domingo, 31 de janeiro de 2010

Constelação de Trovas

Constelação de Trovas

É primavera, querida!
Deixemos para depois
as nossas rusgas da vida…
que a vida somos nós dois…
(Alfredo Brasílio de Araújo – Baependi/MG)

Não sei de outro documento
que contenha, em seu teor,
mais vida e mais sentimento
do que uma carta de amor!
(A. A. de Assis – Maringá/PR)

Num enterro de segunda,
houve tanta confusão
que um pedaço da Raimunda
foi por fora do caixão!
(Antonio Carlos Teixeira Pinto – DF)

É verdade, neste inverno,
vou dar tudo a quem não tem,
porque sei que para o inferno
nunca vai quem faz o bem.
(Cecim Calixto – Tomazina/PR)

“Não há bem que sempre dure,
nem mal que nunca se acabe…”
- Por mais que um ser nos perfure,
que nossa alma não desabe!
(Cidinha Frigeri – Londrina/PR)

Todo livro, quando aberto,
é pólen, é flor, é fruto…
fechado: é sombra, é deserto,
é silêncio, é campa, é luto.
(Cyro Armando Catta Preta - Orlândia/SP)

Toda união é perfeita
se, congregando emoções,
além das mãos que ela estreita,
unir também corações…
(Ercy Maria Marques de Faria – Bauru/SP)

Vendo a perua chegar,
pergunta logo a vizinha:
- Querida, que vai tomar?
- Seu marido, queridinha…
(Istela Marina Gotelipe Lima (Bandeirantes/PR)

Toda vez que a sogra inventa
de minha bóia filar,
eu capricho na pimenta
pra ver a velha chorar.
(João Costa – Saquarema/RJ)

O piolho, por capricho,
por incrível que pareça,
não há no jogo do bicho,
mas sempre dá na cabeça.
(José Antônio de Freitas – Pitangui/MG)

Coração desconsolado,
não podeis esmorecer,
se viver é complicado,
muito mais é não viver.
(Luiz Antonio Cardoso – Tremembé/SP)

Entre os véus da noite, imerso,
insone, em meu travesseiro,
escrevo apenas um verso
e a saudade…um livro inteiro!
(Maria Lucia Daloce Castanho – Bandeirantes/PR)

Quando a foto iam bater,
meu patrício se escondia,
pois…queria aparecer…
…”de surpresa” … pra Maria!!!
(Maria Madalena Ferreira – Magé/RJ)

No momento em que partiste
pranteei minha viuvez…
Foi o trajeto mais triste
que uma lágrima já fez!…
(Maria Nascimento Santos Carvalho – Rio de Janeiro/RJ)

Diz o cinquentão vaidoso:
“Eu sou madeira de lei!”
E a mulher, em tom jocoso:
“Então deu cupim…que eu sei!”
(Martha Maria O. Paes de Barros – São Paulo/SP)

Na trova e no Trovador,
é que se encontram, suponho,
Criatura e Criador
unidos no mesmo sonho!
(Nádia Huguenin – Nova Friburgo/RJ)

Ao chegar em Portugal,
depois da grande conquista,
vendo a sogra em seu quintal,
diz Cabral: “Encrenca à vista!”
(Renata Paccola – São Paulo/SP)
____________________

Fontes:
Boletim Nacional da União Brasileira de Trovadores
2007 – setembro; outubro
2008 – maio; julho
2009 – maio, junho; julho; agosto; novembro
2010 - janeiro

Paulo Nunes Batista (Goiás Poético)


LIÇÃO DA PEDRA

Não basta olhar a pedra.
O importante é saber
que ela também nos vê
com seus mil e um olhinhos de pedra.
Já pensaste em sentir a alma de cada pedra?
Já buscaste saber - antes de usá-la -
se ela quer ser só pedra de alicerce
ou se prefere ser estátua?
João Cabral nos falou sobre a Educação pela pedra.
É que a pedra tem vida e sabe muitas coisas
quer da Esfinge, das Pirâmides do Egito,
das ruínas de Machu Picchu, de Stonehenge,
dos Himalaias com seu Pico do Everest,
das estátuas da Ilha da Páscoa e da Muralha da China
e dos tempos que vêm desd a Idade da Pedra
e antes, do muito antes, quando neste planeta
só ela - a pedra - águas e areias havia...
Não. Não basta ver a pedra.
É preciso aprender cada Lição da Pedra.

MINHA FILHA

Em memória de minha querida
neta Euliana

Darei a minha filha
o nome de Poesia
É incrível, mas não conheço
ninguém com esse nome
Um nome tão humano
tão cheio de sonho e sugestões.
E minha filha será
bela como a Verdade
e equânime como a Justiça.
Outro nome que nunca
vi aplicado a ninguém.

Ensinarei a minha filha
a deitar-se com o Amor
e a erguer-se com a Harmonia.
E lhe darei as ferramentas
para lapidar seus desejos
os brutos diamantes do instinto
para que brilhantes sejam
entre as mais límpidas estrelas.

Seus seios verterão flores
e sua boca música
e ela perfumará com seus dedos
o que quer que alcancebr> com seu manso toque mágico.
Dos olhos de minha filha nascerão auroras
A Noite dormirá em seu sexo
e anjos bailarão ao ritmo de seus passos.

Seus beijos serão vôos místicos
beija-florindo as manhãs
abrindo asas na tarde
antes que o sol se despeça.
Farei de minha filha o meu melhor poema.
E quando eu me mudar de mim
nas inexoráveis ondas do tempo
ainda ficarei por muito espaço
dançando nas esquinas da vida
porque minha filha se chamará
POESIA.

CANTO DOS CRISTOS DA TERRA
OU
COMO NASCE UM CANGACEIRO

A Maria do Socorro C. Xavier

Cristos da terra, nascidos
na Manjedoura do NÃO:
não têm terra nem saúde,
justiça nem instrução.
Só conhecem 3 reis magos
- que sempre lhes causam estragos - :
Polícia, Imposto e Patrão.

São filhos de Zé Ninguém
e de Maria Qualquer...
Naturais de algum 'Belém'
que não se sabe onde é
e onde, entre espinhos e grota,
'o Judas perdeu as botas'
jogando mais Lucifer...

Frutos do chão duro e seco
como um rio que já foi...
Vidas de pedras agudas...
Terras de 'Deus me perdoe!'...
Essa terra, aquela vida
têm a tristeza doída
de uma caveira de boi...

Irriga as maçãs do rosto
com o chuvisco da Esperança:
luta e sofre! Sofre e espera
na Fome que a dor amansa...
Num prato - pesa a Pobreza;
no outro - o peso é da Tristeza
que sua vida balança...

Pega um fiapo de Sonho
e tece a própria mortalha.
Toca o carro... mas, encalha
nas Pedras da Solidão...
seu canto traz a Amargura
dos lamentos de um Aboio...
da cicatriz de um arroio
na Face da Sequidão!

Planta um Pé de Sacrifício
- nasce uma Flor de Saúva!
Estende a Mão para a Chuva
- e alcança o Olho do Sol...
Só lhe dão, como presente:
Pobreza... falta de escola...
Leva mais chute que bola
em campo de futebol...

Mora num rancho de palha,
dorme num jirau de vara.deixa, um dia, o 'seu' Sertão...
Seu, uma vírgula, que, dele,
não possui nem mesmo os Braços
que são, apenas, pedaços
das posses de algum Patrão...

O Patrão manda no velho,
manda na velha, na filha.
E na quadra. E na quadrilha...
na quadrinha... no quadrão...
Entonce, o Cristo da Enxada,
cansado do mandonismo,
muda o nome de batismo
pra Silvino ou Lampião...

Cristo da terra, pregado
na cruz de um cabo de Enxada,
sua alma está calejada
pelos séculos de Dor...
Traz dois olhos bem abertos
- mas anda cego de tudo:
cego, cabisbaixo e mudo
pelas terras do Senhor!

Belo dia, um desses cristos
humilhados, oprimidos,
forma no rol dos Bandidos
contra a Opressão Social...
E - é Jesuíno Brilhante,
Corisco, Antônio Silvino
ou o 'Capitão Virgulino'
- 'Justiça' escrita a Punhal!

É - Liberato, Jurema,
Moita Braba, Pitombeira,
Zé Sereno, Mão Foveira
ou 'Quelé do Pajeú'...
É - abareda - vingando
a honra da irmã sertaneja
que ficou nos 'Ora, veja'
de um 'cabo' de instinto cru...

Vai acender as fogueiras
da rebeldia matuta
- contra a força absoluta
dos senhores 'coronéis'.
É - mais um, que troca a Enxada
pela 'lei' de um pau-de-fogo,
onde a Morte ganha o Jogo
cheio de lances cruéis!

Seu 'coroné' manda-chuva
manda na vida e na morte,
no Sul, no Centro, no Norte,
no litoral, no Sertão...
Manda - porque tem dinheiro,
tem nome, poder e terra:
promove a Injustiça e a Guerra
e até 'Deus' lhe dá razão!...

Almas de lama e de aço
vivem no chão Nordestino
tentando o nó do destino
de algum modo desatar. . .
Muitos escravos da gleba,
num passado ainda recente,
tinham dois rumos, somente:
um - morrer. . . o outro - matar. . .

Com Corisco terminou
o tempo dos cangaceiros.
Mas agora os pistoleiros
fazem o que manda o patrão.
Quantas vidas são ceifadas
na base da morte paga
motivado a dura saga
do sangue ensopando o chão.

Acabou-se Lampião -
entrou em campo outro time:
o Sindicato do Crime
tomou conta do País.
No Nordeste, Norte ou Centro
cangaceiro de gravata
pra ganhar dinheiro - mata,
no seu ofício infeliz.

Quando a JUSTIÇA mandar
no Seu Coroné Mandão
- nesse Dia há de acabar
a Desgraça do Sertão:
nunca mais o brasileiro
terá outro Cangaceiro
Virgulino Lampião!

Na Injustiça Social
repousa a causa do mal.

SÊ COMO O LÓTUS

Ao amigo Paulo Jaime

Sê como o lótus, que, a raiz, afunda,
lá, na abjeta escuridão do lodo
e, ao contato da luz, abre-se todo,
só fragrância e pureza, em flor jucunda.

A flor do lótus, na matéria imunda,
no milagre da flor, põe luz a rodo.
Transmuta, pois, a escuridão do engodo,
na Verdade — que é Deus e a tudo inunda.

Às trevas, como o lótus, não maldigas.
Acende a tua humílima velinha
e aguarda a ajuda de outras mãos amigas.

Em vez de blasfemares, vai, caminha.
Ama e serve, que lótus, na alma abrigas
e o Amor de Deus não deixa a alma sozinha...

VELHAS PRAIAS

A Francisco Miguel de Moura

Ó minhas alvas praias nordestinas,
enfeitadas com velas de jangadas,
que, sobre o mar, vão leves, enfunadas
ao vento bom das ilusões meninas.

Praias perdidas na longínqua infância,
mas que retornam na sutil fragrância,
no adeus dos coqueirais, que o ser me invade...

Praias de brisas mansas soluçando...
Os olhos do Menino marejando...
E o coração chorando de saudade...

A ASA DA NOITE

A asa da noite vem, devagarinho,
adormecendo os seres, no abandono
desse torpor onírico do sono,
que deixa o ser humano mais sozinho;

e traz, no manto, a embriaguez do vinho;
da música do sonho, traz o abono.
O seu poder, de nós, se faz o dono
e abre caminhos para o descaminho.

A asa da noite, ungida de segredo,
se, às vezes, traz a sensação de medo,
é dádiva dos céus, óbolo santo:

— Ao vir da sombra, o corpo se enlanguece,
mas a alma sai de nós tal como prece,
agradecendo a Deus por todo canto.

MEU DIA

Meu dia, às vezes, passa tão de manso,
que nem lhe noto os fatos e acidentes.
Comparo esses meus dias a repentes,
que vou compondo e de que não me canso.

É como água de rio sem remanso,
que desliza no leito suavemente.
Borboletas pousando docemente
ou valsa lenta que sonhando danço.

De repente, lá surge a tempestade.
E o dia, que era calmo, então se agita
em cachoeiras de intranqüilidade.

Mas, depois disso, volta a santa calma.
E vou rolando assim, face bendita,
a refletir a paz que sinto na alma.
-----------------
Fontes:
Poetas del Mundo.
Antonio Miranda.

Paulo Nunes Batista (1924)



Paulo Nunes Batista [João Pessoa-PB, 2/8/1924], poeta e escritor paraibano radicado em Anápolis-GO, é autor, entre outros, dos livros: Canto Presente [1969], Cantigas da Paz [1971], A Caminho do Azul [1979], De Mãos Acesas [1981], ABC de Carlos Drummond de Andrade e Outros abecês [1986], O Sal do Tempo [1996], O Vôo inVerso [2001], Alguns Poemas/Algemas [2003] e Sonetos Seletos [2005] - poesia -; Anápolis em Tempo de Música [parceria com Jarbas de Oliveira, 1993] - ensaio; e Chamego, o urubu [1997] - contos.

Bacharel em Direito, repentista, cronista e jornalista, escreve na imprensa do Brasil e Portugal desde 1940.

Em 1994 representou o Brasil nos Encontros de Improviso em Lisboa.

Membro da Academia Goiana de Letras [Cadeira nº 8] e de várias entidades culturais.

Consta de antologias e é citado por diversos autores.

Fonte:
Poetas del Mundo. http://www.poetasdelmundo.com/verInfo_america.asp?

José Faria Nunes (Goiás Poético)



QUERO INDIGNAR-ME

Quero indignar-me
com a mãe que se submete
ao aborto de uma vida.
Mas como indignar-me
se a própria vida dessa mãe
já foi abortada?
Quero indignar-me
com uma criança que na rua
assalta à mão armada.
Mas como indignar-me
se essa criança jamais
conheceu o afago da mãe
ou o valor de ser gente?
Quero indignar-me
com a fome
a miséria
a deseducação.
Mas como indignar-me
se me falta tempo
até de ver como gente?
Quero indignar-me
com o desamparo de crianças e idosos
de filhos sem pais e de pais sem filhos.
Mas como indignar-me
se a vida neste mundo global
colocou uma cifra
no lugar do meu coração

* * * * * * * * *

O SONHO DE UM POVO

Um dia um povo sonhou com a liberdade
e esse povo acreditou no sonho e lutou por ele.
Houve até quem por ele morresse.
O sonho deste povo foi objeto do sonho
de tantos outros.
Mas o sonho deste povo foi um sonho
diferente dos outros sonhos.
Enquanto o sonho de além-mar
era um sonho de ambição e dominação
o sonho deste povo era de libertação.
O sonho deste povo era sonho de amor à terra;
terra já irrigada pelo suor
até de sangue de filhos deste povo.
O sonho deste povo foi um sonho de amor
e no ato de amar até parceiros de além-mar
a este sonho vieram se somar.
E no somar dos sonhos eis que ecoou o grito
de independência deste povo. E aquele grito
do sonho deste povo ainda ecoa no ar.
Ecoa aos ouvidos de geração a geração
que ainda insiste em sonhar.

* * * * * * * * *

POESIA E LIBERDADE

A caneta do poeta
rebela-se
ante a injustiça
do poder.
E faz-se podr
na liberdade
do ato de pensar.
Quando o poder
em seu império de força
impõe-se
sobre a caneta do poeta
então este carece
de ser mais que poeta:
dele se exige
a engenharia dos deuses
na construção mágica
do amor.

* * * * * * * *

TRANSCENDÊNCIA

Qual bisturi a extrair o cisto
arranco minhas angústias
e as deposito, amorfas,
em um tubo de ensaio
como um troféu de batalha.
Agora quero rir da tristeza
e dizer que o amor pode mais
que a mágoa secular
cristalizada no peito.
A partir desta hora
a poesia transcenda os limites
da cibernética
seja esta humanitária
e se dilua etérea sobre seres mal-nascidos.
Mesmo que a vida tenha sido negada
e o futuro um sonho precocemente abortado
não maldigo o poema: com meus sentidos despertos
faço caminho no espaço
enlaço o céu num abraço
arranco os olhos do sol
e faço meu firmamento.

* * * * * * * *

ORAÇÃO DO EDUCADOR

Inspirai-me
oh! Mestre dos Mestres
para que o mister a que me proponho
ilumine as mentes a mim confiadas
nessa jornada. Daí-me sabedoria
Oh mestre, para que mais que professor
seja eu educador, condutor de esperanças
para um novo amanhã. Tenha eu
complacência para com aqueles
que de mim mais necessitam. Como orientador
de vidas jamais a intolerância consiga
meu domínio e me force a trilhar
o cômodo caminho do descompromisso.
Esteja eu mais para Apóstolos que para Pilatos
com um assumir constante da Divina
Missão de educar, criar vidas, reinventar mundos.
Possa eu educar para a vida
longe da discriminação sem marginalizar ninguém,
pois todos da luz são herdeiros e merecedores.
Tenha eu sempre na alma a imagem,
a lembrança do Mestre-Amor, Mestre-Perdão
e jamais expulse meu aluno
que merece ser mais gente,
jamais um desviado na marginalidade da vida.
Jamais me deixe esquecer
de que a palavra orienta, mas o amor
e o exemplo constroem, dignificam para a vida
para o mundo
e para Deus.

* * * * * * *

AUSENTE PRESENÇA

Presença ausente no universo
da saudade. Presença
etérea de alma anônima
mesmo sufocada pela multidão.
Solidão não ausência
do ponderável. É ausência
da alma gêmea.
De repente a solidão
esmaga-me na multidão
e se dilui no imponderável.
Ela esvai-se
de mim no instante
em que, mesmo só,
sacia-me o âmago
da alma na interação
de imaginada presença.
O poeta mesmo só
nunca fica á sós.
Acompanha-se-lhe
sempre a presença
do ente sonhado.
O poeta só está só
se perdido na multidão
do inimaginável.
O poeta só está só
se tiver a alma
vazia de sonhos para sonhar.

* * * * * * *

ESSÊNCIA

Toda criança tem, um dia,
a fantasia
de crescer logo, libertar.
Mas cedo, cedo ela constata
a sina ingrata
de vir pra vida pra lutar.
Se nasce pobre, é pior.
Mais dói a dor
de sempre ter que obedecer.
Por que uns nascem pra mandar,
para gozar,
e outros nascem pra sofrer?
Foi o que vi desde criança:
insegurança,
poucos motivos pra sonhar.
Orvalho, espinho, dura lida.
Mas vi na vida
maior motivo pra lutar.
Hoje aprendi que o futuro
é jogo duro,
sem muito tempo pra viver.
Cada momento que se vive,
como os que tive,
é o prêmio que se pode ter.
Importa menos a vitória.
A maior glória
é ter mais força pra lutar.
O que mais vale é a esperança,
perseverança
em ter mais sonho pra sonhar.

* * * * * * * * *

A LINGUAGEM DO SILÊNCIO

No brincar com as palavras
Perco-me no exercício do discurso.
Saltitam-se-me à frente palavras e palavras
[palavras pequenas, palavrões].
De um salto caio sobre elas que, brincalhonas e lépidas,
fogem-se-me das mãos.
E eu, no desalento busco
no canto um encanto - desencanto.
Perco-me nos axiomas, nas polissemias
nos sintagmas e, na busca do assujeitamento
do sujeito, alternam-se-me possibilidades
na promessa de um encontro paradisíaco.
O pretendido torna-se invisível. Descubro
que a vida é um ensaio, o primeiro ensaio
o rascunho sem tempo de se passar a limpo.
A memória do futuro se constrói agora
com o desejo do sonhado.
O futuro se constrói no sonho do poeta
sonho que não se tem.
Dos versos escolhidos vários se me desenharam proibidos
para uma comunhão de linguagens
na universalidade das mensagens.
O superego submete o ID - paradoxo -
discurso do candidato e do eleito,
do religioso-cético-pecador-herege-santo.
Eis que soa a trombeta e o mundo
do poeta se desperta. Só então percebo
que a verbalização de meu discurso
não se encontra nas palavras
mas no silêncio existente entre elas.

* * * * * * *

DESAMOR

Análoga lâmina
Fina
Frio corte
Silente ação
No profundo do aço.

Navalha
Valha noite
Lâmina ferina
Felina
De sequioso corte

Sangra a alma
Cota o sono
O sonho
Assanha
A sanha de fria lápide
Em profundo talho.

Tangidos cartilagem e osso
Dilacerado universo
Entalhe
Do profundo corte.

Detalhe
Negada premissa.

O certo
Prova-se no contexto
Pretexto.
Arrimado parasito
Antítese do amor.

* * * * * * * *

SONHO E VIDA

Brilhe o sol ou caia a chuva, seja inverno ou primavera
Hei de levar meu canto por onde quer que caminhe.
É um canto de vida que sonhei 'inda criança
Talvez de quando nasci naquele sete de dezembro.
Meu canto é alegre como um riso de criança
Na festa de aniversario - mas por vezes meu canto
É triste - triste como uma flor esmagada sob pés indiferentes
Ingratos - mas eu canto, canto a dor de uma criança
que um dia conheci...
A criança que vivi o desalento da dor
tocou-me forte na infância
Ao quebrar-me o antebraço na brincadeira de pique
em uma noite qualquer.
Com meus pais aprendi que a crueza da vida
e pode romper com luta
Mais amor e trabalho.
Este exemplo segui: Inobstante a dor,
dos pés no quente da areia
Em diuturnas caminhadas para a roça eu ia.
Boné na cabeça, aos ombros o bornal com garrafa de café
O caldeirão de almoço que minha mãe
preparava para a fome de meu pai.
Comida gostosa aquela: Arroz, feijão e farinha,
outra vez frango, verdura
Mandioca, batata frita... Banana madura.
Criança franzina, deficiência no braço,
mesmo assim eu seguia.
Sob o sol escaldante capinava a erva daninha
da roça ou do quintal
Ajudava no plantio e na colheita do arroz.
Eis que um dia o sonho explodiu forte na mente
E em tempo descobri não bastar-me o limite
Da produção de alimento para o corpo vegetar.
Um passo, outro passo, busquei
uma seara de alimento pra alma.
Na escola busquei alimentar-me o bastante, beber sabedoria
Na fonte da experiência dos produtores da história.

A escolinha de meu tio, depois o grupo escolar.
Nem a chuva ou o sol, nem orvalho das manhãs
Nada fez-me recuar das primeiras lições.
Chegou o fim do primário, não mais pude estudar
E no recesso da escola fui viver outras histórias:
A do servente de pedreiro, do balconista de bar,
Do vendedor de verduras, do lenhador com meu pai
Mas também a do garoto que nadava na barrinha
Ou no campinho aos domingos com os companheiros jogava.
Outra fase do sonho amanheceu em meu ser:
Na fazenda soledade vi-me, súbito, professor.
O tempo - ah! O tempo!
Jamais faz concessões e em suas ondas voltei.
Minha cidade, cidades outras, cheguei até à capital.
O admissão ao ginásio, a madureza, o supletivo
Vestibulares, faculdades de Jornalismo, Direito
Licenciatura plena em Economia e Legislação
Aplicada e cursos de extensão,
especialização em psicopedagopgia.
Neste caminhar vivi o bibliotecário publico,
o auxiliar de escritório
Correspondente de jornal, locutor de rádio, repórter...
Assessor de imprensa de secretaria de Estado.
Fiz poemas, contos, artigos...
publiquei-os em livros, jornais e revistas.
Tive a ventura de ser divulgador de minha terra
por onde quer que passasse:
nas faculdades, nos clubes, nas entidades culturais,
jamais neguei as raízes do campônio que sou.

O sonho não findou: Eis-me de volta às raízes
onde a vida me espera.
Quero a união dos amigos, dos inimigos
a paz para um mundo fraterno
Podermos, juntos, buscar.
De minha vida faço lema a educação, cultura, a justiça social
O progresso do homem em dimensão integral.
Busco o futuro - conquista e tempos de liberdade,
de amor e de paz.

* * * * *

NOS CAMPOS DE PARNASO

Ser livre, leve, solto
o que sempre sonhei
no caminhar pela vida.

O cupido, em seu capricho
aproveitou-se do instante
de uma incauta distração
e sorrateiro, pertinaz
fisgou-me fundo no peito
latejante e ardente o amor.

Em sonho transportar-me-ei
até os campos de Parnaso
onde as musas me habitarão e amar-te-ei como Eros.

Em sonho hei de cravar
minha lança na gruta doce
de teu triângulo de Vênus.

Amar-te-ei com tal arte
que só um Deus Faria
e em teu triângulo de Vênus
cravarei minha lança.

Até o âmago de teu ser
hei de levar meu amor
faze-la Deusa da Vida
e eu da vida Senhor.
---------

José Faria Nunes (1948)



José Faria Nunes é natural de Caçu-GO, onde nasceu aos 7/12/1948.

É Licenciado em Direito e Legislação, em Legislação Aplicada e em Economia e Mercados, pelo CEFETE de Belo Horizonte, Pós-graduado em psicopedagogia pela UEMG, Bacharel em Direito, pela UFG, e Bacharel em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, Rádio e TV, pela UFG.

Homenageado pelo Ministério Público do Estado de Goiás, pelo Conselho Estadual de Cultura de Goiás, pela Associação Goiana de Imprensa, Diretoria Regional dos Correios Goiás e Tocantins e pela União Brasileira dos Escritores de Goiás.

Diretor e Editor do Jornal da Terra.

Atual presidente da ALESG-Academia de Letras e rtes do Extremo Sudoeste de Goiás, mandato 2005/2006;

Membro do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, e da Academia Mineirense de Letras.

Livros publicados, entre outros: Plantio, poemas, Editora Kelps, Goiânia, 1992; Água Fria do Rio Claro, ensaio, Editora de O Popular, Goiânia, 2001; A Reprise, romance, Litteris Editora, Rio, 2003.

Este último participou, em outubro de 2004, da Feira Internacional de Livros de Frankfurt, na Alemanha.

Fonte:
Poetas del Mundo.

Safia dos Pireneus de Goiás ( Goiás Poético)


Alguma poesia oral de Safia

NASCI NOS PIRENEUS

Nasci nos Pireneus
junto com meu pai eterno
numa campina tão bonita
no meio de muitas emas
num ranchinho na beira-córrego
rebuçado de sapé,
cobertinha de algodão
tomando chazinho de mé,
num colchãozinho pequeno
num caquinho de buriti,
parecendo ninho de rolinha
ninho de juriti.

Um dia de garoa
já tava pra dar o inverno
eu tava perdida
no meio de muitas emas.

Minha mãe deu um grito
eu respondi.
Ela me encontrou
e me deu um tapa.
Meu pai também xingou.
Eu então respondi:
mas eu não gosto de vocês!
só das ema e do meu avô!

Depois, papai teve idéia de mudar,
nós se mandou.
Eu fiquei apaixonada,
porque as ema ficou.

MALEITA

É terreno do sertão
nem dado não aceita,
a gente compra um sítio
fica alegre e satisfeita.
Espera boa colheita
pode dar bom mantimento.
Mas bem pouco aproveita.
Quando a febre vem
o caboclo deita
chama o curador
e dá a receita,
purgante de tal
purgante de azeita
toma surufato
não pode beber leite,
quando for daí um pouco
o caboclo purga preto
eu falo porque sei
porque passei
por este aperto

Quem sofreu maleita
não tem mais conserto
ainda que cura de um
o peito.

VOZ DE PÁSSARO

Macuã e anúm preto
dizem que cantam assim:

“Minha mulher não presta
- não presta por que?
é com um e com outro
é com um e com outro”

“Finca, finca, eu ranço
pinico, pinico, jogo fora
primo com prima
se casá fazerá má.
Quá, pode casá!
Chica, cê vai, eu fico
cê fica, eu vou.
Fico, ficô”
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Safia dos Pireneus de Goiás (1929)

SAFIA nasceu Celestina Teixeira Siqueira, a 8 de junho de 1929, no Morro do Pireneus, em Goiás, onde desliza o córrego chamado Gostoso. Habitava a vizinhança da família uma tribo de emas, entre as quais a menina cresceu brincando e correndo pelo cenário deslumbrante da Serra que volteia Pirenópolis.Tinha sete anos, quando os pais camponeses Anjo Teixeira Martins e Leduvina Rosa Venucci decidiram descer o morro com os três filhos pra viver na cidade.

Lá, Celestina continuaria a dar sinais do futuro que a aguardava. Arteira, independente e sabedora do que queria de seu caminho, enveredava os brejos à cata de argila, matéria-prima de suas primeiras criações em forma de potes, bichos e bonecas. Volta e meia se queixavam ao pai: sua fia é danada de levada... sua fia fez isto... sa fia fez aquilo.... sua fia... safia... E assim consagrou-se o nome com que passaria a se distinguir no universo da arte popular brasileira.

No entanto, escola só freqüentou quando foi trabalhar em casa de família. Casou-se com um boiadeiro, voltou a morar na roça e o estudo virou matéria encerrada. Mas nem por falta de lápis, livros e professores sua genialidade de artista engaiolou-se. Ao contrário, o sobrevôo livre da menina entre as emas nos Pireneus de Goiás assentou-se em múltiplas expressões. Esculturas e telas em poética de cândida sensualidade, além de um manancial de poesias, histórias, canções e anedotas cultuadas oralmente, Safia cria com desmesurado talento.

Gênio e origem somados explicam a qualidade que sua obra alcançou. Safia herdou dos dois lados da família o gosto pela arte, trazendo no inconsciente o classicismo da estética européia. Bruno Teixeira, seu avô paterno, era tecelão, filho de portugueses; a avó, Escolasta Tavares, fazedora de panelas, potes, jarros, candeeiros, ensinou a arte da panelagem à sua mãe, cujo pai, descendente de italianos, era pintor de quadros.

Matriarca respeitada e admirada pelos seis filhos que criou sozinha (dos quais, três são também artistas populares), e pelos 14 netos e sete bisnetos, Safia não pratica arte sacra embora sua religiosidade seja visceral, e ao modo dela. “Não rezo, mas gosto de me sentar na Igreja e ficar lá”.

Segreda que talvez aceitasse se convidada a pintar um mural, ou o que fosse, na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, patrimônio histórico da colonial Pirenópolis. “Mas”, reconsidera com humor, “gosto mesmo é de pintar moça dançando, menino pelado... eu ia ofender os santos”.

Artista reverenciada por quem quer que conheça seu trabalho, ela, no entanto, permanece em anonimato, vivendo sozinha numa casa humilde, em Pirenópolis. Ao completar 80 anos em junho de 2009, lá, um grupo de admiradores de suas artes prepara-lhe grande celebração. Querem que em sua terra natal, sobretudo, Safia mereça reconhecimento e assuma o seu lugar na trindade goiana, ao lado de Cora Coralina e de Antonio Poteiro.

FORTUNA CRÍTICA

João Evangelista, especialista em história da arte, ex-diretor dos museus de Arte de Brasília e de Santa Catarina: “Safia é um gênio da arte. Eu colocaria sua obra no capitulo do classicismo, mas teria uma certa dificuldade nisso, porque a arte de Safia é complexa”.

Ziraldo Alves Pinto conceitua Safia como a maior escultora de arte popular do Brasil, e aponta para o que ele chama de “o gesto culto” na poesia dos seus personagens de cenas rurais e urbanas, como cavalheiro e dama, casais em pista de dança, madonas com crianças à volta e no colo, jovens mulheres em lânguidas posições. “Ela é o máximo, é a maior”, vibra o multi-Ziraldo.

José Mindlin, ao visitar uma mostra de arte popular brasileira no MAB, onde estavam expostas peças de Safia, classificou: “Esta peça é a Vênus De Milo brasileira”

NT.: Material de pesquisa e fotos do arquivo pessoal do advogado Eduardo Nogueira da Gama, colecionador, amigo e divulgador do trabalho de Safia. Texto de abertura escrito originalmente para documentário do cineasta Armando Lacerda sobre a artista.

Fonte:
Antonio Miranda

Nilto Maciel (Sobre o Inconsciente)


Cornélio Basso fez uma pausa. Agarrou o copo e o levou aos lábios. Na platéia houve inquietação. Alguém tossiu. Da primeira fila de cadeiras pareceu sair um homem agachado, ou pequeno. Uma criança, talvez. Pôs-se de quatro, de costas para o orador, no início do corredor atapetado. Cornélio voltou a falar. Os desejos recalcados não deixam de ter uma existência no inconsciente. No entanto, a platéia se mostrava inquieta. Ouviram-se sussurros. O homem agachado pôs-se a andar pelo carpete vermelho, rumo à saída. Subiu o primeiro degrau, caminhou, subiu o segundo. No inconsciente os desejos inconciliáveis podem coexistir. Na primeira fila uma cabeça olhou para trás. O fugitivo já ia quase ao meio do corredor, a passos lentos e cadenciados. Os desejos inconscientes não são modificados nem pela realidade exterior nem no decorrer do tempo.

À saída, uma hora depois do início destes acontecimentos, Terêncio Floro perguntou a Helvídio Lucano se vira um vulto deixar a sala. Não, não vira nada, a não ser Cornélio. Vira e ouvira. Pois fora ali para ver e ouvir Cornélio Basso. Por acaso esse vulto tinha alguma importância? Terêncio desculpou-se.

Pensou tratar-se do vulto de Torquato Gélio. Porém Torquato jamais faria aquilo. Nunca se retiraria de uma conferência. Ainda mais se o conferencista fosse Cornélio Basso. A não ser que tivesse sentido algum mal-estar.

Lélio Silvano chegou à calçada, olhou para os grupinhos formados aqui e ali, e optou por Terêncio e Helvídio. Deram-se palmadinhas nas costas. Cornélio estivera magnífico. Sim, o inconsciente só obedece ao princípio do prazer. Ele disse isso? Não lembro de ter ouvido isso. Provavelmente falou isso no exato momento em que acontecia aquilo. Lélio sorriu, ensaiou uma risada, conteve-se.

Referia-se Terêncio ao cachorro? Helvídio olhou, espantado, para Lélio e, em seguida, para o chão.

Cachorro? Que cachorro? Ora, não entendia como haviam deixado um animal entrar no anfiteatro.

Desleixo total dos diretores. Descuido gravíssimo. E se se tratasse de um cão raivoso? Terêncio tomou a palavra: Esse animal não era um homem? Lélio sorriu. Estando na primeira fila, podia esclarecer o fato. O cão dormia recostado ao estrado. Ao ouvir a voz de Cornélio, acordou. Helvídio não gostou da frase. Se o cão dormia, não podia ouvir a voz de Cornélio. Seja como for — continuou Lélio — , olhou para a platéia, teve medo e meteu o rabo entre as pernas.

Terêncio levou as mãos aos olhos: estou ficando cego.

Muito sério, Lélio imitou o cão. Saiu pé ante pé pelo corredor e mansamente desapareceu.

Lívio e Júlia retiravam-se, saídos de outro grupinho. Passaram por Terêncio, Helvídio e Lélio, deram boa-noite e pararam. Lívio se voltou para os três amigos. Vocês viram o vexame desta noite?

Lamentável, horrível, inexplicável. Como trazer uma criança para a palestra de Cornélio Basso?!

Nervosa, Júlia arrastou Lívio para o grupo. De quem será filho esse pobre menino? Helvídio parecia horrorizado, embora sorrisse. Afinal, o vulto visto por todos mudava de figura a cada momento.

Aproximou-se deles um rapaz. Disse chamar-se Torquato Basso. Lívida, Júlia recuou. O moço gargalhou. Se quisessem, chamassem-no Cornélio Gélio. Ou Terêncio Lucano. Ou Lélio Floro. Ou Helvídio Silvano. Afinal, o inconsciente só obedece ao princípio da dor. Os desejos inconscientes são modificados a cada momento e de acordo com a realidade exterior.

Pôs-se a gritar o estranho. Aterrorizados, os espectadores saíram em disparada pela rua.

Um cão pôs-se a latir diante do anfiteatro.

Fonte:
http://www.revistabula.com/posts/contos/sobre-o-inconsciente
Imagem = Econimics’s Blog

sábado, 30 de janeiro de 2010

Trova 113 - Campos Sales (São Paulo)

Everardo Norões (Jangada de Poesias)


CORPO

Teu corpo
se enxuga em minha água:
calafeta,
enxágua.
Completa
o que não vem de mim.
E por ser água e calma,
sonâmbula
como a
distraída voz do lume,
lembra um vago perfume
de jasmim.

CAFÉ

Desencarno arábias
de uma xícara morna
de café.
E um fio negro
me assedia a boca.

(Através da janela
o galho de pitanga
ostenta seu adorno
encarnado).

Viajo
pelo negror do pó:
Dar-El-Salam,
Bombaim,
Áden
(sem Nizan, sem Rimbaud):
as colinas ocres,
a poeira dos dias.

De onde vem o grão
dessa saudade?

Desentranho arábias
dessa xícara fria.
Enquanto aguardo o dia
que não chega.

Desacordo e sorvo
a sombra morna
do que sou
na borra
do café.

OS ENCOURADOS

A tarde chega.
A luz se dispersa:
quem anunciará a morte,
soltará o chicote,
abrirá a fresta?

Quem domará o espaço
entre o gume e a alma,
entre a cerca e a palma,
entre o assombro e a calma?

E dormirá no cio
de árvores cativas
ao solstício das pedras,
no despencar das sombras?
A tarde chega,
a luz se dispersa.
É uma luz de sede
do sol dos Inhamuns:
branca e calada.

Os encourados se miram
num horizonte de varas.
A copa é pequena:
na redondez dos cabos,
lâminas severas.

Nem palavras:
o vento soletra a mata,
converte-se em faca.
Sumida nos esteiros,
detida nas vazantes,
segue,
na garupa,
a sina dos instantes.

Adonde vosmecê,
alumia o sobrosso,
desmazelo do corpo?

A alma se estropia
nesses retirados
dentro dos Teus lustres...
A tarde chega.
A luz se dispersa.

E uma luz de sede
do sol dos Inhamuns:
branca e calada.

Ponto de cruz ou estrela:
uma rede bordada.

De Retábulo de Jerônimo Bosch (2009)

A MÚSICA

Para Isaac Duarte

Sem pedir licença,
insinua-se pelos cômodos,
invade os espelhos,
derrama suas jarras de luz.
Vejo-a
pelos canteiros da casa,
na nitidez dos bordados
de minha mãe,
no brilhar de tua íris
quando os deuses descem
para beber a insensatez
das águas.
Depois,
ela se transforma em seios,
goiabas,
espigas.
E nua, adormece,
enquanto a lua brinca
entre meus dedos
e lagartixas
passeiam pelas pedras do pátio...

A RUA DO PADRE INGLÊS

Na rua do Padre Inglês
um louco joga xadrez.

Joga o xadrez da desgraça:
uma sombra na vidraça
é o seu parceiro demente.

(Entre a dama e o cavalo,
corre um rio de afogados).

De sua cama, ainda quente,
um bafo de nicotina.
Vem um cheiro de latrina
da cela defronte à sua.

Na rua do Padre Inglês
um louco fala francês
com acentos de Baudelaire...

(O flamboyant encarnado
se mistura ao espetáculo
da esquizofrênica rua).

O bispo toma o cavalo
das mãos da dama de preto.
(São cinco horas da tarde:
as luzes se apagam cedo.)

Batente do meio-fio:
vem vindo a sombra da noiva,
sozinha, morta de medo.

(O louco avista das grades
as andorinhas azuis
que voam feito morcegos.)

Na rua do Padre Inglês,
um cheiro de gasolina.

{O louco engendra seu mate
contra a sombra na vidraça.}

São cinco em ponto da tarde
(cinco de Ignacio Mejías,
pensa o louco em sua cela)
— dos girassóis de Van Gogh
à solidão amarela...

O cavalo solta as crinas,
a noiva voa na rua
e nas vozes de um menino
acordes de um violino.

O louco sabe que o tempo
de dormir já vem chegando...

(Corujas soltas na cela
bicam as flores de papel
e uma boneca de pano).

Corre, corre, vem depressa,
Que a noite já vem chegando!

Na rua do Padre Inglês
um louco joga xadrez...

TRISTÃO

Em pé, ao sol e ao vento do sertão,
ele não se decompôs.
Pedro Nava (Baú de Ossos)

As palavras no alforje. E o rosário,
a escorrer das penas e dos dias.
O azul da barba lembra uma paisagem
onde campeiam cabras. E ramagens
desatam-se em sombras nas janelas.
A morrinha dos bichos. O mormaço,
trazendo o desespero, em vez de março:
um luto atravancando as taramelas.
A sela desapeada. E na garupa
do cavalo, a sentença das esporas.
Pendentes dos estribos, estão as horas,
relampejos de facas. E o sono da jurema.
O braço descarnado, o giz dos dentes,
e o olho além do corpo do poema.
No chão do meu degredo, sempre chão,
sete frases do ofício e um bordão.

SONETO I

Agonizavam os rastros de novembro.
E os meus ossos, cansados das neblinas,
doíam, no concerto das esquinas
da cidade, onde um dia, ainda me lembro,

penetrou-se de escuro a minha alma,
quando um cão, a ladrar contra o sol-posto,
mordeu o lado oculto do meu rosto
e deixou seus sinais à minha palma.

Lembro-me que era de tarde. Ainda chovia.
O eco dos espelhos conduzia
meus passos que jaziam pelas ruas.

Havia o som da água que caía.
E no horizonte, além da agonia,
um cemitério de meninas nuas.

TUA FALA

Tua fala parecia
uma rede de varandas,
branca,
no meio da sala.

(Uma coisa que envolve
e, ao mesmo tempo, se esquiva):
gesto seco de uma chama,
morrendo,
e sempre mais viva.

Era assim, tua palavra:
escorreita, sem medida.
Falas como pés descalços,
presos à relva macia.
Ou um cheiro de curral
quando a manhã principia.

(Tua fala parecia
a rede, toda bordada,
onde a noite amanhecia).

De A Rua do Padre Inglês (2006)
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Fontes:
Everardo Norões
• "Café", "Corpo", "Os Encourados"
Retábulo de Jerônimo Bosch 7Letras, Rio de Janeiro, 2009
• "A Música", "A Rua do Padre Inglês", "Tristão", "Soneto I", "Tua Fala"
A Rua do Padre Inglês 7Letras, Rio de Janeiro, 2006
Carlos Machado poesia.net