quinta-feira, 28 de maio de 2009

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Trova IX

Montagem sobre quadro de Aristeu Nogueira Soares

Ocimar Barbosa (A Lenda dos Namorados do Bosque)

Pindamonhangaba tem uma lenda das mais românticas que conta sobre um amor impossível. Trata-se da “Lenda dos Namorados do Bosque”. O fato, segundo historiadores já falecidos, caso do antigo arquivista da prefeitura municipal, “seo” Lacerda, teria acontecido na década de 20 do século que passou.

A morte de dois jovens abalou a sociedade e a comunidade de forma geral, mas o que houve nos bastidores é o que acabou criando a lenda, como uma versão valeparaibana para “Romeu e Julieta”.

A alta sociedade de Pindamonhangaba, remanescente dos áureos tempos do café, ainda vivia das aparências e de uma falsa opulência financeira. Sarais e encontros festivos nas casas mais abastadas falavam da vinda do Príncipe Regente antes do episódio da Independência, dos soldados da Guarda de Honra, da presença de D. Pedro II e das tradições familiares.

Preconceito, o inimigo do amor
Nas igrejas e outros templos religiosos, falava mais alto o renome e a posição social. Um lado da igreja era destinado aos descendentes da nobiliarquia e outro lado para os cidadãos comuns. Famílias tradicionais que ostentavam a distinção de títulos não permitiam que seus membros mantivessem contatos com gente de “menor expressão”.

Assim, em meio a esse cenário pincelado pelo preconceito sobranceiro - entre a pessoa de descendência fidalga e outra do da “plebe”-, surgiria um grande amor .

A jovem era linda, de família de berço nobre do século XIX e cercada de cuidados. Representante ideal da sociedade pindense, havia estudado nos melhores colégios do Rio de Janeiro; ele, um moço da classe média, porém, altivo e inteligente, havia cursado os principais colégios de Pindamonhangaba. Quando se conheceram, ele estudava medicina em São Paulo.

O amor impossível
Conheceram-se durante uma noite de domingo, na Praça Monsenhor Marcondes, naquele período onde o romantismo ainda fervilhava nos corações (não como hoje, onde baladas, drogas, bebidas e palavrões fazem parte do cotidiano da maioria dos casais de namorados). Gestos cavalheirescos ainda provocavam suspiros nas jovens moçoilas.

Foi amor à primeira vista. Apresentados por amigos, brilhou nos olhos a chama do amor verdadeiro onde ambos se sentiram almas-gêmeas, um do outro.

Sentiam-se como se já houvessem se conhecido em outras eras. Tudo era mágico, a atração totalmente recíproca. Imediatamente, estavam loucamente apaixonados.

Logo que soube dos encontros românticos, a família da moça passou a pressioná-la: “Ele não é do nosso nível. Você precisa terminar esse romance!”, diziam os pais, sem demonstrar o mínimo de respeito pelos sentimentos da moça.

Como os jovens apaixonados continuavam a se encontrar, a família proibiu a jovem de vê-lo. Pior! O amor ganhou ainda mais força. Com a proteção das amigas de ambos, o casal de namorados continuava a viver aquele amor cada vez mais impossível.

Ameaças e perseguições
A situação começava a ganhar contornos perigosos com ameaças de todos os lados. O rapaz passou a ser perseguido pelos jovens da elite. Algo terrível estava pra acontecer.

O jovem estudante de medicina já estava em seu 2º ano de estudo e, depois de dois anos, passaram a se encontrar apenas no período de férias, quando ele retornava para sua terra natal, Pindamonhangaba. Nesse período, voltavam as pressões familiares, ameaças e perseguições.

Ficava mais difícil os encontros secretos, enquanto isso, a paixão aumentava, era cada vez mais ardente. Precisavam fazer alguma coisa, pois já não poderiam viver, um sem o outro.

Eternizando o amor
Os jovens temiam, um pela vida do outro. Isso era a prova maior de um sentimento verdadeiro. Depois de conversarem muito, apesar de constantemente vigiados, resolveram colocar um fim àquela situação insuportável.

Em uma certa noite que ficou na história, os jovens desceram a ladeira do Bosque da Princesa. O jovem estudante de medicina trazia um pequeno frasco contendo veneno.

Sob a luz da lua e embaixo de um ipê todo florido, amaram-se, sendo vigiados desta vez, apenas pelas águas cúmplices e silenciosas que deslizavam pela curva do Rio Paraíba.

Depois, brindaram àquele grande amor e beberam da taça que continham a substância venenosa trazida pelo rapaz. Foi um adeus melancólico a duas jovens vidas, mas um “sim” ao encontro de duas almas afins.

No dia seguinte, um grupo de pescadores que passava pelo local encontrou os dois corpos abraçadinhos, cobertos pelas pétalas do ipê amarelo. O velho ipê cobriu com seu manto dourado o jovem casal e serviu assim, de testemunha para um enlace doloroso, porém eterno.

Dizem que o ipê, a partir daquele dia, foi secando, ficando triste...até que morreu de vez e foi retirado. Durante muitas décadas, era visto um pedaço de terra sem vida e sem qualquer vegetação, do lado esquerdo de quem olha para o rio.

Nos anos, 90, com a reforma do gramado do Bosque da princesa, o local ficou sem a referência da velha história: A Lenda dos Namorados do Bosque.

Fonte:
http://www.pindavale.com.br/historiasecausos/textos.asp?artigo=52

Ribeiro Couto (O bloco das mimosas borboletas)



Foi na véspera do carnaval que encontrei o senhor Brito. Ele esperava o bonde junto ao Hotel Avenida.

- Boa tarde, senhor Brito!

- Boa tarde!

E, como eu parasse para acender um charuto, o senhor Brito, aproximando-se, pediu com humildade:

- O seu fogo, faz favor?

Estava ali há dois minutos, com o cigarro apagado, à espera do bonde e de um conhecido para emprestar-lhe o fogo. O senhor Brito ouviu dizer, ou leu num almanaque, que o banqueiro Laffite obteve o seu primeiro emprego porque o futuro patrão o viu curvar-se para apanhar um simples alfinete. Então faz economias de caixas de fósforos, de cafés, de engraxate. Pode ser que algum capitalista se aperceba disto e o convide para um alto negócio.

Aliás, há uma outra razão para o senhor Brito agir desse modo: possui duas interessantes filhas, as duas com vinte anos e pouco, as duas caríssimas, as duas impondo uma importância social que está em absoluto desacordo com o modesto cargo que o senhor Jocelino de Brito e Sousa ocupa, silenciosamente, no Ministério da Fazenda.

Eram cinco e meia da tarde. Como a multidão nos acotovelasse, convidei o senhor Brito a tomar um aperitivo na Americana. O senhor Brito, aceso o seu cigarro, principiara a lamentar-se; e a conversa, ainda que fastidiosa, excitava a minha curiosidade.

O senhor Brito é dos homens mais notáveis da cidade. Eu é que sei. No entanto, ninguém lhe dá importância. Tem uma obesidade caída, um desânimo balofo, um desacoroçoado jeito de velho funcionário pobre que se desespera em casa com as meninas. As meninas querem vestido, precisam freqüentar a sociedade, consomem-lhe todo o ordenado. Ultimamente, deram para um furor de luxo que não tem medida. E o senhor Brito, triste, cogitativo, anda sempre assim, de fazer dó: os braços cheios de embrulhos, o paletó-saco poeirento, os cabelos grisalhos esvoaçando-lhe pelas orelhas, sob o chapéu de palha encardida.

- Senhor Brito, um vermute.

- Acho bom, doutor, acho bom.

Tem um pormenor impressionante no rosto: as sobrancelhas muito peludas, também grisalhas, como que enfarinhadas de cinza. São agressivas as suas sobrancelhas.

Na pessoa mansa do senhor Brito;esse ponto enérgico é único, isolado. Tirando as sobrancelhas, todo ele é doçura.

A pêndula do bar martelou seis horas. O senhor Brito, que ia engolir o vermute, teve uma indecisão, o cálice suspenso à boca.

Li nos seus olhos inquietos esta frase: "As meninas estão à minha espera" .

Exatamente. O senhor Brito bebeu o gole e disse:

- As meninas estão à minha espera.

Ah, a minha feroz alegria! O senhor Brito é assim: um homem que eu, há tempos, venho surpreendendo, desvendando. Tomando posse da sua individualidade sem resistência. Estou a ponto de "saber" todo o senhor Brito. Há ocasiões em que, encontrando-o, digo para mim mesmo: "Ele vai falar-me de um artigo tremendo que saiu hoje contra o presidente da República na Vanguarda". É delicioso: o senhor Brito depois de me apertar a mão põe-me a conversar sobre vagas coisas e, de repente, como se obedecesse ao meu comando, pergunta:

- Leu hoje a Vanguarda? Que artigo tremendo! Que horror!

*****

- Tome outro vermute, senhor Brito - sacudiu a cabeça que não. - As meninas devem estar impacientes.
- E como vão elas?

- Assim, assim. O senhor é que não quis mais aparecer? (Ele pergunta isso sem o menor interesse oculto. Sabe perfeitamente que não pretendo casar-me.)

- Muito serviço, não calcula.

- Mas aos domingos, doutor! Uma vez ou outra! Dá-nos sempre muita honra e principalmente muito prazer.

- Obrigadinho, obrigadinho. Hei de aparecer. O senhor sabe que aprecio muito as suas meninas.

- Elas são boazinhas, isso é verdade. Gostam de divertir-se, de dançar, de brincar. Não pensam na vida.

Não pensam na vida! Para os seus olhos de pai essas duas interessantes princesas de arrabalde não pensam na vida. E elas não pensam senão na vida! Tratam exclusivamente de suas preciosas pessoinhas, dos seus preciosos projetos de casamento, do seu precioso luxo que custa as lágrimas secretas do pai desconsolado.

- Faça o favor, beba outro.

Aceita. E expõe o seu caso de hoje, o caso que eu há vinte minutos estou esperando, como um caçador mau, de emboscada:

- Não avalia as dificuldades que passei de ontem para cá! Imagine que era necessário arranjar um conto de réis e eu não encontrava agiota nenhum que me quisesse emprestá-lo. Afinal, sempre convenci o Moraes, aquele da Rua da Misericórdia, que por sinal todos os meses já me rói metade do ordenado. Esta vida, meu caro doutor!

- Sei o que ela é, senhor Brito. Eu também tenho os meus apertos. O vermute o pertubou um pouco, predispondo-o para a confidência. Continuo insinuando a expansão, pelo meu ar atento, pelo meu todo solícito, pelas minhas frases curtas que deixam sempre uma ponta, para o senhor Brito emendá-la com o que tem no íntimo.

- As meninas morreriam de tristeza se eu não conseguisse nada. -Ah!

- O senhor sabe, são moças, querem divertir-se.

- É natural!

- O carnaval faz todo mundo perder a cabeça. O senhor compreende: qual é o pai que numa ocasião destas não fará um sacrifício?

- Justo!

Pedi mais dois vermutes ao garçom.

- Esses empréstimos abalam muito a bolsa de um homem, senhor Brito.

- Um horror. Nem fale.

- Mas obteve, então?

Toma um gole. Chupa os beiços, enxugando-os. E desabafando: - Ah, felizmente!

- Meus parabéns sinceros.

Sorriu, feliz. Seus olhos, debaixo das sobrancelhas crespas e peludas, cintilaram contentes. As filhas morreriam de tristeza se não tivesse arranjado! Tomou outro gole.

Tive uma sensação inefável de haver ganho a tarde.

- Senhor Brito, há de me dar licença...

- Pois não, pois não!

Paguei a despesa, levantei-me. Ele bebeu o resto do cálice e levantou-se também, sobraçando os embrulhos. Senti que ia dizer-me qualquer coisa ainda sobre as meninas, sobre o carnaval, sobre aqueles embrulhos, sobre o empréstimo...

- Elas estão ansiosas. Está vendo isto? São as fantasias que já haviam escolhido na cidade. E caixas de lança-perfume. E confete.

- E serpentinas.

- Tudo!

O senhor Brito, na sua ternura, ter-me-ia abraçado se não foram os embrulhos.

- Não sabe o que é ter duas filhas, dois anjos como eu tenho!

O bonde da Gávea parara para o assalto dos passageiros. O senhor Brito ia precipitar-se, mas uma idéia lhe fuzilou no cérebro:

- Não quer tomar parte do bloco das meninas?

Desta vez o senhor Brito me apanhara de surpresa. Não gostei. Aquilo me escapara.

- Ah, elas organizaram bloco este ano?

- Alugamos um autocaminhão. Elas se lembraram do senhor mas tinham perdido o telefone da sua pensão. E eu ia-me esquecendo, que cabeça! E o Bloco das Mimosas Borboletas. Então, vem?

O bonde partia, campainhando.

- Telefone para lá!

Falou isso correndo, querendo voltar a cabeça para mim e ao mesmo tempo preparar o pulo sobre o estribo. Pulou. Dependurado, com os embrulhos lhe atrapalhando os movimentos, era sublime o senhor Brito. E o bonde virou a esquina da Rua S. José, levando a bondade, a ventura, o êxtase daquele pai. O Moraes, da Rua da Misericórdia, estava na porta da Brahma, torcendo os bigodes.

*****

Devo tomar parte do Bloco das Mimosas Borboletas?

*****

Quarta-feira de Cinzas eu entrava tranqüilamente num café quando o senhor Brito surgiu, súbito. Quase nos abalroamos.

- Oh! senhor Brito! Vamos a um cafezinho?

Estendi-lhe o braço procurando envolvê-lo pelo ombro. Ele tentou esquivar-se, esboçando uma recusa frouxa. Insisti com veemência e ele entrou, afinal, sombrio.

Observei-lhe que o laço da gravata estava desfeito. Teve um gesto nervoso, apalpando o colarinho e o peito da camisa, como se aquilo lhe tivesse feito lembrar qualquer coisa desagradável ou dolorosa.

Tive receio de pensar o que ele iria dizer-me... Aquele desleixo na gravata era significativo. Eu sabia que era Lalá, a mais velha, quem lhe dava o nó. Todas as manhãs. Ele ia dizer... Não, o senhor Brito dessa vez não disse nada.

Então puxei conversa.

- Divertiu-se muito no carnaval?

Deu de ombros, molemente, num desânimo de vida. E, puxando um cigarro de palha do fundo do bolso do paletó, fez-me com os dedos trêmulos o gesto de pedir fósforos.

Minutos escoaram-se. Não tínhamos assunto. Era mais prático nos despedirmos. .

- Bem, senhor Brito, vou aos meus negócios.

Segurou-me pelo braço. Tive um choque. A revelação ia sair. Passaram se ainda uns momentos de silêncio. Perguntou-me, enfim:

- Por que não quis tomar parte no nosso bloco?

- Ora, senhor Brito, eu não sou carnavalesco. Acredite: não saí de casa os três dias.

- Pois lamentei, lamentei muito a sua ausência.

- Ora, por quê, senhor Brito?

- O senhor é um moço sério. Se o senhor tivesse vindo, olharia pelas minhas filhas.

Senti um susto e uma pérfida vontade de rir. Tive a impressão do ridículo e, ao mesmo tempo, de um vago drama palpitante. As sobrancelhas do senhor Brito, um instante fitas em mim, moviam-se agora, acompanhando um tique nervoso de piscar, indício de comoção.

- Muito agradecido pela confiança, senhor Brito. Porém, não sei se sou digno.

- Sei eu, sei eu.

Comecei a ficar impaciente.

- Que houve de extraordinário, senhor Brito?

- Imagine o senhor que ontem, último dia, como estivesse com os meus rins muito doloridos, não pude acompanhar as meninas ao carro. Sabe, os meus rins...

- Sei, senhor Brito.

- O bloco era grande, umas trinta pessoas. Enfim, havia o Gomes, da minha repartição. O Gomes com a senhora. Fiquei tranqüilo por esse lado e confiei-lhe as meninas. Sabe, os rapazes me pareciam distintos, mas nunca é bom confiar demais.

- Claro.

- Pois meu caro, não lhe conto nada; até esta hora as meninas ainda não voltaram.

- Oh, senhor Brito!

- O Gomes está abatido. Diz que não sabe como é que elas lhe escaparam das vistas.

No rosto tranqüilo do senhor Brito, os olhos, sempre doces, faiscaram de dor. As sobrancelhas tremeram-lhe.


- É verdade o que me diz?

- Des-gra-ça-da-men-te!

Caiu-lhe a cabeça sobre o peito, no desconsolo da calamidade. Não tendo o que dizer (e já um pouco arrependido de não haver tomado parte no bloco, mas por motivos inconfessáveis) reuni todas as minhas cóleras contra aquele Gomes:

- Porém, senhor Brito, esse sujeito, esse Gomes, é um patife!

O senhor Brito fez com a cabeça que não, que o Gomes não era um patife. E disse devagar, com tristeza:

- A mulher dele também até agora não chegou em casa. íamos pela" rua cheia de povo barulhento e feliz.

- Senhor Brito, cuidado com esse auto.

Atravessamos.

Eu tentava qualquer coisa em prol daquela dor:

- Sossegue. Elas dormiram com certeza em casa de amigas".

- Ninguém sabe delas.

- Paciência, senhor Brito, paciência. Talvez já estejam em casa, até.

Barafustamos por um telefone público. Esperamos um momento até que dona Candinha (irmã solteirona e velhusca do senhor Brito, que criara as meninas, sem mãe, desde cedo) atendeu do outro lado do fio.

- Elas já chegaram? - rompeu o senhor Brito, com a voz gritada e comovida, ansioso da resposta.

Largou o fone no gancho, sem ânimo.

- Vamos embora, doutor. Não apareceram! Não há notícias!

E fomos para o Jornal do Brasil. No balcão da gerência o senhor Brito redigiu com letra trêmula o anúncio: "Um conto de réis - Gratifica-se com um conto de réis a quem der notícias positivas sobre o paradeiro de duas moças que anteontem, vestidas à século XVIII, tomaram parte do Bloco das Mimosas Borboletas, da Gávea. Dirigir-se à Rua República de Andorra nº 7".

O empregado do jornal pegou o anúncio, leu-o, teve um sorriso discreto e fez a conta.

O senhor Brito pagou o anúncio e saímos.

Na rua teve uma idéia repentina:

- É verdade, onde vou buscar outro conto de réis?

E a sua doce pessoa crispou-se de angústia.

*****

Ao nos despedirmos, ele queixou-se de uma dor de cabeça. Parou um momento levando a mão à testa. E, súbito, amontoou-se na calçada. Eu não tivera tempo de ampará-lo. Então, com esforço, suspendi aquela massa pesada. Pessoas que passavam me ajudaram. Estava morto.

Seu cadáver foi no automóvel da Assistência Pública para casa, depois das formalidades legais.

Acompanhei-o.

Dona Candinha estava fazendo o jantar e veio ver quem batia, manca de reumatismo, limpando as mãos no avental. Espantou-se. Atrás dos óculos, os olhos se esbugalhavam, sem compreender. Até que, como que se lembrando, deu um grito:

- As meninas! - e ergueu os braços exclamativos.

- É o senhor Brito, dona Candinha - intervim com calma. – Está doente. Muito doente.

- O Jocelino! Pobre Jocelino! Que foi que aconteceu pro Jocelino? E pôs-se a limpar os olhos com o avental sujo.

*****

Entre as pessoas que velavam o cadáver, Gomes destacava-se pelo seu ar digno de homem ferido no seu amor-próprio. A mulher desaparecera definitivamente. Suspeitava-se de um estudante de Medicina, um certo Aristóteles, sergipano, um dos influentes do bloco.

Havia quem apertasse a mão de Gomes, com comoção, apresentando-lhe condolências. Dava a impressão de um parente. A fuga da mulher estabelecera entre ele e o defunto um laço confuso de família.

Gomes agradecia, com um lenço sempre encostado ao rosto.

*****

Pela madrugada entrou Cotinha, a filha mais moça.

Entrou pé ante pé. Ninguém lhe perguntou donde vinha nem por que vinha. Havia na sala apenas três ou quatro pessoas pobres da vizinhança, além de mim. Todas as demais - Gomes inclusive - se tinham retirado por volta de meia-noite. (Gomes explicou que estava abatido, precisava retirar-se, repousar.) Dona Candinha dormia lá dentro, numa cadeira de balanço da sala de jantar, venci da pelas agitações das últimas quarenta e oito horas.

Cotinha caminhou receosa para o meio da sala e atirou-se sobre o caixão. E chorou, chorou, sacudida, como que se esvaziando a repelões.

Quando acabou de chorar, veio para onde eu estava, toda encolhida como uma criminosa, de olhos inchados e vermelhos. Apertei-lhe a mão que me estendeu e ficamos em silêncio. Depois de uns minutos, como um sentimento surdo e talvez hostil nos impelisse a explicações, perguntei:

- E dona Lalá?

- Não sei. ( Deu de ombros, espichando o beiço num muxoxo contrariado.) Cada uma de nós foi para o seu lado.

Fiquei estarrecido.

- E a senhora do Gomes?

Disse que ignorava também o destino da outra. Formosíssimo! Eis o epílogo do Bloco das Mimosas Borboletas no carnaval de 1922 na muito leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro - pensei com os meus botões.

Depois Cotinha contou que soubera da morte do pai por acaso, porque passara de automóvel pela porta, "com um senhor"... E acrescentou tímida, rompendo o pudor:

- O senhor com quem eu estou.

Tive um baque. Era possível? Um cinismo lavado de lágrimas, assim, era possível?

- Mas dona Cotinha: que bicho mordeu as senhoras, desse modo, de repente? Ficaram doidas?

Sacudiu os ombros, pondo as duas mãos nos olhos, como uma criança e chorando de novo:

- É a vida... Que é que o senhor quer?

As outras pessoas da sala olhavam-nos, a cochichar entre si. Sem dúvida faziam mau juízo. Talvez pensassem até que era eu o comparsa de Cotinha.

Um cheiro de flores pisadas e cera errava, acre. Um sentimento pungente me dominava, abafando uma vaga, uma imprecisa sensação de sarcasmo. As oito velas ardiam silenciosas em torno do caixão do senhor Brito, que tinha um crucifixo de prata à cabeça. Eu não'conseguira ainda, até aquele instante, definir o meu estado de alma. Parecia-me, profanamente, que qualquer coisa de cômico se insinuava por tudo aquilo. Talvez, porém, fosse engano meu, ruindade minha, tendência cruel do meu temperamento. No fundo, eu estava zonzo com o que me rodeava: o senhor Brito, a filha que voltava, as pessoas pobres e imbecis da vizinhança, as oito velas, o cheiro de flores pisadas, a idéia do cavalheiro com quem Cotinha passeara de automóvel, a idéia de Lalá, a idéia de Aristóteles furtando a mulher do Gomes, a lembrança do anúncio que saíra de manhã no Jornal do Brasil, o ridículo do Bloco das Mimosas Borboletas - tudo aquilo ainda não recebera uma forma definitiva no meu espírito.

Cotinha merecia umas bofetadas?

O problema de saber se Cotinha merecia ou não umas bofetadas me invadiu, súbito. Fiquei a remoer essa inspiração, como se ela encerrasse um alto valor poético ou filosófico. Eram quatro da madrugada. Um pessoa levantou-se, em bico de pés. Outra pessoa levantou-se também.

Daí a um quarto de hora Cotinha e eu estávamos sós.

Ficamos nós dois, longo tempo, calados, olhando o senhor Brito. Por duas vezes Cotinha soluçou:

- Coitado do meu paizinho!

Por outras duas vezes suspirou:

- E Lalá que não sabe de nada! Que horror!

Claridades pálidas do dia nascente entraram vagarosas pelas janelas. Um torpor me tomou. Cotinha chorava agora encostada a mim.

O barulho do primeiro bonde, que vinha vindo longe, me ergueu na cadeira. Cotinha encostou a cabeça ao espaldar, fatigada, humilhada, amarrotada, sem valor e sem destino, como uma pobre coisa.

Para vencer o torpor, tomei a deliberação de sair, de andar. Fui olhar então, de perto, o meu defunto amigo; o meu campo de observações e de conquistas psicológicas, o meu infeliz Jocelino de Brito e Sousa. O rosto estava calmo, como a sorrir. As sobrancelhas peludas continuavam agressivas, enérgicas, na fisionomia doce, doce para todo o sempre. Aquela massa humana estava agora liberta de pensar no Moraes da Rua da Misericórdia.

- Dona Cotinha, até logo, à hora do enterro.

Ela veio até a porta da sala, que dava para uma área. Levantei a gola do paletó por causa do frio da madrugada.

Estendi a mão para Cotinha. Encarei-a com piedade e revolta: gordinha, morenota, um leve buço enegrecendo-lhe o lábio superior. E irresponsável, camaradinha, fácil, derrotada nas suas vaidades de princesa de arrabalde por aquele complicado drama de fuga e morte.

Olhando-me a fito, vi nos olhos dela recordação da vida já antiga: o lar do senhor Brito, os domingos de visita ou passeio com outras pessoas que freqüentavam a casa, os projetos ambiciosos de bons casamentos, o luxo, a comodidade quotidiana de uma situação de respeito e prazer. Agora, tudo acabado, para nunca mais!

Desabou a chorar sobre o meu ombro: que era muito infeliz, que ia sofrer muito, que não sabia como perdera a cabeça, que agora estava perdida, que queria morrer também...

Consolei-a como pude, segurando-a pelos pulsos. Dei-lhe o conselho de mandar procurar Lalá (ela devia suspeitar, pelo menos suspeitar onde estivesse a irmã) e despedi-me rápido.

A rua! A rua deserta, vazia, livre, para os meus passos e para o meu rumo! Corri por ali afora, corri para alcançar o bonde e para desentorpecer. E, enquanto corria, levava a sensação de fugir a uma coisa fascinante e ameaçadora, de que eu me libertava enfim... uma coisa suave e horrenda que não poderia mais acontecer na madrugada pura do arrabalde.

Fontes:
} SALES, Herberto (org.). Antologia escolar de contos Brasileiros. 2.ed. SP: Ediouro, 2005.
} Imagem = http://paginas-com-sentimentos.blogspot.com

Isaque de Borba Corrêa e Mozailton Santos (Lançamento do livro História da Bíblia)


A BÍBLIA certamente é o livro mais vendido no mundo e a sua história ainda não tem uma bibliografia consistente. Nem mesmo na internet encontramos informações confiáveis acerca da história do livro mais importante da humanidade.

Vamos fazer um resumo básico, usando como bibliografia a própria Bíblia. O primeiro fragmento bíblico foi o decálogo, um conjunto de 10 palavras que formavam um código, basicamente uma constituição, mais comumente denominado de dez mandamentos. Israel iria se tornar um país por ordem do próprio Deus. Sendo Deus o próprio autor desse país, não cometeria o erro de faltar com uma constituição.

O Decálogo foi uma constituição tão perfeita que até hoje os países seguem esse exemplo: um código básico, superenxuto, como deve ser toda espinha dorsal legislatória de um país. A criação do Estado de Israel, teve sua bibliografia legislativa superorganizada. A Bíblia é o livro da História de Israel. Ao contrário que muitos pensam Deus deu para Moisés no Monte Horebe, e não no Monte Sinai, duas tábuas contendo uma constituição, também chamada de dez mandamentos, por várias vezes chamado de Livro da aliança ou Livro do Pacto. O Livro da Aliança, o Livro do Pacto, o Livro das Guerras do Senhor e o Livros das Leis, especialmente esse, era os livros sagrados do povo do deserto.

Não confundam os livros sagrados com os livros do pentateuco. Esses são os livros de História do povo de Israel, que nós hoje os temos por sagrados. Eles falam dos livros sagrados do povo de Israel. Deus deu ainda o estatuto e as leis, nada mais, nada menos que códigos legislatórios que fariam o papel de leis complementares ao decálogo, funcionando como espécie de código civil. Mesmo assim, Moisés desceu do Monte Horebe num lugar chamado Sinai, apenas com duas tábuas debaixo do braço. Provavelmente os estatutos e a lei foram escritos bem mais tarde. A lei e os estatutos ficaram na memória de Moisés, para ser escrito tempos depois no Monte Ebal, hoje na cidade de Nablus na Cisjordânia.

Seria essa a famosa torah oral dos judeus? O Livro das Leis, esse mesmo, além de escrito bem depois e bem longe da Península do Sinai, no Ebal, é o mais sagrado dos livros. Também chamado de livro de Moisés ou livro das Leis de Moisés e teve que ser escrito a cal. Essa fase da Bíblia chama-se litófila, por se encontrar ainda escrita em superfícies de pedra. A pedra foi a superfície mais antiga que o homem procurou para escrever, e foi bastante duradoura, considerando que no Brasil, até nos anos 50, do século passado alunos da rede escolar usavam a lousa de pedra como caderno.

A Bíblia tinha que ser escrita em pedra, era a única superfície conhecida. Deus Não poderia dar a Moisés um livro de papel, ou código num CD ROM. Ele o fez no material que o povo conhecia. Tinha que ser escrita em pedra porque tinha que ter caráter definitivo, tinha que durar por gerações e gerações. Outro material que foi o mais usado de todos os tempos foi o barro. Escrever no barro era literalmente uma moleza, porém os livros sagrados não podiam ser escritos nesse material, uma vez que ele contém impurezas tais como fezes e urina de toda sorte de ser vivente.

Não há registro do livro sagrado em ostracas. Muito embora Josué escreveu um livro rapidamente, registrando uma incursão israelita. Não foi um livro sagrado, ordenado por Deus, foi apenas um registro histórico de uma incursão que fez, por isso provavelmente escreveu em tábuas de barro. O barro contém impurezas, por isso os antigos escribas não o usaram como base para receber o texto sagrado. Esse material, posteriormente chamado ostracon ou ostraca, foi usado por muitos e muitos anos, porém para livros laicos e pequenos documentos.

Existem outras fases na escrita, como a fase dos metais. Há referências embora muito pequenas de que fragmentos bíblicos foram escritos em diversos metais ente os quais o chumbo, bronze e ouro. No êxodo há referência de inscrições em ouro; Jó escreve em chumbo e os macabeus escreveram em placas de bronze. Há referência desses materiais na própria Bíblia. O pairo foi o primeiro dos materiais flexíveis a ser usado. No livro deuterocanônico de Tobias, lê-se que ele casou de papiro passado com Sara, num cartório local. Depois veio os pergaminhos. O Apóstolo Paulo percebe a diferença: Diz ele "traga-me os livros e os pergaminhos" .

Que livros? Os laicos evidentemente, e os pergaminhos os livros sagrados, os salmos, a torá, enfim. A Bíblia fala muito que em textos escritos em tábuas, mas que provavelmente não são literalmente tábuas de madeira e sim de argila. A tábua de madeira também não poderia receber o texto do livro sagrado, uma vez que apodrece e o cupim come. Zacarias escreveu o nome do filho provavelmente numa tabuinha de madeira, por se tratar de uma inscrição rápida e não um livro sagrado, ordenado por Deus. Como se fazia então para escrever em tábuas de pedra, sendo que o texto desses livros eram muito grandes, e há referências bíblicas que andavam de um lado para o outro com esses livros.

Não era pequeno o livro, haja vista que o escriba Esdras levou sete dias lendo ao povo, da manhã até o meio-dia. Os antigos escribas faziam uso da escrita consonantal, que eliminava vogais, preposições, espaços, pontuações e tudo mais que poupasse espaço. Isso não é novidade, quem não se lembra do bug do milênio, quando fazíamos de tudo para economizar espaço em computador Por isso, várias traduções, inclusive a Ave Maria, dizem que os dez mandamentos eram apenas dez palavras. O Livro da Aliança, não era tão grande pois cabia dentro da Arca da Aliança. A Bíblia diz que eram folhas de ardósias fatiadas em lâminas de mais ou menos um centímetro de espessura.

Se tinham de ser escritos em pedra – e de forma esculpida, para dar-lhe caráter definitivo - por que o Livro das Leis, escrito no Monte Ebal (Dt 27:2-8), não podia ser gravado na pedra com o uso de instrumentos cortantes? Por que teve de ser escrito em cal, um material extremamente corruptível? Simplesmente para que o povo mantivesse as leis na memória que era a melhor das superfícies para se gravar as leis divinas.

Sabe-se que Moisés recebeu de Deus, no Horebe, e não Sinai, duas tábuas, os estatutos e as leis (Êx 24:12). Qual a diferença entre mandamentos, juízos, preceitos, estatuto e lei, repetidas vezes citadas na Bíblia? Afinal, que diferenças poderia haver entre o Livro do Pacto ou Livro da Aliança, recebido no Sinai, para o das Leis, escrito no Monte Ebal tempos depois e muitos quilômetros adiante? Se a lei foi dada a Moisés, que leis a Bíblia diz que Abraão obedecia? (Gn 26:5) Que leis eram aquelas que Moisés comentou com seu sogro Jetro que ensinava o povo, antes de receber as tábuas no monte? (Êx 18:16)

Enfim, essas e outras centenas de informações no Livro a História da Bíblia de autoria do escritor, historiador. Isaque de Borba Corrêa em parceria com o pastor e teólogo Mozailton dos Santos. Nesse precioso livro você acompanhará toda a trajetória textual, todas os materiais, todas as versões bíblicas, toda a história por que passou a Bíblia, desde o Decálogo, passando pela Septuaginta, Vulgata, tradução de João Ferreira de Almeida para a lingua portuguesa.

Preço:: R$ 19,90

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Isaque de Borba Corrêa
Entrevista = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/entrevista-com-isaque-de-borba-corra.html
Sinopse de suas obras = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/isaque-de-borba-corra-sinopses-das.html
Cronica (Diversões Papa-Siri) = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/isaque-de-borba-corra-diverses-papa.html
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Pastor Mozailton dos Santos
Presidente do Ministério Marca da Promessa, atuante na Igreja Razão de Viver, o pastor Mozailton Santos é conferencista. O Pastor Mozailton é Contabilista por profissão, administrador de empresas, graduado em Teologia. Com um ministério em crescimento vem desenvolvendo obras sociais no Brasil e no exterior. É autor dos livros "Em busca do Sonho" e "Seu Tempo não Acabou" bem como vários lançamentos em CD´s e DVD´s.
É presidente da Editora Marca da Promessa, empresa que trabalha para atender o público evangélico, lançando no mercado livros, CD´s e DVD´s. Ministra estudos bíblicos e realiza palestras de motivação e encorajamento.
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Fontes:
=>Isaque de Borba Corrêa.
=> http://www.marcadapromessa.org/

terça-feira, 26 de maio de 2009

Trova VIII

Claudio Willer (Lançamento do Livro Geração Beat)

Quer saber mais sobre uma das manifestações culturais mais originais do século XX? Leia Geração Beat, livro da Coleção L&PM Pocket Encyclopaedia, a nova série que traz livros de referência com conteúdo acessível, útil e na medida certa. Escrita por Claudio Willer, especialista no tema, tradutor da poesia de Allen Ginsberg, Geração Beat traz as principais informações sobre o revolucionário movimento da vanguarda artística e comportamental norte-americana em 128 páginas de texto claro. Você irá saber como surgiu a expressão “beat generation”; desvendar a origem deste grupo de poetas, escritores e artistas, conhecer seus principais autores, suas obras e aventuras, desde os primórdios do movimento até a chegada da beat ao Brasil.

TRECHOS:
"Os beats chegaram a ser acusados de iletrados. Na verdade, são um exemplo de crença extrema na literatura, atribuindo-lhe valor mágico, como modelo de vida e fonte de acontecimentos, e não só de textos. A relação com seu tempo lhes conferiu sentido político. Contribuíram, ao se converterem em expressão de um movimento geracional, para uma abertura, um grau maior de tolerância com a diferença e a exceção, que, ainda hoje, não pode deixar de ser valorizada. [...] A eclosão de uma cultura jovem, autônoma, nos anos 60, da qual, por sua extensão e complexidade, acabou ficando uma crônica viciada por estereótipos, não pode ser interpretada como rebelião consentida, nem desqualificada como burguesa, subproduto da prosperidade capitalista e indício de sua decadência. "
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CLAUDIO WILLER é poeta, ensaísta e tradutor. Nasceu em São Paulo, em 1940. Publicações mais recentes: Estra­nhas experiências, poesia (Lamparina, 2004); Volta, narrativa em prosa (Iluminuras, 1966, terceira edição em 2004); Lautréamont – Os cantos de Maldoror, Poesias e cartas – Obra completa (Iluminuras, nova edição em 2005) e Uivo e outros poemas, de Allen Ginsberg (L&PM, nova edição de bolso de 2005). Teve lançado Poemas para leer em voz alta, (Editorial Andrómeda, San Jose, Costa Rica, 2007) e uma série de ensaios sobre poesia surrealista na coletânea Surrealismo (Perspectiva, coleção Signos, 2008). É autor de outros livros de poesia e da coletânea Escritos de Antonin Artaud, esgotados. Seus vínculos são com a criação literária mais rebelde e transgressiva, como aquela ligada ao surrealismo e à geração beat. Doutor em Letras, DLCV-FFLCH-USP, tese em 2008: Um obscuro encanto: Gnose, gnosticismo e a poesia moderna. Co-edita, com Floriano Martins, a revista digital Agulha.
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Mais sobre Claudio Willer em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/03/cludio-willer-1940.html
Artigo: Brasil e Portugal: nossa língua, nossas literaturas, em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/03/claudio-willer-brasil-e-portugal-nossa.html

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Fontes:
=> Cláudio Willer, por e-mail.
=> Capa do Livro = L&PM

Raul Pompéia (Caricaturas Reais: Estou Roubado!)



Estou roubado! exclamou o Tancredo num dia de expansões.

Ele tinha expansões. Era do seu caráter exibir-se de vez em quando voltado ao avesso. Punha na rua todas as franquezas. Franquezas ou fraquezas, como queiram, porque no caso vertente Tancredo era franco a respeito de si próprio.

Há no Norte o costume grotesco de andarem os cafajestes, durante o entrudo, com os paletós virados, mostrando o forro e as costuras, por causa do polvilho que se arremessa aos transeuntes. Tancredo fazia uma cousa assim, mais ou menos. Quando estava de lua, lá saía... Todas essas intimidades que o recato encobre, todo esse estofo que forma o avesso das aparências sociais, ele punha à mostra. Inventava, no gênero cômico, o extremo oposto de Tartufo. Exibia desabridamente o forro de si mesmo.

Alguns dias depois de casado encontra-se ele com o primeiro conhecido. Era por um dia dos tais. Falam do consórcio.

Estou roubado! bradou Tancredo.

- Pois esse casamento não era o teu sonho de ventura?!

- Ah! meu amigo. Enganei-me redondamente... Sabes o meu gênio... Eu sonhava um amor de fogo. Chamas, chamas, chamas, um amor vulcânico, feito de incêndio e lava, um inferno de amor que me calcinasse o peito... Imagina lá que me saiu uma esposa fria!... Fria, meu amigo!... Estou casado com o polo Norte em pessoa!... Lembras-te do Capitão Hatteras de Júlio Verne?...Minha mulher é aquilo... Ora só a mim sucederia uma destas... Casado com um iceberg!

- Pois não a conhecias?

- Ora, qual! ver, amar, casar, foi o que fiz...

"Sonhava uma mulher ardente, com pólvora nas veias, capaz de voar pelos ares ao fogo da minha paixão. Qual explosão nem nada!... Aos meus afagos, boceja! Desarma os meus carinhos com uma frieza revoltante... Não sei a que expediente recorrer...

- Mas a tua esposa não te ama?

- Eu lá sei!... As mulheres frias amam alguém neste mundo? O que afianço é que a minha cara-metade me congela... Não sei como, a estas horas, não estou sorvete, exposto aos rigores daquele inverno!... Inverno, meu bom amigo, inverno para mim que sonhava um matrimônio de primaveras e verões. Quem diria! quando eu me inflamava ao fogo daquele olhar... que naquele olhar não havia fogo! Tanto viço, tanta mocidade! e uma frieza tamanha.

Ao vê-la, eu acreditava na embriaguez do amor, na febre do sentimento, no vinho de Hebe e nos seus efeitos. Qual vinho de Hebe! Puro Fritz, Mack & C. Ainda em cima, frappé!...

"Estou roubado! roubado nas minhas ilusões!... Queria uma mulher... E o senhor meu sogro serviu-me uma cajuada! Ora, cajuadas tenho eu no Leite Borges!... Banhos frios, de igreja... quando tinha o meu chuveiro!...

- Homem, Tancredo, não acredito muito nessa história de mulheres de gelo... A questão é achar-se a corda sensível...

- Qual corda sensível!... Minha mulher não tem corda sensível!...

Fontes:
Biblioteca Virtual.
Imagem = http://studionq6.wordpress.com

James Joyce (Arábia)


A Rua North Richmond, uma rua sem saída, era muito tranqüila, exceto na hora em que a Christian Brother's School liberava os alunos. Uma casa de dois andares, desabitada e isolada de ambos os lados, bloqueava-lhe uma das extremidades. As outras residências, cônscias das vidas decentes que abrigavam, fitavam-se com imperturbáveis fachadas escuras.

O antigo inquilino de nossa casa, um sacerdote, havia morrido na sala dos fundos. Nos cômodos longamente fechados flutuava um odor de mofo e o quarto de despejo, atrás da cozinha, estava abarrotado de papéis velhos. Entre eles encontrei algumas brochuras com as páginas úmidas e onduladas: O Abade, de

Walter Scott, O Devoto Comungante e as Memórias de Vidocq. Gostei mais deste último por causa de suas folhas amareladas. O quintal abandonado, atrás da casa, tinha no centro uma macieira e alguns arbustos esparsos, sob um dos quais encontrei a bomba enferrujada da bicicleta do antigo morador. Tinha sido um padre muito piedoso e, no testamento, deixara todo seu dinheiro para instituições de caridade e a mobília da casa para a irmã.

Ao chegarem os curtos dias de inverno, o crepúsculo caía antes que tivéssemos terminado o jantar. Quando saíamos à rua, as casas se encontravam mergulhadas na sombra. O pedaço de céu sobre nós era de um violeta cambiante, contra o qual os postes erguiam a pálida luz de suas lanternas. Aguilhoados pelo vento gélido, brincávamos até nos esbrasearmos e nossos gritos ecoavam na rua silenciosa. O curso dos brinquedos conduzia-nos às vielas escuras e lamacentas atrás de nossas casas, onde desafiávamos os rudes moradores dos barracos, aventurando-nos até os portões de quintais sombrios e úmidos, impregnados do cheiro fétido das fossas, ou aproximando-nos de estábulos escuros e odorosos, onde, às vezes, um cocheiro escovava e lustrava seu cavalo ou fazia tilintar os arreios de fivelas metálicas. Ao retornarmos à nossa rua, a luz das cozinhas projetava-se através das janelas, nos pequenos terraços. Se percebíamos meu tio virando a esquina, ocultávamo-nos num lugar escuro até termos certeza de que entrara em casa. E se a irmã de Mangan vinha à porta chamá-lo para o chá, continuávamos escondidos, observando-a perscrutar a rua, para ver se desistia. Se não tornava a entrar, deixávamos o esconderijo e, resignadamente, dirigíamo-nos à escada da casa de Mangan, no alto da qual ela nos esperava. A silhueta de seu corpo recortava-se na luz da porta entreaberta. Mangan relutava sempre antes de obedecer e eu ficava junto à balaustrada, contemplando-a. O vestido rodava quando ela movia o corpo e a macia trança de seus cabelos saltava de um ombro para outro.

Todas as manhãs, sentava-me no assoalho da sala da frente para vigiar a porta da sua casa. Levantava a cortina apenas alguns centímetros a fim de que ninguém pudesse me descobrir. Meu coração disparava ao vê-la surgir à porta. Corria para o vestíbulo, apanhava meus livros e seguia-a. Conservava sua figura morena sempre à vista e, ao nos aproximarmos do ponto em que nossos caminhos divergiam, apressava o andar e passava à sua frente. Isto repetia-se todas as manhãs. Nunca havia falado com ela, a não ser algumas frases ocasionais e, no entanto, para o meu sangue inebriado seu nome era um apelo irresistível.

Sua imagem acompanhava-me mesmo nos lugares menos românticos. Nas noites de sábado, quando minha tia ia fazer compras no mercado, eu a acompanhava para ajudar com os pacotes. Caminhávamos pelas ruas iluminadas, acotovelando-nos com os bêbados e as mulheres que pechinchavam, em meio às imprecações dos trabalhadores, aos gritos dos garotos que montavam guarda às barricas cheias de cabeças de porco e à voz fanhosa dos cantores de rua, que interpretavam uma canção popular sobre O'Donovan Rossa ou uma balada a respeito dos problemas do país. Todos esses ruídos convergiam numa única sensação vital para mim: imaginava conduzir meu cálice incólume, através de uma multidão, de inimigos. Certos momentos, seu nome brotava-me dos lábios em estranhas preces e rogos que eu mesmo não compreendia. Meus olhos enchiam-se de lágrimas (não saberia dizer a razão) e, às vezes, uma torrente parecia transbordar meu coração e inundar-me o peito. Pouco me preocupava o futuro. Não sabia se falaria ou não com ela e, se o fizesse, de que modo revelaria minha tímida adoração. Meu corpo, porém, era uma harpa cujas cordas vibravam às suas palavras e gestos.

Certa noite, fui à sala dos fundos onde o padre havia morrido. Era uma noite chuvosa e a casa estava em completo silêncio. Através de uma vidraça quebrada, eu ouvia a chuva bater contra a terra, as finas e incessantes agulhas de água tamborilando nos canteiros encharcados. Bem longe, brilhava uma luz ou janela iluminada. Agradava-me enxergar tão pouco. Os meus sentidos todos pareciam embotar-se e, a ponto de desfalecer, apertei as mãos até meus braços começarem a tremer, murmurando: Ó amor! Ó amor!

Afinal, ela falou comigo. Às suas primeiras frases, fiquei tão encabulado que não soube o que responder. Perguntou-me se eu pretendia ir ao Arábia. Não me recordo se respondi ou não. Ela disse que adoraria ir, pois devia ser uma esplêndida quermesse.

— E por que não vai? — perguntei.

Enquanto falava, ela fazia girar um bracelete de prata. Não poderia ir porque seu colégio faria retiro naquela semana. Nesse momento, seu irmão e dois outros meninos brigavam por causa dos bonés e encontrava-me sozinho junto à balaustrada. Ela se apoiara numa das barras e inclinava o corpo em minha direção. A luz do poste diante de nossas casas roçava a curva nívea de seu pescoço, inflamando-lhe os cabelos. Alcançava, mais embaixo, sua mão sobre a grade e revelava, ao tocar-lhe o vestido, a ponta do saiote que se deixava entrever em sua lânguida postura.

— Você é que devia ir — afirmou ela.

— Se eu for — prometi — trarei uma lembrança para você.

Acordado ou sonhando que loucas e intermináveis fantasias consumiram meus pensamentos a partir dessa noite! Queria suprimir os fastidiosos dias de espera. Os deveres da escola irritavam-me. À noite, no quarto, durante o dia, na aula, sua imagem interpunha-se entre meus olhos e a página que me esforçava em ler. No silêncio em que minha alma vagava luxuriosamente, as sílabas da palavra Arábia atiravam-me num encanto oriental. Pedi permissão para ir à quermesse no sábado à noite. Minha tia surpreendeu-se e disse esperar não se tratasse de uma reunião da franco-maçonaria. Na aula, quase não respondia às questões. De amável, o olhar do professor tornava-se severo. "Espero que não esteja ficando preguiçoso", disse ele. Não conseguia, ordenar meus pensamentos errantes. Quase não tinha paciência para suportar os deveres cotidianos que, interpondo-se entre mim e meu desejo, pareciam brinquedos de criança, brinquedos desagradáveis e monótonos.

Na manhã de sábado lembrei a meu tio que desejava ir à quermesse. Se atarefava-se junto ao porta-chapéus, procurando a escova e respondeu rispidamente:

— Já sei menino, já sei.

Como ele se encontrava no vestíbulo, não pude ir à sala da frente postar-me à janela. Senti que o mau humor imperava na casa e fui desanimado para a escola. Fazia um frio implacável e meu coração já se mostrava receoso. Meu tio não havia chegado, quando voltei para o jantar. Ainda era cedo, Sentei-me e fiquei olhando para o relógio, mas seu tique-taque acabou por me irritar e sai da sala. Subi a escada e ganhei o andar superior da casa. Os cômodos frios, desertos e escuros aliviaram-me a tensão. Atravessei-os cantando. Da janela da frente, vi meus companheiros brincando na rua lá embaixo. Seus gritos chegavam-me amortecidos e confusos. Apertando a testa contra o vidro gélido, olhei para a casa de tijolos escuros em que ela morava. Devo ter ficado, ali quase uma hora, vendo apenas, retida na memória, sua imagem num vestido marrom, tocada de leve pela luz na curva do pescoço, na mão sobre a grade, na barra do vestido.

Ao descer, encontrei a senhora Mercer sentada junto à lareira. Era uma velha mexeriqueira, viúva de um usurário, que colecionava selos usados com um objetivo piedoso qualquer. Tive de suportar sua tagarelice durante o chá. O lanche prolongou-se por mais de uma hora e meu tio não chegava. A senhora Mercer levantou-se para ir embora. Sentia não poder esperar mais, disse ela, mas passava das oito e não gostava de estar fora de casa até muito tarde, pois o frio fazia-lhe mal. Quando saiu, comecei a andar pela sala com os punhos cerrados.

— Talvez tenha de desistir da quermesse por esta noite de Nosso Senhor — prenunciou minha tia.

Às nove horas, ouvi o ruído da chave de meu tio na porta de entrada. Escutei-o resmungar e o porta-chapéus balançar ao peso do seu casaco. Sabia interpretar esses sinais. Na metade do jantar, pedi-lhe que me desse o dinheiro para ir à quermesse. Ele havia esquecido.

— Todo mundo já está na cama e no segundo sono — disse ele.

Não ri. Minha tia interveio enérgica:

— Por que não dá logo o dinheiro e o deixa ir? Já o fez esperar muito tempo.

Meu tio declarou sentir muito ter se esquecido. Disse que acreditava no velho ditado: "Só trabalho e nenhum prazer é que faz de Jack um triste rapaz". Indagou-me aonde ia e quando tornei a explicar, perguntou-me se conhecia O Adeus do Árabe ao seu Corcel. Quando eu saía pela cozinha, ele começava a recitar os primeiros versos do poema para minha tia.

Apertando na mão o florim que recebera, desci a rua Buckingham. As calçadas iluminadas e repletas de compradores que deixavam as lojas deram novo alento ao propósito de minha viagem. Acomodei-me num vagão de terceira classe no trem deserto. Após insuportável demora, o trem se moveu vagarosamente. Arrastou-se entre casas em ruínas e sobre o rio cintilante. Na estação de Westland Row, a multidão comprimiu-se contra as portas do vagão, mas os fiscais fizeram-na recuar, dizendo que aquele era um trem especial para a quermesse. Permaneci sozinho no vagão. Minutos depois o trem parou diante de uma plataforma improvisada. Ao descer, vi no mostrador iluminado de um relógio que faltavam dez minutos para as dez. Diante de mim estava o imenso edifício, ostentando o mágico nome.

Não encontrei nenhum guichê de seis pence e, com medo de que a quermesse fosse fechar, passei rapidamente por uma das borboletas, pagando um xelim ao porteiro de ar fatigado.

Ingressei num vasto saguão, circundado à meia altura por uma galeria. Quase todas as barracas estavam fechadas e parte do saguão achava-se às escuras. Reinava ali o silêncio de um templo vazio. Caminhei timidamente para o centro do edifício. Algumas pessoas estavam reunidas diante das barracas ainda abertas. À frente de uma cortina, sobre a qual se desenhava em lâmpadas coloridas o nome Café Chantant, dois homens contavam dinheiro numa bandeja. Eu ouvia o tilintar das moedas caindo.

Recordando com dificuldade o motivo que me trouxera, aproximei-me de uma das barracas e examinei alguns vasos de porcelana e aparelhos de chá ornados de flores. Na porta da barraca uma jovem conversava e ria com dois rapazes. Notei-lhes o sotaque britânico e ouvi imprecisamente o que diziam:

— Ó, eu nunca disse isso!

— Ó, disse sim!

— Não disse!

— Ela não disse?

— Sim, eu ouvi.

— Ó, que mentiroso!

Percebendo minha presença, a jovem aproximou-se e perguntou-me se desejava comprar alguma coisa. O tom de sua voz não era encorajador. Parecia ter falado comigo por obrigação. Olhei humildemente para dois grandes jarros que, como sentinelas orientais, postavam-se à sombria entrada da barraca e murmurei:

— Não, obrigado.

A jovem mudou a posição de um dos vasos e retornou aos rapazes. Voltaram à discussão anterior. A jovem olhou-me uma ou duas vezes por sobre o ombro. Embora soubesse que era uma atitude inútil, permaneci algum tempo diante da barraca, para acentuar a impressão de que estava realmente interessado naqueles objetos. Finalmente, voltei-me e caminhei devagar para o meio do saguão. Soltava as moedas dentro do bolso, fazendo-as bater uma na outra. No fundo da galeria, alguém gritou que a luz fora desligada. A parte superior do saguão estava agora completamente apagada.

Fitando a escuridão, eu me vi como uma criatura tangida e ludibriada por quimeras. Meus olhos queimavam de angústia e ódio.

Fontes:
JOYCE, James. Dublinenses. SP: Biblioteca Folha, 2003. (Tradução de Hamilton Trevisan).

I Expozine de Itu (SP) foi um Sucesso!


A Biblioteca Comunitária Waldir de Souza Lima em Itu – SP, foi o espaço da I Expozine de Itu (Exposição de Fanzines). O evento que aconteceu no último dia 24 de maio (sábado) foi um grande sucesso, pois foram várias as atividades e atraiu um grande público interessado nesse movimento, que já existe há décadas. Vários fanzineiros estiveram presentes no evento, mas o principal destaque foi a presença do cartunista e roteirista paulista Júlio Maga. Além da oficina de fanzines coordenada por Paulo Ernesto, teve também uma sensacional palestra com o Professor da USP, Gazy Andraus e exposição de fanzines de várias partes do país. Na ocasião foi aberto um espaço na biblioteca com o nome de Gibiteca Moacir Torres, uma homenagem feita pelos organizadores ao cartunista Indaiatubano. Agradecimentos especiais a Paulo Ernesto Aranha e José Renato Galvão pelo importante evento e também pela grande homenagem

Veja mais sobre o evento em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/05/ponto-de-leitura-de-itu-realiza-amanha.html

Fonte:
Biblioteca Comunitária Waldir de Souza Lima