sexta-feira, 20 de março de 2009

Cruz e Souza (Album de Poesias)

Biografia de Cruz e Souza pode ser encontrado em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/05/cruz-e-sousa-1861-1898.html

INEFÁVEL

Nada há que me domine e que me vença
Quando a minha alma mudamente acorda...
Ela rebenta em flor, ela transborda
Nos alvoroços da emoção imensa.

Sou como um Réu de celestial sentença,
Condenado do Amor, que se recorda
Do Amor e sempre no Silêncio borda
De estrelas todo o céu em que erra e pensa.

Claros, meus olhos tornam-se mais claros
E tudo vejo dos encantos raros
E de outras mais serenas madrugadas!

Todas as vozes que procuro e chamo
Ouço-as dentro de mim porque eu as amo
Na minha alma volteando arrebatadas

ANTÍFONA
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras

Formas do Amor, constelarmante puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas ...

Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes ...

Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas correntezas...

Cristais diluídos de clarões alacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...

Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...

SIDERAÇÕES

Para as Estrelas de cristais gelados
As ânsias e os desejos vão subindo,
Galgando azuis e siderais noivados
De nuvens brancas a amplidão vestindo...

Num cortejo de cânticos alados
Os arcanjos, as cítaras ferindo,
Passam, das vestes nos troféus prateados,
As asas de ouro finamente abrindo...

Dos etéreos turíbulos de neve
Claro incenso aromal, límpido e leve,
Ondas nevoentas de Visões levanta...

E as ânsias e os desejos infinitos
Vão com os arcanjos formulando ritos
Da Eternidade que nos Astros canta...

O BOTÃO DE ROSA

O campo abrira o seio às expansões frementes
das árvores senis, dos galhos viridentes.
Caía a tarde fresca
Loira, gentil, vivaz como a canção tudesca.

A iluminada esfera
Calma, profunda, azul como um sonhar de virgem,
Dava um brilho-cetim às verdes folhas d'hera.
No ar uma harmonia avigorada e casta,
No crânio uma vertigem
Duma idéia viril, duma eloqüência vasta.

Tardes formosíssimas,
Ó grande livro aberto aos geniais artistas,
Como tanto alargais as crenças panteístas,
Como tanto esplendeis e como sois riquíssimas.

Quanta vitalidade indefinida, quanta,
Na pequenina planta,
No doce verde-mar dos trêmulos arbustos,
Que misticismo, justos,
Bebia a alma inteira ao devassar o arcano
Das árvores titãs, das árvores fecundas
Que tinham, como o oceano,
Febris palpitações intérminas, profundas.

Esplêndidas paisagens,
Opunha o largo campo às vistas deslumbradas.
As múrmuras ramagens,
À luz serena e terna, à luz do sol - que espadas
De fogo arremessava, em frêmitos nervosos,
Pelo côncavo azul dos céus esplendorosos,
Tinham falas de amor, segredos vacilantes
Finos como os brilhantes.

A música das aves
Cortava o éter calmo, em notas multiformes,
Límpidas e graves
Que estouravam no ar em convulsões enormes.
Aqui e além um rio
Serpejava na sombra, em meio de um rochedo
Áspero e sombrio.
O olhar perscrutador, o grande olhar, sem medo
E o espírito mudo,
Como um herói gigante avassalavam tudo...

Nuns madrigais risonhos
Abria-se o país fantástico dos sonhos.
Alavam-se os aromas
Leais, inexauríveis
Das largas e invisíveis Selváticas redomas.

A seiva rebentava
Em ondas - irrompia
Na doce e maviosa e plácida alegria
De uma ave que cantava,
Dos belos roseirais
Que ostentavam a flux as rosas virginais.

E as jubilosas franças
Dos arvoredos altos,
Rígidos, atléticos,
Derramavam no campo uns fluidos magnéticos
Dumas vontades mansas.

A doce alacridade ia explosindo aos saltos.
E toda a natureza
Robusta de saúde e estrênua de grandeza
Libérrima e vital,
Erguia-se pujante, audaz e redentora,
No gérmen material da força criadora,
Dentre a vida selvagem, mística, animal...

Dos roseirais preciosos
Nos renques primorosos,
Numa linda roseira abria castamente,
Como um sonho de luz numa cabeça ardente,
O mais belo, o mais puro entre os botões de rosa.
Tinha essa cor formosa,
Tinha essa cor da aurora,
Quando ensangüenta em rubro a vastidão sonora.

Era um botão feliz
Sorrindo para o Azul, zombando da matéria.
Tinha o leve quebranto e a maciez etérea
Que uma estrofe não diz.
Das pétalas macias,
Das pétalas sanguíneas,
Doces como harmonias
Brandas e velutíneas
Uns perfumes sutis se espiralavam, raros,
Pela mansão do Bem, pelos espaços claros.
Perfumes excelentes,
Perfumes dos melhores
Perfumes bons de incógnitos Orientes.

Matéria, não deplores
O viver natural dos vegetais alegres;
Eles são mais ditosos
Que os nababos e reis nos seus coxins pomposos;
E por mais que tu regres
O matéria fatal, a tua vida inteira,
No rigor da higiene;
E por mais que a maneira
Do teu grande existir, desse existir - perene
De ironias e pasmos,
Explosões de sarcasmos
Tu completes, matéria - ó humanidade ousada
Com a ciência altanada;
E por mais que no século,
Tu mergulhes a idéia, o prodigioso espéculo,
Será sempre maior e exuberante e forte,
Ó matéria fatal,
Essa vida tão rica
Que se corporifica
Na valente coorte
Do poder vegetal.

Era um botão feliz,
Cuia roseira, impávida,
Ébria de aromas bons, ébria de orgulhos - ávida
De completa fragrância,
Palpitava com ânsia
Desde a própria raiz.

E entanto o sol tombara e triunfantemente
Como um supremo Rubens,
Jorrando à curvidade etérea do poente,
O ouro e o escarlate, aprimorando as nuvens,
Numa distribuição simpática de cores,
De tintas e de luzes
De galas e fulgores
Rubros como o estourar dos férvidos obuses.

O cérebro em nevrose,
No pasmo que precede a augusta apoteose
De uma excelsa visão perfeitamente bela,
De uma excelsa visão em límpidos docéis,
Exaltava o acabado artístico da Tela
E o gosto dos pincéis.

Caíam da amplidão em névoas singulares
Os pálidos crepúsculos.
Os fúlgidos altares
Do homem primitivo - a relva, o prado, o campo
Onde ele ia buscar a força de uma crença
Que então lhe iluminasse a alma escura e densa,
Morriam de clarões - os poderosos músculos
Da fértil mãe de tudo - a natureza ingente -
Deixavam de bater. - O olhar do pirilampo
Oscilava, tremia - azul, fosforescente.

As sombras vinham, vinham,
Lembrando um batalhão d'espectros que caminham
E a casta nitidez sintética das cousas
Tomava a proporção das funerárias lousas.
Completara-se então o mais extraordinário,
O mais extravagante,
Dos fenômenos todos:
A noite. - Enfim descera a treva do Calvário,
A treva que envolveu o Cristo agonizante.

Coaxavam negras rãs nos charcos e nos lodos.
A abóbada espaçosa, a física amplitude,
Mostrava a profundez da angústia de ataúde
De um operário pobre,
Quando se escuta o dobre
Amplíssimo e funéreo,
Sinistro e compassado,
Rolar pela mansão gloriosa do mistério,
Assim com um soluço aflito, estrangulado.

Devia ser, devia
Por uma noite assim,
Como esta noite igual,
Que derramou Maria
A lágrima da dor, - que o célebre Caim
Sentiu dentro do crânio as convulsões do Mal.

Mas o botão de rosa,
Traído pelo estranho zéfiro da sorte,
Rolou como uma cisma
Intensa e luminosa
Ardente e jovial em que a razão se abisma
E foi cair, cair no pélago da morte,
Em um dos mais raivosos,
Em um dos mais atrozes
Rios impetuosos,
Cheios de surdas vozes,
Sozinho, em desamparo, assim como um proscrito,
Em meio à placidez
Dos astros no infinito
E à mesma irracional e fúnebre mudez.

Depois e além de tudo,
Além do grave aspecto inteiramente mudo,
Ao tempo que morria
O cândido botão - em um dos tantos galhos
Virentes da roseira - alegre no ar se abria
Um outro que ostentava as pétalas sedosas,
As pétalas gracis de cores deliciosas,
De cores ideais.
As auras musicais
Passavam-lhe de leve,
Nos tímidos rumores,
De um ósculo mais breve.

E dentre a exposição das delicadas flores,
Das rosas - o botão
Aberto ultimamente às cúpulas austeras,
Às plagas da esperança, a irmã das primaveras,
Pendido um quase nada, esbelto na roseira,
Mostrava aquela unção,
A ínclita maneira
De quem se glorifica
Subindo ao céu azul da majestade pura,
Da eterna exuberância,
Da fonte sempre rica,
Da esplêndida fartura
Da luz imaculada - a egrégia substância
Que faz das almas claras
Pela fecundidade olímpica do amor, Magníficas searas,
De onde se difunde à vida sempiterna,
À vida essencial, à lei que nos governa,
À idéia varonil do poeta sonhador.

A arte especialmente, esse prodígio, atriz,
Como o botão de rosa
Tão meigo e tão feliz,
Pode ser arrojada e brutalmente, ao pego,
Na treva silenciosa,
Onde o espírito vai, atordoado e cego,
Cair, entre soluços,
Como um colosso ideal tombado ao chão de bruços,
Ou pode equilibrar-se em admirável base
Estética e profunda,
Assim, bem como o outro, à mais radiosa altura.

Deves sondá-la bem nesta segunda fase.
Precisas para isso uma alma mais fecunda.
Precisas de sentir a artística loucura...

BRAÇOS

Braços nervosos, brancas opulências,
brumais brancuras, fúlgidas brancuras,
alvuras castas, virginais alvuras,
latescências das raras latescências.

As fascinantes, mórbidas dormências
dos teus abraços de letais flexuras,
produzem sensações de agres torturas,
dos desejos as mornas florescências.

Braços nervosos, tentadoras serpes
que prendem, tetanizam como os herpes,
dos delírios na trêmula coorte ...

Pompa de carnes tépidas e flóreas,
braços de estranhas correções marmóreas,
abertos para o Amor e para a Morte!

ENCARNAÇÃO

Carnais, sejam carnais tantos desejos,
carnais, sejam carnais tantos anseios,
palpitações e frêmitos e enleios,
das harpas da emoção tantos arpejos...
Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,
à noite, ao luar, intumescer os seios
láteos, de finos e azulados veios
de virgindade, de pudor, de pejos...

Sejam carnais todos os sonhos brumos
de estranhos, vagos, estrelados rumos
onde as Visões do amor dormem geladas...

Sonhos, palpitações, desejos e ânsias
formem, com claridades e fragrâncias,
a encarnação das lívidas Amadas!

VELHAS TRISTEZAS

Diluências de luz, velhas tristezas
das almas que morreram para a luta!
Sois as sombras amadas de belezas
hoje mais frias do que a pedra bruta.
Murmúrios ncógnitos de gruta
onde o Mar canta os salmos e as rudezas
de obscuras religiões — voz impoluta
de todas as titânicas grandezas.

Passai, lembrando as sensações antigas,
paixões que foram já dóceis amigas,
na luz de eternos sóis glorificadas.

Alegrias de há tempos! E hoje e agora,
velhas tristezas que se vão embora
no poente da Saudade amortalhadas! ...

DANÇA DO VENTRE

Torva, febril, torcicolosamente,
numa espiral de elétricos volteios,
na cabeça, nos olhos e nos seios
fluíam-lhe os venenos da serpente.
Ah! que agonia tenebrosa e ardente!
que convulsões, que lúbricos anseios,
quanta volúpia e quantos bamboleios,
que brusco e horrível sensualismo quente.

O ventre, em pinchos, empinava todo
como réptil abjecto sobre o lodo,
espolinhando e retorcido em fúria.

Era a dança macabra e multiforme
de um verme estranho, colossal, enorme,
do demônio sangrento da luxúria!

FLOR DO MAR

És da origem do mar, vens do secreto,
do estranho mar espumaroso e frio
que põe rede de sonhos ao navio
e o deixa balouçar, na vaga, inquieto.
Possuis do mar o deslumbrante afeto,
as dormências nervosas e o sombrio
e torvo aspecto aterrador, bravio
das ondas no atro e proceloso aspecto.
Num fundo ideal de púrpuras e rosas
surges das águas mucilaginosas
como a lua entre a névoa dos espaços...
Trazes na carne o eflorescer das vinhas,
auroras, virgens músicas marinhas,
acres aromas de algas e sargaços...

DILACERAÇÕES

Ó carnes que eu amei sangrentamente,
ó volúpias letais e dolorosas,
essências de heliotropos e de rosas
de essência morna, tropical, dolente...
Carnes, virgens e tépidas do Oriente
do Sonho e das Estrelas fabulosas,
carnes acerbas e maravilhosas,
tentadoras do sol intensamente...

Passai, dilaceradas pelos zelos,
através dos profundos pesadelos
que me apunhalam de mortais horrores...

Passai, passai, desfeitas em tormentos,
em lágrimas, em prantos, em lamentos
em ais, em luto, em convulsões, em dores...

SINFONIAS DO OCASO

Musselinosas como brumas diurnas
descem do ocaso as sombras harmoniosas,
sombras veladas e musselinosas
para as profundas solidões noturnas.
Sacrários virgens, sacrossantas urnas,
os céus resplendem de sidéreas rosas,
da Lua e das Estrelas majestosas
iluminando a escuridão das furnas.
Ah! por estes sinfônicos ocasos
a terra exala aromas de áureos vasos,
incensos de turíbulos divinos.
Os plenilúnios mórbidos vaporam ...
E como que no Azul plangem e choram
cítaras, harpas, bandolins, violinos ...

ACROBATA DA DOR

Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.
Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta ...

Pedem-se bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço. . .

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.

MÚSICA DA MORTE

A música da Morte, a nebulosa,
estranha, imensa música sombria,
passa a tremer pela minh'alma e fria
gela, fica a tremer, maravilhosa ...
Onda nervosa e atroz, onda nervosa,
letes sinistro e torvo da agonia,
recresce a lancinante sinfonia
sobe, numa volúpia dolorosa ...

Sobe, recresce, tumultuando e amarga,
tremenda, absurda, imponderada e larga,
de pavores e trevas alucina ...

E alucinando e em trevas delirando,
como um ópio letal, vertiginando,
os meus nervos, letárgica, fascina ...

TRISTEZA DO INFINITO

Anda em mim, soturnamente,
uma tristeza ociosa,
sem objetivo, latente,
vaga, indecisa, medrosa.
Como ave torva e sem rumo,
ondula, vagueia, oscila
e sobe em nuvens de fumo
e na minh'alma se asila.

Uma tristeza que eu, mudo,
fico nela meditando
e meditando, por tudo
e em toda a parte sonhando.

Tristeza de não sei donde,
de não sei quando nem como...
flor mortal, que dentro esconde
sementes de um mago pomo.

Dessas tristezas incertas,
esparsas, indefinidas...
como almas vagas, desertas
no rumo eterno das vidas.

Tristeza sem causa forte,
diversa de outras tristezas,
nem da vida nem da morte
gerada nas correntezas...

Tristeza de outros espaços,
de outros céus, de outras esferas,
de outros límpidos abraços,
de outras castas primaveras.

Dessas tristezas que vagam
com volúpias tão sombrias
que as nossas almas alagam
de estranhas melancolias.

Dessas tristezas sem fundo,
sem origens prolongadas,
sem saudades deste mundo,
sem noites, sem alvoradas.

Que principiam no sonho
e acabam na Realidade,
através do mar tristonho
desta absurda Imensidade.

Certa tristeza indizível,
abstrata, como se fosse
a grande alma do Sensível
magoada, mística, doce.

Ah! tristeza imponderável,
abismo, mistério, aflito,
torturante, formidável...
ah! tristeza do Infinito!

IRONIA DE LÁGRIMAS

Junto da morte é que floresce a vida!
Andamos rindo junto a sepultura.
A boca aberta, escancarada, escura
Da cova é como flor apodrecida.

A Morte lembra a estranha Margarida
Do nosso corpo, Fausto sem ventura...
Ela anda em torno a toda criatura
Numa dança macabra indefinida.

Vem revestida em suas negras sedas
E a marteladas lúgubres e tredas
Das Ilusões o eterno esquife prega.

E adeus caminhos vãos mundos risonhos!
Lá vem a loba que devora os sonhos,
Faminta, absconsa, imponderada cega!

VELHO

Estás morto, estás velho, estás cansado!
Como um suco de lágrimas pungidas
Ei-las, as rugas, as indefinidas
Noites do ser vencido e fatigado.

Envolve-te o crepúsculo gelado
Que vai soturno amortalhando as vidas
Ante o repouso em músicas gemidas
No fundo coração dilacerado.

A cabeça pendida de fadiga,
Sentes a morte taciturna e amiga,
Que os teus nervosos círculos governa.

Estás velho estás morto! Ó dor, delírio,
Alma despedaçada de martírio
Ó desespero da desgraça eterna.

PACTO DAS ALMAS
a Nestor Vítor, por devotamento e admiração.
12 de outubro de 1897

I
PARA SEMPRE


Ah! para sempre! para sempre! Agora
não nos separaremos nem um dia...
Nunca mais, nunca mais, nesta harmonia
das nossas almas de divina aurora.

A voz do céu pode vibrar sonora
ou do Inferno a sinistra sinfonia,
que num fundo de astral melancolia
minh'alma com a tu'alma goza e chora.

Para sempre está feito o augusto pacto!
Cegos serenos do celeste tato,
do Sonho envoltos na estrelada rede,

E perdidas, perdidas no Infinito
as nossas almas, no clarão bendito,
hão de enfim saciar toda esta sede ...

II
LONGE DE TUDO

É livres, livres desta vã matéria,
longe, nos claros astros peregrinos
que havemos de encontrar os dons divinos
e a grande paz, a grande paz sidérea.

Cá nesta humana e trágica miséria,
nestes surdos abismos assassinos
teremos de colher de atros destinos
a flor apodrecida e deletéria.

O baixo mundo que troveja e brama
só nos mostra a caveira e só a lama,
ah! só a lama e movimentos lassos...

Mas as almas irmãs, almas perfeitas,
hão de trocar, nas Regiões eleitas,
largos, profundos, imortais abraços!

III

ALMA DAS ALMAS

Alma das almas, minha irmã gloriosa,
divina irradiação do Sentimento,
quando estarás no azul Deslumbrarnento,
perto de mim, na grande Paz radiosa?!

Tu que és a lua da Mansão de rosa
da Graça e do supremo Encantamento,
o círio astral do augusto Pensamento
velando eternamente a Fé chorosa;

Alma das almas, meu consolo amigo,
seio celeste, sacrossanto abrigo,
serena e constelada imensidade;

entre os teus beijos de etereal carícia,
sorrindo e soluçando de delícia,
quando te abraçarei na Eternidade?!
------------
Fontes:
– Jornal de Poesia. http://www.revista.agulha.nom.br/
– Magia da Poesia. http://www.fabiorocha.com.br/souza.htm
– Colaboração da Ordem dos Templários da Nova Era n.91

Cruz e Souza (Aniversário de Falecimento)



Homenageado como negro, voz que se levantou ao tempo da transição entre a escravatura e a libertação dos escravos, não a libertação dos preconceitos, até hoje permanentes. Homenageá-lo-ei como poeta, porque esta talvez seja dentre todas, a sua principal característica de eternidade.

Sorriso Interior

O ser que é ser e que jornais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da nobre fé tranqüila.

Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsias e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!

"Sorriso Interior", que faz parte de um dos seus últimos livros publicados em vida - há uma publicação de obras posterior -, indica um momento especial na poética de Cruz e Sousa,o momento da sublimação.

Cruz e Sousa foi, permanentemente, a luta entre a depressão e a redenção. Pode-se, talvez, caracterizar-lhe a vida por essa batalha constante entre a depressão e a redenção.

Alguns críticos consideram os seus últimos poemas obras menos fortes; quando a morte se aproximava ele já não teria a fúria inovadora dos tempos iniciais do livro Missais, em que praticamente funda o Simbolismo, e do livro Faróis, em que aponta caminhos. Não estou de acordo com esses críticos nessa observação.

Nos últimos sonetos, Cruz e Sousa vive a redenção de uma vida de auto-sofrimento, de uma vida fadada ao conflito entre a sensibilidade, diria mais, entre um gênio poético - porque Cruz e Sousa é um dos poucos gênios poéticos do Brasil - e a opressão: a infância sofrida embora apadrinhada por um homem de lucidez, seu pai adotivo, que deu alforria aos escravos antes da hora e lhe permitiu o estudo; as primeiras lutas abolicionistas na cidade do Desterro, hoje Florianópolis; a reação de uma sociedade que não admitia o negro naquelas alturas intelectuais; as dificuldades de natureza econômica; os preconceitos tantos, que se hoje existem nos grandes centros urbanos, o que não dizer numa pequena cidade branca no fim do século passado; a dificuldade de trabalho que o fez receber um cargo público no interior e não poder tomar posse, porque era negro. Tudo isso colocado em confronto com uma sensibilidade menina se assim se pode dizer, no sentido da idéia de uma sensibilidade virginal. Tudo isso é a grande luta expressa na poesia de Cruz e Sousa que, a meu juízo, acaba com a redenção nos últimos sonetos - como podemos ver perfeitamente neste poema:

A morte

Oh! Que doce tristeza e que ternura
No olhar ansioso, aflito dos que morrem...
De que âncoras profundas se socorrem
Os que penetram nessa noite escura!

Da vida aos frios véus da sepultura
Vagos momentos trêmulos decorrem...
E dos olhos as lágrimas escorrem
Como faróis da humana Desventura.

Descem então aos golfos congelados
Os que na terra vagam suspirando,
Como os velhos corações tantalizados.

Tudo negro e sinistro vai rolando
Báratro abaixo, aos ecos soluçados
Do vendaval da Morte ondeando, uivando
.

Aqui, perto da morte, Cruz e Sousa vive em seus poemas disjuntivas absolutamente díspares, peculiares a quem enfrenta o problema da morte – ele já estava praticamente tísico ao tempo dos últimos sonetos. Ele tem o terror da morte como desaparição e, ao mesmo tempo, a visão da morte como uma grande diluição no todo, inclusive numa visão beatífica da vida.

Ele é exatamente aquele que diz no "Triunfo Supremo", um dos mais belos sonetos da Língua Portuguesa, se me permitem essa ousadia de afirmação.

Chamo a atenção para a musicalidade, outra característica do Simbolismo, para o misticismo, para o cromatismo do texto, para alguns aspectos maiores da alta poesia e para o domínio pleno do idioma, sobretudo do idioma sem nenhuma redundância apenas com as palavras necessárias, mas ainda palavras tocadas naquela fusão entre o Parnasianismo e o Simbolismo: a idéia da palavra bela no verso musical.

Triunfo Supremo

Quem anda pelas lágrirnas perdido,
Sonâmbulo dos trágicos flagelos,
É quem deixou para sempre esquecido
O mundo e os fúteis ouropéis mais belos.

É quem ficou do mundo redimido,
Expurgado dos vícios mais singelos,
E disse a tudo o adeus indefinido
E desprendeu-se dos carnais anelos!

É quem entrou por todas as batalhas
As mãos e os pés e o flanco ensangüentando,
Amortalhado em todas as mortalhas.

Quem florestas e mares foi rasgando
E entre raios, pedradas e metralhas,
Ficou gemendo mas ficou sonhando !

Aqui, de modo belíssimo, Cruz e Sousa coloca a capacidade de sublimação do ser humano e a capacidade de vencer tudo aquilo que foi na sua vida realidade: "Quem anda pelas lágrimas perdido, sonâmbulo dos trágicos flagelos..." Aqui também, do ponto de vista literário, estão todos esses valores que se encontram na poesia do Simbolismo.

Cruz e Sousa tem uma junção única na poesia brasileira - talvez Afonso Guimarães, seu companheiro de poesia simbolista, também o tenha -, uma fusão indefinível entre o Romantismo, estilo anterior a ele, o Simbolismo, sua marca, e o Parnasianismo.

O Parnasianismo é coetâneo do Simbolismo. O Parnasianismo busca a pureza da forma, a palavra como expressão exclusiva da beleza. Inclusive, critica-se no Parnasianismo o predomínio da forma até sobre o tema, o conteúdo. E, no entanto, o Parnasianismo é um dos momentos mais elevados de nossa poética.

O tempo nos permite não mais olhar as escolas literárias com preferências ou com aquelas teses antagônicas de quando as refregas literárias estão vivas. Nesse ponto, a literatura se parece muito com a política: idéias pelas quais os homens mataram e morreram, alguns anos ou séculos depois, mostram-se complementares, encontram-se em algum campo das sínteses da política. Assim também na vida literária.

O próprio Modernismo, que se voltou violentamente contra esse estilo de poesia em 1922, negava ao verso a grande eloqüência, negava ao verso o direito à busca da beleza pura, negava ao verso a forma estrita do soneto, a forma estrita da métrica, a forma estrita da rima, porque buscava libertá-lo do que chamava peias que o impediam de expandir-se do ponto de vista da expressão. Tudo é verdade. É verdade que o Simbolismo abre novos caminhos, como é verdade que esse tempo faz uma poesia absolutamente notável.

No Cruz e Sousa das obras iniciais, há esse poema, considerado um marco do Simbolismo no Brasil, do qual o Senador Esperidião Amin, com sua bela voz de barítono, sua emoção de catarinense, seu talento e seu imenso coração, disse da tribuna de modo tão eloqüente o quarteto:

Vozes veladas, veludosas vozes,
volúpias dos violões, vozes veladas,
vagam nos velhos vórtices velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.

Esse poema, no entanto, é um poema grande - não haverá tempo para lê-lo – marca a presença do Simbolismo. Ele tem 101 anos, foi escrito em janeiro de 1897, chama-se "Violões que Choram..." e é, por certo, baseado em obra do Simbolismo francês Les Sanglots dos Violons. Mas, com os jogos e com a aliteração e com a musicalidade e com o uso das letras, como usa nesse quarteto as letras "v" e "z" para simbolizar o bordão do violão, a corda grave do violão, todo o poema, numa época em que se cantava às musas, altissonância e beleza da mulher amada, a Pátria, numa época em que se cantava tudo isso, Cruz e Sousa, como os impressionistas franceses que têm muito a ver com o Simbolismo na arte européia - o Impressionismo na música é um pouco como o Simbolismo Poesia: Debussy é simbolista, Ravel é simbolista - buscava esse encontro da palavra com a música. E da palavra com a música no sentido de sonâncias que despertem sentimentos extra-racionais; sentimentos que escapam um pouco ao controle da razão, que entram no território do devaneio, que entram no território do vôo da imaginação alçado em distâncias muito grandes e, sobretudo, entrem na linguagem inefável da música, que não precisa de palavras. Essa é uma das mais belas tentativas do idioma brasileiro. E é outra das marcas da genialidade de Cruz e Sousa.

Desse poema, lerei apenas alguns quartetos porque ele é realmente muito grande - que fique como um acicate para o interesse posterior das Senhoras e dos Senhores, de todos que desejem aprofundar-se nessa matéria.

Violões que Choram...

Ah! plangentes violões dormentes, mornos,
soluços ao luar, choros ao vento...
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
bocas murmurejantes de lamento.

Noites de além, remotas, que eu recordo,
noites de solidão, noites remotas
que nos azuis das Fantasias bordo,
vou constelando de visões ignotas.

Sutis palpitações à luz da lua
anseio dos momentos mais saudosos,
quando lá choram na deserta rua
as cordas vivas dos violões chorosos.

Quando os sons dos violões vão soluçando,
quando os sons dos violões nas cordas gemem,
e vão dilacerando e deliciando,
rasgando as almas que nas sombras tremem.

Harmonias que pungem, que laceram,
dedos nervosos e ágeis que percorrem
cordas e um mundo de dolências geram,
gemidos, prantos, que no espaço morrem...

E sons soturnos, suspiradas mágoas,
mágoas amargas e melancolias,
no sussurro monótono das águas,
noturnamente, entre ramagens frias.

Vozes veladas, veludosas vozes,
volúpias dos violões, vozes veladas,
vagam nos velhos vórtices velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.

A musicalidade é, portanto, urna das principais marcas dessa tentativa do Simbolismo - tentativa a meu ver, lograda - de unir a palavra, que é irremediavelmente racional, não há forma da palavra não ser um ente de razão, ela pode ser além da razão quando ela é a palavra poética, porém, a razão a domina com essa linguagem do inefável, do que não é exatamente verbalizável, que é a linguagem da música. E se não compreendermos o que significava tudo isso na poesia de então, não compreenderemos a grandeza de Cruz e Sousa.

Nos seus versos abolicionistas ele é condoreiro como Castro Alves. Na sua visão de mundo, ele é romântico, no sentido de que o Romantismo é uma escola literária que prega o amor à natureza, que é uma escola baseada em sentimentos nacionalistas; o Romantismo prega a individualidade na frente de qualquer outra categoria artística; o romantismo é a procura do eu profundo do artista; o Romantismo é uma escola na primeira pessoa. Ele tem essa característica. Ele tem a característica simbolista e tem a característica parnasiana pela pureza do verso. Tudo isso saído daquele menino pobre, filho de escravos alforriados, massacrado, que até quando morreu - e nem todos o sabem - sem dinheiro para que se lhe transportasse o corpo de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, teve o seu cadáver jogado em um trem de animais, onde conseguiu uma vaga para transportar o corpo para o Rio de Janeiro, onde foi enterrado.

Tudo isso, portanto, não vale apenas por Cruz e Sousa. Tudo isso vale por um retrato da opressão humana, por um retrato da capacidade de superação do ser humano de qualquer opressão pelo talento, pela genialidade, pela arte. Isso mostra quanto a arte é política - o que os políticos pouco compreendem, infelizmente -, porque a arte alcança instâncias que a política depois percorre com ações concretas. A arte vai na frente e expressa dramas existenciais, pessoais, humanos, sociais, políticos, espirituais, religiosos, esperanças, as mesmas que estão na política, porque estão na profundidade do ser humano.

Por isso, homenagear Cruz e Sousa não é apenas homenagear esse filho de Santa Catarina - estado maravilhoso -, esse negro formidável - e não distingo o poeta por ele ser negro ou branco; eu o admiro por poeta, porque não vejo diferenças entre as raças a ponto de que se justifique uma exceção porque ele é negro, porque negra é a cultura brasileira, mestiça é a cultura brasileira: é a música, é a pintura, literatura. Somos o País onde isso é a realidade de toda hora.

Um poema que diz do triunfo final de Cruz e Sousa, onde não há conformismo, há uma profunda compreensão de tudo:

Assim seja!

Fecha os olhos e morre calmamente!
Morre sereno do dever cumprido!
Nem o mais leve, nem um só gemido
Traia, sequer, o teu sentir latente.

Morre com a alma leal, clarividente,
Da crença errando no Vergel florido
E o Pensamento pelos céus, brandido
Como um gládio soberbo e refulgente.

Vai abrindo sacrário por sacrário
Do teu Sonho no templo imaginário,
Na hora glacial da negra Morte imensa...

Morre com o teu Dever! Na alta confiança
De quem triunfou e sabe que desce
Desdenhando de toda a Recompensa!

Fonte:
Excerto de discurso pronunciado pelo Senador Artur da Távola, na tribuna do Senado Federal, homenageando Cruz e Sousa, como poeta, em 19 de março de 1998. Publicado por: Senado Federal - Secretaria Especial de Editoração e Publicações, 1998.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Cíntia Moscovich (O tempo e a memória)

Pintura de Salvador Dali
Para Modesto Carone

Poderia ter seus sessenta, no máximo sessenta e cinco anos. Beleza, não; ao menos não se diz de um homem daquela idade que é bonito.

Demonstrava, no entanto, a altivez de quem ocupa uma posição. Não era alto, mas o corpo tinha contornos de firmeza. Os óculos de hastes finas eram um halo a emoldurar os olhos cinzentos; os cabelos, raros; a testa alteada como a de um fidalgo. O vinco entre as sobrancelhas tornava-se um exaspero sobre o peso do rosto.

Ao abrir a porta, sorriu apenas educado, e o sorriso cavou com nítida precisão a ruga acima do nariz. Eu quis saber se ele era o professor Augusto e se tinha lembrança de que eu telefonara no dia anterior. Disse que sim e cumprimentou-me com dedos enérgicos. Num gesto cordial, convidou-me a entrar. Cedeu passagem recuando o corpo, e senti que me observava. Por vaidade, contraí as nádegas e alteei o queixo. Por vaidade. Foi assim que penetrei naquele lugar, com o coração ainda escuro - ainda sem nódoa.

O gabinete era amplo, e prateleiras repletas de livros enchiam o ambiente. Numa parede sobre a qual se aplicara papel de um bordô muito profundo, dominava essa pintura a óleo, de cores bastante tênues: uma mulher, jovem, trazendo ao peito um colar de pérolas. Senti que o homem ainda me observava. E, orgulhosa de juventude, ainda mais contraí as nádegas, fingindo observar o retrato.

Ofereceu-me a cadeira em frente à escrivaninha - grossos cadernos de espiral empilhavam-se a um canto, ao lado do telefone - baquelite, uma raridade - e do abajur de opaline. Deu volta e tomou assento naquele que era seu lugar; escorou os antebraços sobre a mesa, entrelaçando os dedos. Muito bem, ele disse, e então?

Um jornalista escreve para o esquecimento, enquanto desejaria escrever para a memória e para o tempo. Mesmo assim, tirei da bolsa o gravador, caneta e bloco de notas. Fiz menção de ligar o aparelho, mas ele estendeu o braço, detendo-me com a mão espalmada:

- Gravadores deixam-me com voz metálica. Além do mais, sei que a senhora não vai publicar nem metade do que vou dizer.

Jornalistas editam e cortam; jornalistas são sempre infiéis. Como, então, eu pedia que confiasse em mim? Recolhi meu equipamento, pressurosa e um pouco envergonhada. Ele empurrou as costas contra a cadeira: a vitória aliviava a concentração do rosto. Engoli o desconcerto e, alisando o papel em que rabiscara algumas notas, busquei aplicar-me à entrevista: ele era especialista em filologia, mas se dedicava, havia alguns anos, à tradução de Borges, uma das melhores, segundo diziam. Fiz a primeira pergunta.

Professor Augusto pendeu o tronco para a frente, cedendo o movimento quando estava suficientemente apoiado no braço da cadeira. Colocara-se muito próximo de mim - uma intimidade. Olhou-me:

- Por que eu traduzo Borges? Ora, porque não consigo escrever como Borges, senhora.

Talvez se tratasse de uma frase de efeito, talvez ele quisesse me confundir. Eu ainda não compreendia como a fala e as intenções se podiam modular do claro ao escuro; tudo o que existia naquela época era o preto no branco, coisas que se percebessem no brilho da nitidez. Para uma repórter ansiosa de coisas que se concretizassem, aquela era, em definitivo, uma retórica injusta, que eu escutei exatamente assim: como se não a merecesse. Anotei tonta e literalmente a afirmativa. Pedi, mentindo sobriedade, que continuasse.

- Tenho pensado que Borges não precisa que o traduzam. Melhor ler Borges no original. A senhora já leu Borges em castelhano?

A primazia das perguntas era minha, pretendi avisá-lo. Na realidade, alguns anos antes, a passeio em Buenos Aires, comprara um antigo exemplar de Ficciones numa das livrarias da calle Corrientes, volume que trouxe com o ânimo de quem porta um souvenir de viagem. Lembro, ainda hoje, de ter lido a brochura com dificuldade, um castelhano árduo mesmo para quem nasceu em terras sulinas do Brasil. Por isso, pelo penoso da experiência, naquela hora não consenti em dar a ele as miudezas de minha pequena história - muito menos me animei à confissão do quanto me custara a visita ao Ficciones. Tornei-me, de repente, cansada, de repente exausta, sem vontade de estar na frente daquele senhor, que me arrostava, os olhos cor de ardósia muito intensos.

Abreviei a entrevista: que diferença fazia eu ter lido ou não Borges no original?

Toda a diferença do mundo, retrucou, não sem certo amuo, dirigindo a atenção para algum ponto às minhas costas. Dei volta com o corpo, curiosa. Nós, os dois, agora, olhávamos para a mulher no retrato. O papel de parede, no fundo do qual frutos e pássaros entrelaçavam-se, começava a despegar à altura do encontro com a moldura de gesso que servia de contorno ao teto. Os dentes da mulher eram nacarados e pareciam repetir o brilho das pérolas. Voltei a encará-lo. Pegou uma caneta onde o dourado se amortecera pelo tempo. Repetiu a mesmíssima pergunta: a senhora leu Borges no original?

Respondi, finalmente, que sim. Seu rosto se iluminou, como quem encontra um seu igual. E desandou a falar, Borges e seus símbolos, Borges e sua erudição, Borges e seu Sul, Borges e sua melancolia, a fidelidade do tradutor ao original de partida, o conhecimento da língua de chegada, as equivalências possíveis entre espanhol e português - tudo numa velocidade que a minha tonta mão se negava a acompanhar, o papel impermeável àquele jorro repentino. Consegui retardá-lo duas ou três vezes, nunca o suficiente. Ele continuava, a caneta orquestrando uma sinfonia de instrumentos loucos, da qual me sentia excluída - não parecia fazer a mínima diferença eu ter lido Borges no original.

Até que o telefone tocou. Ele se interrompeu, a respiração poderosa. Levantou o fone do gancho, agastado. Ouviu com repentina atenção, fazendo um movimento afirmativo com a cabeça, a ruga arando a pele num sulco trágico. Ao cabo de poucos segundos, disse que já estava indo, saio agora mesmo, não se preocupe, não vai ser nada, querida.

Querida. Então havia no mundo alguém que aquele homem queria, alguém que o esperava em algum lugar - onde? Depôs a caneta sobre a pilha de cadernos, alinhando-a com o capricho de quem arranja um antigo documento. Pôs-se de pé, sentia muito, mas tinha de ir. Juntei minhas poucas coisas, apalermada de susto. Levou-me até a porta:

- Volte, por favor, amanhã, às duas da tarde. - Colheu do cabide atrás da porta um cachecol vermelho, que enrodilhou ao pescoço, e um grosso sobretudo de lã, que vestiu com destreza: - Não gosto de entrevistas por telefone.

Descemos os dois degraus que separavam a porta da calçada. A tarde já ia em seu fim, e o céu se anuviava frio de cinza. Uni as abas da gola e ajeitei melhor a bolsa sobre o ombro. Estendi-lhe a mão. Sua pele estava gelada. Fez sinal para um táxi, que se deteve logo adiante. Antes de embarcar, supôs que eu merecesse uma justificativa:

- É meu netinho, um corte na testa. Não deve ser nada, mas minha filha está muito nervosa. Sabe como é.

Não, eu não sabia. Dali a alguns anos, eu teria filhos, mas ainda faltava em mim um laço para que eu entendesse todas as formas de afeto e seus desesperos. O táxi partiu. Decidi caminhar até a redação. Uma nódoa ameaçava dentro. Apertei o passo, impressionada.

Naquela noite, jantei duas fatias de pão com manteiga. Resolvi ir para a cama antes da hora de costume. Depois de escovar os dentes, fui até a estante de livros. Como se fosse por primeira vez, dei de mão no volume de Ficciones. Luz de cabeceira acesa, tapada até o pescoço, comecei a penosa releitura. À altura da estranha história de Juan Dahlmann e seu profundo sentimento argentino, meus olhos já pesavam. Antes de chegar ao desfecho, o livro caiu dentro do silêncio do quarto e se perdeu na voragem do sono. Em meus sonhos, o bibliotecário que tinha em mãos o exemplar das Mil e uma noites se altercava com um homem de feições indiáticas.

No dia seguinte, cheguei cedo à redação. Queria, na verdade, escrever a matéria sobre Borges, antecipar-me ao prazo das rotativas. Meu editor perguntou sobre a entrevista. Menti, sendo imprecisa. Ele disse que precisava de fotos do professor Augusto, não havia nenhuma no arquivo, e pediu que escrevesse o obituário de um escritor local, que estava à morte. Concordei, com a alma densa.

O telefone tocou pelas dez. Atendi. E escutei:

- Sou eu, Augusto.

Veio algo como aflição, que também poderia ser surpresa e que - pensando bem - poderia ser alegria. A voz ao telefone soava faceira e doce, e era como se não correspondesse ao corpo de alguma idade e à índole brusca que demonstrara. Busquei, na papelada sobre minha mesa, o bloco de anotações. Ele me interrompeu:

- A senhora está ocupada agora?

Falei-lhe do obituário. O professor espantou-se, conhecia o autor e lamentava a gravidade dos fatos. Decidiu punir-me, mais uma vez: pensava que o necrológio deveria ser somente feito quando o escritor morresse. Não tinha resposta e fiquei em silêncio. Ele me fustigou:

- Assim são as coisas, senhora. As fúrias se antecipam ao ato.
Tentando dar a mim mesma alguma dignidade, comentei que era bela a frase. Ele retrucou, seco:

- A frase não é minha. É de Kafka. Por favor, venha às quatro da tarde.
Antes que ele desligasse, avisei que levaria comigo um fotógrafo. Ele foi quase ríspido:

- Senhora, uma das coisas que menos aprecio no mundo é que me fotografem.

Desligou. Terminei o texto exatamente ao meio-dia. O escritor faleceu perto da uma da tarde.

Pelas duas, começou a chover, água debatendo-se furiosa contra as vidraças. Meia hora antes do combinado, pedi que o carro do jornal me levasse à casa do professor. O motorista queixava-se da tormenta. Eu também queria queixar-me. Mas de quê?

Toquei a campainha. Ele atendeu: uma vaga de calidez suavizava a ruga entre os olhos. E, pela primeira vez, um homem daquela idade era quase bonito.

Sentei, ainda confusa, no mesmo lugar do dia anterior. Perguntei como estava o neto, se havia sido algo de grave. Ele riu com gosto:

- Dois pontos no supercílio, nada demais - o tom dele era o de amor sólido e severo. - Minha filha se assusta com facilidade - e olhou por cima de meu ombro.

Alguma penumbra muda se instalou no meio de nós. Tomei coragem e, numa vingança débil, informei que o escritor havia morrido. Ele reagiu:

- Sim, já sei. E o necrológio está pronto. - Inclinou um pouco a cabeça: - Talvez eu tenha sido indelicado com a senhora. Sou velho, a morte está ali ao lado - apontou com o queixo uma das prateleiras de livros - mas ainda não somos amigos.

Voltei os olhos para as lombadas e perdi a ação. Calar-me significava concordância com ambas as afirmativas: a de que ele era velho e a de que a morte inspirava pouco apreço. A morte era, sim, algo terrível, e o quê mais era ele senão isso, um homem velho? Nada pude falar. Sem que parecesse dar sentido ao meu mutismo, sugeriu:

- Aceita um café?

Bem, era uma idéia. Apoiou as mãos na borda da mesa e ergueu o corpo, não sem certa dificuldade. Volto já, ele disse, cruzando por mim.

Observei-o: trajava de cinza, calça e pulôver de lã, o cachecol vermelho em volta do pescoço. Ele decerto sentiu que o olhava. Pelo menos, aprumou os ombros ao cruzar pela porta do gabinete. Teria sido belo anos antes.

Caminhei até o retrato. Abaixo da assinatura - indecifrável - a data indicava que exatos trinta anos se haviam passado. Examinei sua biblioteca, detendo-me numa antiga brochura das Mil e uma noites, de Weil, que folheei com deferência; as ilustrações não poderiam ser mais encantadoras. À frente dos livros, quase à beira da estante, algo que se assemelhava a um caleidoscópio chamou-me a atenção. Levei o tubo ao olho, e coloridos vidrinhos armaram-se simétricos, mas nem por isso monótonos. Voltei à mesa de trabalho e medi a pilha de cadernos. Um pecado não estava proibido, e peguei uma das brochuras. O cheiro íntimo de café já se desprendia da cozinha, mas sem ainda ser suficiente para me espantar. Ao alto, no cabeçalho da folha, lia-se "Ulrica". O texto vinha numa caligrafia caprichada, de arranque impetuoso, que logo se suavizava, escandindo-se ao longo da página com elegância. Admirei-me: um trabalho bonito. Devolvi o caderno à pilha e voltei à cadeira quando escutei o breve tilintar de louças. Ele colocou a bandeja entre nós.

- Poderia ser seu pai, senhora - ele disse, acomodando-se.

A frase não resistia à lógica da circunstância. Poderia mas não é, respondi, tentando acompanhar a sinuosidade do raciocínio. Pedi que retirasse a senhoria, melhor chamar-me pelo meu primeiro nome.

Retribuiu a gentileza na mesma moeda. Comentei que o tratamento cerimonioso fazia com que houvesse uma espada entre as pessoas. Ele incendiou o rosto num sorriso, comentando que aquela poderia ser uma frase de Borges. Perguntou se podia servir o café - a essa altura já me tratava pelo primeiro nome. Aceitei.

As palavras que ele dizia portavam cada qual sua sombra, isso era seguro. Mas havia coisas que me eram dadas, naquele momento, compreender. E compreendi. O café que ele serviu era um tanto de amor na louça delgada feito casca de ovo. No meio do silêncio vagaroso, ocorreu-me que o professor mudara de atitude da noite ao dia.

Simplesmente assim: ele havia buscado uma bandeja na cozinha e a dispusera na escrivaninha que nos separava. Sem que eu pedisse - sem que eu merecesse -, colocara, ao lado do bule, quindins lisos e perfeitos.

E como me oferecesse sóis de gemas, a fome veio. Levei o doce à boca, o ovo feito geléia, e o açúcar suavizou meus lábios. Comemos, sem que, por muito tempo, se escutasse uma só palavra: no espaço entre nós, reinava alguma mútua satisfação. O último ruído audível foi o da colher chocando-se contra a louça.

Cada um de nós tomou duas xícaras de café. Depois de passar o guardanapo de papel nos lábios finos, perguntou se estava servida.

Agradeci, elogiando a refeição inesperada. Retirou a bandeja da escrivaninha, depondo-a numa mesa lateral - movimentava-se com elegância. Sentando-se, alisou o cachecol. Varreu com a polpa do indicador alguns farelos imaginários do tampo de madeira; estalou os nós dos dedos e me ofereceu um pensativo semblante. Tive o pressentimento de que ia me dizer algo e, antes que fizesse isso, indaguei a respeito da tradução. Calmamente, repetiu o que declarara, aos jorros, no dia anterior. Ouvi.

Para não deixar as mãos abandonadas, volta e meia pousava-as na pilha de cadernos manuscritos, acarinhando-os. Os olhos perscrutavam-me, avaliando, vez que outra, meu colo, o que me inquietava um pouco ou talvez me envaidecesse. A fala se tornara mais lenta, a dicção, perfeita: uma récita que eu seguia com todos os sentidos. Em determinado momento, tive a intenção de detê-lo, de parar aquela espécie de amor que vinha no caudal das palavras. As certezas ainda longe de mim, temi que estivesse fazendo um cálculo torto - poderia ser somente bondade o que me parecia ser um influxo de carinho. Eu não tinha como saber.

Perguntei se realmente traduzia Borges porque não podia escrever como Borges. Ele sorriu.

- Desisti da carreira quando me dei conta que conseguia manejar bem dez frases curtas, mas que não conseguia uma única frase longa que prestasse - e fez um gesto com a mão, desprezando-se. - Você nunca quis ser escritora?

Confessei que sim, queria, desde pequena, quando lera Lobato. Lobato?, ele repetiu, animado. O sulco sobre a testa havia praticamente sumido.

Aparou a cabeça nos nós dos dedos. E comentou:

- Ontem eu comecei a traduzir Ulrica. É uma história de amor.

Lembrei-me, com algum receio, do caderno que havia aberto quando ele estava na cozinha. A caligrafia caprichada, de arranque impetuoso, fazendo volteios em torno do U inicial. Ele ainda me oferecia os olhos aguados, como se fosse feliz. Desviei o rosto, não sem embaraço, e, ao deter-me na caderneta de anotações, senti uma pontada de entusiasmo: do tanto que havíamos conversado, tinha assunto suficiente para três matérias. Olhei o relógio e uma onda de espanto veio, já era tarde; comentei que tinha de ir. Ele acendeu o abajur de opaline, alisou outra vez a pilha de cadernos e tomou nas mãos a caneta dourada:

- Pois bem, mocinha. O milagre tem o direito de impor condições.

Creio que, por juventude, ainda não sabia ficar calada. Só depois, descobri a imobilidade que, aliada ao silêncio, me traria a vantagem da dúvida. Disse, então, como uma tola, aquela que eu realmente era, que não havia entendido. Ele respondeu que não tinha a menor importância.

Foi comigo até a porta e ajudou-me com o casaco e com a bolsa, ajeitando o cachecol junto a meu pescoço. Perguntou se eu iria até a redação. Falei que já era hora de voltar para casa e que gostava de caminhar sozinha. Sem abrir a porta, ele disse:

- Eu também. Podemos caminhar juntos um dia desses.

Rimos os dois. Parados, de frente um para o outro, ríamos juntos, e eu temi que fosse feliz na hora errada. Num gesto imprevisto colocou-me as mãos sobre os ombros. Estaquei: uma mulher se depara como mulher frente a um homem poucas vezes no espaço de uma vida. Atendendo a algum impulso subterrâneo, abracei-lhe o corpo. Ele suspendeu a respiração. Para uma mocinha, e para um senhor, para nós dois, o contato físico era um dom inesperado. Ele retribuiu o abraço com muita força e encostou, como se fosse permitido, o rosto ao meu. Conheci a pele escanhoada. Era macia.

- Sou viúvo - ele disse. - Não costumo ter nos braços outras pessoas que não minha filha e meu neto.

O diálogo se tornara difícil, como o de duas criaturas que não podem se enganar. Saí com dó daquele laço; sem encará-lo, confidenciei que estava triste por ter acabado a entrevista.

- Ora, mocinha. Amanhã o sol vai brilhar em seus dentes.

A frase tinha lá sua pompa; fazia parecer que o afeto era fácil. Ele abriu a porta e aspirou o ar gelado. Estiara. Hesitou um breve momento antes de perguntar.

- Você quer vir amanhã?

Eu me confundi. Depois de alguns momentos, em que tentei avaliar a pergunta, fiz que sim com a cabeça. Ele disse que me esperaria. E mais:

- A vocação dos velhos é esperar.

Quis saber se, de fato, ele se sentia velho. Negou, meneando a cabeça com certo orgulho.

Ganhei a calçada. A porta fechou-se delicadamente às minhas costas.

Eu, úmida, parada no meio de uma rua transversal da cidade, sentia-me o avesso de uma menina. Meu rosto, onde a pele do professor se juntara à minha, era puro resplendor. Estava toda sensibilidade, algo que me incomodava sem doer, feito uma unha quebrada. Era uma alegria, que apesar de ser alegria, pesava: carga tão difícil de ser eu mesma daquele jeito insolente. Um calor me vinha de dentro do corpo, do tempo em que batia o coração, mas que também era marcado pelos passos que percutiam na calçada. Enfrentava o vento frio, como se houvesse chegado a algum extremo. Cada coisa já tinha sua sombra. Uma delas se instalara em mim e, ao menos por aquele momento, eu achava que era uma bênção. Porque são abençoadas, as pessoas continuam a viver.

Naquela noite, mais uma vez, pouco comi. Deitada, mantive os olhos abertos, numa tentativa de contar a mim mesma meu dia. Nas trevas do quarto, o rosto do professor surgiu, as hastes dos óculos pura iluminação.

Nos meus sonhos, ele se defrontava com o homem de feições indiáticas.
Bem cedo, pulei da cama. Antes de bater a porta de casa, apanhei o volume de Ficciones e carreguei-o junto ao peito. Bastante antes do meu horário de costume, estava na redação. Escrevi e escrevi, horas inteiras. Borges nunca me pareceu tão claro e tão próximo. Era uma intimidade recente, bem certo, mas havia laços que me autorizavam. Meu editor veio pedir-me outro obituário. Polidamente, recusei, alegando que as fúrias não deviam se antecipar ao ato. Ele estranhou.

Por volta de cinco da tarde, a matéria estava pronta. Pedi ao arquivo fotografias de Borges. Escolhi uma bastante antiga, em que se notava o trabalho do tempo. Ao final da edição, dando o artigo por concluído, conheci o medo de ficar sozinha.

Cheguei à casa do professor pelas sete da noite. O volume de Ficciones agarrado junto aos seios. Toquei a campainha. Ele abriu a porta: recebeu-me sem surpresa. Meu coração trocou o tempo em que batia, e eu acolhi, enfim, como quem aprende, a nódoa.

O rosto de um homem daquela idade era finalmente bonito.

Fonte:
MOSCOVICH, Cintia. Arquitetura do Arco-Íris. RJ: Record, 2004.

Cintia Moscovich (1958)


Nascida em 15 de março de 1958 na cidade de Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, Cíntia Moscovich é escritora, jornalista e mestre em Teoria Literária, tendo exercido atividades de professora, tradutora, consultora literária, revisora e assessora de imprensa. Dentre vários prêmios literários conquistados, destaca-se o primeiro lugar no Concurso de Contos Guimarães Rosa, instituído pelo Departamento de Línguas Ibéricas da Radio France Internationale, de Paris, ao qual concorreu com mais de mil e cem outros escritores de língua portuguesa.

Em 1996, publicou sua primeira obra individual, "O reino das cebolas", co-edição da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e da Editora Mercado Aberto, que mereceu a indicação ao Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro. Um dos contos que integram a coletânea foi traduzido para o inglês e faz parte de uma antologia que reúne escritores judeus de língua portuguesa. Em 1998, pela L&PM Editores lançou a novela "Duas iguais - Manual de amores e equívocos assemelhados", que recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura, na modalidade de Narrativa Longa, em 1999, e que acaba de ser reeditado pela Record. Em outubro de 2000, também pela L&PM Editores, lançou o livro de contos "Anotações durante o incêndio, que tem apresentação de Moacyr Scliar e reúne onze textos de temáticas diversas, com destaque ao judaísmo e à condição feminina, merecendo outra vez o Prêmio Açorianos de Literatura. A mesma obra recebeu nova edição pela Editora Record, em novembro de 2006.

Em 2004, publicou a coletânea de contos "Arquitetura do arco-íris", também pela Record, livro que lhe valeu o terceiro lugar em contos no prêmio Jabuti, além da indicação para o Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira e para a primeira edição do Prêmio Bravo! Prime de Cultura.

Em novembro de 2006, lançou o romance "Por que sou gorda, mamãe?", também pela editora Record.

Em dezembro de 2007, lançou seu primeiro livro infanto-juvenil, "Mais ou menos normal", pela Publifolha; e seu sexto livro individual, o romance infanto-juvenil Mais ou menos normal, que faz parte da série Cidades visíveis, da Publifolha.

Ex-diretora do Instituto Estadual do Livro, órgão da Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul, também trabalhou como editora de livros do jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Atualmente, dedica-se exclusivamente à literatura.

Obras
Reino das Cebolas, contos, 1996 (L&PM) – indicado ao Prêmio Jabuti
Duas iguais, novela, 1998 (L&PM) e 2004 (Record)
Anotações durante o incêndio, contos, 1998 – Prêmio Açorianos na categoria de Contos
Arquitetura do arco-íris, contos, 2004 (Record) – Prêmios Portugal Telecom e Jabuti de 2005.
Por que sou gorda, mamãe?, romance, 2006 (Record)

Participação em Antologias

"Geração 90: manuscritos de computador" - seleção realizada por Nelson de Oliveira, publicada em 2001 pela Boitempo Editorial.
"13 dos melhores contos de amor da literatura brasileira"(Ediouro, 2003), com organização de Rosa Amanda Sztraus
"Ficções Fraternas", organizado por Lívia Garcia-Roza e publicado pela Record, 2004.
"25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira", organizada por Luiz Ruffato, publicado pela Record.
"O viajante transcultural - leituras da obra de Moacyr Scliar", organizado por Regina Zilberman e Zilá Bernd (Edipucrs, 2004)
"O dever da memporia - o levante do gueto de Varsóvia" - organizado por Abrão Slavutzky (AGE, 2003)
"Contos para ler em viagem" - organizado por Miguel Sanches Neto (Record, 2005)
"Contos do novo milênio", organizado por Charles Kiefer (IEL, 2005)
"O livro dos sentimentos" - organizado por Márcio Vassalo e Maria Isabel Borja, publicado pela Guarda-Chuva em 2006.
"Os 100 menores contos do século" (Ateliê Editorial) - organizado por Marcelino Freire em 2005.
"Contos de bolso" - organizado por Laís Chaffe para a editora Casa Verde, em 2005.
"69/2 Contos eróticos" - organizado por Ronald Claver, publicado pela editora Leitura em 2006.
"Contos de bolsa" - organizado organizado por Laís Chaffe para a editora Casa Verde, em 2006.
“35 segredos para chegar a lugar nenhum” (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, organização de Ivana Arruda Leite).
“Guia de leitura: 100 autores que você precisa ler” (Porto Alegre: L&PM Editores, 2007 - organização de Léa Masina)
“Recontando Machado”. (Rio: Record, 2008 – organização de Luiz Antonio Aguiar

Fontes:
http://pt.wilipedia.org/
http://www.cintiamoscovich.com/

Felipe Giacomin (Sentidos do Amor)



Amor é algo que domina a gente
Mesmo igual é sempre diferente.

Amor é algo que bate dentro de mim
Fazendo meu coração bombear sem fim.

Amor não tem tempo, nem cor
Amor é apenas amor.

Amor não é tão fácil
Que se conquiste dando um passo.

Amor tem vários sentidos
Podemos amar até nossos amigos.

Amor é uma doação, querendo ou não
Todo mundo quer tê-los em mão.

Uma conquista que prá muitos vale pouco
E prá poucos vale muito.

Sublime é o amor
Sem raça sem cor.

Amor que nos faz flutuar
Isto é a razão de viver e amar.
========================
Fellipe Giacomin, nasceu em Sorocaba em 12 de abril de 1994.
----------
Fonte:
MORAES, Cintian. LARA, Douglas (organizadores). Antologia Rodamundinho 2008. Itu: Ottoni, 2008.
Imagem = http:// www.imotion.com.br

terça-feira, 17 de março de 2009

Luís Delfino (Caldeirão Poético de Santa Catarina)



ALTAR SEM DEUS

Inda não voltas? — Como a vida salta
Destes quadros de esplêndidas molduras!
Mulheres nuas, raras formosuras...
Só a tua nudez entre elas falta ...

Pede-te o espelho de armação tão alta,
Onde revias tuas formas puras;
Pedem-te as cegas, lúbricas alvuras
Do linho, que a Paixão no leito exalta.

Pedem-te os vasos cheios de perfume
Os dunquerques, as rendas, as cortinas,
Tudo quanto a mulher de bom resume,

Escolhido por tuas mãos divinas...
E sai do teu altar vazio, ó nume,
A tristeza indizível das ruínas ...

CADÁVER DE VIRGEM

Estava no caixão como num leito,
Palidamente fria e adormecida;
As mãos cruzadas sobre o casto peito,
E em cada olhar sem luz um Sol sem vida.

Pés atados com fita em nó perfeito,
De roupas alvas de cetim vestida;
O tronco duro, rígido, direito,
A face calma, lânguida, dorida...

O diadema das virgens sobre a testa,
Níveo lírio entre as mãos, toda enfeitada,
Mas como noiva, que cansou na festa.

Por seis cavalos brancos arrancada...
Onde irás tu passar a longa sesta
Na mole cama, em que te vi deitada?!...

TELA APAGADA

Tecum vivere amem.
Horácio

Como isto aqui mudou!... Agosto, o ano passado,
Tinha mais sol, mais luz, mais calor, menos frio;
Mas tudo o mais é o mesmo: a água do mesmo rio,
A ponte de madeira, as mangueiras, ao lado,

Velhas, grandes, em flor, o lanço esburacado
Do muro, e o líquen nele, e a avenca, e o luzidio
Lacrau, que salta, e vira, e já volta ao desvio;
O cão ganindo; e a um canto, à esquerda, ao longe, o prado;

Bambus em renque, em meio o caminho, e no espaço,
Longe do morro, ao fundo, a casa; e no terraço
Sobre o jardim, talhando o ar cintilante, a imagem

De um anjo, - um áureo nimbo à coma, o olhar humano
Como jamais pintou Corregio ou Ticiano:
Quem, levando-a, apagou a esplêndida paisagem...

ALMA VIÚVA

És uma alma viúva e perturbada:
Foi-te a paixão um vento de passagem,
Que indo, lançou do céu na tua imagem
Luxos da noite e jóias da alvorada.

A flor de amor, macia e perfumada,
Não foi de oásis, foi de uma miragem;
Anda por ti, como um rumor de aragem
A um rosal, que deu rosas, pendurada.

Teu negro olhar... o teu olhar esconde
Lasciva flauta de dois tubos, onde
Pã tocara, cantando a selva em coro.

Dentro, o desejo, como instável onda,
Dorme fremendo, quando alguém o sonda,
Como um leão ao sol nas garras d'ouro.

UMA PRINCESA ANTIGA

Tem a grandeza antiga e peregrina
Das mulheres da Bíblia, e da Odisséia:
Anda, fala, aparece... e se imagina
Ou Palas ou Judite ou Diana ou Rea.

Mas quando ao campo os passos seus destina,
Sua estatura avulta: - então é Dea:
Jove, para a espiar da azul cortina,
Deixa os deuses no Olimpo em assembléia.

Juno descora... E ela no cercado,
Numa das mãos erguendo os seus vestidos,
Com outra lança às aves pão cortado,

E vê de longe, entre os capins crescidos,
O velho boi de Homero, um boi malhado
De passo tardo e chifres retorcidos.

O MAL DA VIDA

Amor, pois, é a esplêndida loucura,
E a miséria de um sol que nos invade?
Caiu alguém aos pés da formosura
Que lhe não deixe aos pés razão, vontade?

Este delírio vem da eternidade,
Vem de mais longe, eu sei: - quem o procura
Acha-o mais velho do que Deus: quem há-de
Fugir do mal da vida por ventura?

E o amor é o mal que acaba em paraíso;
E para dar-nos céus num só lampejo
Basta-lhe um pouco, um nada é-lhe preciso:

De sonhos d'oiro e luz calça o desejo:
E então, de dia, em rosa abre o seu riso,
E em ampla estrela, à noite, abre o seu beijo...

CAPRICHO DE SARDANAPALO

"Não dormi toda a noite! A vida exalo
Numa agonia indômita e cruel!
Ergue-te, ó Radamés, ó meu vassalo!
Faço-te agora amigo meu fiel...

Deixa o leito de sândalo... A cavalo!
Falta-me alguém no meu real dossel...
Ouves, escravo, o rei Sardanapalo?
Engole o espaço! É raio o meu corcel!

Não quero que igual noite hoje em mim caia...
Vai, Radamés, remonta-te ao Himalaia,
Ao sol, à lua... voa, Radamés,

Que, enquanto a branca Assíria aos meus pés acho,
Quero dormir também, feliz, debaixo
Das duas curvas dos seus brancos pés!..."

IN HER BOOK

Ela andou por aqui; andou. Primeiro,
Porque há traços de suas mãos; segundo,
Porque ninguém, como ela, tem no mundo
Este esquisito, este suave cheiro.

Livro, de beijos meus teu rosto inundo,
Porque dormiste sob o travesseiro
Em que ela dorme o seu dormir, ligeiro
Como um sono de estrela em céu profundo.

Trouxeste dela o odor de uma caçoula,
A luz que canta, a mansidão da rola
E esse estranho mexer de etéreos ninhos...

Ruflos de asas, amoras dos silvedos,
Frescuras d'água, sombras e arvoredos
Dando seca aos rosais pelos caminhos...

PRIMEIRA MISSA NO BRASIL
(a Vítor Meireles)

Céu transparente, azul, profundo, luminoso;
Montanhas longe, encima, à esquerda, empoeiradas
De luz úmida e branca; o oceano majestoso
À direita, em miniatura; as vagas aniladas

Coalham naus de Cabral; mexem-se inda ancoradas;
A praia encurva o colo ardente e gracioso;
Fulge a concha na areia a cintilar; grupadas
As piteiras em flor dão ao quadro um repouso.

Serpeja a liana a rir; a mata se condensa,
Cai no meio da tela: um povo estranho a eriça;
Sobre o altar tosco pau ergue-se em cruz imensa.

Da armada a gente ajoelha; a luz golfa maciça
Sobre a clareira; e um frade, ao ar, que a selva incensa,
Nas terras do Brasil reza a primeira missa.

A POESIA

O que é poesia, Helena? O céu invade,
E tudo une e desune e tudo enfeixa;
E tudo mete em sonorosa endeixa,
E tudo quanto foi, e inda ser há de.

É a voz de Deus, o som da tempestade:
Dá músicas ao mar, amor à queixa:
E ela em seu manto embrulha os sóis, e deixa
A ira enleá-la, e é cheia de bondade.

Embala o berço, e faz dançar a boda:
Mesmo ao trágico empresta os seus encantos:
Dá voz sublime à ventania douda.

É de existência dor, sorriso, prantos:
E a grande, a rica natureza toda
Luz, freme, goza, sofre, haure em seus cantos...

EXTRA MUROS

A tarde de ontem!... Longe da cidade,
Eu a esperava à porta do Passeio:
Quando via ir chegando um carro: — há de,
Pensava, ser o carro em que ela veio.

Não era. — Então ficava em novo enleio:
Cada momento era uma eternidade;
E entre a esperança, a dúvida, o receio,
Que inquietação, que angústia, que ansiedade!

Mas de repente o rápido ginete
Estaca, o faéton pára, as longas clinas
Sacode o pônei fino e cor de leite:

Sai a deusa: o sol ri, e das colinas
Rola-lhe ao pés a luz, como um tapete
Que ela esgarça na ponta das botinas...

A ÁGUIA

A águia negra, num vôo, de repente
Fura o céu, desprendida da montanha,
E parece levar em feixe ardente
Luz, que às garras metálicas apanha.

Afronta o sol, provoca-o frente a frente,
Deixa as nuvens atrás, remonta em sanha...
E volta irada, triste e lentamente,
Por ver tão longe a luminosa aranha.

Liso, e em foto o areal, como um espelho
Amplo, se estende ao seu olhar vermelho...
Vermelho, como a espuma dos vulcões:

Desce; e por desenfado ao bico enorme,
Enquanto um grupo de gazelas dorme,
Folga arrancando os olhos aos leões.

A PRIMEIRA LÁGRIMA

Quando a primeira lágrima caindo,
Pisou a face da mulher primeira,
O rosto dela assim ficou tão lindo
E Adão beijou-a de uma tal maneira,

Que anjos e Tronos pelo espaço infindo
Qual rompe a catadupa prisioneira,
As seis asas de azul e d'ouro abrindo,
Fugiram numa esplêndida carreira.

Alguns, pousando à próxima montanha,
Queriam ver de perto os condenados
Da dor fazendo uma alegria estranha.

E ante o rumor dos ósculos dobrados,
Todos queriam punição tamanha,
Ansiosos, mudos, trêmulos, Pasmados..

QUE VOS DARIA?

Se tiverdes um dia um capricho, senhora,
Um capricho, um delírio, uma vontade enfim,
Não exijas o carro azul que monta a Aurora
Nem da estrela da tarde o plaustro de marfim;

Nem o mar, que murmura e aí vai por mar em fora
Nem o céu d'outros céus, elos de céu sem fim,
Que se isso fosse meu, já vosso, há muito, fôra.
Fôra vosso o que é grande e anda em torno de mim...

Mostrásseis num só gesto ingênuo, um só desejo...
O universo que vejo e os outros que não vejo
Sofreriam por vós vosso último desdém.

Que faríeis dos sóis, grãos vis de areias d'ouro
Mulher! Pedi-me um beijo e vereis o tesouro
Que um beijo encerra e o amor que um coração contém.
------

Luís Delfino (1834 – 1910)


Luís Delfino dos Santos nasceu em Desterro, Ilha de Santa Catarina, Brasil, e 1834 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1910. Político e poeta brasileiro, considerado “o segundo poeta mais importante de Santa Catarina, superado apenas por Cruz e Sousa.”

Filho de Tomás dos Santos e de Delina Vitorina dos Santos. Casou com Maria Carolina Puga Garcia dos Santos, consórcio do qual nasceu, entre outros, Tomás Delfino dos Santos. Irmão de José Delfino dos Santos.

Morou em sua cidade natal até os dezesseis anos de idade. Mudou-se então para o Rio de Janeiro, onde se formou em medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1857

Sua poesia, de rima e métrica perfeitas, era publicada freqüentemente na maioria dos jornais e revistas da sua época, o que o fez conhecido e amado como poeta. Foi eleito pelos colegas escritores "Príncipe dos Poetas Brasileiros" em 1898. Foi chamado também de "Victor Hugo brasileiro".

Sua obra é imensa - escreveu mais de cinco mil poemas - e foi publicada em quatorze livros, por seu filho, Tomás Delfino dos Santos, entre 1926 e 1943. Sua poesia vai do romantismo ao parnasianismo, passando pelo simbolismo. A perfeição na rima em métrica dá cadência e musicalidade à obra de Luís Delfino. O amor e a mulher eram seus temas preferidos.

"Foi ele um verdadeiro obsessionado pelo mito da beleza, da sensualidade, da idealizada companhia feminina, cantando o amor com toda a sua força e com todas as suas formas de atração...", analisa Lauro Junkes. E é justamente Lauro Junkes, que estuda a obra e a vida de Luiz Delfino há mais de vinte anos, que organiza e publica dois volumes - "Poesia Completa - Sonetos" e "Poesia Completa - Poemas Longos", totalizando mais de mil e trezentas páginas, reunindo toda a poesia conhecida do poeta, resgatada dos livros que o filho de Delfino editou.

Já havia feito sua estréia literária, em 1852, com a publicação do conto O Órfão do Templo, na revista carioca Beija-Flor. Em 1859 tornou-se membro da Academia Filosófica, associação literária que reunia acadêmicos de Medicina e médicos. Entre 1861 e 1881 colaborou nos periódicos Revista Popular, Diário de Rio de Janeiro, A Estação e Gazetinha. O poema mais famoso de sua primeira fase poética, A Filha d´África, foi publicado em 1862, na Revista Popular. Em 1885, foi eleito o maior poeta vivo do Brasil, em concurso da revista A Semana. Foi colaborador, em 1886, da revista A Vida Moderna, e entre 1898 e 1904, dos periódicos simbolistas Vera-Cruz, A Meridional, Revista Contemporânea e Rosa-Cruz.

Seus livros de poesia só foram editados postumamente; entre eles estão Algas e Musgos (1927), Íntimas e Aspásias (1935) e Imortalidades (1941).

É patrono da Academia Santoamarense de Letras.

Foi senador por Santa Catarina no início da República Velha.

Fontes:
– Jornal de Poesia. http://www.jornaldepoesia.jor.br/
http://pt.wikipedia.org/
http://www.antoniomiranda.com.br/
http://www.itaucultural.org.br/

Folclore do Paraná (A Lenda da Gralha Azul)



(ao final, vocabulário em ordem alfabética de algumas palavras do texto)

Pois foi à fazenda dos Pinheirinhos que veio ter um dia o Fidêncio Silva, homem de grandes negócios, com casa matriz em Curitiba e filial em Ponta Grossa. Havia muito já que não experimentava descanso daquela agitação comercial em que vivia e a necessidade de um repouso prolongado tornara-se-lhe cada vez mais patente.

Ora, Fidêncio Silva era parente afastado da esposa de José Fernandes. Assim, logo que pensou em descanso, lembrou-se dos Pinheirinhos, longe daquele bulício de transações e onde o clima não podia ser mais saudável.

E não tardou que estivesse a sorver em largos haustos, com evidente contentamento, o ar puro e varrido da campanha guarapuavana.

José Fernandes recebeu-o fidalgamente, como costumava fazer para todos que traziam uma certa importância de responsabilidades. Pôs os Pinheirinhos à disposição do seu hóspede pelo tempo que desejasse: um, dois, três meses e mais se lhe aprouvesse. Ali teria plena liberdade; quando não quisesse sair nas ocasiões de rodeio, poderia ficar em casa, a uma sombra do pomar, folheando qualquer livro da sua biblioteca quase totalmente agrária, mas que possuía, também, alguma literatura. E passeios igualmente não faltariam: um dia voltearia um rincão; outro iria às terras de planta, levando espingarda para espantar algum tateto; hoje faria uma caçada de anta mais para o sertão ou sairia a passarinhar pelos capões; amanhã correria a vizinhança, ouvindo prosa de caboclos; e até pescaria, se quisesse., poderia fazer no Picuiry, três léguas sertão adentro. Dessa maneira não havia como não corressem agradabilíssimos os trinta dias que Fidêncio Silva pretendia passar nos Pinheirinhos. E assim foi.

Um domingo depois do almoço, saiu à caça com o fazendeiro. Bem municiados, espingardas suspensas pelas bandoleiras ao ombro, entranharam-se os dois por extenso e tapado capão, “querência certa de muito veado, cutia e quati” - afirmava o José Fernandes.

Mas a sua asserção foi logo posta em cheque pela evidência dos fatos: os caçadores não viam um só animalzinho que merecesse chumbo grosso, embora já tivessem andado muito. Passaram então a sondar a ramagem, na esperança de divisar algum pássaro de saborosa carnadura. Em certo momento Fidêncio Silva parou e fez um sinal de silêncio ao companheiro. Depois, engatilhou, apressado, a arma e firmou pontaria, visando a fronde de retorcida guabirobeira. O fazendeiro procurou a caça, erguendo o olhar para a direção indicada pelo cano da espingarda. Súbito, um tremor sacudiu-lhe o corpo, e, de um pincho, esteve ele ao lado de Fidêncio Silva. Mas já era tarde: o rebôo do tiro perdia-se molemente pelas quebradas da mata, soturno, a evocar tristeza naquela quietude frouxa de um mormaço estonteante. A expressão condoída da fisionomia do José Fernandes durou pouco e de todo desapareceu ao ruflar das asas ligeiras esgueirando-se assustadiças por entre as tramadas franças. O atirador errara o alvo e, boquiaberto, todo interrogação, estacava os olhos no fazendeiro, que, ainda com a mão no cano da arma, que pretendera desviar antes do tiro partir, desafogava um longo suspiro de satisfação.

- Meus parabéns!, foram as primeiras palavras de José Fernandes, entre irônicas e zombeteiras.

- Parabéns!?, exclamou, ainda mais intrigado, o Fidêncio Silva.

- Então não merece cumprimentos o caçador que erra tiro em gralha azul? Renovo-os: toque nestes ossos!

E estendeu a destra.

- Quero compreender as suas palavras, mas creia, não posso atinar com o porquê de seu arrebatamento de há pouco. Não matar com carga de chumbo um pássaro do tamanho dessa gralha, concordo que seja péssimo atirador; porém...

- Não. Não o censurei por errar. Muito pelo contrário: apresentei-lhe os meus sinceros parabéns.

Confundido, meio envergonhado, o Fidêncio Silva confessou:

- O amigo tem, então, duas coisas para explicar-me.

- Uma só, uma só. Emendou logo o fazendeiro. Há coerência entre as minhas palavras e a anterior atitude. Eu lhe conto tudo. Sente-se aí nesse tronco caído e escute-me.

O negociante obedeceu maquinalmente. Depois tirou de um lenço e pôs-se a enxugar o suor que lhe escorria pelo rosto, enquanto que, largando o corpo preguiçosamente sobre a trançada grama, José Fernandes foi falando assim:

- Era no inverno, quinze anos atrás. Havia muita seca e o gado caía de magro. Certa tarde montei o cavalo e saí a costear banhados e percorrer sangas, na esperança de salvar alguma criação que porventura se atolasse ao saciar a sede. Levava comigo uma velha espingarda de ouvido, que sempre me acompanhava, porque naquele tempo não poupava graxaim que encontrasse pelo campo, a negociar leitões e carneirinhos. Pois bem, regressava para casa., vagaroso, o pensamento nos grandes prejuízos que a seca estava ocasionando, quando vi um bando de gralhas azuis descer à beira de um capão, entre numeroso grupo de pinheirinhos. Para afugentar, ainda por pouco, a minha tristeza, acrescida pelo fato de ter naquela volteada encontrado mais duas reses estraçalhadas pelos corvos, resolvi dar caça àqueles animaizinhos. Aproximei-me cauteloso, apeando a respeitosa distância. Não muito longe, deti-me à sombra de um pinheirinho e contemplei, por instantes, o bando. Eram poucas as gralhas, e notei que revolviam o solo com o bico.

Fazer pontaria e puxar gatilho foi obra de um momento. Mas, ai! Que horrível o segundo que se lhe seguiu: a espoleta estraçalhou-se e vários estilhaços, de mistura com resíduos da pólvora, vieram dar em cheio em meu rosto. Tonteei, bambearam-se-me as pernas e caí sobre a macega.

Quanto tempo estive desacordado, não lhe sei dizer. Antes, porém, de recuperar os sentidos, quando o sol já se encobria por trás da mata, um pesadelo fabuloso, qual uma história de fadas, gravou-se-me na memória. Revi-me de arma em punho, pronto para fazer fogo. Quando o fiz, iluminou-se o alvo e, aberta as asas brilhantes, o peito a sangrar, veio ele de manso, se achegando a mim. Os pés franzinos evitavam os sapés esparsos pelo chão e o andar esbelto tinha qualquer coisa de divino. Dardejante o seu olhar, estremeci ante aquela figura de ave e deixei cair a arma. Estático já, estarreci ao ouvir os sonoros e compreensíveis sons que aquele delicado bico soltava naturalmente.

Dizia a gralha: “És um assassino! Tuas leis não te proíbem matar um homem? E quem faz mais do que um homem não vale pelo menos tanto quanto ele? Eu, como humilde avezinha, entoando a minha tagarelice selvagem como o marinheiro entoa o seu canto de animação na véspera de praticar seus feitos, faço elevar-se toda essa floresta de pinheiros; bordo a beira das matas com o verdor dessas viçosas árvores de ereção perfeita; multiplico, à medida de minhas forças, o madeiro providencial que te serve de teto, que te dá o verde das invernadas, que te engorda o porco, que te locomove dando o nó de pinho para substituir o carvão-de-pedra nas vias férreas. E ignoras como eu opero!... Vem. Acompanha-me ao local onde me interrompeste o trabalho, para aprenderes o meu doce mister. Vês? Ali está a cova que eu fazia e, além, o pinhão já sem cabeça, que eu devia nela depositar com a extremidade mais fina para cima. Tiro-lhe a cabeça porque ela apodrece ao contato da terra e arrasta à podridão o fruto todo, e planto-o de bico para cima a fim de favorecer o broto. Vai. Não sejas mais assassino. Esforça-te, antes, por compartilhar comigo nesta suave labuta.”

A gralha desapareceu e eu voltei à razão.

Levantei-me a custo e fui ter ao local escavado pelas aves, uma das quais jazia com o peito manchado de sangue, ao lado de um pinhão já sem cabeça. Admirado, verifiquei a certeza da visão: mais adiante cavouquei com as mãos a terra revolvida de fresco e descobri um pinhão com a ponta para cima e sem cabeça.

O José Fernandes fez uma pausa e depois concluiu, mal encobrindo a sua alegria:

- Aí está, caro Fidêncio, como vim a ser um plantador de pinheiros. Quero valer mais que um homem: quero valer uma gralha azul!
===================
Vocabulário
Capões
=Trechos pequenos de mata arbórea em meio a um campo; pequeno bosque.
Franças = Copa da árvore.
Graxaim = cachorro-do-mato, de cor pardo-cinzenta, com focinho e garganta negros, que se alimenta de pequenos animais, frutos, insetos etc.
Guabirobeira =Nome comum a várias árvores e arbustos frutíferos, da fam. das mirtáceas. Do tupi ï'wawe'rawa.
Guarapuavana = da cidade de Guarapuava (PR).
Haustas = absorções, consumos.
Macega = (RS) Arbusto rasteiro que cresce nos campos de má qualidade.
Pincho = salto, pulo.
Querência = (MG e RS), Local de criação ao qual os animais se apegam por instinto.
Rebôo = repercussão do som.
Sangas =Córregos que secam facilmente; escavação funda produzida num terreno por chuvas ou correntes subterrâneas.
Tateto = (Rio Grande do Sul). O mesmo que cateto; porco do mato.

Fontes:
– CASCUDO, Câmara. Lendas Brasileiras. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000
– Enciclopédia Aulete Digital.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Machado de Assis (Entre Santos)



QUANDO EU ERA capelão de S. Francisco de Paula (contava um padre velho) aconteceu-me uma aventura extraordinária.

Morava ao pé da igreja, e recolhi-me tarde, uma noite. Nunca me recolhi tarde que não fosse ver primeiro se as portas do templo estavam bem fechadas. Achei-as bem fechadas, mas lobriguei luz por baixo delas. Corri assustado à procura da ronda; não a achei, tornei atrás e fiquei no adro, sem saber que fizesse. A luz, sem ser muito intensa, era-o demais para ladrões; além disso notei que era fixa e igual, não andava de um lado para outro, como seria a das velas ou lanternas de pessoas que estivessem roubando. O mistério arrastou-me; fui a casa buscar as chaves da sacristia (o sacristão tinha ido passar a noite em Niterói), benzi-me primeiro, abri a porta e entrei.

O corredor estava escuro. Levava comigo uma lanterna e caminhava devagarinho, calando o mais que podia o rumor dos sapatos. A primeira e a segunda porta que comunicam com a igreja estavam fechadas; mas via-se a mesma luz e, porventura, mais intensa que do lado da rua. Fui andando, até que dei com a terceira porta aberta. Pus a um canto a lanterna, com o meu lenço por cima, para que me não vissem de dentro, e aproximei-me a espiar o que era.

Detive-me logo. Com efeito, só então adverti que viera inteiramente desarmado e que ia correr grande risco aparecendo na igreja sem mais defesa que as duas mãos. Correram ainda alguns minutos. Na igreja a luz era a mesma, igual e geral, e de uma cor de leite que não tinha a luz das velas. Ouvi também vozes, que ainda mais me atrapalharam, não cochichadas nem confusas, mas regulares, claras e tranqüilas, à maneira de conversação. Não pude entender logo o que diziam. No meio disto, assaltou-me uma idéia que me fez recuar. Como naquele tempo os cadáveres eram sepultados nas igrejas, imaginei que a conversação podia ser de defuntos. Recuei espavorido, e só passado algum tempo, é que pude reagir e chegar outra vez à porta, dizendo a mim mesmo que semelhante idéia era um disparate. A realidade ia dar-me cousa mais assombrosa que um diálogo de mortos. Encomendei-me a Deus, benzi-me outra vez e fui andando, sorrateiramente, encostadinho à parede, até entrar. Vi então uma cousa extraordinária.

Dois dos três santos do outro lado, S. José e S. Miguel (à direita de quem entra na igreja pela porta da frente), tinham descido dos nichos e estavam sentados nos seus altares. As dimensões não eram as das próprias imagens, mas de homens. Falavam para o lado de cá, onde estão os altares de S. João Batista e S. Francisco de Sales. Não posso descrever o que senti. Durante algum tempo, que não chego a calcular, fiquei sem ir para diante nem para trás, arrepiado e trêmulo. Com certeza, andei beirando o abismo da loucura, e não caí nele por misericórdia divina. Que perdi a consciência de mim mesmo e de toda outra realidade que não fosse aquela, tão nova e tão única, posso afirmá-lo; só assim se explica a temeridade com
que, dali a algum tempo, entrei mais pela igreja, a fim de olhar também para o lado oposto. Vi aí a mesma cousa: S. Francisco de Sales e S. João, descidos dos nichos, sentados nos altares e falando com os outros santos.

Tinha sido tal a minha estupefação que eles continuaram a falar, creio eu, sem que eu sequer ouvisse o rumor das vozes. Pouco a pouco, adquiri a percepção delas e pude compreender que não tinham interrompido a conversação; distingui-as, ouvi claramente as palavras, mas não pude colher desde logo o sentido. Um dos santos, falando para o lado do altar-mor, fez-me voltar a cabeça, e vi então que S. Francisco de Paula, o orago da igreja, fizera a mesma cousa que os outros e falava para eles, como eles falavam entre si. As vozes não subiam do tom médio e, contudo, ouviam-se bem, como se as ondas sonoras tivessem recebido um poder maior de transmissão. Mas, se tudo isso era espantoso, não menos o era a luz, que não vinha de parte nenhuma, porque o lustres e castiçais estavam todos apagados; era como um luar, que ali penetrasse, sem que os olhos pudessem ver a lua; comparação tanto mais exata quanto que, se fosse realmente luar, teria deixado alguns lugares escuros, como ali acontecia, e foi num desses recantos que me refugiei.

Já então procedia automaticamente. A vida que vivi durante esse tempo todo, não se pareceu com a outra vida anterior e posterior. Basta considerar que, diante de tão estranho espetáculo, fiquei absolutamente sem medo; perdi a reflexão, apenas sabia ouvir e contemplar.

Compreendi, no fim de alguns instantes, que eles inventariavam e comentavam as orações e implorações daquele dia. Cada um notava alguma cousa. Todos eles, terríveis psicólogos, tinham penetrado a alma e a vida dos fiéis, e desfibravam os sentimentos de cada um, como os anatomistas escalpelam um cadáver. S. João Batista e S. Francisco de Paula, duros ascetas, mostravam-se às vezes enfadados e absolutos. Não era assim S. Francisco de Sales; esse ouvia ou contava as cousas com a mesma indulgência que presidira ao seu famoso livro da Introdução à Vida Devota.

Era assim, segundo o temperamento de cada um, que eles iam narrando e comentando. Tinham já contado casos de fé sincera e castiça, outros de indiferença, dissimulação e versatilidade; os dois ascetas estavam a mais e mais anojados, mas S. Francisco de Sales recordava-lhes o texto da Escritura: muitos são os chamados e poucos os escolhidos, significando assim que nem todos os que ali iam à igreja levavam o coração puro. S. João abanava a cabeça.

— Francisco de Sales, digo-te que vou criando um sentimento singular em santo: começo a descrer dos homens.

— Exageras tudo, João Batista, atalhou o santo bispo, não exageremos nada. Olha — ainda hoje aconteceu aqui uma cousa que me fez sorrir, e pode ser, entretanto, que te indignasse. Os homens não são piores do que eram em outros séculos; descontemos o que há neles ruim, e ficará muita cousa boa. Crê isto e hás de sorrir ouvindo o meu caso.

— Eu?

— Tu, João Batista, e tu também, Francisco de Paula, e todos vós haveis de sorrir comigo: e, pela minha parte, posso fazê-lo, pois já intercedi e alcancei do Senhor aquilo mesmo que me veio pedir esta pessoa.

— Que pessoa?

— Uma pessoa mais interessante que o teu escrivão, José, e que o teu lojista, Miguel...

— Pode ser, atalhou S. José, mas não há de ser mais interessante que a adúltera que aqui veio hoje prostrar-se a meus pés. Vinha pedir-me que lhe limpasse o coração da lepra da luxúria. Brigara ontem mesmo com o namorado, que a injuriou torpemente, e passou a noite em lágrimas. De manhã, determinou abandoná-lo e veio buscar aqui a força precisa para sair das garras do demônio. Começou rezando bem, cordialmente; mas pouco a pouco vi que o pensamento a ia deixando para remontar aos primeiros deleites. As palavras paralelamente, iam ficando sem vida. Já a oração era morna, depois fria, depois inconsciente; os lábios, afeitos à reza, iam rezando; mas a alma, que eu espiava cá de cima, essa já não estava aqui, estava com o outro. Afinal persignou-se, levantou-se e saiu sem pedir nada.

— Melhor é o meu caso.

— Melhor que isto? perguntou S. José curioso.

— Muito melhor, respondeu S. Francisco de Sales, e não é triste como o dessa pobre alma ferida do mal da terra, que a graça do Senhor ainda pode salvar. E por que não salvará também a esta outra? Lá vai o que é.

Calaram-se todos, inclinaram-se os bustos, atentos, esperando. Aqui fiquei com medo; lembrou-me que eles, que vêem tudo o que se passa no interior da gente, como se fôssemos de vidro, pensamentos recônditos, intenções torcidas, ódios secretos, bem podiam ter-me lido já algum pecado ou gérmen de pecado. Mas não tive tempo de refletir muito; S. Francisco de Sales começou a falar.

— Tem cinqüenta anos o meu homem, disse ele, a mulher está de cama, doente de uma erisipela na perna esquerda. Há cinco dias vive aflito porque o mal agrava-se e a ciência não responde pela cura. Vede, porém, até onde pode ir um preconceito público. Ninguém acredita na dor do Sales (ele tem o meu nome), ninguém acredita que ele ame outra cousa que não seja dinheiro, e logo que houve notícia da sua aflição desabou em todo o bairro um aguaceiro de motes e dichotes; nem faltou quem acreditasse que ele gemia antecipadamente pelos gastos da sepultura.

— Bem podia ser que sim, ponderou S. João.

— Mas não era. Que ele é usurário e avaro não o nego; usurário, como a vida, e avaro, como a morte. Ninguém extraiu nunca tão implacavelmente da algibeira dos outros o ouro, a prata, o papel e o cobre; ninguém os amuou com mais zelo e prontidão. Moeda que lhe cai na mão dificilmente torna a sair; e tudo o que lhe sobra das casas mora dentro de um armário de ferro, fechado a sete chaves. Abre-o às vezes, por horas mortas, contempla o dinheiro alguns minutos, e fecha-o outra vez depressa; mas nessas noites não dorme, ou dorme mal. Não tem filhos. A vida que leva é sórdida; come para não morrer, pouco e ruim. A família compõe-se da mulher e de uma preta escrava, comprada com outra, há muitos anos, e às escondidas, Por serem de contrabando. Dizem até que nem as pagou, porque o vendedor faleceu logo sem deixar nada escrito. A outra preta morreu há pouco tempo; e aqui vereis se este homem tem ou não o gênio da economia, Sales libertou o cadáver...

E o santo bispo calou-se para saborear o espanto dos outros.

— O cadáver?

— Sim, o cadáver. Fez enterrar a escrava como pessoa livre e miserável, para não acudir às despesas da sepultura. Pouco embora, era alguma cousa. E para ele não há pouco; com pingos d'água é que se alagam as ruas. Nenhum desejo de representação, nenhum gosto nobiliário; tudo isso custa dinheiro, e ele diz que o dinheiro não lhe cai do céu. Pouca sociedade, nenhuma recreação de família. Ouve e conta anedotas da vida alheia, que é regalo gratuito.

— Compreende-se a incredulidade pública, ponderou S. Miguel.

— Não digo que não, porque o mundo não vai além da superfície das cousas. O mundo não vê que, além de caseira eminente educada por ele, e sua confidente de mais de vinte anos, a mulher deste Sales é amada deveras pelo marido. Não te espantes, Miguel; naquele muro aspérrimo brotou uma flor descorada e sem cheiro mas flor. A botânica sentimental tem dessas anomalias. Sales ama a esposa; está abatido e desvairado com a idéia de a perder. Hoje de manhã, muito cedo, não tendo dormido mais de duas horas entrou a cogitar no desastre próximo. Desesperando da terra, voltou-se para Deus; pensou em nós, e especialmente em mim que sou o santo do seu nome. Só um milagre podia salvá-la; determinou vir aqui. Mora perto, e veio correndo. Quando entrou trazia o olhar brilhante e esperançado; podia ser a luz da fé, mas era outra cousa muito particular, que vou dizer. Aqui peço-vos que redobreis de atenção.

Vi os bustos inclinarem-se ainda mais; eu próprio não pude esquivar-me ao movimento e dei um passo para diante. A narração do santo foi tão longa e miúda, a análise tão complicada, que não as ponho aqui integralmente, mas em substância.

— Quando pensou em vir pedir-me que intercedesse pela vida da esposa, Sales teve uma idéia específica de usurário, a de prometer-me uma perna de cera. Não foi o crente, que simboliza desta maneira a lembrança do benefício; foi o usurário que pensou em forçar a graça divina pela expectação do lucro. E não foi só a usura que falou, mas também a avareza; porque em verdade, dispondo-se à promessa, mostrava ele querer deveras a vida da mulher — intuição de avaro; — despender é documentar: só se quer de coração aquilo que se paga a dinheiro, disse-lho a consciência pela mesma boca escura. Sabeis que pensamentos tais não se formulam como outros, nascem das entranhas do caráter e ficam na penumbra da consciência. Mas eu li tudo nele logo que aqui entrou alvoroçado, com o olhar fúlgido de esperança; li tudo e esperei que acabasse de benzer-se e rezar.

— Ao menos, tem alguma religião, ponderou S. José.

— Alguma tem, rnas vaga e econômica. Não entrou nunca em irmandades e ordens terceiras, porque nelas se rouba o que pertence ao Senhor; é o que ele diz para conciliar a devoção com a algibeira. Mas não se pode ter tudo; é certo que ele teme a Deus e crê na doutrina.

— Bem, ajoelhou-se e rezou.

— Rezou. Enquanto rezava, via eu a pobre alma, que padecia deveras, conquanto a esperança começasse a trocar-se em certeza intuitiva. Deus tinha de salvar a doente, por força, graças à minha intervenção, e eu ia interceder; é o que ele pensava, enquanto os lábios repetiam as palavras da oração. Acabando a oração, ficou Sales algum tempo olhando, com as mãos postas; afinal falou a boca do homem, falou para confessar a dor, para jurar que nenhuma outra mão, além da do Senhor, podia atalhar o golpe. A mulher ia morrer... ia morrer... ia morrer... E repetia a palavra, sem sair dela. A mulher ia morrer. Não passava adiante. Prestes a formular o pedido e a promessa não achava palavras idôneas, nem aproximativas, nem sequer dúbias, não achava nada, tão longo era o descostume de dar alguma cousa. Afinal saiu o pedido; a mulher ia morrer, ele rogava-me que a salvasse, que pedisse por ela ao Senhor. A promessa, porém, é que não acabava de sair. No momento em que a boca ia articular a primeira palavra, a garra da avareza mordia-lhe as entranhas e não deixava sair nada. Que a salvasse... que intercedesse por ela...

No ar, diante dos olhos, recortava-se-lhe a perna de cera, e logo a moeda que ela havia de custar. A perna desapareceu, mas ficou a moeda, redonda, luzidia, amarela, ouro puro, completamente ouro, melhor que o dos castiçais do meu altar, apenas dourados. Para onde quer que virasse os olhos, via a moeda, girando, girando, girando. E os olhos a apalpavam, de longe, e transmitiam-lhe a sensação fria do metal e até a do relevo do cunho. Era ela mesma, velha amiga de longos anos, companheira do dia e da noite, era ela que ali estava no ar, girando, às tontas; era ela que descia do teto, ou subia do chão, ou rolava no altar, indo da Epístola ao Evangelho, ou tilintava nos pingentes do lustre.

Agora a súplica dos olhos e a melancolia deles eram mais intensas e puramente voluntárias. Vi-os alongarem-se para mim, cheios de contrição, de humilhação, de desamparo; e a boca ia dizendo algumas cousas soltas, — Deus, — os anjos do Senhor, — as bentas chagas, — palavras lacrimosas e trêmulas, como para pintar por elas a sinceridade da fé e a imensidade da dor. Só a promessa da perna é que não saía. Às vezes, a alma, como pessoa que recolhe as forças, a fim de saltar um valo, fitava longamente a morte da mulher e rebolcava-se no desespero que ela lhe havia de trazer; mas, à beira do valo, quando ia a dar o salto, recuava. A moeda emergia dele e a promessa ficava no coração do homem.

O tempo ia passando. A alucinação crescia, porque a moeda, acelerando e multiplicando os saltos, multiplicava-se a si mesma e parecia uma infinidade delas; e o conflito era cada vez mais trágico. De repente, o receio de que a mulher podia estar expirando, gelou o sangue ao pobre homem e ele quis precipitar-se. Podia estar expirando. Pedia-me que intercedesse por ela, que a salvasse...

Aqui o demônio da avareza sugeria-lhe uma transação nova, uma troca de espécie dizendo-lhe que o valor da oração era superfino e muito mais excelso que o das obras terrenas. E o Sales, curvo, contrito, com as mãos postas, o olhar submisso, desamparado, resignado, pedia-me que lhe salvasse a mulher. Que lhe salvasse a mulher, e prometia-me trezentos, — não menos, — trezentos padre-nossos e trezentas ave-marias. E repetia enfático: trezentos, trezentas, trezentos...

Foi subindo, chegou a quinhentos, a mil padre-nossos e mil ave-marias. Não via esta soma escrita por letras do alfabeto, mas em algarismos, como se ficasse assim mais viva, mais exata, e a obrigação maior, e maior também a sedução. Mil padre-nossos, mil ave-marias. E voltaram as palavras lacrimosas e trêmulas, as bentas chagas, os anjos do Senhor... 1.000 — 1.000 — 1.000. Os quatro algarismos foram crescendo tanto, que encheram a igreja de alto a baixo, e com eles, crescia o esforço do homem, e a confiança também; a palavra saía-lhe mais rápida, impetuosa, já falada, mil, mil, mil, mil ... Vamos lá, podeis rir à vontade, concluiu S. Francisco de Sales.
E os outros santos riram efetivamente, não daquele grande riso descomposto dos deuses de Homero, quando viram o coxo Vulcano servir à mesa, mas de um riso modesto, tranqüilo, beato e católico.

Depois, não pude ouvir mais nada. Caí redondamente no chão. Quando dei por mim era dia claro. .. Corri a abrir todas as portas e janelas da igreja e da sacristia, para deixar entrar o sol, inimigo dos maus sonhos.
======================
Vocabulário:
Orago = Santo que dá nome a uma capela ou templo
Anojado = que toma nojo por falecimento de algum parente próximo; que está de luto. Triste, desgostoso.
Dichote = dito picante; gracejo, zombaria.
Nobiliário = Relativo ou pertencente à nobreza.
Aspérrimo = superlativo de áspero.
Expectação = o mesmo que expectativa.
Rebolcava = debatia-se.

Fontes:
– ASSIS, Machado de. Várias Histórias. São Paulo: Escala Educacional, 2008.
– Dicionário Caudas Aulete.
– Imagem = http://evangelizacao.blogspot.com

domingo, 15 de março de 2009

TROVAqui - Nova Revista do Portal CEN (Cá Estamos Nós)


TROVAqui

É uma nova Revista do CEN , dedicada à Trova e aos Trovadores.

Editor: Carlos Leite Ribeiro

Arte Final de IARA MELO

Tema para o mês de Março de 2009 :

“Trova da Vida”
(só em Língua Portuguesa)

Convite a todos:
Autores, Colaboradores, Leitores e Amigos do CEN

Prazo máximo para a entrega dos trabalhos: 27 de Março de 2009

Só deve enviar um trabalho (trova) e em corpo de e.mail sem formatação
(em assunto, digitar TROVA)

E.mail para receber os trabalhos leiteribeiro@netcabo.pt

Com os meus cumprimentos

Carlos Leite Ribeiro
(Presidente do Portal CEN – “Cá Estamos Nós”)

Fonte:
Portal CEN.
http://www.caestamosnos.org/Revista_TROVAqui/index.html

Concurso de Trovas da UBT Campos dos Goytacazes - RJ

Chafariz Belga (Campos dos Goytacazes)
TEMA CONHAQUE

LÍRICAS E FILOSÓFICAS

Incrementando os instantes
partilhados por nós dois
melhor que um conhaque, antes,
é um conhaque depois
José Ouverney

Conhaque faz muito bem:
rega e anima o coração.
Porém cuidado: convém
beber com moderação.
Neiva Fernandes

Nasce em "Cognac"a a bebida
cai no gosto prazenteiro...
e hoje pode ser servida
nas taças do mundo inteiro.
Vanda Fagundes Queiroz

Envelhecido e tristonho,
tão longe da mocidade,
bebo na taça do sonho
o conhaque da saudade.
Elen de Novais Félix

Centenário do Toquino,
festa de grande emoção,
brindamos com drinque fino
seu conhaque de alcatrão.
Carlos Augusto Souto de Alencar.

HUMORÍSTICAS

Conhaque no aperitivo,
conhaque na sobremesa...
- É assim que o velhinho, ativo,
mantém a velinha acesa!
Antônio Augusto de Assis

Foi tão grande o benefício
daquele conhaque a dois,
que eu fui lembrar-me do início
só nove meses depois!.
Rodolpho Abbud

O conhaque, é bem verdade,
levanta mesmo a moral
daqueles que estão na idade
de bandeira a meio pau.
Bessant

Pôs um conhaque no copo
e falou à companheira:
Após bebê-lo eu já topo
fazer qualquer brincadeira.
Amael Tavares da Silva

Após uma talagada
de conhaque tal bebum
viu dois postes na calçada,
mas, na verdade...era um!
Dilma Ribeiro Suero

PREMIAÇÕES NO DIA 30 DE MAIO
----------------
Fontes:
Colaboração de A. A. de Assis
Imagem =
http://antigo.mafiadolixo.com