza de um cachimbo; e escarra na parede.)

CARDOSO - E que tal?

AMÁLIA - Vê o que ele quer, Cardoso?

JERÔNIMO - Venho preveni-lo de que é falso o que lhe veio hoje dizer um tal Paraguaçu, acerca de um furto de galinhas. É provável que ele lhe dissesse que eu, Jerônimo Linhares, vulgo Barriga-cheia, sou o autor desse furto, como andou por aí dizendo a quem quis ouvi-lo. É falso! (Cospe outra vez na parede.)

AMÁLIA (Empurrando um escarrador com o pé.) - Faz favor de não cuspir no chão... Aqui tem o escarrador... (Jerônimo nem olha para Amália.)

CARDOSO - Era só isso? Estou ciente.

JERÔNIMO - Não, senhor; por isto só não vinha eu cá, ora viva! Venho queixar-me do queixoso por crime de injúrias verbais. Chamou-me de ladrão, e se quiser o mais, mande aquela mulher para dentro. (Cospe outra vez na parede.)

CARDOSO - Pois apresente a queixa e as testemunhas.

JERÔNIMO - A queixa aqui está. (Apresenta um papel sujo, que Cardoso pega com repugnância. Vai à porta do fundo.) Ò compadre! Ó seu Manuel Maria! Ó seu Vitorino? podem entrar... Nada de cerimônias!

CARDOSO (A Amália.) - O tratante dispõe desta casa como se fosse sua!

Cena V

Os mesmos, Manuel Maria, depois O Compadre, depois Vitorino

MANUEL MARIA (Entrando.) - Aqui estou eu!

COMPADRE (Entrando.) - E eu...

VITORINO (Entrando.) - E eu...

AMÁLIA - Cardoso, dize-lhes que venham em outro dia... (À parte.) Como cheiram a cachaça!

CARDOSO - Meus senhores, tenham a bondade de voltar amanhã.

JERÔNIMO - Aí vem o maldito sistema da demora e do papelório.

CARDOSO - Cala-te daí, insolente, que não tens autoridade para fazer considerações neste lugar... Apareçam terça-feira ou mesmo amanhã! Mas terça-feira é melhor, porque é o dia da audiência. Não posso estar agora com isto... Estamos prontos para sair há muito tempo!

AMÁLIA - Há três horas!

CARDOSO (Consultando o relógio.) - Há três horas e três minutos!

JERÔNIMO (Cuspindo na parede.) - Então, podiam ter dito logo! Escusava a gente de estar aqui à espera! É isto sempre! A autoridade vai para a pândega, e o povo que sofra!

CARDOSO - Insolente! Espera que te ensino! (Agarra numa cadeira que está perto do toucador.)

AMÁLIA - Cardoso! O que vais fazer?!..

JERÔNIMO - Ah! Ele é isso? (Tira uma faca e deita a correr atrás de Cardoso. Amália fecha-se no quarto. As três testemunhas correm atrás de Jerônimo, para retê-lo. Cardoso apita.)

MANUEL MARIA - O que é isto, seu Jerônimo?!

COMPADRE - Compadre, tenha mão!

VITORINO - Não se deite a perder!

(Cardoso continua a apitar. Confusão.)

AMÁLIA (Grita de dentro.) - Aqui d’el-rei!

Cena VI

Os mesmos e Dois Soldados

SOLDADOS - O que é isto? o que é isto?...(Correm todos em redor da cena.)

CARDOSO - Prendam-no! prendam-no! (Jerônimo é afinal preso.) Levem-no! (Os soldados levam o preso, Saem também as testemunhas.)

Cena VII

Cardoso e depois Amália

CARDOSO (Caindo extenuado em uma cadeira.) - Uf!

AMÁLIA (Entrando.) - Feriu-te o maldito, feriu-te?

CARDOSO - Creio que não. (Apalpando-se.) Não feriu, não, Sinhá! Se não fossem as ordenanças que estavam na porta, a estas horas estavas viúva!

AMÁLIA - Credo! Viúva!

CARDOSO - Maldita subdelegacia! Maldita a hora em que aceitei semelhante cargo!

AMÁLIA - Como estás suando! Esta camisa é incapaz de aparecer no batizado...

CARDOSO - É verdade! O batizado! Vou mudar de camisa...

AMÁLIA - Mas isso depressa... depressa! (Saída falsa de Cardoso.) Ó Senhor Deus! Isto contado lá se acredita! É bem feito , senhor meu marido, é bem feito! Quem não quiser ser lobo, não lhe vista a pele.
(Rolo na rua. Apitos. Gritos. Pancadaria. Amália vai à janela.) Que vejo! Uma malta de capoeiras! Cardoso! Cardoso! Não tardam a entrar...

CARDOSO (Entra em mangas de camisa e com o fitão de subdelegado.) - O que é isto? (Espirra.)
Atxim! constipei-me... Atxim! O que é isto? Atxim! (Sai a correr pelo fundo.)

Cena VIII

Amália, depois Perdigão

AMÁLIA - Meu Deus! Hoje parece ser o dia de São Bartolomeu! Se não anda o diabo solto na cidade, ao menos nesta freguesia..

PERDIGÃO (Entra apressado pelo fundo, vestido para a cerimônia.) - Ó compadre! Ó comadre!

AMÁLIA - Mais uma parte!

PERDIGÃO - Deixe-se de partes!

AMÁLIA - Meu marido não está... (Reparando.) Ah! é o compadre!

PERDIGÃO - Estamos até estas horas à espera do padrinho e nada!

AMÁLIA - Queixe-se da maldita subdelegacia, compadre! Estamos vestidos há três horas...(Consultando o relógio.) Há três horas e um quarto...

PERDIGÃO - Ora! Para que foi o compadre buscar sarna para se coçar...

AMÁLIA - O compadre não imagina! Quantas vezes, alta noite, está ele sossegado a dormir, quando, de repente, é despertado pelas malditas partes...

PERDIGÃO - Por força!

AMÁLIA (Indo à janela.) - Já está aplacado o rolo... (Voltando.) Hoje quase o matam!

PERDIGÃO (Dando um salto.) - A quem?

AMÁLIA - Ao Cardoso.

PERDIGÃO - Ah! Ele descia a escada com tanta impetuosidade! Ia em mangas de camisa e de fitão... Olhem que figura! Espirrava, que era um Deus nos acuda! “Viva!” lhe disse eu; ele, porém, não me conheceu, apesar de responder: “Dominus tecum”, em vez de: ”Obrigado!”

Cena IX

Os mesmos e Cardoso

CARDOSO (Entra e cai espirrando em uma cadeira.) - Atxim!

PERDIGÃO - Viva!

CARDOSO - Dominus te... Quero dizer: Obrigado... Atxim! Ah! É o senhor, compadre? Desculpe.

PERDIGÃO - Já sei de tudo... Está mais que desculpado... Mas não perca tempo!

AMÁLIA - Sim, não percamos tempo!

CARDOSO - Vamos! (Ergue-se e deita o chapéu.) - Estou pronto!

PERDIGÃO - Em mangas de camisa, compadre?

CARDOSO - É verdade! (Corre ao quarto e volta vestindo a casaca.)

AMÁLIA - De fitão, Cardoso?

CARDOSO - É verdade! (Despedaça o fitão zangado.) Atxim!

PERDIGÃO - Já leu o que traz hoje o Jornal a seu respeito?

CARDOSO - Já: descompostura bravia! É o pago que dão a tantos sacrifícios.

PERDIGÃO - Diga antes: é o castigo que infligem ao erro de aceitá-los.
AMÁLIA (Impaciente.) - Vamos embora! (Vão todos saindo.)

Cena X

Os mesmos e um Soldado

SOLDADO (a Cardoso.) - Trouxeram este ofício e esta carta para Vossa Senhoria. (Entrega a carta e o ofício e sai.)

CARDOSO - De cá. (Abrindo a carta.) Com licença. (Lê.) É um bilhete em que o oficial do gabinete do ministro me participa haver sido outro nomeado para a vaga do Cantidiano... E metam-se!

PERDIGÃO - Hein?

CARDOSO - E metam-se a servir o país! (Abrindo o ofício.) Com licença! (Depois de ler o ofício.) Sabem o que é? Minha demissão.

PERDIGÃO E AMÁLIA - Demissão?

CARDOSO - Á vista do que a meu respeito tem aparecido na imprensa periódica!

PERDIGÃO - Não falemos mais nisso! Vamos embora.

CARDOSO - Poupou-me o trabalho de pedi-la.

AMÁLIA - Quem não quiser ser lobo...

PERDIGÃO - Mas o compadre acaba de despir a pele do lobo. (Apanhando o fitão.) Ei-la!

CARDOSO - Atxim! (Saem tos os três e cai o pano.)

[ Cai o pano]

Fonte:
AZEVEDO, Artur. Teatro de Artur Azevedo - Tomo 1. Instituto Nacional de Artes Cênicas-INACEN. V. 7: Coleção Clássicos do teatro Brasileiro.. In A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
Imagem = http://cemebturmaf.blogspot.com

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Marina Strachman (Peça Teatral: Bom Demais pra Ser...)

Esta narrativa é uma obra de ficção que envolve personagens reais, imaginando o que seria deles se morressem; o que estas personagens, que foram tão importantes em vida deixaram de bom, de realmente bom depois que se foram. A peça pretende mostrar que o que realmente importa, é a essência da pessoa, e não seus bens!

Peça teatral: Bom demais pra ser...
Autora: Marina Strachman

Baseado em “Um conto de Natal” de Charles Dickens

 Enredo

Esta narrativa é uma obra de ficção que envolve personagens reais, imaginando o que seria deles se morressem; o que estas personagens, que foram tão importantes em vida deixaram de bom, de realmente bom depois que se foram. A peça pretende mostrar que o que realmente importa, é a essência da pessoa, e não seus bens!

Cenário

Dividido em três espaços. Uma sala, com TV tudo de última geração com lap top, com televisão e som ligados. Outra um “campo” de futebol e na outra, dois carros um vermelho e um preto no trânsito, tudo separado por biombos.

Descrição dos Personagens

Asdrúbal – Têm 40 anos, pai de família, um executivo que só faz trabalhar, não dá atenção à esposa e nem ao filho.

Marilda a linda – Têm 30 anos, só fala de regime, ginástica e calorias, não dá atenção ao filho e ao marido.

Junior – Têm 10 anos, cabelo penteado como o Neymar, usa roupa de grife, tem Ipod, Ipad, e wii, e sempre todos ligados e brinca sozinho.

Uesley Uilson – Jogador de futebol profissional, bom jogador, mas é trapaceiro, encrenqueiro.

São Januário – Um garoto bonito, muito bom jogador, e uma pessoa do bem.

Beto Esperto – Joga bem, mas tem mania de querer ser mais esperto que os outros e só se dá mal.

Leila – motorista do carro vermelho, chorona, desempregada, frustrada, acha que sua vida é um erro atrás do outro.

 Beka – Amiga de Leila, está no carro, mas não agüenta mais.

Renato – Um jovem muito feliz, motorista do outro carro.

Mauro – amigo de Renato, companheiro pra tudo.

Três Anjos da Guarda – Um para Asdrúbal, outro para Uesley e o terceiro para Leila.

Abertura
Narrador

Vivemos hoje a nossa vida, uma vida boa, bacana, mas se deixássemos esta vida pra trás agora, já! O que teríamos deixado para trás?!

(Pausa, música mais alta - por meio minuto)

 Narrador prossegue:

- No mundo atual, mundo dos vivos, malandros, espertos a vida segue segue.

Ilumina-se um de cada vez as três cenas, a família na sala, o jogo de futebol, os carros no trânsito.

Cena I

(Cenário -  Sala da família, com Asdrúbal, Marilda a linda e Junior)

Narrador

-Era uma vez...

(Música e foco de luz passando sobre os objetos e as pessoas da cena da família)

Narrador – Asdrúbal é um super executivo de uma multinacional que tem escritórios em Londres, Nova Deli, Hong Kong e Rio de Janeiro. Como o fuso horário varia muito de um escritório para outro, Asdrúbal passa os dias conectado a algum computador, não tem tempo de folga e viaja muito, mas é muito rico, possui helicóptero, avião particular, iate, casa de campo e de praia e dá para esposa e para o filho tudo o que pedem, sem discutir.

 (Enquanto o narrador fala, mostra Asdrúbal falando em dois celulares, em línguas diferentes, na frente do computador que está ligado. Quando o narrador finaliza, entra o filho e a esposa discutindo.)

 Asdrúbal (aos gritos) – vocês não percebem que estou trabalhando?! Preciso resolver este assunto urgente!

Marilda a linda – Você está SEMPRE trabalhando e resolvendo alguma coisa urgente. Não percebe que este assunto é URGENTE também?!

Junior – é pai, a mamãe....

Marilda a linda (interrompendo) – Já disse que não gosto que você me chame assim, sou Marilda a linda!

Junior (chorando) – eu sou a única pessoa do mundo que não pode chamar a mãe de mãe!!!

Asdrúbal (em seus celulares)- Sorry, but I have a problem here. (e desliga os telefones, olhando muito feio para os dois!) – Venha cá, meu filho, não chore que o papai compra para você aquele Jet Ski, último modelo.

Junior (enxugando as lágrimas rapidamente)– Obaaaa, agora, pai, agora?!?!

 Marilda a linda (interrompendo) – é sempre assim, para ele você compra tudo, e pra mim nada. Já faz DOIS dias que pedi uma mixaria para fazer novamente minha plástica de barriga e você nem respondeu!

Asdrúbal- Desculpe minha linda, tem toda a razão, aonde está meu talão de cheques. (pegando o talão na pasta) – Quanto é minha linda, 500 mil está bom?! Não, não, é pouco por toda esta beleza, querida leve logo um milhão e aproveita renove seu guarda roupa. Se quiser ir para Miami, o jatinho estará disponível amanhã!

 Marilda a linda (beijando o marido) – é por isso que TODAS as minhas amigas morrem de inveja do MEU Asdrúbal!

Narrador – Asdrúbal volta ao telefone, para acabar de resolver os problemas dos escritórios.

- Cena II –

(Cenário – campo de futebol, Uesley Uilson,São Januário, Beto Esperto, brincando com a bola)

Narrador – Uesley Uilson é um jovem de 17 anos, que joga futebol tão bem que já têm alguns times atrás dele, mas ele bebe e usa drogas, seu melhor amigo, Beto Esperto, é um perna de pau que acha que joga MUITA bola, neste time existe também o goleiro São Januario, ótimo jogador, joga bem, é voluntário em duas ONGs é um garoto do bem.

 São Januário – Uesley, não te disse para você parar de beber e jogar bola que você ganha mais?! 

Beto Esperto (com desdém) – Se fosse só bebida o nosso problema, tava moleza!

Uesley Uilson - (interrompendo) – Cala boca, Beto! E Januário, o que é que você tem ficar me dando conselho, se conselho fosse bom, ninguém dava de graça!! (rindo), Né não Betão!!

(Betão e Usley, rindo)

São Januário – Olha cara, o negócio é o seguinte: tem uma conversa que o Santos tá querendo te contratar pra jogar com o Neymar, mas pra isso, você tem que deixar de faltar em treino por causa de bebida.

Beto Esperto (com desdém) – Eu já disse que, se fosse só bebida o nosso problema, tava moleza! Você com esse apelido encardido de São Januário, só quer dar bons conselhos...

 (Uma voz lá de dentro- Beto Esperto, fica quieto que este papo não é com você, você quando está bem, serve pra esquentar banco, não sei se você percebeu, mas nem no banco tu tá escalado!. Uesley, esta conversa do São Januário é séria, mas, só vai funcionar se você por 3 meses comparecer aos treinos sem estar drogado, ou bêbado, ou os dois!) E os três saem jogando bola.

- Cena III –

(Mostram os dois carros parados no farol, um vermelho com a Leila ao volante e a Beka ao lado, e no outro no carro de cor prata Renato dirigindo e Mauro ao lado)

Narrador – Leila a motorista do carro vermelho, é uma chorona, desempregada, frustrada, acha que sua vida é um erro atrás do outro. Beka, sua grande amiga, está tentando ajudar, até lhe ofereceu um ótimo emprego, que Leila recusou, mas a Beka está cansada desta amiga que parece gostar de sofrer.

(No carro vermelho)

Leila (com a maquiagem borrada de tanto chorar)- eu não sirvo pra nada MESMO, perdi meu emprego, perdi o noivo e agora estou a um passo de perder meu apartamento! EU VOU ME MATAR!

 Beka – Ah, pois não! Mas se mata sozinha que estou descendo do carro. Eu já te ofereci o cargo de gerente geral em meu escritório, mas você me respondeu que: trabalhar com a amiga só pode dar errado... você gosta é de reclamar!

(No carro preto)

Mauro – Renato olha só que mulherão no banco do passageiro!

Renato – Só se for, porque a motorista toda borrada tá parecendo que saiu do baile de halloween!

(os dois caem na gargalhada)

(No carro vermelho)

Beka – Você ouviu isso, sua louca?! Até quando você vai se fazer de vitima, olha só que dupla “tudo bom” aí do lado! E parece que estão rindo de nós!

(No carro preto)

Renato (dirigindo-se para Beka no outro carro)– Oi! Nós estamos indo no Shopping, você quer vir?!

(Leila engata uma primeira e sai correndo com o carro)

Beka (assustada e gritando) – Pára o carro já que eu vou descer! Você precisa de um médico urgente!

Apaga-se a luz do cenário.

- Cena IV–

(Nesta cena camas são necessárias)

Narrador – e o dia acabou e todos foram dormir...

Mostra cada um deitado em sua cama... Asdrúbal em seu lap top, enquanto Marilda pensa em suas plásticas, e Junior está dormindo. Beto Esperto, em sua cama bebendo a segunda garrafa de vodka, Uesley tentando jogar a garrafa de bebida fora, mas acaba bebendo... e São Januário fazendo suas preces antes de se deitar. Leila desmaiada ao lado de MUITOS remédios que ela ingeriu, Beka em sua cama preocupada com Leila, pedindo que o anjo da guarda olhe por sua amiga, Renato e Mauro cada um dormindo em sua cama.

Narrador – Me enganei, agora sim, e o dia acabou e todos foram dormir.

E mostra todos dormindo.

Narrador – E eles sonham, sonham com o seu futuro, e com o que será de cada um deles....

Anjo da Guarda de Asdrúbal  – Asdrúbal, sou seu Anjo da Guarda, estou aqui para te ajudar: você é um homem bem sucedido financeiramente, mas sua vida é uma droga... sua mulher só quer saber do seu dinheiro, e seu filho que tanto quer seu amor, não consegue ganhar nem um abraço! Você nunca fez uma boa ação na vida! Veja o que será de você depois que morrer:

Mostra a parte do cenário do céu, e Asdrúbal, sozinho, ninguém vem conversar com ele. E ele está, olhando para seu filho que está brincando, e sua esposa que está adorando estar sozinha com o dinheiro da herança que ele deixou.

Asdrúbal se desespera.

Anjo da Guarda de Asdrúbal prossegue - Asdrúbal, este quadro pode mudar, se for da sua vontade, você é jovem, tem muita coisa boa para fazer ainda, que tal?!

Asdrúbal (acorda assustado) – Marilda minha linda, tive um sonho e preciso mudar! Querida, amanhã vou começar a instruir meus diretores, para ter mais tempo com vocês. Também vou ajudar a quem eu puder, mas por enquanto...

Asdrúbal corre para o quarto do Junior e o abraça e beija.

- Cena V–

Anjo da Guarda de Uesley  – Uesley Uilson, sou seu Anjo da Guarda, estou aqui para te ajudar: você é um menino ainda, tem um lindo futuro pela frente, mas sua vida é só beber e se drogar, Deus te deu um Dom de jogar bola maravilhosamente, mas você prefere as drogas... Veja o que será de você depois que morrer:

Mostra a parte do cenário do céu, e Uesley Uilson, sozinho, ninguém vem conversar com ele. E ele está, olhando para o nada, pois não tem nada nem para olhar

Anjo da Guarda de Uesley  prossegue -  Uesley Uilson, este quadro pode mudar, se for da sua vontade, você é jovem, tem muita coisa boa para fazer ainda, que tal?!

Uesley Uilson acorda MUITO assustado e diz para si mesmo: Véio eu preciso mudar já!

Ele liga para São Januário e diz:

- São Januário, preciso muito da sua ajuda, tive um sonho e eu preciso mudar, você me ajuda?!

 São Januário – Uesley, claro que sim, aliás, eu vou adorar poder te ajudar! 

- Cena VI –

Anjo da Guarda de Leila  – Leila, sou seu Anjo da Guarda, estou aqui para te ajudar: você é uma mulher inteligente, bonita e que ainda, tem um lindo futuro pela frente, mas sua vida é só reclamar, você acha que a responsabilidade é sempre do outro, nunca é sua! A sua vida pode mudar mas... E preste atenção a este detalhe: VOCÊ  e somente VOCÊ é a responsável por suas escolhas.

Veja este é seu futuro... mostra Leila pedindo esmola.

Anjo da Guarda de Leila  prossegue - Leila, este quadro pode mudar, se for da sua vontade, você é jovem, tem muita coisa boa para fazer ainda, que tal?!

Leila acorda MUITO assustada e diz para si mesma: Eu não tinha percebido que passava por cima das minhas responsabilidades!

Liga para a Beka e diz:- Beka, você tem a partir de hoje uma nova amiga, e eu quero sim o emprego que você me ofereceu, você verá de agora em diante, sou uma pessoa melhor!

Narrador – E eles se tornaram pessoas melhores, e você?!

- Cena VII –

Narrador - E enquanto isso na lanchonete do bairro. Em uma mesa, dividindo uma pizza, contando estórias e se divertindo estão, Leila, Beka, Renato e Mauro.

Leila – Quero propor um brinde a minha amiga que não me abandonou quando mais precisei e ao que sobrou de legal daquela época, A Beka, ao Mauro e ao meu amor, o Renato!

 Beka – Ah, isso merece um brinde mesmo, Leila, você é outra pessoa, eu não sei o que te fez mudar assim pra melhor, mas eu agradeço! Posso confessar que pedi muita ajuda para seu anjo da guarda!

Mauro – Renato e você achando que ela parecia uma assombração!rsrsrsr Ainda bem que nos encontramos novamente, e foi incrível vê-las ajudando as crianças a refazer a mata ciliar daquela nascente!

Renato – Ainda bem que nos encontramos novamente, e foi incrível vê-las ajudando as crianças a refazer a mata ciliar daquela nascente!

Beka – Ei rapazes, semana que vem tem uma distribuição de mudas de arvores da região e meu escritório vai emprestar dois caminhões, será uma ação no fim de semana inteiro, pois vamos promover também a plantação na beira do rio, topam?

(Renato, Leila e Mauro)- Ah, Beka com certeza e você não vai se livrar de nós tão cedo!

Narrador - E na outra mesa, estão....Mostra a mesa com Asdrúbal, Marilda e Junior. Eles estão comendo uma salada!

Junior – Quero mais alface e tomate, mamãe!

 Marilda a linda (que está grávida) – Claro meu querido, eu também vou repetir. Asdrúbal amor, pede um suco de laranja pra mim?

Asdrúbal- Claro. Ah, Marilda, eu quero te agradecer a dica das empresas que investem em ações ambientais, eu estou adorando trabalhar com está área! Aliás, filho, este fim próximo fim de semana, vamos plantar arvores na beira do rio, e escolhemos você e a Marilda para representarem a empresa, vocês aceitam?

 Marilda a linda (beijando o marido) – é claro querido, nossa vida mudou pra melhor agora, eu me sinto melhor e sou uma mãe de verdade agora, eu curto estar com vocês!

Junior – é mesmo mamãe, agora a gente pedala juntos, e almoça juntos!

Asdrúbal- eu só tenho a agradecer por aquela noite! Sou outra pessoa e serei pai de gêmeos!

Narrador – e entrando na lanchonete... São Januario e Uesley. Uesley está triste.

 São Januário – Uesley, você tá bem? 

Uesley Uilson – To sim Janú, mas to muito triste! Nunca pensei que o Beto fosse morrer assim de overdose!! Sabe acho que é uma mistura de sentimentos... afinal, se não fosse por você, eu ia acabar assim também!

São Januário – Olha cara, mas você conseguiu, teve uma tremenda força de vontade e conseguiu ficar um ano inteiro longe da bebida e das drogas!

Uesley Uilson – E agora é seguir em frente! Este ano vou jogar no Santos e agradeço a Deus todos os dias por eles terem te contratado junto comigo, pois você é meu parceiro, irmão e amigo!

Apaga-se a luz do cenário.

 __________________
Marina Strachman - arquiteta e urbanista, mestre em desenvolvimento regional e meio ambiente e especialista em educação ambiental.

Fonte:
Educação Ambiental em Ação
http://www.revistaea.org/artigo.php?idartigo=1387&class=06

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Teatro de Ontem e de Hoje (Roda Viva)

Espetáculo que radicaliza as propostas tropicalistas iniciadas em O Rei da Vela e promove seu diretor José Celso Martinez Corrêa à condição de expoente teatral do movimento. Espetáculo agressivo, síntese da ira e da rebeldia contra um momento político que divide a sociedade, entre a aceitação do regime militar ou a luta contra ele.

Tomando o texto de Chico Buarque em torno da vida de um ídolo da canção popular, figura manipulada, quer pela indústria fonográfica, quer pela imprensa, o encenador vê nele a possibilidade de acirrar a crítica à sociedade de consumo, uma das pontas de lança do tropicalismo. Apoiado na eloqüente cenografia e nos figurinos criados por Flávio Império, alcança o limite entre a ação no palco e seus desdobramentos na platéia. Numa passarela que invade o espaço da platéia, ocorrem muitas das cenas criadas para provocar os espectadores.

Tachada como emblema do "teatro agressivo" pelo crítico Anatol Rosenfeld1, a montagem reflete um momento em que o teatro assume esse tom violento, de confronto, de cobrança de atitudes frente a uma situação sociopolítica tensa e insustentável.

Na crítica ao espetáculo, Marco Antônio de Menezes descreve: "A cortina já está aberta quando você chega: enormes rosas à esquerda, enorme garrafa de Coca-Cola à direita, enorme tela de TV no fundo, uma passarela branca avançando até metade da platéia. [...] A campainha toca três vezes, a platéia faz silêncio, ruídos estranhos saem dos alto-falantes, na tela de TV aparece uma frase: 'Estamos à toa na vida'. [...] Entra o coro, com longas túnicas vermelhas e mantilhas pretas. Canta um triste Aleluia, rodeia Benedito. Aparece o Anjo da Guarda (Antônio Pedro), o empresário de TV, com asas negras, cassetete de policial na cintura, maquiagem de palhaço de circo: 'Benedito não serve, nós precisamos de um ídolo! Você será Ben Silver!' E o coro joga para trás as túnicas e mantilhas, é agora um grupo de jovens iê-iê-iê que canta: 'Aleluia, temos feijão na cuia!' [...] O espetáculo não está somente no palco, o coro invade a platéia, conversa com ela, e o empresário pede um minuto de silêncio em homenagem ao ídolo: cada participante do coro olha fixamente um espectador (agora todos já entendem por que a bilheteria insistiu em vender ingressos da primeira fila). [...] O minuto termina, Ben Silver é carregado para o palco num grotesco andor feito de long-plays e fotos de cantores, conduzido por grotescas caricaturas das 'macacas de auditório', que no fim do primeiro ato o levam embora, deitado sobre uma cruz de madeira, nu, cansado sob o peso do próprio sucesso. [...] Ben Silver, esgotado pelo sucesso, procura o consolo de sua mulher [...] para um linda cena de amor que é repentinamente interrompida pela câmara (sic) de TV e pelo Capeta (o jornalista desonesto) [...]. E juntos, o jornalista e o Ibope decretam o fim da carreira de Ben Silver: 'O ídolo é casado! E além de tudo, é bêbado!' Uma procissão de três matronas antipáticas tenta salvar o ídolo exigindo que ele faça caridade. Mas nada adianta, Ben Silver acabou. Só há uma solução: transformá-lo em Benedito Lampião, o 'cantor de protesto', vestido de nordestino, falando de 'liberdade' e de 'vamos lutar'. A esquerda festiva o aclama, o jornalista vendido perde sua porcentagem e a vontade de elogiar o Lampião. O Ibope, vestido de papa, decreta novo fim para Benedito Lampião. Para manter o prestígio, ele deve suicidar-se. [...] A platéia sai do teatro evitando sujar os saltos dos sapatos Chanel nos restos do fígado de Benedito Silva que o coro das fãs devora no final. [...] Tudo é caricatura do religioso no espetáculo, que, como atividade religiosa, se desenvolve em todo o teatro, palco, galerias, platéia (O teatro com que sonhava Antonin Artaud). Para criar o ídolo, ele é liturgicamente paramentado, peça por peça de seu ridículo traje prateado. [...] os atores se dirigem agressivamente à platéia, fazem perguntas, pedem assinaturas em manifestos, sacodem e encaram os espectadores (a censura de 14 anos me parece muito pouco severa para o espetáculo). Ben Silver se encontra com a esposa coroado de espinhos, nu, como o Cristo. A tentativa de salvar o ídolo em decadência é encenada como uma procissão, liderada pelo Capeta (seria a peça toda uma Missa Negra?) - que satiriza o jornalista marrom - usando como cruz o conhecido 'X' de lâmpadas empregado pelos fotógrafos. E a primeira cena entre Benedito e sua mulher é uma caricatura da Visitação de Nossa Senhora. [...] Elementos cristãos, aliás, são misturados com rituais pagãos (o fígado de Prometeu, as orgias de Dionísio), até com rituais políticos (a foice-e-martelo no chapéu nordestino de Benedito Lampião). José Celso, na realidade, mais que dirigir, celebrou Roda Viva".2

Por empregar em modo crítico símbolos eclesiásticos e da sociedade de consumo, e desvendar os bastidores de atuação do mercado cultural - demolindo mitos e padrões, escancarando escândalos e negociatas - Roda Viva encontra sérias oposições tanto entre a crítica e o público, e arregimenta, detratores, quanto entusiastas. Após bem-sucedida temporada no Rio de Janeiro, o espetáculo é invadido pelo Comando de Caça aos Comunistas - CCC, nas apresentações em São Paulo, onde parte do cenário é destruída e o elenco espancado. Numa viagem a Porto Alegre, nova agressão se registra, o que leva a produção a suspender sua carreira.

Notas

1. ROSENFELD, Anatol. O Teatro Agressivo. In: TEATRO Paulista 1967. São Paulo: IDART, 1968.

2. MENEZES, Marco Antônio de. Roda Viva, de Francisco Buarque de Holanda. Jornal da Tarde, São Paulo, 2 fev. 1968. Divirta-se, p. 1.


Fonte:
Enciclopédia Itaú Cultural

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Teatro de Ontem e de Hoje (O Cão Siamês)

Peça de Antônio Bivar lançada em 1969, na esteira do sucesso aberto por Cordélia Brasil, traz uma marcante interpretação de Yolanda Cardoso, que divide a cena com Antonio Fagundes, sob a direção de Emílio Di Biasi. A encenação é materialmente modesta, mas iluminada pelos intérpretes. Espetáculo cult, faz breve temporada e tem pouco público.

A peça é centrada na figura de Alzira, uma explosiva outsider, crítica, bem informada, desbocada e irreverente, que atende a Ernesto, vendedor de enciclopédias que bate à sua porta. O rapaz, casado e com filhos pequenos, revela-se uma pessoa sem sonhos, conformado com sua vida modesta e sem perspectivas. O encontro entre figuras tão díspares produz um conflito: o anarquismo de Alzira triunfa, massacrando a racionalidade de Ernesto. Para Emílio Di Biasi, "Alzira é uma heroína marginal, já que ela faz a apologia de tudo o que vai contra os princípios do que se convencionou chamar sociedade. A sociedade absurda de Ernesto contra o absurdo mundo de Alzira. [...] Ela se recusa a qualquer tipo de sentimentalismo pessoal e leva seu subconsciente violento até as últimas conseqüências".1

Em 1970, o diretor Antônio Abujamra monta o texto no Rio de Janeiro, retrabalhado e aumentado por Bivar, com a mesma atriz e com Marcelo Picchi vivendo Ernesto. A encenação alcança grande sucesso e repercussão, rebatizada como Alzira Power, retorna posteriormente para São Paulo, onde faz longa carreira.

A encenação carioca desperta vivo entusiasmo na crítica especializada, como anota Henrique Oscar no seu comentário: "O espetáculo de Abujamra está todo apoiado numa hábil direção de atores. Neste sentido, o rendimento obtido com Yolanda Cardoso é muito grande. Ela assume o papel com uma garra impressionante. Outro que se sai muito bem é o ator paulista Marcelo Picchi, em seu segundo desempenho profissional. Num papel que pede muito menos do intérprete do que sua parceira, ele tem um trabalho perfeitamente realizado, inclusive nos momentos mais perigosos que o texto lhe exige".2

Antônio Bivar completa em seu livro detalhes peculiares sobre a montagem de Abujamra: "Tirando o Hair, onde todos ficavam nus, Alzira era novidade também por, além de ser uma peça que falava fundo às mulheres - como nenhuma peça brasileira até então (a personagem-título era uma libertária desvairada) - tinha, como sobremesa, a exibição demorada e ritualística de um rapaz pelado. Não estava no texto, era coisa da direção picárdica de Antonio Abujamra".3

Yolanda Cardoso recebe, com este desempenho, todos os prêmios como melhor atriz do ano, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo.

Notas

1. ALZIRA POWER OU O CÃO SIAMÊS DE ALZIRA PÔ... LÔCA. Direção e texto Emílio Di Biasi. São Paulo, 1969. 1 folder. Programa do espetáculo, apresentado no Teatro Ruth Escobar em agosto de 1969.

2. OSCAR, Henrique. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, jul. 1970.

3. BIVAR, Antonio. Longe Daqui Aqui Mesmo. São Paulo, Best Seller, 1995, p. 17.


Fonte:
Enciclopédia Itaú Cultural

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Teatro de Ontem e de Hoje (Na Solidão nos Campos de Algodão)

Estréia, no Brasil, da peça de Bernard-Marie Koltès, encenada por Gilberto Gawronski, que encontra na economia de meios e na secura expressiva uma via de valorização do texto e da tensão dramática.

Em Na Solidão dos Campos de Algodão, o autor francês, como em outras obras, tematiza a solidão. Não há uma ação evidenciada - o texto é construído a partir de extensos monólogos e o conflito se estabelece até o final pela contraposição desses discursos que subentendem dois lados complementares de uma situação. São dois homens sem nome e sem referências passadas explícitas, que expõem, por meio da palavra, um jogo feito apenas de sugestões ao longo de cada monólogo. Tráfico de droga ou de sexo, o texto não explicita as motivações nem o local onde se dá o encontro.

As qualidades poéticas do texto são ressaltadas pela tradução de Jacqueline Laurence. Na montagem de Gilberto Gawronski, o cenário trata apenas de circunscrever o espaço e neutralizá-lo, enquanto que a iluminação cria áreas de sombra e favorece o clima ermo. Não há divisão entre palco e platéia. O espetáculo é encenado para poucos espectadores que se sentam sobre caixas espalhadas pela pequena sala, onde os dois personagens se encontram. O diretor consegue imprimir ação ao texto por meio da sugestão, estabelecendo este jogo de gato e rato, de compra e venda, trabalhado apenas na voz e na atitude, com quase nenhum deslocamento e economia de gestos. Segundo o crítico Macksen Luiz, a montagem "pulsa com a virulência de um enfrentamento, ao mesmo tempo que leva o espectador a um universo provocantemente poético" e "procura ser aliciante, quando a força dramática da peça não está naquilo que sugere ação, mas naquilo que encobre a falta de ação".1

Os dois atores trabalham em vias quase opostas. Ricardo Blat busca a interiorização e um tempo dramático emocional enquanto Gilberto Gawronski compõe uma figura socialmente nítida, com um humor ácido e uma tonicidade que sustentam o clima de tensão do espetáculo.

Notas
1. LUIZ, Macksen. A solidão pulsante. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30  nov. 1996.

Fonte:
Enciclopédia Itaú Cultural

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Qorpo Santo (Um Parto)

Comédia em 3 atos.

PERSONAGENS

Cario
Florberta
Melquíades
Guindaste
Galante
Ruibarbo
Uma mulher
Uma criada
Uma voz


ATO PRIMEIRO

CENA I


Cário — (assentado a uma mesa, provando algumas leves comidinhas) O sábio o beija, o néscio arqueja! Por que será que isto se dá!? Eu sei: Aquele viveu em Deus, com Deus, por Deus e para Deus; este, no diabo, com o diabo, pelo diabo e para o diabo! Eu me explico. Um é observador e cumpridor da Lei que por aquele lhe foi dada, e por Nosso Senhor Jesus Cristo — acrescentada. O outro, é cruel perseguidor de seus sectários... Ou daqueles que fiéis a observam, respeitam, veneram. Eis porque, repito — quando Deus fala, o sábio se ri e se cala; o néscio teme e se abala. Ou, aquele se enche de prazer; este de medo vê-se tremer! Passando, porém da religião a estas cousas que agora como, não sei o que me parecem estas comidinhas. Dão-se fatos a seu respeito; uns que me encantam, outros que me admiram; alguns que me enojam, muitos que aborrecem, diversos ou vários que me repugnam, milhares que me indignam; inúmeros para os quais não há explicação nem qualificação exata, possível... Quantas cousas me falaram hoje, ora pelo sono, ora pela forma, ora pelo gosto, ora pela espécie, ora pela cor, e também pelo sabor! Vejo que (pegando em uma estrelinha de massa) ninguém deve comer estrelas, mas estrelas de carne ou de fogo! Como, porém estas são de massa, é de crer que mal me não façam (Come uma. Pegando em outra, tira uma dentada, e a deixa quase pelo meio; olhando para ela:) Parece-me uma coroa! Não comerei. Guardarei (Põe no prato.) Pelo gosto (provando outra), cheiro e sabor, dir-se-á que — envenenada está.
Poremos também a um lado. Acho esta bebida (bebendo um cálix de vinho), com quanto espírito, assaz fraca, ou como amolecida. É cousa que também não me agrada. Não beberei mais deste liquido: veremos algum mais forte, e por isso mesmo para mim — melhor. Quê! (pegando em outro pedacinho de massa) Isto é imagem de um turíbulo! Não comerei. Esta, de uma naveta, (pegando outra) também não quero! Provarei esta fatia. (Corta dois ou três pedacinhos, e come.) Que tal? É sempre igual.

(Levantando-se um pouco.) Eis a barretinha de um soldado, que ofendido ou maltratado em seus brios ou dignidade, na Vila Nova do velho Triunfo, por um seu capitão, em princípios da infausta, nefanda, prejudicial e mais que indigna revolução de 1835, teve a precisa coragem para salvar sua honra e dignidade; para dar um imitável exemplo a seus camaradas; para meter um dedo do pé no pinguelo da espingarda, encostar a boca desta no peito em frente ao coração, e disparar assim estrondoso tiro, que o transportou instantaneamente à presença do Eterno. Feliz soldado, era de um batalhão cujo título ou número não me lembro; suponho que paraense, e em o qual havia um capitão com o nome — Chaguinhas, de péssima fama — que julgo muito pouco tempo durou, bem como a maior parte desse corpo de infantaria, destruída quase toda — poucos dias depois pelos generais Neto e Canabarro. Estes corações (pegando em um coração) enchem-me de benções; não os quero; estou deles assaz farto. A estes gozos preferiria a companhia, que traz alegria... (Olhando com atenção para um sinal em uma mesa.) Este sinal é feito por um pingo de espermacete; isto, porém não é o que admiro: uma cabeça perfeita, um nariz afilado, com uma cara completa, queixo, barbas, um boné igual ao de um oficial francês ou alemão que há tempos vi, e até com um penacho — é o que realmente para mim não direi mais que admirável, mas algum tanto espantoso... Enfim, paremos com isto: são horas de dormir; vamos deitar-nos. (Levanta-se, dá alguns passos e encosta-se a um sofá, cama, ou cadeira de balanço.)

CENA II

Cário — (levantando-se.) Estou satisfazendo o desejo, ou cumprindo o projeto que fiz de ir viajar à Europa, e de lá, cheio de ciência, voltar a derramar sobre Os meus comprovincianos, compatriotas, e mais habitantes do Império Brasileiro. Está se servindo Deus de mim para punição de uns e prêmio de outros. Não me convém, não devo escrever sobre os mortos, ou fazer nênias. Convém-me mais passear, que estar em casa; passeando, me entretenho; me divirto; e fortifico; em casa me enfraqueço, e sempre apeteço... Fora, não necessito trabalhar, mas apenas conversar: em casa não posso deixar de o fazer sem cessar... Ao homem convém caminhar, falar, pular, dançar, palrar e o exercício de mais de um milhão de verbos acabados em ar, ar, ar, ar, etc. etc. etc. etc. Como é difícil, e tantas vezes impossível, a conciliação de interesses opostos! Sente-se uma necessidade; é-se instado por um desejo; procura-se satisfazê-lo; encontra-se uma dificuldade...
Alguém geme, alguém chora, que nos dói, que nos estorva. Mas por que lamentar? Se necessário, vençamos; ou sigamos os impulsos de nossa inteligência; os conselhos de nosso coração; ou os conselhos daquela, e os impulsos deste.
Façamos algum sacrifício, visto que ninguém (é de conjecturar) há que viva sem os fazer. É preciso fortalecermo-nos; é preciso não fraquecermo-nos. Se eu atendesse, direi neste momento, aos desejos que tive (depois de haver passeado e meditado algum tempo zangado), teria escangalhado, talvez destruído ou inutilizado um baluarte, cujas forças já me não convém conservar. Se, porém lhe presto muito atenção, se me penalizo de seu sofrer, do que se me representa à imaginação, terei de viver qual preso em cadeia. Enquanto, pois não tenho emprego, mais que o de compositor, preciso me é buscar por toda a parte, onde houver melhor, ou mais me agradar — aquilo que me falta e de que mais careço. (Olhando para o ar.) O baluarte sibila! Não prestar-te-ei pois mais atenção, enquanto de longe me falar teu coração! Assim triunfou (triunfarei eu também de ti) um de meus amigos — de igual impertinência — só útil n'aparência! (Pega o chapéu e sai.).

CENA III

Florberta — Que força tem o destino! Umas vezes cruel e destruidor como o raio ou a tempestade; em outras vezes tão benigno como o amor ou a saudade!

(Canta:)

Às vezes é tão cruel
O bárbaro, feroz destino,
Como horrosa tempestade,
Ou o raio destruidor

Em outras mais que fiel,
Tão amigo, tão benino,
Nos enche de flicidade,
De gratidão, e de amor.

Os malvados (atravessando o cenário depois que profere cada um período) estão sempre condenados. Quem estará por ai se assoando, que tanto me está enjoando! A Ciência, o ouro e a água são cousas que quanto mais abundam, menos param ou mais velozes necessitam correr. Quando sinto-me menos forte, ou temos destruição, ou é morte. Quando o Estado carece para sustentar-se ou progressar — de uma parte de nossos serviços é justo que lhes prestamos, bem como que este, uma parte de seus benefícios a nós quando d'Ele carecemos. É com esta reciprocidade de atenções, de benefícios, de amparo — que os Estados e os súditos seus — conservam e prosperam. Se eu tivesse disposição de escrever sobre relações naturais, diria que ainda hoje o chá que tomei levou-me à presença de alguém, de quem ouvi a mais tremenda descompostura!... Servir-me-á, se pudermos continuar a escrever comédias, para uma bela cena de algum dos Atos; mesmo para começo, parece excelente. Não foi nada menos que o seguinte: Bati por duas vezes em uma porta, ouvi mandar a pessoa a quem buscava abrir a porta; como se demorava o criado, empurrei-a, e entrei; a pessoa era muito minha conhecida, e de baixa esfera.
Quereis saber o que ouvi dela? Eis: A Sra. é muito atrevida! Teve a audácia de entrar em minha casa sem que eu fosse abrir-lhe a porta! Pensa que esta casa é casa de prostitutos? Está muito enganada! Retire-se; e se está louca, vá para a Caridade! Quereis saber o que lhe respondi? Eu vô-lo digo. Eis: "Não se incomode, Sr. Bem sabe que não é a primeira vez que eu venho à sua casa. Foi-me necessário á vir hoje; desculpe portanto: se a minha presença não lhe agrada, eu me retiro. E retirei-me, sem mais cumprimentos. Fui, entretanto, opostamente, recebida por pessoas da mesma casa, que para tal não tinha dever com o maior afeto possível; notando em seus semblantes o maior desprazer pela grosseria estúpida daquele que devia-me prestar atenção. Há de entretanto servir para algum fim útil.

CENA IV

Casto — (entrando) Que mania de mil diabos! Querem por força que eu viva amigado — sem que isso possa ser! Sim! Irra, irra! (Sacudindo os braços.) O diabo que satisfaça semelhante gente! Hei de mandar à olaria fazer de propósito uma mulher para com ela me ligar sem o preenchimento das formalidades religiosas... E, pobre, — não me serve! Há de ser rica, formosa, e asseada; senão, nem assim combino, me combino... Ou... Concubino! Tri, tri, tri...

(Faz duas ou três piroletas,tocando castanholas, e sai aos pulinhos...

Cário — (depois que entra) Como se transtornam as cousas deste mundo! Quando  pensaria eu que indo à casa de um médico fazer uma ligeira visita, havia de transtornar uma comédia!? Quanto é preciso ao homem que se dedica a composições intelectuais, ter regime certo ou invariável! Uma visita transtornou uma comédia; qualquer ação obsta à conclusão do mais importante trabalho. Quão bem foi começada esta comédia, e quão mal acabada vai! Já nem posso chamar a isto mais comédia... Enfim, vereis se posso concertar minhas idéias, e prosseguir então.

(Sai.)

ATO SEGUNDO

Quarto de estudantes

CENA I
Melquíades, Guindaste, Galante e Ruibarbo.

Melquíades — (deitado) Fiu! fiu! (Assoviando.) Não está: tão cedo já sairia a passeio!? Quem sabe! Talvez; pode muito bem ser. (Torna a chamar:) — Maria! Joana! Teresa! Antônia! Joaquina! Michatas! (Pausa.) Que diabo! Não aparece nenhuma das criadas. Ainda estarão dormindo. Que judias! São (abrindo o relógio) nove horas do dia, cinco da tarde, duas da noite, seis da madrugada, e ainda dormem!

— É muito, muitíssimo grande, (figurando com as mãos o tamanho) grandíssimo dormir! — Manuel! Antônio! Mercúrio! Ninguém fala; está tudo em silêncio... Em silêncio profundo!... Profundíssimo! Pois — Résquiés d'impace nas catacumbas do cemitério do Corpo-santo na cidade do Porto, Portugal dos portugueses — para vocês todos! Que os levem 30.000 diabos e demônios para os mais fundos infernos lá do outro mundo: pois cá nos deste ainda vocês me poderiam incomodar!

Guindaste — (calçando as meias) Há três dias que ando incomodado; ora do estômago, ora dos intestinos, ora das barrigas... Ah! São duas, é plural — das pernas e da cabeça; e ainda esta noite passei uma noite horrível. Não sei que é isto! Até as águas-da-colônia que sempre me serviram de remédio para estes males, desgraçadamente hoje parece que hão produzido os efeitos contrários!...

Galante — Que diabo terei eu nestas cabeças (Tirando o barrete com que havia dormido.) Parece que tem espinhos! Ora picam-me as pernas, ora as coxas e até na cintura me importunam, ou me ferem. Safa! (Tirando a calça.) O que havia de ser? (Pegando em um carrapicho e mostrando.) Um carrapicho!... Malditas lavadeiras, que parece de propósito para o mais lanoso entretimento dos néscios fregueses — porem na roupa estes espinhos! (Atirando-o.) Lá vai, lavadeira de roupa, vê se o engoles pelo nariz.

Ruibarbo — (andando) Como as lavadeiras não te hão de fazer dessas, se tu não lhes pagas a lavagem e o engomado da roupa — como elas desejam!

Galante — Essa é boa! Essa é bem boa! Essa ainda é melhor!... Ainda ontem paguei seis mil e tantos réis, e dizes que eu não pago!?

Ruibarbo — Mas não é assim que elas querem!...

Galante — Pois de outro modo, não sei. Não o entendo. Eu sou inglês, e inglês de muito boas raças! Portanto não vivo... Vivo de mistérios.

Ruibarbo — Pois és um tolo. Estuda a lavadeira, faz- lhe elogios, mostra-te a ela afeiçoado, e verás como ela te trata, te lava, te goma admiravelmente!

Melquíades — (para Galante) Que hei de eu estudar hoje?

Galante — Estuda disciplina.

Melquíades — Assim eu sou tolo!

Ruibarbo — Pois ainda pensas em estudos, depois de velho, com a prática dos homens, e mesmo das mulheres!?

Melquíades — Que queres? Nasci mais para estudar que para vadiar!

Galante — És um pateta! Com as disciplinas escangalhavas tudo. Triunfavas dos amigos e dos inimigos! Sem elas, não sei como te haverás; quer com uns, quer com outros! Enfim tu lá sabes.

Melquíades — Estou me resolvendo um dia a atirar com os livros ás ventas dos mestres. Com os temas às dos lentes! E finalmente, com as botas às dos criados!
(Pega nestas, atira nos companheiros e sai.)

Guindaste — É bem atrevido este meu sogro!

Galante — (para Guindaste) Pois tu és casado!? Ainda agora é que sei! Pois o Melquíades já tinha filhas moças!? Ainda mais esta — estudante casado e com filhos!

Guindaste — Se o não sou, ainda hei de ser. Se as não tem, ainda há de ter. E por isso se ainda o não sou, em breve hei de ser, e posso, portanto desde já il~o tratando de sogro.

Galante — És o primeiro calculista do Mundo!

Ruibarbo — Vocês querem passar o dia de hoje em conversa!? Não querem estudar, pensar, meditar sobre o que há de extraordinário da Revolução Francesa, livro mais que todos apreciável pela grande exemplar lição que transmite à humanidade!

Melquíades — (chegando à porta do dormitório com boa porção de livras em baixo do braço esquerdo, muito apressado.) Vamos para as aulas! São horas! Se se demoram, perdem a lição de hoje! Andem! Andem! Saiam! Venham!

(Guindaste e Galante pegam em vários livros, dão duas voltas e saem.)

Guindaste — (arrumando a cama) Vão indo que eu já vou!

Galante — Não te demores, que eu preciso de ti!

Ruibarbo — Sim; sim. Vão indo; eu lá irei logo! (Saem.) Estes meus colegas são o diabo em figura de homens, ou de rapazes! Tudo desarrumam! É preciso uma... não: paciência de Jó, ou de algum outro Santo para aturá-los! Enfim, (depois de todo o quarto arrumado) é preciso aturá-los! É melhor que andar com eles aos tombos, puxões ou cabeçadas.
(Pega em um livro.) São horas, vou às minhas lições de Retórica! E logo continuarei a escrever a minha encantadora comédia — a Ilustríssima Senhora Dona Anália de Campos Leão Carolina dos Santos Beltrão Josefina Maria Leitão História das Dores Patão, ou Bulhão, etc. etc. Dizem os médicos, e confirmam os lógicos: As cousas que têm de trabalhar, apertadas, não poderão fazer tão bom serviço como — desembaraçadas; e eu o creio pia e firmemente. Exemplifiquemos com os próprios homens e seus órgãos. Suponha-se que estão a trabalhar em uma sala vinte pessoas, e que na mesma não o podem fazer livre ou desembaraçadamente mais que dez ou doze. Pergunto: seu serviço, obra, ou trabalho, sairá tão perfeito, como se trabalhassem aqueles que — bem — só o podiam fazer? É de crer que não. Outro: Temos órgãos — da vista, do ouvido, do olfato, que por certo oprimidos, ninguém dirá que — bem funcionam. Assim, pois devem ser os do nosso estômago, intestinos, etc. Apertados, não poderão funcionar, transformar ou digerir os alimentos ou cousas de que nos alimentamos, com aquela facilidade com que o fazem ou devem fazer não opressos ou desembaraçados. Se aperto os meus dedos, não posso escrever, nem com a mão cousa alguma fazer! Se, porém esta está desembaraçada, com ela faço o que quero, ou o que posso. Logo — não convém a opressão; se se quer trabalho abundante e perfeito!

CENA II

Melquíades — (entrando, atrás Guindaste, e após este, Galante. O primeiro com muito desembaraço, e atirando com os livros com estouvamento, quer de gesto, quer de palavras) Ó Ruibarbo, não foste hoje à lição!? És o diabo em figura de estudante! Pois sabe que eu fui, vim e estou aqui! Pus por terra todos os troianos! Foi o lado que hoje perdeu nas sabatinas o mais vergonhosamente que é possível. Nem a batalha que inutilizou Napoleão I; nem as melhores vencidas por Alexandre o Grande; nem finalmente a em que César destruiu Pompeu — se podem comparar à que hoje venci dos nossos amigos Paraguaios!

Ruibarbo — Pois eu declaro-vos que não fui à aula! E se quiserem saber o porquê, dir-vos-ei: — Primeiro, porque não quis. Segundo, porque estou ocupado com algumas lições de Medicina. Terceiro, porque vocês são pouco cuidadosos de nosso quarto, e eu não posso tolerar porcaria, desarrumação, etc. Quarto, porque...

Melquíades — (com muita desenvoltura, assentando-se em outro lugar, ou mudando de assunto) Já sei, já sei. Tu és um estudante privilegiado. Tens até um breve do Papa. Quando te apertam fora da Igreja, entras para a Igreja, e quando te aborreces muito desta, safas-te com a maior sem-cerimônia! (Batendo-lhe no ombro.) És muito feliz, felicíssimo mesmo. (Os outros: cada qual acomoda seus livros e senta-se).

Melquíades — (pegando em um papel, em que Ruibarbo havia escrito) Oh! Este Ruibarbo, quanto mais estuda, menos aprende! Pois ele ainda suprime letras quando escreve!

Ruibarbo — Doutor! Você não vê que quando assim procedo faço um grande bem ao Estado!?

Melquíades — Geral bem!?

Galante — São cousas do Ruibarbo! Tudo quanto ele faz diferente de outros homens, sempre protesta ser por fazer bem, ou por conveniência do Estado. Não é mau modo de se fazer o que se quer! É uma capa maior que a de Satanás! É uma espécie de Céu que ele tem, com que costuma abrir a terra!

Ruibarbo — Eu me explico: Quando escrevo, penso, e procuro conhecer o que é necessário, e o que não é; e assim como, quando me é necessário gastar cinco, por exemplo, não gasto seis, nem duas vezes cinco; assim também quando preciso escrever palavras em que usam letras dobradas, mas em que uma delas é inútil, suprimo uma e digo: diminua-se com esta letra um inimigo do Império do Brasil! Além disso, pergunto: que mulher veste dois vestidos, um por cima do outro!? Que homem, duas calças!? Quem põe dois chapéus para cobrir uma só cabeça!? Quem usará ou que militar trará à cinta duas espadas! Eis por que também muitas vezes eu deixo de escrever certas inutilidades! Bem sei que a razão é — assim se escreve no Grego; no Latim, e em outras línguas de que tais palavras se derivam; mas vocês que querem, se eu penso ser assim mais fácil e cômodo a todos!? Finalmente, fixemos a nossa Língua; e não nos importemos com as origens!

Melquíades — Enquanto passares bem assim, continua; mas logo que te deres mal, é melhor seguir a opinião geral. (Ouve-se tocar a sineta, que convida a jantar; aos saltos; pondo as mãos na cabeça; e outras extravagâncias.) São horas! São horas!
(Puxa Ruibarbo.) Vamos! (Este se deixa estar assentado. Puxa outro; convida; salta; pula; pega em um rebenque.) Ah! Vocês até para comer têm preguiça!? (Dá uma pancada com o chicote sobre urna mesa, os outros saltam ligeiramente à porta; e saem todos.).

Ruibarbo (atrás.) O Melquíades hoje está limpo, lavado, engomado, escovado, e penteado!

Galante — Ele triunfou dos Paraguaios! É preciso obedecê-lo!

Guindaste — Eu o faço para tal fim, com muito prazer!

ATO TERCEIRO

CENA I


Uma Mulher — (muito atenta, ouvindo alguns gemidos) Quem gemera? Quem estará doente? Será minha avó, ou meu avô!? Sabe-o Deus; eu apenas desconfio, e nada posso afirmar! Entretanto, convém indagar. (Aproxima-se de uma porta, escuta, e volta.) Ah! Quem há de ser? (Arrastando.) É a cabritinha de minha avó, tia, e irmã, que acaba de parir três cabritos. Ei-los (Atira-os ao cenário.)

Melquíades — (entrando.) Oh! Que espetáculo é este! Cabritos em meu quarto de dormir! Oh! Mulher, donde veio isto!?

A Mulher — Ora, de onde havia de vir! Boa pergunta! O Sr. não sabe que seus avós têm o luxo de criar cabras!? E que criando-as por força hão de parir!?

Melquíades — Que têm parido, e hão de parir, sei eu muito bem! Mas o que me espanta é que a parição, parto, ou como quiserem chamar, tivesse lugar em meu quarto de dormir! É isto o que assaz me admira!

A Mulher — Não foi aqui; mas eu ouvi gemer, e cuidei que era sua avó ou seu avô; fui ver; encontrei-os; trouxe-os; e aqui estão!

Melquíades — Pois bem; agora vá preparar um para a ceia.

A Mulher — (cheia de nojo) Eu, fazer? Deus me livre! Isto tem um cheiro... Seria preciso, para se poder comer, pôr de molho três dias em alho, cebola, vinagre e cuentro.

Melquíades — Pois então, (muito zangado) tire-me daqui estas porcarias, que já me estão causando nojo! Anda! Anda! Tira isto daqui!

Uma Criada — (puxando a cabra pelos chifres) Vem, vem, vem cá, cabritinha, cabritinha!

Melquíades — Isto está demorando muito! (Dá um pontapé na cabra, que a atira; os cabritos esforçam-se por correr, ele pega em um, e esfrega na cara da criada.) Que tal, Sra. D. Nojenta! Cheira ou fede?

Criada — Nunca gostei destas graças! (Larga a cabra e sai.)

CENA II

(Entram Ruibarbo,Galante e Guindaste)

Ruibarbo — Isto é admirável! Gatos ensopados pelo soalho derramados!

Galante — Ensopados! (Reparando com muita atenção.) Só se o foram na barriga da mãe! Oh! E não me enganei; ei-la (Apontando para a cabra.)

Guindaste — Vocês são os mais extravagantes estudantes que eu tenho conhecido. Se fôssemos de Medicina, que bom estava para desenojar, mas somos de Direito, não nos pode aproveitar! O que é mais interessante é a lembrança de que estavam ensopados, achando-se em pé, e em estado de perfeição.

Ruibarbo — Não admira! Bem perfeitos são os animais, e as aves cheias, entretanto não estão vivas.

Guindaste — Mas não se diz que crê que foram ensopadas.

Ruibarbo — Sim, Sr... Mas quem não poderia dizer que estivessem assados?

Galante — Ainda vocês ignoram uma cousa: Sabem o que é? É que o nosso amigo Melquíades deu esta lição à criada, que tão pacificamente e bem sempre nos serve — esfregou-lhe com um destes cabritos: cara, boca, nariz, olhos, e não sei que mais — saiu daqui tão enjoada, que não corria; qual águia; voava; ou ia qual avestruz avoada!

Melquíades — Sabem o que mais?... Eu não quero estar vendo aqui estas imundícies! (Chamando.) Rigoleto! Rigoleto!

Uma Voz — Não está! Peguem vocês cada uma no seu, e os ponham longe daqui!

Guindaste — (para os outros) É mesmo, isto é muito enjoativo! Nem eu posso abrir um livro com eles diante de mim. Pega no teu, Galante! Ruibarbo, leva o outro!
(Pega cada um no seu e os põe fora de cena).

Ruibarbo — (para os outros) Não há remédio, senão aturá-los.

Melquíades — E eu que o diga! Mas, que faremos nós aqui metidos? Não era melhor que fôssemos passear, ver as moças, e também algumas velhas? Hem? Hem? Falem, que estou desesperado! Come-me hoje este corpo; sinto nele tal coisa... Certo prurido... E não sei que mais — que não posso estar parado um momento!

Ruibarbo — Cruzes! Contigo, Melquíades.

Melquíades — Comigo — não quero cruzes! Mas, se for algum cruzeiro, ainda poderei aceitar. Quanto a cruzes, bastam estas (apontando para os livros) que aqui vedes.

Galante — Pois eu quero tudo: cruzes, cruzeiros, cruzados, cruzinhas, cruzadas, e tudo o mais que me oferecem, e que eu posso gozar sem perder!

Guindaste — Sem perder, não, Galante. Sem padecer ou sofrer, sim! Por força que gozando…

Galante — Não sabes o que dizes: há homens que quanto mais gozam, mais ganham! Portanto, avancei uma proposição as mais das vezes verdadeira, inda que algumas vezes falível.

Melquíades — Sabem o que convém — e me entretém? Passear, conversar, ver as moças. (Pegando o chapéu.) Os que me quiserem acompanhar, sigam-me! Vamos, vamos todos! (Puxa um, puxa outro; nenhum quer sair; ele pega na bengala e sai.).

Guindaste (para Galante:) Este Melquíades mudou completamente! Passou de estudante ao mais extravagante do seu século. Cruzes! Abrenúncio! Está atrevido como o diabo!

Ruibarbo — Isto é porque ele fez anos hoje! Amanhã…

Guindaste — Então diga-me isso! Eu logo vi.

Melquíades — (entrando, passados alguns minutos) Já sabem, rapazes — que passeei, andei, virei, mexi, e revolvi. E que nada resolvi sobre o que buscava e o que vi! Pois é verdade, e tão certo como o Carneiro de Cão estar com os olhos abertos. (Aponta para Galante.) E apenas duas cousas aprendi, ou dois pensamentos colhi! Primeiro, que há dois modos de viver em sociedade; um de que só se freqüenta mulheres de certa classe, a casas de jogo, etc.; outro em que olha–se com grande indiferença para tudo isto, e até muitas vezes com repugnância e só se freqüenta casas de família, ou gente de classe mais alta, ou mais distinta! Há também esta diferença, e é que os que querem ser verdadeiros constitucionais, e não têm família, isto é — não são casados, ou sendo não vivem com suas mulheres, são forçados a freqüentar aquelas; e os que nenhum caso fazem da Constituição, e os que mais e melhor gozam! Já vêem, portanto que não perdi o tempo.

Guindaste — (para Galante e Ruibarbo:) Sempre o nosso Pai dá provas de que ainda é estudante! Sempre nos traz alguma cousa... Descobertas de cousas que ignorávamos colhidas de suas experiências filosóficas! E com isso faz também de Lente, pois leciona-nos.

Melquíades — A outra verdade, ou o outro fato, é que muitas vezes isto provém de comermos dos hotéis, ou de mandarmos fazer as comidas em nossas próprias casas! Aquelas nos conduzem às primeiras; ordinariamente estas as mais das vezes às segundas! Contudo, há nesta regra numerosas exceções, e é também conforme são os hotéis. Notai bem que muitas vezes se observa uma verdadeira confusão. O que, porém é indubitável, é que as comidas e as bebidas nos conduzem a este ou àquele trabalho, a esta ou àquela casa, a este ou àquele indivíduo, a este ou àquele negócio! Podem até conduzir-nos a um crime! Como o podem fazer, e muitas vezes o fazem, a um ato de virtude, a uma ação heróica, a uma ação vil ou indigna.
(Continuando.) Sinto às vezes certo estreitamento no canal que conduz ao estômago. Tenho querido atribuir à falta de certo ato... Mas ao mesmo tempo lembra-me que as crianças, os velhos, as velhas, os doentes, os que viajam pelas campanhas, os que estão em guerra — não praticam tais atos, entretanto sei de muitos que padecem igual incômodo. Consequentemente devemos crer que a razão principal não é essa. Talvez provenha das qualidades dos próprios líquidos e das carnes de que nos alimentamos, e até das casas em que moramos, e mesmo das pessoas que nos servem, ou a quem mais praticamos. Meninos! Quero contar-vos mais uma verdade médica por mim descoberta hoje; e é — que é sempre um mal que incomoda, sair por cima o que deve sair por baixo! Se soubésseis quanto me...
Que desagradável efeito me produz algumas vezes o cuspir! Se ao menos eqüivaler ao que escrevo, ou ser substituído pelos pensamentos! Mas quê! Tenho experimentado, e sempre acho desagrado. — Outra descoberta: Certa pessoa até certo tempo — não podia passar, quando comia ou bebia alguma cousa, sem procurar uma pessoa, que se parecesse com o objeto ou cousa, de que se servia; entretanto em um dia — o que havia de pensar, de que se havia de convencer: — que devia proceder de modo diametralmente oposto, isto é, que quando tomasse chá, por exemplo, não devia para isso como antes procurar pessoas que tivessem essa cor: e assim a outros preceitos! Acho, porém bonito que pratiquemos, ou procedamos — se isso nos não causar algum desgosto — conforme esta nos aconselham; ainda que só espiritualmente, o que se faz de milhares de modos.
Meninos! Vou descansar! (Deita-se; e enrola-se no cobertor. Para os companheiros
de quarto:) Se alguém me procurar, dizei-lhe que durmo!

Ruibarbo — Galante, que te parece o nosso Pai Melquíades!? É um homem divino! É o maior sábio do Universo! Valente como os mais valentes, ativo como o sol, amável como a mais amável Princesa, interessante como o firmamento, bom como o melhor dos Pais.

Galante — Tu não te enganas, mas esqueceste acrescentar — extravagante e desenvolto, às vezes, como uma provocadora cobrinha!

Guindaste — E para prova de tudo isto, vejam o que ele fez hoje: saltou; pulou; dançou; fez o diabo, como estudante! Depois aconselhou, ensinou, pregou, fez-se santo, como Filósofo! Ultimamente, relampagou, iluminou como rei! E agora, como acabam de ver, atirou-se naquela cama, como um cansado estudante; ou qualquer outro ente de vida pouco séria, e bruscamente no cobertor se enrolou.

Melquíades — (levantando-se rapidamente e atirando o cobertor à cara dos companheiros e discípulos) Nem todos os momentos podem ser agradáveis: deitei–me; procurou alguém por ventura por mim?... Estava em um tão agradável sonho... Quando de repente senti um movimento em meu cérebro que assaz me contristou. Levantem-se, rapazes! Vocês são a Quinta-essência dos preguiçosos!

Todos — (levantando-se) Que é isto, Melquíades!? Estás desassisado?

Melquíades — Ó diabo, pois vocês que faziam assentados!? (Gritando.) Vamos! São horas de escola! Caminhem, saiam! Saiam! (Os outros levantam-se, e ele os faz sair rapidamente caindo livros de uns; outros de chinelos; enfim, é uma desordem completa entre os quatro; como se um incêndio, ou alguma cobra venenosa se visse no quarto.)

(E assim parece dever terminar este Ato — com as seguintes palavras de Melquíades) Se eu não espanto estes madraços — nem para o chá ganhariam hoje!

Porto Alegre, Junho 16 de 1866.

FIM

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br