quinta-feira, 10 de abril de 2008

Gunter Lorenz (Entrevista com Guimarães Rosa)

Trechos da entrevista concedida a Günter Lorenz em 1965, em Gênova*

(…) Lorenz: (…) Gostaria de falar com você sobre o escritor Guimarães Rosa, o romancista, o mágico do idioma, baseando-nos em seus livros que fazem parte, penso eu, do tema “o homem do sertão”.

Guimarães Rosa – Sim, acho que se quiséssemos dizer sobre estes três ou quatro pontos tudo o que temos de dizer, daqui a um ano ainda estaríamos conversando. E nem você nem eu temos tanto tempo. Suponho que esta enumeração das coisas que lhe interessam a meu respeito não tem uma seqüência estrita…

Lorenz: Apenas uma seqüência improvisada, intercambiável.

Guimarães Rosa – Precisamente. E por isso gostaria que começássemos pelo que você mencionou como tema final. Chamou-me “o homem do sertão”. Nada tenho em contrário, pois sou um sertanejo e acho maravilhoso que deduzisse isso lendo meus livros, porque significa que você os entendeu. Se você me chama de “o homem do sertão” (e eu realmente me considero como tal), e queremos conversar sobre esse homem, já estão tocados no fundo os outros pontos. É que eu sou, antes de mais nada, este “homem do sertão”; e isto não é apenas uma afirmação biográfica, mas também – e nisto pelo menos acredito tão firmemente como você – que ele, esse “homem do sertão”, esta presente como ponto de partida mais do que qualquer coisa.

Lorenz: Fixemos este ponto de partida; e para encaminhar nossa conversa, queria propor-lhe um início convencional: biográfico, embora ele já não seja tão convencional, se minhas conclusões sobre o que disse há pouco estiverem certas. Nasceu no sertão, aquela estepe quase mística do interior de seu país, encarnada como um mito de consciência brasileira…

Guimarães Rosa – Sim, mas para sermos exatos, devo dizer-lhe que nasci em Cordisburgo, uma cidadezinha não muito interessante, mas para mim, sim, de muita importância. Além disso, em Minas Gerais. Sou mineiro. E isto, sim, é o importante, pois quando escrevo, sempre me sinto transportado para esse mundo. Cordisburgo. Não acha que soa como algo muito distante? Sabe também, que uma parte de minha família é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na realidade é um sobrenome sueco que na época das migrações era Guimarães, nome que também designava a capital de um estado sueco na Lusitânia? Portanto, pela minha origem, estou voltado para o remoto, o estranho. Você certamente conhece a história dos suecos. Foi um povo que, como os celtas, emigrou para todos os lugares sem poder lançar raízes em nenhum. Este destino, que foi tão intensamente transmitido a Portugal, talvez tenha sido o culpado por meus antepassados se apegarem com tanto desespero àquele pedaço de terra que se chama o sertão. E eu também estou apegado a ele…

Lorenz: Você está se referindo a seu “caráter literário” que inclui no importante grupo de literatos brasileiros denominados regionalistas?

Guimarães Rosa – Sim e não. É necessário salientar pelo menos que entre nós o “regionalismo” tem um significado diferente do europeu, e por isso a referência que você fez a esse respeito em sua resenha de Grande Sertão é muito importante. Naturalmente não gostaria que na Alemanha me considerassem um Heimatschriftsteller. Seria horrível, uma vez que é para você o que corresponderia ao conceito de “regionalista”. Ah, a dualidade das palavras! Naturalmente, não se deve supor que quase toda a literatura brasileira esteja orientada para o “regionalismo”, ou seja, para o sertão ou para a Bahia. Portanto, estou plenamente de acordo, quando você me situa como representante da literatura regionalista; e aqui começa o que eu já havia dito antes: é impossível separar minha biografia de minha obra. Veja, sou regionalista porque o pequeno mundo do sertão…

Lorenz: Pequeno talvez para o Brasil, não para os europeus…

Guimarães Rosa – Para a Europa, é sem dúvida um mundo muito grande, para nós, apenas um mundo pequeno medido segundo nossos conceitos geográficos. E este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de contrastes, é para mim o símbolo, diria mesmo modelo de meu universo. Assim, o Cordisburgo germânico, fundado por alemães, é o coração do meu império sueco-latino. Creio que esta genealogia haverá de lhe agradar.

Lorenz: O que importa é que, além disso, ela é exata. Mas voltemos à sua biografia…

Guimarães Rosa – Creio que minha biografia não é muito rica em acontecimentos. Uma vida completamente normal.

Lorenz: Acho que não é bem assim. Em sua vida você passou por sua série de etapas muito interessantes, até mesmo instrutivas. Estudou medicina e foi médico, participou de uma guerra civil, chegou a ser oficial, depois diplomata. Deve haver ainda outros fatos, pois estou apenas citando de memória.

Guimarães Rosa – Chegamos novamente ao ponto que indica o momento em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte…

Lorenz: Deve-se considerar isto como uma escala de valores?

Guimarães Rosa – Exato, é uma escala de valores.

Lorenz: E estes conhecimentos não constituíram, no fundo, a espinha dorsal de seu romance Grande Sertão?

Guimarães Rosa – E são. Mas devemos acrescentar alguns outros sobre os quais ainda temos de falar. Mas estas três experiências formaram até agora meu mundo interior; e, para que isto não pareça demasiadamente simples, queria acrescentar que também configuram meu mundo a diplomacia, o trato com cavalos, vacas, religiões e idiomas.

Lorenz: Parece uma sucessão e uma combinação um tanto quanto curiosas de motivos.

Guimarães Rosa – Bem, tudo isto é curioso, mas o que não é curioso na vida? Não devemos examinar a vida do mesmo modo que um colecionador de insetos contempla os seus escaravelhos.

(…) Lorenz: Atrevo-me a apostar que a maioria de seus leitores alemães, antes de ler seu livro, nem sequer sabia que o sertão existe. Provavelmente ainda o considera uma invenção sua.

Guimarães Rosa – Também acho. Recentemente, durante minha viagem à Alemanha, convenci-me disso. Um crítico que me foi apresentado como homem famoso – prefiro não dizer seu nome – felicitou-me por eu haver “inventado uma nova paisagem literária”, tão “magnífica”, assim entre aspas. Coisas semelhantes me aconteceram na Itália, na França e até na Espanha. Mas é preciso aceitar essas coisas, não se pode evitá-las. Quando escrevo, não posso estar constantemente acrescentando notas de rodapé para assinalar que se trata de realidade.

(…) Lorenz: E o seu Riobaldo? Acho que você ainda não acabou de caracterizá-lo.

Guimarães Rosa – Eu sei. Gostaria de acrescentar que Riobaldo é algo assim como Raskolnikov, mas um Raskolnikov sem culpa, e que, entretanto, deve expiá-la. Mas creio que Riobaldo também não é isso. Melhor, é apenas o Brasil.

(…) Lorenz: Novamente um paradoxo magnífico: “eu tento o impossível”. Entretanto, deveríamos ser ainda mais concretos. Temos essa questão do compromisso, que talvez pudéssemos utilizar nesse sentido. Como você definiria, por exemplo, sua concepção do dever de um autor, diferenciando-a de Astúrias ou, naturalmente, de Jorge Amado?

Guimarães Rosa – Gosto de Astúrias porque se parece tão pouco comigo. Este homem é um vulcão genial, uma exceção, segue suas próprias leis. Nós nos entendemos e nos admiramos, porque somos muito diferentes um do outro. Mas ele vive de um modo que gera perigo: ele pensa ideologicamente.

Lorenz: E Jorge Amado? Você não acha que este grandioso fabulista e amigo dos homens também pensa ideologicamente?

Guimarães Rosa – Sem dúvida, ele também é um ideólogo; mas sua ideologia me é mais simpática que Astúrias. Astúrias tem algo do distanciamento incorruptível de um sumo-sacerdote; sempre enuncia novos dez mandamentos. Isto é admirável, mas não encanta. As palavras de Astúrias são palavras de um pai, de um patriarca que emite sentenças no sentido do Antigo testamento. Amado é um sonhador, e sem dúvida alguma um ideólogo, mas adota a ideologia do conto de fadas com suas normas de justiça e expiação. Amado é um menino que ainda crê no Bem, na vitória do Bem; defende a ideologia menos ideológica e mais amável que já conheci. Astúrias é a poderosa voz do juízo final. Amado vai dando pinceladas a mais não poder, e certamente quer mandar ao diabo muitas coisas, mas o faz de forma tão encantadora que nos convence com maior razão. Astúrias se expressa com palavras de ferro.

(…) Lorenz: Ainda tenho uma última pergunta, a cuja resposta dou muita importância. Não ria, vou lhe perguntar em que está trabalhando agora. Sei que isso não levaria a nada. Mas gostaria que me dissesse o que pensa do futuro da América Latina.

Guimarães Rosa – Realmente, pensei que você estava querendo me comprometer agora e depois me perguntar todo ano quando ficaria pronto o livro anunciado. Prefiro que não tenha sido assim. Sou um homem que viu muitas coisas no mundo, que entende muito de literatura mundial. Não quero pecar por presunção, mas comparando quantitativamente o que se escreve, por exemplo, na Europa, com o que se escreve entre nós, sinto-me um tanto orgulhoso. É claro que também entre nós se imprime muita coisa medíocre que nada tem a ver com literatura. Mas isso existe sempre e em toda parte. Entre nós, não só no Brasil e não só entre os escritores velhos e os de minha geração, há muitos que justificam as maiores esperanças e permitem que encaremos tranqüilamente o futuro. A América Latina se tornou no terreno literário e artístico, digamos em alemão, Weltfähig (“apta para o mundo”). O mundo terá de contar. Olhe, Lorenz, não seria tão errado reduzir todas as ciências a uma lei básica, como fizeram os escolásticos e cientistas medievais. Não, eu não quis evocar a teologia. Mas quero pintar um panorama que, no fundo, delineia todos os problemas intelectuais da atualidade. Olhe, o futuro da Europa e de toda humanidade é como uma equação com várias incógnitas. A Europa é pequena, mas seus habitantes são ativos e, além disso, têm a seu favor uma grande tradição. E, entretanto, os europeus não têm qualquer influência sobre essas incógnitas que determinam o futuro de seu continente. O “x” e o “y” desta equação decidirão o amanhã, tanto assim que quase já se pode dizer hoje. A América Latina talvez não seja a incógnita principal, o “x”, mas provavelmente será o “y”, uma incógnita secundária muito importante. Pela matemática, sabe-se que uma equação não se resolve se uma segunda incógnita não for eliminada. Suponhamos agora que a América Latina seja a tal incógnita “y”. Com isso a Europa está em um ponto culminante para o seu futuro. E não estou falando apenas das necessidades e do potencial econômico de meu continente. Você sabe que nós, os latino-americanos, nos sentimos muito ligados à Europa. Para mim, Cordisburgo foi sempre uma Europa em miniatura. Amamos a Europa como, por exemplo, se ama uma avó. Por isso espero que a Europa reconheça a equação e leve em conta o “y”. Isso não lhe traria nenhum prejuízo. Por nós e conosco talvez a Europa tenha um futuro não só no campo econômico, não só no campo político, mas também como fator de poder espiritual. No final das contas, somos parentes espirituais: avó e netos. A Europa é um pedaço de nós; somos sua neta adulta e pensamos com preocupação no destino, na enfermidade de nossa avó. Se a Europa morresse, com ela morreria um pedaço de nós. Seria triste, se em vez de vivermos juntos, tivéssemos de dizer uma oração fúnebre pela Europa. Estou firmemente convencido, e por isso estou aqui falando com você, de que em 2000 a literatura mundial estará orientada para a América Latina; o papel que um dia desempenharam Berlim, Paris, Madri ou Roma, também Petersburgo ou Viena, será desempenhado por Rio, Bahia, Buenos Aires e México. O século do colonialismo terminou definitivamente. A América Latina inicia agora seu futuro. Acredito que será um futuro muito interessante, e espero que seja um futuro humano.

Fontes:
LORENZ, Günter. Entrevista com Guimarães Rosa. Gênova, 1965. Disponível em
http://maldemontano.wordpress.com/2006/12/18/entrevista-com-guimaraes-rosa
http://publique.rdc.puc-rio.br (imagem)

Guimarães Rosa (Campo Geral)

A narrativa de Campo geral começa quando Miguilim é levado por Tio Terez para ser crismado. O menino tem 8 anos e nunca saiu do Mutum, afora pequenas mudanças que fez quando ainda muito pequeno. Desta viagem, a lembrança mais nítida será de um comentário ouvido sobre a beleza de Mutum. Profundamente impressionado com esta referência, Miguilim não vê a hora de contá-la à mãe, Nhanina, sempre triste de ali viver.

Ao chegar em casa, vai tão aflito procurar a mãe, que acaba desgostando a seu pai e recebe castigo: não o acompanha juntamente com os irmãos na pescaria de domingo. Em contrapartida, aprende a fazer arapuca para pegar passarinho com o Tio Terez.

A rotina da casa inclui os brinquedos de Miguilim com seus irmãos por ordem de idade, Drelina, Dito, Chica, Tomezinho. Há também outro irmão, Liovaldo, mais velho que Miguilim, o único que não mora com a família. Na cozinha, a mãe e as empregadas, Rosa, Maria Pretinha e Mãitina, preparam as comidas. Nas cercanias, vivem os diversos cachorros da família. Havia uma cadela, a Pingo-de-Ouro, a que Miguilim era especialmente apegado, mas que foi dada pelo pai a tropeiros de pernoite no Mutum.

A descoberta de que Nhanina e Tio Terez tinham um caso causa grande confusão. O pai bate na mãe, Miguilim tenta interrompê-lo e termina sendo castigado _ . Vovó Izidra, sua tia-avó, é quem toma a iniciativa de expulsar Tio Terez de casa, xingando-o de Caim. Nesta noite, uma grande tempestade faz Dito e Miguilim conversarem sobre o medo da morte. Para acalmar a todos, Vovó Izidra puxa uma reza.

No dia seguinte, Seo Deográcias, entendido de remédios, foi com o filho, Patori, visitá-los. Queria, na verdade, pegar emprestado alguns mantimentos e cobrar um dinheiro, mas aproveita para aconselhar sobre a saúde de Miguilim, que a todos parecia frágil.

Aos poucos, Miguilim começa a cismar que vai morrer. Faz uma promessa a Deus: se ele não morresse nos próximos dias, não morreria mais. Enquanto isso, se compromete a rezar uma novena. Contudo, os dias passam, ele não principia a novena e vai ficando cada vez mais ansioso. Começa então a rever vários momentos e se recorda da habilidade de Dito em se comportar de modo que não desagrade o Pai, da curiosidade que Patori lhe despertou sobre sexo, do aconchego que sentia em criança de ficar nos braços de Mãitina. No derradeiro dia, nem da cama ele quer sair. E até Seo Aristeu, outro curandeiro da região, vir vê-lo, Miguilim não pode acreditar em outra coisa que não fosse a morte chegando. Temia estar tísico, mas Seo Aristeu logo foi explicando no seu jeito alegre de falar que essa doença não dava por aquela parte dos Gerais.

O pai então toma uma decisão: a partir do próximo dia, Miguilim irá levar-lhe comida na roça onde trabalhava. O menino fica muito feliz de se sentir útil. Quando foi cumprir a tarefa pela primeira vez, Tio Terez aparece no caminho e pede ao sobrinho um favor: entregar um bilhete a Nhanina. O pedaço de papel no bolso põe Miguilim num grande embate interior: o que seria mais certo fazer? Sem contar o motivo, consulta todos sobre o que é certo ou errado. Como sempre, é com Dito que Miguilim vai se orientar, tentando pedir explicações que o irmão, apesar de menor, parece sempre conhecer.

Depois de uma tarde e de uma noite de dúvidas, Miguilim só resolve em frente ao Tio Terez o que fazer: diz a verdade e devolve o bilhete. O Tio então se dá conta em que horrível posição colocara o sobrinho e se desculpa. Ainda atordoado, Miguilim deixa que os macacos roubem a comida do tabuleiro. O pai se diverte com a história, dando a sensação em Miguilim de ser amado.

Com a chegada de Luisaltino, novo parceiro de trabalho de Nhô Bero, vem a notícia de que Patori assassinou um rapaz e está foragido. Patori acaba morrendo de fome, e Nhô Bero larga tudo para prestar solidariedade a Seo Deográcias, que se desesperava com a perda do filho. Mas o que mais agradou a Miguilim foi que Luisaltino traz consigo um papagaio, o Papaco-o-Paco.

Uma manhã, depois de ter ido espiar uma coruja, Dito pisa num caco de pote e corta o pé. O tétano toma conta do menino e, em poucos dias, ele morre. Miguilim se desespera e esse intenso sofrimento parece não passar nunca. Mãitina tem uma idéia que o ajuda a enfrentar a dor: juntou roupas e brinquedos de Dito e alguns guardados seus e enterrou tudo no quintal, marcando depois o lugar com pedrinhas lavadas do rio.

Para tirá-lo dessa tristeza, Nhô Bero resolve pô-lo para trabalhar: começa a debulhar milho, capinar a horta, buscar cavalo no pasto. Miguilim não acha ruim trabalhar, mas não vê alegria em nada. Para complicar, dias depois chegam Tio Osmundo e o irmão Liovaldo.

O Tio não simpatiza com Miguilim e Liovaldo começa a provocá-lo. Até que Liovaldo faz pequenas maldades com o menino Grivo e Miguilim, indignado, acaba partindo para a briga. Nhô Bero fica tão furioso que dá uma sova de correia no menino. Miguilim sente tanto ódio do pai que nem chora: só pensa em crescer e matá-lo. Nhanina, para abrandar a situação, manda Miguilim se hospedar na casa do vaqueiro Saluz por três dias. Na volta, Miguilim não pede a bênção ao pai, que então se vinga, soltando os passarinhos de Miguilim e despedaçando as gaiolas. Miguilim por sua vez extravasa sua raiva, quebrando os próprios brinquedos.

Quando o Tio e o irmão vão embora, Miguilim pela primeira vez se alegra com a possibilidade de um dia ser ele a partir. Com esta idéia na cabeça começa a se reanimar, a repassar tudo que aprendera com Dito, mas termina por adoecer, o que desespera Nhô Bero. Durante a sua convalescença, uma tragédia se precipita: Nhô Bero descobre que Luisaltino o traía com sua mulher; mata o ajudante e, em seguida, se suicida.

Seo Aristeu tenta animar Miguilim. Nhanina conta sua intenção de casar com Tio Terez, que a esta altura já está de volta. Miguilim, ainda abatido com a doença e com todos os acontecimentos, vê chegar dois homens a cavalo. Um deles logo repara no jeito de Miguilim olhar, com os olhos apertados. O grupo vai para a casa e Miguilim é examinado até que o homem, doutor José Lourenço, do Curvelo, chega a um diagnóstico: vista curta. Tira os próprios óculos e empresta ao menino, que nem pode acreditar em tudo que se revelou a sua frente.

O doutor se oferece para levar Miguilim para a cidade: providenciaria os óculos e poria Miguilim para estudar. Miguilim aceita o convite e se prepara para ir embora na manhã seguinte. Mas, antes de partir, pede de novo os óculos. Quer levar consigo uma imagem nítida da família e do Mutum, que, agora ele via, era realmente bonito.

Fontes:
www.trabalhonota10.com/resumo-de-livros/campo-geral.html

Antonio Callado (1917 - 1997)

Antonio Callado, jornalista, romancista, biógrafo e teatrólogo, nasceu em Niterói, RJ, em 26 de janeiro de 1917, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 28 de janeiro de 1997. Eleito em 17 de março de 1994 para a Cadeira n. 8, na sucessão de Austregésilo de Athayde, foi recebido em 12 de julho de 1994 pelo acadêmico Antonio Houaiss.

Ingressou na Faculdade de Direito em 1936 e, no ano seguinte, começou a trabalhar, como repórter e cronista, em O Correio da Manhã. Iniciava aí uma carreira jornalística que lhe proporcionou muitas viagens e contato com alguns dos temas de sua obra.

Diplomou-se em Direito em 1939. Durante a Segunda Guerra Mundial, em 1941, foi contratado pela BBC de Londres como redator, lá trabalhando até maio de 1947. Em um período intermediário, de novembro de 1944 a outubro de 1945, trabalhou também no serviço brasileiro da Radio-Diffusion Française, em Paris (a sede do Serviço ficava nos Champs-Elysées e seu chefe era o escritor Roger Breuil). Em 1943, casou-se com a inglesa Jean M. Watson, com quem teve três filhos. Casou-se, em 1977, com a professora e jornalista Ana Arruda Callado.

Ao retornar ao Brasil voltou a trabalhar no Correio da Manhã e também passou a colaborar em O Globo. Foi redator-chefe do Correio da Manhã de 1954 a 1960, quando foi contratado pela Enciclopédia Britânica para chefiar a seção de uma nova enciclopédia, a Barsa, publicada em 1963. Foi em seguida redator do Jornal do Brasil, que o enviou, em 1968, ao Vietnã em guerra. Em 1974 esteve como Visiting Scholar em Corpus Christi College, Universidade de Cambridge, Inglaterra. Passou o segundo semestre de 1981 lecionando, como Visiting Professor, na Columbia University, Nova York. Aposentou-se como jornalista em 1975, mas continuou a colaborar na imprensa. Em abril de 1992 tornou-se colunista da Folha de S. Paulo.

Além das atividades jornalísticas, dedicou-se sempre à literatura. Ainda jovem pôde ler, na biblioteca do pai, os autores europeus que mais tarde marcariam seu trabalho, sobretudo franceses e ingleses, como Proust e Joyce, ao lado de alguns brasileiros, como Machado de Assis e José de Alencar. Nos seus dois primeiros romances, Assunção de Salviano (1954) e A madona de cedro (1957), persiste uma nítida preocupação religiosa a informar e até mesmo a condicionar o transcurso da aventura e a temática. Mas o encontro entre o escritor e os principais temas de sua obra deu-se através do jornalismo, que o levou, além dos anos passados na Europa, a lugares como Bogotá, Washington, Xingu e Havana, que enriqueceram a sua bibliografia com livros de reportagem e obras literárias engajadas com as grandes questões de seu tempo. Entre os mais importantes, estão Quarup (1967), Bar Don Juan (1971), Reflexos do baile (1976), Sempreviva (1981), que apresentam um retrato do Brasil durante o regime militar, do ponto de vista dos opositores. Seu engajamento lhe custou duas prisões: uma em 1964, logo após o golpe militar, e outra em 1968, após o fechamento do Congresso com o AI-5.

Teatrólogo, reuniu quatro de suas peças no volume A Revolta da Cachaça, em 1983. Uma delas, Pedro Mico, encenada em muitas ocasiões, foi transformada em filme que teve como ator principal o ex-jogador de futebol Pelé. Em março de 1987 participou, em Paris, do Salon du Livre, a convite do Ministério da Cultura da França. Em novembro de 1990 representou o Brasil na semana "De Gaulle en son siècle", comemorativa do centenário do General Charles de Gaulle.

Em 1958 recebeu, na Embaixada da Itália no Rio de Janeiro, a medalha da Ordem do Mérito da República Italiana. Em 1982 foi à Alemanha, como vencedor do Prêmio Goethe, do Goethe Institut do Rio de Janeiro, com o romance Sempreviva. Em setembro de 1985 recebeu, pelo conjunto de suas obras, o Prêmio Brasília de Literatura, da Fundação Cultural do Distrito Federal. Em outubro de 1985 recebeu, na Embaixada da França em Brasília, a Medalha das Artes e das Letras, das mãos do Ministro da Cultura Jack Lang; em maio de 1986, o prêmio Golfinho de Ouro, de Literatura, outorgado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro; em 1989, o troféu Juca Pato, da União Brasileira dos Escritores, por ter sido eleito "Intelectual do Ano".

Era membro da ABL e da The Corpus Association, do Corpus Christi College, Cambridge (Inglaterra).

Obras: Esqueleto na lagoa Verde, reportagem (1953); A assunção de Salviano, romance (1954); A cidade assassinada, teatro (1954); Frankel, teatro (1955); A madona de cedro, romance (1957); Retrato de Portinari, biografia (1957); Pedro Mico, teatro (1957); Colar de coral, teatro (1957); Os industriais da seca, reportagem (1960); O tesouro de Chica da Silva, teatro (1962); Forró no engenho cananéia, teatro (1964); Tempo de Arraes, reportagem (1965); Quarup, romance (1967); Vietnã do Norte, reportagem (1969); Bar Don Juan, romance (1971); Reflexos do baile, romance (1976); Sempreviva, romance (1981); A expedição Montaigne, romance (1982); A revolta da cachaça, teatro, reunião de 4 peças (1983); Entre o deus e a vasilha, reportagem (1985); Concerto carioca, romance (1985); Memórias de Aldenham House, romance (1989); O homem cordial e outras histórias, contos (1993).

Fonte:
http://www.academia.org.br/

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Andrey do Amaral (O máximo e as máximas de Machado de Assis)

O Autor
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Andrey do Amaral dos Santos nasceu em Brasília (Distrito Federal) a 25 de março de 1976. É filho da professora aposentada Leila do Amaral e do Coronel (RR), PMDF, Agnaldo Vieira dos Santos. Tem duas irmãs: Érika e Evelyn. Estudou o ensino fundamental em escola particular até a 5ª série, concluindo seus estudos na rede de ensino público. Cursou Letras na Universidade Católica de Brasília e tem duas especializações lato sensu, uma em Língua Portuguesa e outra em Sexologia. Escreve desde a adolescência e usa Andrey do Amaral como nome literário. É saxofonista amador e ex-míope. É bibliófilo e tem uma coleção de revistas antigas. Faz fichas literárias para algumas editoras e agencias de livros de novos autores e amigos.

Já foi livreiro e trabalhou com educação indígena. Escreve humor e contos. Teve seus livros publicados pelas editoras Best Seller, Ao Livro Técnico e Projecto Editorial. Andrey do Amaral é autor do sucesso Como Enlouquecer Sua Sogra... (Editora Best Seller, São Paulo, 1999, humor, 108 páginas) e de Eu, multívolo!?!... (Thesaurus, Brasília, 1997, poesia, 103 páginas).

Blog e site do autor estão nas fontes

O Livro
Neste livro você encontra uma seleção dos principais textos do Bruxo do Cosme Velho. Indispensável para professores e estudantes. Os melhores poemas, trechos de romances, antologia de contos, documentos inéditos, iconografia, crônicas, reportagens, cartas, manuscritos, filmografia completa e as melhores máximas de Machado de Assis. O prefácio é de Ubiratan Machado.
Editora: Projecto Editorial
Medida : 16cm X 23cm
Páginas: 162

Livraria Saraiva e Livraria Cultura = R$ 25,00 (pesquisa em 8/4/2008)

Fontes:
http://www.solute.com.br/brasilialiteraria/
www.andreydoamaral.com
http://andreydoamaral.blogspot.com/

Edgar Allan Poe (O Coração Delator)

É verdade! Nervoso, muito, muito nervoso mesmo eu estive e estou; mas por que você vai dizer que estou louco? A doença exacerbou meus sentidos, não os destruiu, não os embotou. Mais que os outros estava aguçado o sentido da audição. Ouvi todas as coisas no céu e na terra. Ouvi muitas coisas no inferno. Como então posso estar louco? Preste atenção! E observe com que sanidade, com que calma, posso lhe contar toda a história.

É impossível saber como a idéia penetrou pela primeira vez no meu cérebro, mas, uma vez concebida, ela me atormentou dia e noite. Objetivo não havia. Paixão não havia. Eu gostava do velho. Ele nunca me fez mal. Ele nunca me insultou. Seu ouro eu não desejava. Acho que era seu olho! É, era isso! Um de seus olhos parecia o de um abutre - um olho azul claro coberto por um véu. Sempre que caía sobre mim o meu sangue gelava, e então pouco a pouco, bem devagar, tomei a decisão de tirar a vida do velho, e com isso me livrar do olho, para sempre.

Agora esse é o ponto. O senhor acha que sou louco. Homens loucos de nada sabem. Mas deveria ter-me visto. Deveria ter visto com que sensatez eu agi — com que precaução —, com que prudência, com que dissimulação, pus mãos à obra! Nunca fui tão gentil com o velho como durante toda a semana antes de matá-lo. E todas as noites, por volta de meia-noite, eu girava o trinco da sua porta e a abria, ah, com tanta delicadeza! E então, quando tinha conseguido uma abertura suficiente para minha cabeça, punha lá dentro uma lanterna furta-fogo bem fechada, fechada para que nenhuma luz brilhasse, e então eu passava a cabeça. Ah! o senhor teria rido se visse com que habilidade eu a passava. Eu a movia devagar, muito, muito devagar, para não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para passar a cabeça toda pela abertura, o mais à frente possível, para que pudesse vê-lo deitado em sua cama. Aha! Teria um louco sido assim tão esperto? E então, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a lanterna com cuidado — ah!, com tanto cuidado! —, com cuidado (porque a dobradiça rangia), eu a abria só o suficiente para que um raiozinho fino de luz caísse sobre o olho do abutre. E fiz isso por sete longas noites, todas as noites à meia-noite em ponto, mas eu sempre encontrava o olho fechado, e então era impossível fazer o trabalho, porque não era o velho que me exasperava, e sim seu Olho Maligno. E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu entrava corajosamente no quarto e falava Com ele cheio de coragem, chamando-o pelo nome em tom cordial e perguntando como tinha passado a noite. Então, o senhor vê que ele teria que ter sido, na verdade, um velho muito astuto, para suspeitar que todas as noites, à meia-noite em ponto, eu o observava enquanto dormia.

Na oitava noite, eu tomei um cuidado ainda maior ao abrir a porta. O ponteiro de minutos de um relógio se move mais depressa do que então a minha mão. Nunca antes daquela noite eu sentira a extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade. Eu mal conseguia conter meu sentimento de triunfo. Pensar que lá estava eu, abrindo pouco a pouco a porta, e ele sequer suspeitava de meus atos ou pensamentos secretos. Cheguei a rir com essa idéia, e ele talvez tenha ouvido, porque de repente se mexeu na cama como num sobressalto. Agora o senhor pode pensar que eu recuei — mas não. Seu quarto estava preto como breu com aquela escuridão espessa (porque as venezianas estavam bem fechadas, de medo de ladrões) e então eu soube que ele não poderia ver a porta sendo aberta e continuei a empurrá-la mais, e mais.

Minha cabeça estava dentro e eu quase abrindo a lanterna quando meu polegar deslizou sobre a lingüeta de metal e o velho deu um pulo na cama, gritando:

— Quem está aí?

Fiquei imóvel e em silêncio. Por uma hora inteira não movi um músculo, e durante esse tempo não o ouvi se deitar. Ele continuava sentado na cama, ouvindo bem como eu havia feito noite após noite prestando atenção aos relógios fúnebres na parede.

Nesse instante, ouvi um leve gemido, e eu soube que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de tristeza — ah, não! era o som fraco e abafado que sobe do fundo da alma quando sobrecarregada de terror. Eu conhecia bem aquele som. Muitas noites, à meia-noite em ponto, ele brotara de meu próprio peito, aprofundando, com seu eco pavoroso, os terrores que me perturbavam. Digo que os conhecia bem. Eu sabia o que sentia o velho e me apiedava dele embora risse por dentro. Eu sabia que ele estivera desperto, desde o primeiro barulhinho, quando se virara na cama. Seus medos foram desde então crescendo dentro dele. Ele estivera tentando fazer de conta que eram infundados, mas não conseguira. Dissera consigo mesmo: "Isto não passa do vento na chaminé; é apenas um camundongo andando pelo chão", ou "É só um grilo cricrilando um pouco". É, ele estivera tentando confortar-se com tais suposições; mas descobrira ser tudo em vão. Tudo em vão, porque a Morte ao se aproximar o atacara de frente com sua sombra negra e com ela envolvera a vítima. E a fúnebre influência da despercebida sombra fizera com que sentisse, ainda que não visse ou ouvisse, sentisse a presença da minha cabeça dentro do quarto.

Quando já havia esperado por muito tempo e com muita paciência sem ouvi-lo se deitar, decidi abrir uma fenda — uma fenda muito, muito pequena na lanterna. Então eu a abri — o senhor não pode imaginar com que gestos furtivos, tão furtivos — até que afinal um único raio pálido como o fio da aranha brotou da fenda e caiu sobre o olho do abutre.

Ele estava aberto, muito, muito aberto, e fui ficando furioso enquanto o fitava. Eu o vi com perfeita clareza - todo de um azul fosco e coberto por um véu medonho que enregelou até a medula dos meus ossos, mas era tudo o que eu podia ver do rosto ou do corpo do velho, pois dirigira o raio, como por instinto, exatamente para o ponto maldito.

E agora, eu não lhe disse que aquilo que o senhor tomou por loucura não passava de hiperagudeza dos sentidos? Agora, repito, chegou a meus ouvidos um ruído baixo, surdo e rápido, algo como faz um relógio quando envolto em algodão. Eu também conhecia bem aquele som. Eram as batidas do coração do velho. Aquilo aumentou a minha fúria, como o bater do tambor instiga a coragem do soldado.

Mas mesmo então eu me contive e continuei imóvel. Quase não respirava. Segurava imóvel a lanterna. Tentei ao máximo possível manter o raio sobre o olho. Enquanto isso, aumentava o diabólico tamborilar do coração. Ficava a cada instante mais e mais rápido, mais e mais alto. O terror do velho deve ter sido extremo. Ficava mais alto, estou dizendo, mais alto a cada instante! — está me entendendo? Eu lhe disse que estou nervoso: estou mesmo. E agora, altas horas da noite, em meio ao silêncio pavoroso dessa casa velha, um ruído tão estranho quanto esse me levou ao terror incontrolável. Ainda assim por mais alguns minutos me contive e continuei imóvel. Mas as batidas ficaram mais altas, mais altas! Achei que o coração iria explodir. E agora uma nova ansiedade tomava conta de mim — o som seria ouvido por um vizinho! Chegara a hora do velho! Com um berro, abri por completo a lanterna e saltei para dentro do quarto. Ele deu um grito agudo — um só. Num instante, arrastei-o para o chão e derrubei sobre ele a cama pesada. Então sorri contente, ao ver meu ato tão adiantado. Mas por muitos minutos o coração bateu com um som amortecido. Aquilo, entretanto, não me exasperou; não seria ouvido através da parede. Por fim, cessou. O velho estava morto. Afastei a cama e examinei o cadáver. É, estava morto, bem morto. Pus a mão sobre seu coração e a mantive ali por muitos minutos. Não havia pulsação. Ele estava bem morto. Seu olho não me perturbaria mais.

Se ainda me acha louco, não mais pensará assim quando eu descrever as sensatas precauções que tomei para ocultar o corpo. A noite avançava, e trabalhei depressa, mas em silêncio. Antes de tudo desmembrei o cadáver. Separei a cabeça, os braços e as pernas.

Arranquei três tábuas do assoalho do quarto e depositei tudo entre as vigas. Recoloquei então as pranchas com tanta habilidade e astúcia que nenhum olho humano — nem mesmo o dele — poderia detectar algo de errado. Nada havia a ser lavado — nenhuma mancha de qualquer tipo — nenhuma marca de sangue. Eu fora muito cauteloso. Uma tina absorvera tudo - ha! ha!

Quando terminei todo aquele trabalho, eram quatro horas — ainda tão escuro quanto à meia-noite.

Quando o sino deu as horas, houve uma batida à porta da rua. Desci para abrir com o coração leve — pois o que tinha agora a temer? Entraram três homens, que se apresentaram, com perfeita suavidade, como oficiais de polícia. Um grito fora ouvido por um vizinho durante a noite; suspeitas de traição haviam sido levantadas; uma queixa fora apresentada à delegacia e eles (os policiais) haviam sido encarregados de examinar o local.

Sorri — pois o que tinha a temer? Dei as boas-vindas aos senhores. O grito, disse, fora meu, num sonho. O velho, mencionei, estava fora, no campo. Acompanhei minhas visitas por toda a casa. Incentivei-os a procurar — procurar bem. Levei-os, por fim, ao quarto dele. Mostrei-lhes seus tesouros, seguro, imperturbável. No entusiasmo de minha confiança, levei cadeiras para o quarto e convidei-os para ali descansarem de seus afazeres, enquanto eu mesmo, na louca audácia de um triunfo perfeito, instalei minha própria cadeira exatamente no ponto sob o qual repousava o cadáver da vítima.

Os oficiais estavam satisfeitos. Meus modos os haviam convencido. Eu estava bastante à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia animado, falaram de coisas familiares. Mas, pouco depois, senti que empalidecia e desejei que se fossem. Minha cabeça doía e me parecia sentir um zumbido nos ouvidos; mas eles continuavam sentados e continuavam a falar. O zumbido ficou mais claro — continuava e ficava mais claro: falei com mais vivacidade para me livrar da sensação: mas ela continuou e se instalou — até que, afinal, descobri que o barulho não estava dentro de meus ouvidos.

Sem dúvida agora fiquei muito pálido; mas falei com mais fluência, e em voz mais alta. Mas o som crescia - e o que eu podia fazer? Era um som baixo, surdo, rápido — muito parecido com o som que faz um relógio quando envolto em algodão. Arfei em busca de ar, e os policiais ainda não o ouviam. Falei mais depressa, com mais intensidade, mas o barulho continuava a crescer. Levantei-me e discuti sobre ninharias, num tom alto e gesticulando com ênfase; mas o barulho continuava a crescer. Por que eles não podiam ir embora? Andei de um lado para outro a passos largos e pesados, como se me enfurecessem as observações dos homens, mas o barulho continuava a crescer. Ai meu Deus! O que eu poderia fazer? Espumei — vociferei — xinguei! Sacudi a cadeira na qual estivera sentado e arrastei-a pelas tábuas, mas o barulho abafava tudo e continuava a crescer. Ficou mais alto — mais alto — mais alto! E os homens ainda conversavam animadamente, e sorriam. Seria possível que não ouvissem? Deus Todo-Poderoso! — não, não? Eles ouviam! — eles suspeitavam! — eles sabiam! - Eles estavam zombando do meu horror! — Assim pensei e assim penso. Mas qualquer coisa seria melhor do que essa agonia! Qualquer coisa seria mais tolerável do que esse escárnio. Eu não poderia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Senti que precisava gritar ou morrer! — e agora — de novo — ouça! mais alto! mais alto! mais alto! mais alto!

— Miseráveis! — berrei — Não disfarcem mais! Admito o que fiz! levantem as pranchas! — aqui, aqui! — são as batidas do horrendo coração!
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Biografia sobre o autor em 12 de março
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Fonte:
POE, Edgar Allan. O Coração Delator. Tradução: Celina Portocarrero.In COSTA, Flávio Moreira da (org.). Os melhores contos de loucura. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007
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Maria Elizabeth G. de Vasconcellos (Contos de Fada: Nossos Medos e Nossos Sonhos)

As fadas... eu creio nelas! Umas são moças e belas, Outras, velhas de pasmar... [...] Quem as ofende...cautela! A mais risonha, a mais bela, Torna-se logo tão má, Tão cruel, tão vingativa! É inimiga agressiva, É serpente que ali está!
Antero de Quental

Quando se fala de contos de fada, três nomes da literatura vêm à baila: Charles Perrault, os irmãos Grimm e Hans Christian Andersen. Mas afinal, quais as marcas que fazem a atemporalidade dessas narrativas? Por que elas constituem eternos e sedutores convites à leitura e à releitura? Que sonhos e utopias nelas se inscrevem? Quando se fala de contos de fada, três nomes da literatura vêm à baila: Charles Perrault, os irmãos Grimm e Hans Christian Andersen. Mas afinal, quais as marcas que fazem a atemporalidade dessas narrativas? Por que elas constituem eternos e sedutores convites à leitura e à releitura? Que sonhos e utopias nelas se inscrevem?

Comecemos por afirmar que uma das principais marcas que ali circulam é o medo. Os nossos e eternos medos, quer individuais, quer coletivos. E aqui vale lembrar Jean Delumeau, na obra da História do medo no ocidente: .... não só os indivíduos tomados isoladamente, mas também as coletividades e as próprias civilizações estão comprometidos num diálogo permanente com o medo.

Vivendo, portanto, assolado pelo medo, o homem procura uma compensação que o liberte dessa agonia.

É preciso que encontre respostas que preencham as angustiantes lacunas do seu dia-a-dia. É então que, movido pela necessidade de sonhar uma outra História, o homem cria suas utopias pois, como ensina Hilário Franco Jr., [....] utopia é negação de um presente medíocre e sufocante, é espaço futuro sem limites, sustentado pelo desejo, é sonho apaziguador de regresso a perfeição das origens, é reencontro do homem consigo mesmo.

Neste final de século – e de milênio –, quando heranças quer de um passado remoto, quer de um passado próximo misturam-se aos velozes progressos de uma moderna tecnologia, será necessário rever a História e repensar as utopias de ontem para entender os sonhos de hoje. E só assim seremos capazes de ter um amanhã.

Estudar as utopias de uma sociedade é lidar com o desejo dessa sociedade; é trabalhar com a falta e a esperança que circulam em seu imaginário. É preciso, então, revisitar a História que ali se viveu e ouvir as histórias que ali se contavam. E para tal há que se recorrer a determinadas pistas: aquelas deixadas pelos historiadores e pelos cronistas, pelos pintores e escultores, pelos poetas, romancistas e contistas.

Sendo assim, vamos encontrar nos contos de fada 3 as utopias que respondem aos eternos desejos da humanidade, pois como afirma Karl Mannheim, na obra Ideologia e Utopia,

Quando a imaginação não encontra sua satisfação na realidade existente, busca refúgio em lugares e épocas desiderativamente construídos. Mitos, contos de fada, promessas supraterrenas da religião, fantasias humanísticas, romances de viagens têm sido expressões, em contínua mutação, do que estava faltando na vida real. (o grifo é nosso)

Em busca da abundância, da justiça e do amor – sonhos que embalam o imaginário social através dos tempos –, as personagens dos contos de fada vivem suas histórias que funcionam como respostas aos eternos desejos da humanidade. E por isso os contos tornam-se atemporais, como ensina Pierre Mabille:

Os contos, repetidos de boca em boca, de geração a geração, seguem uma trajetória comparável à de um eco gigante que se prolonga ao infinito.

Assim entendidos, os contos de fada constituem documentos onde se inscrevem nossos medos e os mecanismos para neutralizá-los – as utopias. São eles que agora revisitaremos.

Contemporâneo de Luis XIV, o Rei-Sol, Charles Perrault (1628-1703) publica as suas Histórias ou contos dos tempos passados com algumas moralidades em 1697. A obra consta de oito contos de prosa: A Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho, O Barba Azul, O Gato de Botas, As Fadas, A Gata Borralheira, Henrique de Topete e O Pequeno Polegar. Cada um é encerrado com uma moralidade em verso. No frontispício, a obra apresenta uma gravura com a inscrição Contes de ma mère L'Oye (Contos da Mamãe Ganso).

O tempo é de contrastes na França de então; ao lado do extremo fausto da corte de Versailles, os camponeses vivem em alarmante penúria, como salienta Robert Darnton:

Para a maioria dos camponeses, a vida na aldeia era uma luta pela sobrevivência, e sobrevivência significava manter-se acima da linha que separava os pobres dos indigentes. A linha da pobreza variava de lugar para lugar, de acordo com a extensão de terras necessária para pagar impostos, dízimos e tributos senhoriais; separar grãos suficientes para plantar no próximo ano;e alimentar a família.

Esse universo de fome e miséria inscreve-se em contos como O Gato de Botas e o O Pequeno Polegar. Para ajudar o terceiro filho de um pobre moleiro falecido, o Gato usa das mais refinadas trapaças e consegue para seu dono até um casamento com a filha do rei. Já o Polegar – sétimo filho de um lenhador também pobre –, após ser abandonado com seus irmãos, na floresta, pelos pais, consegue um lugar na corte, como correio, graças às botas que rouba do ogre; lá enriquece e emprega também toda a família. A lição dos contos é clara: num mundo onde as injustiças sociais e as diferenças econômicas são flagrantes, é preciso ser esperto para burlar o esquema e vencer.

Também nos contos dos irmãos Grimm (Jacob, 1785-1863; Wilhelm, 1786-1859) vamos encontrar idênticas situações em que o fraco (pobre) vence o forte (rico): são situações que alimentam o desejo de prosperidade e de fartura das classes menos favorecidas. Desejo este substantivado na utopia da Terra da Cocanha à qual os Grimm dedicam um conto homônimo. Nessa terra de abundância, retrato do «mundo às avessas», ninguém precisa trabalhar, pois «um rio de mel escorria como água de um vale profundo no cume de uma montanha muito alta» e «em um pátio próximo, se achavam outros quatro cavalos debulhando milho e duas cabras acendiam um fogão, enquanto uma vaca assava pães no forno».

O ano da publicação dos Contos de criança e do lar dos irmãos Grimm é de 1812 e vamos encontrar a Europa vivendo sob o signo do Romantismo. Os contos fazem parte, portanto, de uma literatura que reflete as mudanças rápidas e profundas que a sociedade de então experimentava. Viajando pela Alemanha, os dois irmãos vão colhendo de diversos narradores as histórias que circulavam na boca do povo, cheias de tradições e, ao mesmo tempo, cheias de sonhos de renovação.

Quando as narrativas elegem o terceiro irmão (o bobo) – ou ainda um simples caçador (como em Os dois irmãos) – para protagonizar a aventura e finalizá-la com sucesso (muitas vezes casando-se com a filha do rei, como no conto citado), parecem responder a determinadas expectativas do público. Num mundo que vivia os ideais da Revolução Francesa, os contos apontam para a necessidade de revisão de atitudes despóticas da nobreza e da aristocracia: mais importantes que a força e a linhagem são a bondade, a coragem e a temperança. E para confirmar tais lições, as narrativas incorporam características daquele momento literário. A vivência da Natureza, por exemplo, tão a gosto do espírito romântico, passa a constituir, nos contos de Grimm, importante marca para qualificar o herói. Lugar de refúgio ou de desamparo, a Natureza propicia muitas vezes ao personagem cenas de união e de compensação, como acontece com o caçador de Os dois irmãos. Auxiliado pela lebre, pelo urso, pelo lobo e pela raposa, casa-se com a filha do rei. É certo que tal união subverte a ordem, mas é muito bem aceita por um público que vive o sonho de «liberdade, igualdade e fraternidade». E esse final feliz alimenta, sem dúvida, a ilusão de ascensão econômica e social das classes menos favorecidas.

Mas se sonha com a ascensão social – desejo individual –, o homem sonha também com uma sociedade equilibrada, com uma terra regida por um soberano justo. Recorrendo a certos perfis já cristalizados no imaginário do ocidente cristão (como o Rei Arthur, o Imperador Carlos Magno, e até o fora-da-lei Robin Hood), as narrativas vão construindo heróis que satisfazem o eterno desejo das sociedades: o de um pai protetor.

Retrato da perfeição física e moral, o herói conta muitas vezes com a ajuda sobrenatural (de fadas, gnomos, objetos mágicos e até de animais encantados, como já salientamos anteriormente) para vencer o inimigo (muitas vezes também sobrenatural, como bruxas, ogres, anões malvados, dragões) e qualificar-se para ocupar o lugar de soberano. É o que acontece em Os dois irmãos. Assim como Arthur, personagem das histórias da Távola Redonda, o nosso herói – um caçador – é um predestinado para retirar a espada mágica de uma pedra:

Lá no alto, havia uma igreja e no altar havia três taças, cheias até a borda, e ao lado havia uma inscrição que dizia: «Quem esvaziar estas taças será o homem mais forte da terra e poderá brandir a espada que está enterrada ao lado de fora da porta». O caçador não bebeu. Saiu e achou a espada enterrada, mas não conseguiu arredá-la do lugar. Voltou e esvaziou as taças. Aí ficou bem forte, conseguiu tirar a espada do chão e manejá-la à vontade.

De posse da arma, luta com o dragão que todos os anos exigia uma donzela imaculada, mata-o e ganha a mão da princesa, sendo em seguida proclamado herdeiro do rei. Esse final feliz – que é muitas vezes repetido nos contos – aponta para o nascimento de uma sociedade mais justa. Coroado, o herói reina por muito tempo, com muita sabedoria. Cumpre-se utopia da justiça.

Mas se o dragão é desafio constante ao jovem herói, é verdade que há outro oponente que se lhe apresenta igualmente tenebroso: a bruxa. Figura diabólica, a bruxa espalha malefícios que atingem a todos: a nobres, a camponeses e a crianças perdidas na floresta.

Através dos séculos – através dos contos –, detalhes anatômicos vão sendo acrescentados a um retrato de mulher que o desejo rejeita: ela é velha, é feia, corcunda, sua pele é enrugada aponteada de verrugas. Seus dedos de ossos longos completam-se com unhas tortas e ponteagudas. Demonizada, ela representa o ser marginal que a ordem rejeita. Ela opõe-se à fada que o desejo almeja. Mas como chegamos a esses perfis tão distintos?

Ao revisitarmos a literatura dos séculos XII e XIII – principalmente aquela que aflora a chamada matéria de Bretanha, de substrato celta –, aprendemos, através do exame de alguns perfis femininos (como Isolda, Viviane, Morgana e Mab), que fada e bruxa são representações das duas faces de uma mesma história da mulher. Como grande fiandeira, reeditando o fazer de Láquesis, Cloto e Átropos, as três parcas da tradição clássica, a fada é aquela que tece o destino (fatum) do homem. Como a sábia alquimista que prepara mezinhas e conduz os partos, a bruxa é aquele agente perigoso que se atreve a penetrar nos segredos da ciência, invadindo, assim, os domínios masculinos. É na fala de Mercúrio, personagem da obra Romeu e Julieta de Shakespeare que melhor vemos apresentada essa bipolaridade:

Pelo que vejo, foste visitado Pela rainha Mab. Ela é a parteira Entre as fadas. E é tão pequenininha. Como a ágata do anel que os conselheiros usam no indicador.[....] É essa mesma Mab que, de noite, Entrança as crinas sujas dos cavalos E dá-lhes nós feéricos, os quais Enfeitiçam aqueles que os desatam. Ela é bruxa que aperta as raparigas Que se deitam de papo para o ar, E lhes ensina na primeira vez Como se hão de portar para agüentar a carga.

Com o passar dos séculos, cada uma dessas facetas vai ganhando autonomia, e fada e bruxa passam a ser representações distintas e antagônicas. Na obra dos Grimm, por exemplo, são abundantes os retratos de fadas e de bruxas e no conto João e Maria a descrição da bruxa muito se aproxima daquelas que foram feitas na Baixa Idade Média – séculos XIV e XV –, período em que a caça às bruxas atingiu o apogeu:

A velha, porém, apenas fingira ser boa. Na verdade era uma perversa feiticeira, que fizera aquela casa de pão doce, bolos e açúcar-cande com a intenção de atrair crianças. Quando uma criança caía em seu poder, ela a matava, cozinhava e devorava, pois, para ela, não havia um prato mais delicioso do que carne de criança.

As bruxas têm os olhos vermelhos e enxergam muito mal, mas por outro lado, têm um faro igual ao de certos animais e, mesmo sem vê-lo, percebem quando um ser humano se aproxima.

Mas afinal, que motivos levaram uma sociedade – como a cristã medieval, da qual herdamos vários tabus e muitos medos – a alimentar esse amedrontador perfil feminino? É bem verdade que o medo da mulher não é uma invenção dos ascetas cristãos. Por ter sido um constante enigma para o homem, a mulher sempre o amedrontou, como salienta Jean Delumeau:

Mal magnífico, prazer funesto, venenosa e enganadora, a mulher foi acusada pelo outro sexo de ter introduzido na terra o pecado, a desgraça e a morte. Pandora grega ou Eva judaica, ela cometeu a falta original ao abrir a urna que continha todos os males ou ao comer o fruto proibido. O homem procurou um responsável para o sofrimento, para o malogro, para o desaparecimento do paraíso terrestre, e encontrou a mulher. Como não temer um ser que nunca é tão perigoso como quando sorri?

Mas se é verdade que o medo da mulher não é invenção do ascetismo cristão, é certo também que foi o cristianismo que muito cedo o integrou em seu ideário e trabalhou esse espantalho até o limiar do século XX. Se o indecifrado existe, se incomoda e amedronta, é preciso buscar um motivo que justifique sua perseguição e até, se possível, sua neutralização – a mais perfeita que se puder. E no que se refere à mulher, a Europa da Baixa Idade Média viveu, com toda violência, uma clima favorável a essa cena. É Jeffrey Richards, na obra Sexo, desvio e danação, quem sintetiza:

As pessoas do período medieval viviam num mundo de medo: medo de impostos, doença, guerra, fome, da morte e do inferno. Era uma sociedade que acreditava no sobrenatural,no poder das forças das trevas em ação de Satã e de seus demônios no mundo.Acreditava também na bruxaria, que era uma explicação conveniente tanto para as catástrofes naturais súbitas (fome, epidemias,tempestades, enchentes, destruição de safras e animais) quanto para problemas familiares recorrentes, tais como impotência,infidelidade, mortalidade infantil. [....]

As acusações de bruxaria eram geralmente levantadas por vizinhos indispostos contra mulheres específicas: as velhas, as solitárias, as impopulares, as neuróticas, as insanas, as mal-humoradas,as promíscuas, as praticantes de medicina popular ou parteiras, mulheres que, por motivos variados, haviam se tornado alvo do ódio local. [....]

As bruxas satânicas do final da Idade Média eram, assim, os bodes expiatórios perfeitos, uma minoria inventada, uma imagem compósita do mal, pronta para ser usada e aplicada a qualquer pessoa que discordasse dos dogmas da Igreja e que, pelo uso da tortura e do terror, se tornava realidade.

Autos de fé são comuns e a execução de bruxas na fogueira traz o aval das Escrituras: «Não deixarás viva uma feiticeira», diz o Êxodo, 22, v. 18. Infração cometida, castigo imposto. Castigo que se eterniza através dos séculos e que também se inscreve no universo dos contos de fada. É o que acontece, por exemplo, em Os dois irmãos, de Grimm, com a bruxa da floresta que encantava a todos que por lá passassem:

– Sua macaca velha! Devolve a vida imediatamente a meu irmão e a todas as criaturas que estão aí, ou então vai para o fogo!Ela pegou uma varinha e tocou as pedras. O irmão e os animais voltaram à vida. E muitos outros homens também, mercadores, artesãos, pastores. Todos se levantaram,agradeceram ao caçador e foram para casa. Os gêmeos se abraçaram e se beijaram, contentíssimos por se encontrarem novamente. Agarraram e amarraram a bruxa e a jogaram na fogueira.

E agora o nosso terceiro autor, o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875). Imprimindo à sua obra marcas de sua hipersensibilidade, timidez, e de seu temperamento depressivo, Andersen publica seus Contos em 1835. Neles também desfilam personagens em busca de abundância, da justiça e do amor. É deste que trataremos agora.

Acossado pelo medo da diferença encarnada pelo outro, pelo medo, enfim de sua natureza seccionada (sexionada), o homem (a humanidade) responde com a utopia da androginia. Através do sonho de amor, homem e mulher buscam a unidade perdida, isto é, procuram reviver o tempo em que, como recorda Aristófanes em sua fala em O Banquete, de Platão, [....] nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não como agora, o masculino efeminino, mas também havia a mais um terceiro,comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa;andrógino era então um gênero distinto,tanto na forma como no nome comum aos dois,ao masculino e ao feminino...

Tais seres possuíam muita força e, presunçosos, voltaram-se contra os deuses. Zeus, para punir tal ousadia, delibera cortá-los ao meio, para enfraquecê-los. E assim, seccionados, viviam à procura da outra metade. E continua Aristófanes:

O motivo disso é que nossa antiga natureza era assim e nós éramos um todo; e portanto ao desejo e procura do todo é que se dá o nome de amor.

Será, então, na expressão literária que o amor se imortaliza: na paixão vivida por Tristão e Isolda, por Romeu e Julieta e por tantos outros casais. São também muitos os contos de fada onde se lê a busca do par: A Bela Adormecida e a Gata Borralheira, nas versões de Perrault e Grimm; A Bela e a Fera, na versão de Madame Leprince de Beaumont (meados do século XIX); Branca de Neve, Cinderela, Rapunzel, A Moça dos Gansos, na versão dos Grimm, dentre outros.

Já nos contos de Andersen essa busca não constitui tema recorrente; há narrativas em que o final é feliz – como em A Princesa e o Grão de Ervilha e Os Cisnes Selvagens –, mas certamente há outras em que se acentua o pessimismo em relação ao amor, como em Os Namorados. E em A Sereiazinha, que reedita, ainda que de maneira eufemizada, a eterna sedução das sereias, é trágico o final para a figura feminina: não conseguindo o amor do príncipe, e não desejando matá-lo, como recomendara a bruxa do mar, para reassumir sua antiga natureza de sereia, a Sereiazinha joga-se ao mar e transforma-se em espuma.

E em relação a esse final, vale ressaltar que é também trágico, em outras narrativas de Andersen, o destino das personagens femininas, como as dos contos Os Sapatinhos Vermelhos e A Menina dos Fósforos, por exemplo.

Encerrada a viagem através do universo literário dos três autores selecionados – Perrault, Grimm e Andersen – é importante lembrar, ainda, que o primeiro livro infantil publicado no Brasil data de 1894 e é de autoria de Figueiredo Pimentel (1869-1914): Contos da Carochinha. A ele somam-se Histórias da Avozinha e Histórias da Baratinha, do mesmo autor. Nessa trilogia são incluídos os contos clássicos, já presentes nas obras dos três autores mencionados, e muitos outros.

Por traduzirem as eternas paixões humanas, os contos de fada tornam-se atemporais, como salientamos ao início. Sendo assim, tendo já visitado a produção clássica, cabe agora dirigir nosso olhar para a produção destas últimas décadas do século XX e observar como tais contos são recontados.

Reaproveitando o já escrito, os autores vão recontando as histórias ouvidas (ou lidas) aqui e ali e, nesse processo, vão descobrindo novos sentidos, multiplicando, assim, o já contado. É como salienta Marina Colasanti no conto Com voz de mulher da obra Longe como o meu querer:

Foi quando uma mulher que havia estado no estábulo passou a repetir as histórias de deus para outros habitantes da cidade. Repetir exatamente, não. Aqui e ali, acrescentava coisas, tirava outras e cada história, sendo a mesma, era outra. Mais que contar, recontava. Depois houve um rapaz, que também. E, o tempo passando, ninguém mais podia dizer com certeza de onde tinha vindo esta ou aquela história, e quem a havia contado primeiro.

Também nas narrativas agora produzidas vamos encontrar os mesmos medos de ontem: o medo da morte, da fome, da solidão, da doença, da injustiça. A forma de tratá-los é que é diferente. Em vez de narrativas que caminham para um final fechado (muitas vezes feliz), agora privilegia-se um final aberto, que conduz o leitor à reflexão. É o que acontece, por exemplo, em R, a Princesinha de Ziraldo, que retoma A Sereiazinha de Andersen. Em vez de transformar-se em espuma, como no conto clássico, a sereia transforma-se em reticências, que, sem dúvida, constituem o sinal de pontuação mais aberto que conhecemos... E é Nasuta, a bruxa, quem explica às irmãs da sereia:

Olha: no final de uma frase, as reticências significam que há ainda alguma coisa mais a dizer, certo? As letrinhas já tinham suas lágrimas quase secas.

Se colocarmos, porém, as reticências no princípio de uma frase, isto quer dizer que alguma coisa dita antes foi interrompida e vai começar, não é verdade, minhas...

Ééééé! ... queridas? Logo, as reticências fazem exatamente essa ligação entre o que foi e o que virá a ser. As irmãs se olharam, tentando descobrir se todas haviam compreendido a explicação da bruxa. E ela continuou:

Como a espuma do mar, sua irmãzinha vai voltar ...

E se, ainda, nos contos tradicionais imperava o claro esquema antitético entre Bem (fada) e Mal (bruxa), já agora tais opostos se mesclam, sugerindo que de fada e de bruxa todos nós temos um pouco. E é o que lemos em Uxa, ora fada, ora bruxa, de Silva Orthof; Onde tem fada tem bruxa, de Bartolomeu Campos Queirós; e Bruxa e fada: menina encantada, de Ieda Oliveira.

Como paródias (para = ao lado de; ode = canto), isto é, uma narrativa ao lado da outra, as produções atuais exigem do leitor um conhecimento prévio do texto clássico para que o entendimento se estabeleça. É o que propõem os Contos de Fadas Politicamente Corretos, de James Finn Garner, onde encontramos deliciosas paródias de Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Branca de Neve, dentre outras.

Ainda na esteira da paródia, podemos citar Ervilina e o Princês, de Silvia Orthof, que parodia o conto de Andersen A Princesa e Grão de Ervilha, mostrando que o destino da mulher não é mais o de ser escolhida, mas o de fazer sua própria escolha. E nessa linha de inauguração de uma nova história da mulher podemos ler também História meio ao contrário, de Ana Maria Machado; Mulheres de coragem, de Ruth Rocha; Heróis e guerreiras, de Heloísa Prieto; Doze reis e a moça no labirinto do vento, Entre a espada e a rosa, O lobo e o carneiro no sonho da menina e Ofélia, a ovelha – todos de Marina Colasanti.

Produzida sob o signo de uma cultura de propaganda, do consumo, da velocidade, a própria arte insere-se nessa rede de exigências. Narrativas curtas, à moda dos clips da linguagem televisiva, constituem a literatura ideal para o leitor de hoje. Assim é construída, em seis volumes, a coleção «Assim é se lhe parece» de Angela Carneiro, Lia Neiva e Sylvia Orthof. Cada volume contém três sketches que viram pelo avesso elementos e situações dos contos clássicos. No volume intitulado Chamuscou, não queimou, encontramos um dragão doente, casado com uma princesa indomada. Ao neutralizar o dragão como encarnação do Mal, a narrativa anula também o poder que o criou e a tradição que o manteve como sustentáculo do forte maniqueísmo repressor. O episódio final, à moda de um besteirol, conduz à perplexidade, perplexidade que é, enfim, a do próprio leitor num mundo estilhaçado como o desse final de século, onde até o amor é descartável. Desfazendo o seu casamento com o dragão, a princesa Marinalva volta para o castelo real, apaixona-se pelo sapo e depois pelo bode, levando o seu pai ao desespero:

O rei estava enfezado,e disse, assim assado:Perdôo só desta vez,ó filha, desajuizada,ficaste toda ensapada,estou danado! Marinalva se cuidou,desensapou. Aí ela viu um bode... vê se pode! Marinalva virou cabra? Abracadabra! Esta história é inventada, sou muito inventadeira, a história verdadeira por outros será contada. Eu brinco, rebolo, bolo, canto mentiras na feira, sou Orthofia, a feiticeira... quanta besteira!

A palavra irreverente que provoca o riso, como essa de Sylvia Orthof, é mais uma das características das narrativas da atualidade; e pode também funcionar como uma das mais eficazes estratégias para neutralizar os nossos medos...

E já que falamos de riso, vamos concluindo também de maneira irreverente o passeio através do mundo encantado dos contos de fada: «entrou por uma porta e saiu por outra, e quem quiser que conte outra».”

Fonte:
www.leiabrasil.org.br/doc/doc_suporte/fada_medos_sonhos.doc

Antonio Callado (Quarup)

Numa visão tradicional e cronológica, o romance e o autor devem ser encaixados na Terceira Geração Modernista ( de 45 aos dias atuais).

Em vez de especulação ou intimismo, no entanto, podemos considerar Quarup como "literatura engajada"e de denúncia, tal como a de João Cabral de Melo Neto em seu livro Morte e Vida Severina, também indicado pela Unicamp.

Quarup é antes de tudo uma denúncia, um grito, um alerta. Ou uma bela lição de História do Brasil.

Sobre a obra:

Callado não consta ( ainda!) da maioria das antologias literárias para estudantes do segundo grau e isso é incrível e imperdoável, em se tratando de escritor fundalmentalmente importante na literatura brasileira atual.

Quarup ( 1967) é seu mais conhecido romance, embora o autor sempre tenha declarado que sua preferência pessoal era por Reflexos do Baile ( 1976). No entanto, a crítica é unânime ao apontar Quarup como o mais exemplar entre todos os romances produzidos pelo autor.
Quarup virou filme, em 1989, dirigido por Ruy Guerra, mas nem pode ser comparado ao Quarup-livro, chance perdida pelo cineasta de fazer um grande trabalho a que o romance e Callado faziam jus. Pena.

Foco narrativo:

Quarup possui foco narrativo em terceira pessoa e seu narrador é onisciente, uma vez que penetra o "lado de dentro "de suas personagens, invadindo a intimidade de seus pensamentos, revelando ao leitor o mundo interior de cada uma delas.

"Nando tinha cartas de Francisca à sua espera. Foi tirando dos envelopes as cartas e segurou-as nas palmas abertas como se fossem azulejos. Sua primeira idéia foi colecioná-las em número suficiente para forrar as paredes da casa. Não tanto pela escrita regular em tinta azul no papel branco: o que contava era o cozimento da ternura esmaltando as folhas. ( ... ) "Foge para mim, Nando. Ficar aí é adiar a vida da gente. Principalmente a minha. A nossa... Eles estão facilitando o asilamento e fuga de todos os que estiveram presos. Foge para mim, Nando, eu sei que para você eu valho uma pátria, não valho? " Valia, valia todas as pátrias, valia o risco de uma vida duvidosa na Europa, da procura de sabe Deus que emprego. Tudo era preferível a saber Francisca longe e a chamá-lo com insistência e ignorar esse chamamento. Nando planejou embarcar de navio, mas a Polícia recusou-lhe o passaporte. Estava amarrado ao IPM do PC da Liga. Não podia deixar o país." ( A palavra, Parte V, p. 391)
Observe que o texto acima assinala também a presença do chamado discurso indireto livre, que tem como pressuposto o narrador onisciente em 3ª pessoa ( o trecho está sublinhado).

Nas narrativas onde aparece o discurso indireto livre pode ser verificada uma aproximação intensa entre o discurso do narrador e o fluxo do pensamento da personagem.

O romance está organizado estruturalmente em 7 partes, assim divididas sob a forma de 7 enormes capítulos:
O Ossuário;
O Éter;
A Maçã;
A orquídea;
A palavra;
A praia ; e
O mundo de Francisca.

Tempo:

O tempo narrativo, que permeia os 7 capítulos, é o cronológico e as ações acontecem num período de dez anos: inicia-se no governo Getúlio Vargas eleito pelo voto direto , na década de 50 e termina em 1964, em pleno governo militar, logo após a deposição de João Goulart e o início das torturas e perseguições por parte da junta Militar presidida por Castelo Branco.

Esses dez anos são o cenário brutal de um tempo duro para o Brasil, um tempo amargo, difícil , em que os homens, quer das Ligas Camponesas, quer pós golpe militar, tiveram que viver a carne viva de seus sonhos.

Espaço:

Os espaços narrativos são Pernambuco, onde se inicia a ação, Rio de Janeiro, para onde Nando se desloca em busca de ir para o Xingu, e o Xingu esquecido das autoridade, sobretudo Getúlio Vargas, que prometera demarcá-lo.

As sete partes do romance:

O ossuário
A personagem protagonista, padre Nando, é apresentada ao leitor no ossuário, enquanto medita no Mosteiro perto do Recife. Lá os frades franciscanos mortos esperam pelo Juízo Final:

"De costas para Nando e muito próximos de Cristo, seis franciscanos imóveis, três de cada lado, cabeças baixas cobertas do capuz. Enfrentavam a lei. E para eles não havia misericórdia. Eram a cabeça de duas filas de monges que aguardavam sua vez no juízo final. Estavam todos imóveis, imóvel estava o Cristo como se de súbito se introduzisse nos trabalhos uma alteração importante. Começara um julgamento sem dúvida mais grave. Era Nando que subia entre as duas filas de franciscanos. Subia. Cresciam diante dos seus olhos a balança, a escala, os cutelos, os duros pratos prontos a reagirem a um frêmito de culpa. Enquadrado, dividido pelas linhas da balança, Cristo crescente para nando caminhante. Cristo duro. Balança ele próprio. Cristo matemata. Nando ultrapassou os que eram julgados diante da balança, ultrapassou a balança, colocou-se ao lado direito do Cristo e mirou em frente. Os capuzes cobriam caveiras e na mão dos frades os rosários se prendiam a metacarpos e falanges. Eram esqueletos de frades em julgamento. Era atoda a imensa cripta em frente, prolongada num corredor que morria em trevas, havia ossos empilhados e prontos a se reorganizarem em esqueletos vestidos de burel mal soasse para cada frade a trombeta da chamada.."

Surpreende-se com a presença de Levindo entre os esqueletos. Ferido na mão por um tiro de rifle dado por um usineiro, o militante político tinha vindo parar no ossuário procurando abrigo:

"- Cuidado, Levindo - disse Nando - Violência é coisa que quem procura encontra sempre.

Graças a Deus - disse Levindo.
O tiroteio foi por quê?
Esse usineiro Zé Quincas, da Usina Estrela, é o mais poderoso e o mais safado de todos eles. Se a gente conseguir curvar essa peste os outros vão ver que a coisa não é mais brincadeira. Eu fui lá com um camponeses que entraram para o sindicato e foram despedidos. Voltei com eles, que queriam desafiar Zé Quincas criando um caso como o de hoje. Fui ajudar eles a fazerem casas nas terras da Usina. Eles têm direitos adquiridos, que diabo.
Fazerem casa na terra dos outros?
Toda terra em Pernambuco é dos outros. Eu sabia e os camponeses sabiam que a Polícia, que também é dos outros, acudia logo para desmanchar as choupanas. Dito e feito."
Francisca, noiva de Levindo e moça da classe alta, estudante de pintura, tinha falado na cripta com entusiasmo, estava pretendendo fazer lá uns desenhos nos azulejos que retratavam a vida de Santa Teresa D'Ávila. Nando medica Levindo, fazendo-lhe um curativo na mão
.

O narrador antecipa o futuro narrativo nos faz ver que Nando já conhecia Francisca ("Desde que D. Anselmo lhe dera permissão - mais do que isto, lhe ordenara _ que saísse do Mosteiro, que fizesse relações com gente do mundo, Nando só tinha encontrado uma paz séria e tranqüila em Francisca, noiva de Levindo. O mais era desmembramento, o mundo entrando em filetes de distração por todas as frinchas da fortaleza que ele fora antigamente. A convivência com seus amigos ingleses era, sem dúvida, estimulante mas agora o levava quase ao desespero, de tanto que tirava de dentro de si mesmo.") e nos aponta também o casal "de ingleses", amigos de Nando: Winifred e Leslie, missionários na região. Anglicanos, os dois mudariam também e para sempre o mundo e os conceitos do jovem padre.

No dia seguinte, Francisca aparece no claustro ( ossuário):
"- Já sei. Está espantado de ver uma mulher no claustro.
Francisca brandiu um papel que tinha por baixo da tábua de desenho com o grande pregador de metal de firmar as folhas.
D. Anselmo me deu um salvo-conduto para desenhar os azulejos de Santa Teresa.
Ah, muito bem - disse Nando - uma invasão legalizada.
E pacífica. De mais a mais Teresa de Ávila era uma mulher . Por que há de ficar seqüestrada entre homens? Ou entre santos, se fosse o caso
."

É assim que nossa narrativa se inicia. Nando é um jovem padre que, com medo dos apelos do corpo físico, tenta adiar sua ida ao Xingu, a fim de catequizar os índios. Teme os apelos sexuais, a visão das índias nuas e evita dizer a D. Anselmo que se dispõe a estar entre aqueles seres. Não diz os motivos, mas adia a ida.

Através de Levindo e Francisca, por quem descobre estar apaixonado, através, ainda do casal de missionários e da insistência de D. Anselmo para que se aproxime do mundo "lá fora", Nando entra em contato com o mundo exterior e seus inúmeros problemas: o aparecimento das Ligas Camponesas, a violência dos donos da terra e do poder, a miséria e até de um caso de estupro seguido de gravidez e de aborto: Maria do Egito, uma camponesa, é violentada pelo capataz da fazenda; o pai avisa que se houver dentro dela a semente daquele homem, a matará, bem como ao agressor. Grávida, Maria recebe a proteção de Winifred e Lesley que a levam para abortar.

Aos poucos, o padre Nando se instala no mundo. E a fúria da carne e dos desejos lhe sobrevém com força.

Januário, um militante político que pretende arrebanhar os padres a favor da causa dos camponeses , convida Nando a participar de uma reunião da Sociedade dos Plantadores. É a contragosto que Nando vai, mas começa a descobrir o universo circundante, a força dos homens simples e a simpatizar com a causa que defendem.

Nos dias subseqüentes, o padre encontra-se muitas vezes com Francisca: ela mostra a ele uns desenhos dos índios kadiuéu e diz estar disposta a ilustrar um futuro livro que Nando poderia escrever sobre eles, em sua missão no Xingu.

Levindo quer casar-se com Francisca, planeja passar a lua-de-mel no Xingu e é advertido por Winifred que o acusa de tomar decisões unilaterais sobre o casamento. É interessante notar aqui que o narrador supervaloriza as relações que partam do princípio que ambos, no casal, devem tomar, conjuntamente, decisões.

O poder do "comunismo"na região incomoda D. Anselmo que pergunta a Nando sobre o que ele acha do assunto. Nessa ocasião, D. Anselmo relata também que o Major Ibiratinga , fiel da Igreja, anticomunista e fanático pelo catolicismo, tinha pedido a ele a adesão de todos os padres à sua causa . E, ainda, dá a entender a Nando que o major desejava saber quem estava envolvido com os camponeses, sugerindo que se rompessem os segredos da confissão.

Nando se aproxima de Leslie e Winifred. Admira-os pela maneira livre de pensar e julgar o mundo dos homens. Discutem sempre política e religião e se encanta quando Leslie lê para ele trechos do sermão em louvor de Nossa Senhora do Ó.

Maria do Egito torna-se prostituta para grande pesar de Nando que não entende o ocorrido. Levindo, que encontrara emprego para o pai da moça, despedido do antigo engenho, explica ao padre que só filha "moça" pode ficar na casa do pai. As molestadas, portanto, se sentem banidas do contexto social e procuram , invariavelmente, "fazer carreira nos prostíbulos".

Francisca diz ao jovem padre que deverá partir para a Europa, a pedido do pai, a fim de que esqueça de vez Levindo. Antes de partir, nesse mesmo dia, Francisca esboça um retrato de Nando e promete terminá-lo quando, no futuro, ambos se encontrarem no Xingu.
"Estou de partida para a Europa - disse Francisca - Vim lhe dizer adeus.
De partida para a Europa? - estranhou Nando - Mas assim de repente?
Uma espécie de trato que fiz com papai, que não gosta da lua-de-mel no Xingu - disse Francisca - Como Levindo vai viajar meses pelo interior do Estado, pela Paraíba e não sei mais onde, em companhia de Januário, eu aproveito este tempo e viajo de novo com papai.
(...)
A esperança de papai é de que na Europa eu desista de casar com Levindo, que eu encontro algum namorado por lá e esqueça o do Brasil. Ele não sabe como eu sou constante, de amor como de planos
."
Aturdido pela partida de Francisca, Nando procura o casal de amigos anglicanos. Mas outra perda se anuncia:
"- Você está certo de que deseja falar mesmo, Nando? Esperamos Winifred e depois saímos para jantar os três, num lugar sossegado. Sabe, Nando, não é só Francisca. Nós também vamos partir em breve. É provável que jamais nos vejamos de novo."
Mais aturdido ainda, o padre confessa-se ao amigo anglicano:
"-Escute, lelie - disse Nando falando de um jato. - Você vai ter a honra duvidosa de ser a única pessoa a saber por que não segui ainda para o Xingu. Nem D. Anselmo sabe. Só você e o meu confessor. Tenho medo de me defrontar com as índias nuas.
Medo de quê? - disse Leslie.
Da nudez das índias. Das índias sem roupa.
Nando viu Leslie sem saber em que expressão compor os músculos da cara. Para não sorrir. Para não rir.
Medo. Certeza de que perco os sentidos. Ou me atiro a elas. Medo. Medo.

Depois de se confessar ao amigo, Nando fica doente, com uma infecção terrível e Leslie acaba por , com a aquiescência de D. Anselmo, para se recuperar em casa. Winifred e ele cuidariam de Nando.

Aos poucos, vai se restabelecendo, e discute com Winifred. Os dias passam e Leslie sai para visitar os camponeses, Nando fica a sós com Winifred que resolve pedir desculpas ao amigo pela forma rude que o tratara durante a discussão:

"A maçaneta da porta girou sem que batessem. Winifred entrou. Fechou a porta apoiando-se contra ela.
-Vim lhe pedir perdão, Nando.
Ora essa - disse Nando levantando-se. - Amigos são para dizer as coisas
.

Winifred aproximou-se dele, sorrindo, braços abertos. Como se fosse me abraçar, ia pensando Nando. Não pensou até o fim porque era. Abraçou-o.Depois de homem, fora de pai e mãe, Nando jamais vira outro rosto tão perto do seu. Winifred passou primeiro as Mãos pelos cabelos de Nando. Depois beijou-o na boca. E boca contra boca até sentir os braços de Nando que a envolviam também. Num relance, diante do abismo que se abria Nando protelou todas as objeções."

E se amaram, Winifred nua na cama, Nando era como se aprendesse a ver uma mulher nua na sua frente. Uma espécie de deusa nórdica, branca, branca, uma amazona, um ser indomável para quem não haveria mistérios, barreiras, proibições, pecados.

Mas Nando pensou em Leslie. E , desesperado, ainda abotoando a batina, pôs a caminhar pela praia. A linda Winifred ensinara a ele o gosto do prazer que o jovem padre jamais experimentara.
Ao chegar no Mosteiro, procura D. Anselmo e anuncia:

"- Venho dizer a Vossa Reverendíssima que estou pronto a partir para o Xingu.

D. Anselmo abriu os braços para o céu e para Nando e bradou com seu vozeirão:

_ Que Deus seja louvado!"

Fonte:
http://portalliteario.sites.uol.com.br/

Raimundo Antonio Souza Lopes (O Prazer de Escrever)

É verdade. Escrever é um estado metafísico, que transcende qualquer tipo de rudeza no ato de discorrer. Não se escreve apenas pelo simples fato de saber, de ter conhecimento – apesar de necessário, claro – mas, em saber arrazoar de forma contundente, o que se pretende defender. É muito fácil para o historiador falar na sala de aula sobre a Grécia Antiga ou o Império Romano – já que ele detém o conhecimento sobre essas civilizações, através de anos de estudos na sua graduação.

Outra coisa, por exemplo, é colocar no papel esse mesmo assunto, conseguindo passar para o leitor, a importância dessas duas civilizações, para o desenvolvimento social, político, cultural e religioso das gerações que as sucederam.

Não. Escrever, definitivamente, não é isso. Escrever é sutileza, leveza e pessoalidade.
Quando se escreve, sua característica está nas entrelinhas, em cada palavra, explícita, como um cunho, como uma marca. Escrever é prazer, é emoção. Para o escritor, o prazer de narrar, contar uma história, criar um romance e vê-los prontos para o deleite de olhos ávidos, é como a trajetória de um filho: da concepção ao nascimento.
A emoção de ver um artigo, uma crônica publicada e lida por milhares de pessoas, é um prazer que começa quando se dá à primeira imaginação, a primeira idéia a ser escrita. É como um namoro que começa. Primeiro o olhar, a empatia, depois o flerte, a corte, as primeiras trocas de palavras carinhosas, o entrelaçamento das mãos e, finalmente, a união dos lábios.

Sentar e escrever são estados de espírito que deve permanecer perene no intelecto do escritor, para brotar no momento de sua criação, da sua pessoalidade e, que, transformando-se na matéria prima do autor, seja dotada de todos os ingredientes necessários para uma boa recepção. É, portanto, inconcebível que se escreva sem emoção e prazer, apenas pelo simples ato de querer cumprir uma tarefa, como se fosse algo descartável, sem valor, obrigatório, sem deixar transparecer a fina e tênue sutileza do seu pensamento ou comentário.

Da mesma forma que é inconcebível, diante da rotina, transcrever ou copiar, pois acaba podando aos poucos, a criatividade que existe dentro de cada um que escolheu como forma de realização – pessoal ou profissional – a sublime missão de informar, divertir, fazer sonhar e, principalmente, esclarecer. Antes de tudo, escrever nasce da visão própria, intimista e significante do autor, da sua percepção cotidiana das coisas que o rodeia, da análise crítica dos fatos e da sua capacidade de transformar a rotina, na leveza necessária para uma boa leitura.

Mas, se escrever é colocar em substrato o pensamento, então escrever é antes de tudo, saber ler o que já foi escrito. E saber ler não é passar os olhos numa leitura dinâmica, superficial, apressada de 30 minutos. É preciso, primeiro, aprender a ler; aprender a degustar o conteúdo; aprender a ler e reler, fazendo do texto a sua reflexão e opinião formal. E não há pressa.

Não há como se abastecer de conhecimentos, nem refletir sobre o objeto, na primeira leitura, assim como, não há como escrever sem rascunhar, sem apagar, sem aperfeiçoar o que já escreveu. Que o diga Guimarães Rosas, em “Grandes Sertões: Veredas”. Enfim, escrever é como um orgasmo, que não precisa vir rápido: pode vir devagar, aos poucos, até o ponto final.

Fontes:
http://www.caestamosnos.org/Recanto_Prosa_e_Verso/07.html Recanto da Prosa & do Verso Nº 07 - Dezembro / 2007
http://a_beautiful_smile_has_a_trouble_soul.glogs.sapo.pt (imagem)

Danilo Corci (Como Descobrir um Conto)

Julio Cortazar

Como se dissecar um conto? Como saber que este conto realmente tem algum tipo de valor? Esta é a proposta colocada pelo escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) em seu texto "Alguns Aspectos do Conto", publicado no livro "Valise de Cronópio" da editora Perspectiva.

Em uma palestra para escritores cubanos da Revolução, Cortázar discorre sobre sua maneira de olhar para este estilo literário de grande importância na América de origem latina. Ao partir de sua experiência própria, o escritor se define como contista fantástico, não por simples retórica, mas por falta de definição melhor. Ou seja, seus escritos partem de uma contraposição ao que ele chama de realismo falso que usa e abusa da premissa que todas as coisas podem ser descritas e explicadas pelo otimismo filosófico e científico do Século XVIII.

Em seu texto, Julio Cortázar defende a íntima ligação entre o bom conto e a poesia, já que ambas estão voltadas para si mesma, se definem em si próprias. Vai além. Afirma que o estilo é uma espécie de síntese viva que pode ser criada mesmo que não se saiba suas regras básicas. E quais seriam estas regras? Segundo o argentino, um bom conto depende necessariamente de sua universalidade. Cita os contos regionais gaúchos argentinos, onde a representação pura e simples do modo de viver do habitante da região não produz um resultado final de impacto, pois a concentração interna do assunto baseada em apenas um foco acaba por romper a linearidade do objetivo final.

Ou seja, a função de um conto é quebrar seus próprios limites para ir muito além da pequena história que narra. E neste quesito, a escolha do tema se torna imprescindível como ato de criação. Cortázar defende que o tema deve ser uma condição primordial para o contista esmiuçar sua história de maneira aglutinante e mais vasta que um mero argumento. Nisto resulta uma total dedicação e motivação com o assunto a ser retratado, caso contrário, o conto já nasce completamente comprometido. Como resultado disso, o escritor encontra sua brevidade e o seu vigor na composição final.

Assim sendo, se forma uma espécie de ofício de escritor, que deve aprender a manipular a intensidade da ação e a tensão interna da narrativa. Para Cortázar, sem isto o estilo narrativo do conto pode ser seriamente comprometido e ficar apenas como uma imagem de uma literatura mal produzida. Se em alguns momentos o escritor pende para algo próximo do misticismo do ato de escrever, isto se deve mais por sua retórica do que necessariamente uma condição.

Sua eloqüência cabal remete a grandes nomes dos contos, como Edgar Allan Poe e Tchekhov, que trabalham de maneira universal apesar de centrarem foco em situações localizadas e definidas geograficamente. Em resumo, "Alguns Aspectos do Conto" faz uma séria proposta de validar e avaliar um texto produzido neste estilo, como um pequeno guia que norteia as referências diretas à teoria literária.

Fonte:
24/06/2003
http://www.speculum.art.br/

Anton Tchékhov (A Obra de Arte)

Carregando sob o braço um objeto embrulhado no número 223 do Mensageiro da Bolsa, Sacha Smirnoff, filhinho de mamãe, assumiu uma expressão de tristeza e entrou no consultório do doutor Kochelkoff.

— Ah! meu grande jovem! — exclamou o médico. — Como vamos? O que há de novo?

Fechando as pálpebras, Sacha pôs a mão no coração e, comovido, falou:

— Mamãe lhe manda seus cumprimentos, Ivan Nicolaìevitch, e me encarregou de lhe agradecer... Mamãe só tem a mim no mundo, e o senhor me salvou a vida... curando-me de grave enfermidade e... não sabemos como lhe agradecer.

— Ora! O que é isso, meu jovem! — atalhou o médico, realizado. — Não fiz mais do que qualquer um no meu lugar teria feito...

Depois de observar o presente, o médico coçou lentamente a orelha, bufou e suspirou, confuso.

— Sim — murmurou —, é algo realmente magnífico... como diria?... um tanto ou quanto ousado... Não é apenas decotada; é... sei lá, que diabos!

— Mas... por que diz isso?

— Nem a serpente em pessoa poderia inventar alguma coisa de mais indecente. Se eu colocasse esta fantasiazinha na mesa, iria contaminar a casa toda.

— Que modo mais excêntrico tem o senhor de interpretar a arte! — disse Sacha, ofendido. — É um objeto artístico!... Olhe! Que beleza! Que elegância! É de se ficar com a alma inundada de piedade, e com lágrimas a subir aos olhos! Contemplando-se tamanha beleza, nos esquecemos de tudo o que seja da Terra... Veja bem... Que movimentos! Que harmonia! Que expressão!...

— Compreendo muito bem tudo isso, meu caro — interrompeu o médico —, mas acontece que eu sou pai de família. Meus filhos costumam vir aqui. Recebo senhoras...

— É evidente — disse Sacha — que se a gente adotar o ponto de vista do povo, este objeto, altamente artístico, causará uma impressão diferente... Sou o filho único de mamãe... somos pobres, e por isso não podemos lhe recompensar os seus cuidados; e não sabemos o que fazer; embora, apesar de tudo, mamãe e eu... seu filho único... lhe suplicamos de todo o coração que aceite, como penhor de gratidão... esta ninharia que... É um bronze antigo... uma obra rara... de arte.

— Mas não havia necessidade — disse o médico, franzindo as sobrancelhas. — Por que razão?

— Não, eu imploro ao senhor, não recuse! — continuou a murmurar Sacha, desembrulhando de todo o pacote. — Seria uma ofensa, a mamãe e a mim... Trata-se um objeto belíssimo... em bronze antigo. Foi herança de papai, guardada como uma querida lembrança.. Papai comprava bronzes antigos e revendia-os aos colecionadores... Já mamãe e eu não nos ocupamos disso...

Sacha acabou de desembrulhar o objeto e colocou-o solenemente em cima mesa. Era um pequeno candelabro de bronze antigo, de fina feitura. Representava duas figuras femininas em trajes de Eva e em atitudes que não ousaria — nem tenho temperamento para isso — descrever.

As figuras sorriam ostensivamente, dando a impressão de que, não fossem retidas pela obrigação de suster o castiçal, teriam imediatamente fugido do pedestal dançado tal cancã que, amigo leitor, nem é bom imaginar.

— O doutor, claro, está acima destas coisas todas e portanto sua recusa nos daria, a mamãe e a mim, uma enorme frustração. Sou o filho único de mamãe; o senhor me salvou a vida... Damos-lhe de presente o que de mais precioso possuímos, e... só tenho a tristeza de não nos pertencer o par do candelabro!

— Muito agradecido, meu jovem amigo. Fico-lhe muito grato... Minhas recomendações à sua mãe, mas rogo-lhe, o senhor mesmo considere a questão! Meus garotos costumam vir aqui... Aparecem muitas senhoras... Mas deixo-o aqui, já que me parece impossível convencê-lo!

— Ora, não há de que me convencer! — disse Sacha com habilidade. – Coloque o candelabro do lado desta jarra. Que infelicidade não possuir o par!... Bem, vou indo, adeus, doutor.

Depois da saída de Sacha, o doutor observou bastante o candelabro, coço orelha e concluiu:

“Não se pode negar que é magnífico. É uma pena abrir mão dele. Ao mesmo tempo é impossível deixá-lo aqui... Hum... Está criado o problema... Poderia dá-lo de presente a quem?” ·

Depois desta reflexão, lembrou-se do advogado Ukhoff, seu amigo íntimo, que gostaria de ter o objeto.

"Às mil maravilhas!", decidiu. "Ukof Ukhoff não aceita receber dinheiro de mim , mas ficará contente com esta lembrança... E assim me livrarei deste incômodo. Além do mais, ele é solteiro e maroto...” ·

Rápido, o médico se vestiu, pegou o candelabro e foi até a casa do advogado.

— Bom dia, amigo — disse, ao encontrar Ukhoff em sua morada... — Venho lhe trazer uma recompensa pela amolação... Já que não quer aceitar dinheiro meu, aceitará um pequeno presente... Ei-lo, meu amigo! É um objeto magnífico!

Ao ver o candelabro, o advogado viu-se tomado de inefável encantamento.

— Isso sim é que é obra de arte — disse, rindo às gargalhadas. — Que o diabo carregue os meliantes capazes de sequer imaginar alguma coisa de parecido... É maravilhoso! Onde foi que você encontrou tal preciosidade?

Assim que o entusiasmo se esgotou, o advogado lançou temerosos olhares para o lado da porta e disse:

— No entanto, meu velho amigo, é melhor levar de volta o seu presente. Não posso aceitá-lo...

— Por quê? — quis saber, espantado, o médico.

— Porque... Mamãe vem aqui, meus clientes... e além do mais é constrangedor em relação aos criados...

— Ora, essa é boa!... Você não terá a ousadia de recusá-lo. (E o médico agitou as mãos.) Eu ficaria ofendido!... Trata-se de um objeto de arte... Que movimentos! Que expressão!... Não quero ouvir seus argumentos! Você me deixaria melindrado!

— Se pelo menos tivesse alguma sutileza, ou se estivesse coberta...

O médico, porém, ainda a agitar as mãos e contente por conseguir se desfazer do presente, voltou para o seu consultório.

Sozinho em casa, o advogado pôs-se a examinar o candelabro, apalpou-lhe todas as partes e, da mesma forma que o médico, viu-se tentado a refletir sobre o que deveria fazer com ele.

“É um objeto belíssimo", pensou. "Seria uma pena se desfazer dele; ao mesmo tempo, é inconveniente tê-lo em casa... Melhor seria oferecê-lo a alguém... Já sei, vou levá-lo hoje à noite ao cômico Chachkine. O sacana adora as coisas desse gênero, e hoje é justamente o dia de sua estréia..."

Foi o que fez, tão rápido quanto pensou. À noite o candelabro, lindamente embrulhado, era oferecido ao cômico Chachkine.

A noite toda o camarim do artista foi invadido pelos homens que queriam admirar o presente; a noite toda foi de murmúrios de aprovação e de risadas que mais pareciam relinchos... Quando uma artista se aproximava do camarim e perguntava: "Pode-se entrar?", logo a voz rouca do cômico retumbava:

— Não, não, cara amiga! Estou sem roupa!

Terminado o espetáculo, Chachkine dizia, dando de ombros e abrindo os braços:

— Onde vou colocar tamanha indecência? Moro em casa de família e recebo muitos artistas! E isso não é como fotografia, que a gente pode esconder dentro da gaveta..

— Ora, por que não o vende, senhor? — aconselhou o cabeleireiro, que o ajudava a trocar de roupa. — Tem uma velha aqui no bairro que compra bronze antigo. Vá lá e pergunte pela senhora Smirnoff... Todo mundo a conhece.

O cômico resolveu seguir o conselho...

Dois dias depois, o doutor Kochelkoff meditava sobre os ácidos biliosos, de dedo na testa. Subitamente a porta se abriu e Sacha Smirnoff jogou-se a seu encontro. Sorria exultante, e todo o seu ser transpirava felicidade... Trazia alguma coisa embrulhada em jornal.

— Doutor — disse, ofegante —, imagine só nossa alegria!... Para nossa felicidade, encontramos o par do seu candelabro!... Mamãe está se sentindo tão feliz!... E o senhor me salvou a vida...

E então, tremendo de gratidão, Sacha colocou o candelabro diante dos olhos de Ivan Nicolaievitch. 0 médico quis dizer alguma coisa mas não conseguiu. Perdera o uso da palavra.
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Biografia do autor postada em 11 de março
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Fonte:
COSTA, Flávio Moreira da (org.). Os cem melhores contos de humor da literatura universal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. Disponível em http://www.releituras.com/