sábado, 13 de março de 2010

Mário Carneiro Junior (O Lençol)



Aviso aos leitores desavisados: Este é um conto de terror.
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Boa noite, minha querida. Já está confortável debaixo de suas cobertas? Bom, então vou contar a história que prometi.

Aconteceu quando eu tinha mais ou menos sua idade, uns doze anos, quase treze. Eu dormia exatamente como você, sabia? De barriga pra cima e coberto da cabeça aos pés. Meu pai dizia que eu ficava parecendo um morto no necrotério. Ah, papai... Foi por causa dele que tivemos que sair de Curitiba e nos mudar pro interior. Motivos profissionais.

Bom, a cidadezinha era legal até, muito bonita e arborizada, tinha bastante espaço pra andar de bicicleta e tudo mais. Mas também tinha lá seus problemas, tipo, no começo as pessoas olhavam pra mim como se eu fosse um alienígena. Nada pessoal, qualquer um que vinha de fora recebia o mesmo tratamento caloroso. Demorei pra fazer amigos e... Ah, eu já contei isso antes, né? Esquece, vamos voltar ao principal.

O maior problema daquele lugar era o clima, muito mais quente do que eu estava acostumado. As noites abafadas não traziam alívio. Eu queria deixar o ventilador ligado no máximo em minha direção, mas mamãe não deixava. Dizia que eu ficaria doente, então me obrigava a mantê-lo virado pro outro lado, apenas para circular o ar. Estávamos sem dinheiro para comprar um ar condicionado, e ficar com a janela aberta estava fora de questão. Mania de cidade grande, deixar tudo fechado.

Continuei dormindo do mesmo jeito, todo encoberto. Eu já não acreditava que algo agarraria meu tornozelo se ele ficasse para fora, porém o hábito de infância estava enraizado. Pra não morrer cozido, tive que substituir os cobertores por um lençol. Mesmo assim ainda esquentava bastante, eu dormia mal e acordava encharcado de suor.

Então, numa noite que fazia a gente acreditar em coisas como combustão humana espontânea, resolvi largar aquele hábito idiota de uma vez por todas. Porém, ficar com o corpo inteiro descoberto seria um passo muito grande, então deixei apenas a cabeça e os braços para fora. Aliviou o calor um pouquinho. Já era alguma coisa, mas por outro lado, comecei a me sentir incomodado, vulnerável. Como não precisaria acordar cedo na manhã seguinte – era noite de sábado pra domingo – resolvi insistir naquilo, até que finalmente consegui.

Consegui perder o sono.

Fiquei deitado de olhos abertos, pensando em como a vida podia ser um chute no saco de vez em quando. E assim fiquei durante um tempão, até perceber um movimento vindo do armário. Parecia que uma das portas estava se abrindo.

De início, achei que era um vento mais forte passando entre as frestas da janela, mas as cortinas estavam paradas. Fiquei olhando na direção da porta como se estivesse hipnotizado, a abertura ficando cada vez maior. Comecei a ficar com medo, e me cobri inteiro com o lençol.

Não é nada, pensei, isso acontece de vez em quando. Portas que não estão bem fechadas acabam se movimentando sozinhas. Sim, eu repetia esse pensamento sem parar, mas não conseguia afastar aquela impressão cada vez mais forte.

A sensação de que alguém havia saído de dentro do guarda-roupa, e agora estava parado ao meu lado.

Fiquei imóvel, tentando não respirar ou emitir qualquer som, o coração batendo tão forte que chegava a ser doloroso. Assim permaneci durante um bom tempo, até a sensação acabar.

Não tive coragem de conferir se aquilo havia ido embora. Só quando a luz da manhã atravessou as fissuras da janela, consegui adormecer.

Acordei com minha mãe chamando para almoçar. Tirei o lençol do rosto e olhei pra porta que havia visto se abrir durante a noite. Estava fechada. Puxei-a após um momento de hesitação, e como você deve imaginar, não havia nada ali dentro. Minto, havia camisetas e calças penduradas, nada que me deixasse propenso a fugir gritando. À luz do dia, foi muito fácil concluir que havia imaginado tudo.

Quando a noite chegou, eu já não tinha tanta certeza.

Mas não podia falar nada pros meus pais. Papai me daria uma bronca, afinal eu estava velho demais pra ter medo do bicho-papão, e mamãe confiscaria todos os meus gibis de terror. Aqueles antigos, sabe, tipo “Histórias Reais de Drácula” ou “de Lobisomem”... Mais uma vez revistei o armário inteiro, à procura de qualquer coisa estranha. Não encontrei nada, e pra mim estava ok.

Apaguei a luz e fui pra cama, me cobrindo todo. Tá, não havia nada para me preocupar, mas já havia perdido a vontade de abandonar o costume. Além disso, aquela noite estava menos quente, dava pra dormir numa boa. Dormi mesmo, só que acordei com sede durante a madrugada. Sempre deixava um copo de água no criado mudo, mas agora estava meio receoso de estender o braço para pegar. Fiquei nessa dúvida até a secura em minha garganta se tornar insuportável, então tirei o lençol do rosto e olhei pro armário, só pra me certificar que estaria fechado.

Não estava.

Fiquei imóvel, olhando para a porta até meus olhos se acostumarem com a escuridão. Sim, não havia dúvida, estava entreaberta, mas e daí? Dessa vez eu não estava assustado! Bom, não muito. Sentei na beirada da cama e fiquei parado por alguns momentos, tomando coragem para ficar em pé e fechar aquele maldito guarda-roupa. Isso acabaria com meu medo de uma vez por todas. Respirei fundo e levantei, caminhando rápido até o móvel aberto.

Quando comecei a empurrar a porta, uma mão pálida saiu lá de dentro e tentou agarrar meu pulso.

O que aconteceu no instante seguinte eu não lembro. Lembro apenas de estar novamente em minha cama, escondido embaixo do lençol. Sim, teria sido mais inteligente correr até o quarto dos meus pais, mas naquela hora não pensei em mais nada, estava aterrorizado. De maneira frenética, testei com os pés se o lençol ainda estava bem preso embaixo do colchão, e cerrei os punhos sobre a beirada que cobria minha cabeça. Antes que tivesse tempo de negar o que havia visto, senti que o fantasma vinha em minha direção. Não, não estava vendo ele, mas sua presença era tão intensa que dava no mesmo. Eu queria gritar, mas estava paralisado.

Aquilo estava chegando cada vez mais perto, com os braços estendidos.

Minha bexiga se soltou, acrescentando vergonha ao terror absoluto. Cerrei os dentes, esperando o momento em que aquelas mãos de cadáver iriam me arrastar pra fora da cama. Elas já estavam a centímetros do meu pescoço...

E então pararam.

A coisa ficou imóvel durante um longo tempo, depois afastou os braços e começou a caminhar ao redor da minha cama.

Procurava alguma coisa, talvez uma parte desprotegida.

Isso me deu esperanças, achei que se estivesse totalmente coberto, a assombração não conseguiria me pegar. E assim esperei, na expectativa, a garganta tão seca que chegava a doer. Eu tremia e soluçava baixinho, rezando para aquilo ir embora. Se funcionou eu não sei, pois em algum momento perdi os sentidos.

Acordei na manhã seguinte, com meu pai chamando para ir à escola. Pulei da cama e o abracei, chorando, sem me importar se levaria bronca ou não. Criança é tão boba... É óbvio que meu pai não brigou comigo, apenas me abraçou bem forte e perguntou o que havia acontecido. Mamãe também despertou e fomos todos pra cozinha, onde contei tudo. Nossa, eles foram tão legais, me acalmaram e disseram que havia sido um pesadelo, essa coisa básica, mas em compensação não me trataram como aqueles pais idiotas dos filmes de terror, que negam tudo até ser tarde demais. Deus, como sinto saudades deles...

Revistaram o quarto junto comigo, e nem falaram nada sobre o cheiro de urina em minha cama e pijama. Claro, não encontramos nada de anormal, mas eu ainda estava alarmado. Mamãe disse que eu poderia dormir com eles até meu medo passar. Adivinha se não aceitei?

Como não compartilhavam da minha mania de dormir coberto, tive que me enrolar inteiro no meu lençol. Papai disse que eu já não era mais um morto no necrotério, e sim uma múmia. Bom, você pode achar que tudo ficou bem, agora que eu estava no meio de dois adultos, certo? Quem me dera.

Naquela mesma noite, o fantasma retornou.

Saiu do guarda-roupa dos meus pais, provocando um rangido abafado na dobradiça, depois ficou me rondando com avidez. Aterrorizado, comecei a dar cotoveladas na minha mãe, tomando cuidado para não sair do meu casulo. No momento que ela acordou, senti aquilo indo embora. Mamãe acendeu o abajur, olhou pelo quarto – o armário estava fechado de novo - e me garantiu que não havia nada ali.

Assim que ela voltou a dormir, escutei aquele rangido de novo. Acordei-a de novo e tudo se repetiu, com a diferença de que agora havia uma leve impaciência em sua voz. Tentei despertar meu pai na outra vez, mas ele tinha um sono pesado demais. Resignei-me e esperei quietinho, até a aparição desistir.

Aquilo se repetiu por muitas noites. Meus pais insistiam que eu estava sonhando, ou então era o medo me fazendo ver coisas que não existiam. O medo podia fazer a manga de uma camisa ficar parecida com um braço, que tentava puxar a gente para um lugar escuro. Fazia sentido pra eles, e eu me desesperava por não poder provar que estavam errados.

Comecei a sofrer de insônia, queria que a luz ficasse acesa, me recusava a voltar ao meu quarto. Meus pais foram ficando cada vez mais preocupados, achando que aquela fase não era tão passageira quanto supunham. Fizeram minha vontade e tiraram o guarda-roupa do quarto deles. Eu lembro bem dessa noite, porque fiquei mais relaxado e até me arrisquei a dar uma espiada fora do lençol. O abajur estava aceso e fiquei passando os olhos por todo o recinto, na expectativa. Estava quase me cobrindo de novo, quando percebi alguém escondido atrás da cortina.

Ah, dessa vez eu consegui gritar. E como.

É óbvio que não havia nada lá quando meus pais acordaram, e no dia seguinte, me levaram a um psicólogo. Ele disse umas coisas interessantes, que eu estava estressado com a mudança de ambiente e com a solidão, além disso era normal ter medo naquela idade. À medida que fosse crescendo, meu temor iria diminuir de forma gradativa. Nisso ele estava certo, mas demorou algum tempo.

Todas as noites antes de deitar, eu precisava conferir obsessivamente se meu cobertor estava bem preso embaixo do colchão, com medo que se soltasse durante a noite. Nos mudamos de casa e eu ganhei um quarto sem móveis ou cortina, apenas minha cama. Desolado, descobri que o visitante noturno não precisava de nada disso para me encontrar, embora tivesse uma estranha preferência por guarda-roupas.

As noites de terror só acabaram quando comecei a tomar remédios para dormir. Coisa forte mesmo, tarja preta. Logo que eu engolia os comprimidos, corria pra cama e me enrolava em meu escudo de tecido, então esperava aquele doce torpor me envolver.

Os meses foram passando e arranjei alguns amigos. Aquela história de “medo pregando peças” parecia cada vez mais verossímil. Os anos vieram sem eu perceber, minha voz engrossou e comecei a me interessar pelas garotas.

O fantasma era apenas uma lembrança distante quando comecei a diminuir a medicação.

Ainda acordei algumas madrugadas com a impressão de não estar sozinho, porém era bem mais tênue dessa vez. Bastava pensar em outra coisa, e aquilo acabava. Meu temor foi enfraquecendo aos poucos, então um dia, sem mais nem menos, a sensação acabou para sempre.

Eu havia crescido.

Continuei dormindo todo encoberto, mas isso era novamente um hábito, não uma compulsão. Entrei na faculdade e fui morar numa república de estudantes. Agora, eu só lembrava das minhas aventuras de infância quando alguém da roda começava a contar histórias de terror. Eu contava minhas experiências - sempre omitindo o fato de ter mijado na cama - e meus relatos faziam bastante sucesso. Mas eu acho que a Carol nem prestou atenção. Ela era minha namorada na época, e foi ela que levantou meu lençol na primeira noite que passávamos juntos. Lembro de acordar meio sonolento com ela perguntando “por que está dormindo desse jeito, seu bobo?”.

O fantasma agarrou meu pescoço antes que eu tivesse tempo de responder.

Puxou-me pra fora da cama e começou a me arrastar em direção à porta do armário, num pesadelo cego de luzes apagadas. Minha namorada berrava de forma histérica, sem entender o que estava acontecendo. Eu esperneava e lutava em pânico, sem conseguir me livrar dos dedos gelados que esmagavam minha traquéia. Ainda tentei me segurar na beirada do guarda-roupa. Farpas entraram na minha mão e duas ou três unhas se quebraram, sendo arrancadas da minha carne. Nem me importei com a dor, só queria escapar.

Não adiantou.

Quando senti o tecido das roupas deslizando por meu rosto, desmaiei.

Desmaiei ou morri.

Não sei quanto tempo fiquei inconsciente, só lembro que quando abri os olhos, havia apenas escuridão. No instante seguinte, escutei o grito da assombração que me trouxera até ali. Estava me procurando. Fugi para bem longe, até os urros de frustração se tornarem meros sussurros ecoando nas trevas.

Vaguei durante muito tempo sozinho, gritando por socorro. Muitas vezes ouvi outros pedidos de ajuda, na maioria com vozes de crianças. Em outras ocasiões, escutei apenas berros insanos. Nunca encontrei ninguém. A solidão se tornou desesperadora e já estava quase enlouquecendo, quando bati em algo. Parecia a porta de um guarda-roupa.

Empurrei e cheguei aqui, no seu quarto.

Desde então, volto todas as noites. Sei que não pode me escutar, mesmo assim eu converso com você para espantar minha própria solidão. Vejo pelas fotos que está crescendo rápido. Não cometi o erro de ser visto, então logo você não sentirá mais minha presença. Vai concluir que eu não existo, aí será só questão de tempo para que abaixe o cobertor, deixando seu pescoço ou braço desprotegido.

Serei mais inteligente do que a coisa que me raptou.

Quando eu te puxar para dentro do armário, nunca mais vou te soltar.
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Sobre o Autor
Nascido em Curitiba, já publicou contos nos livros Draculea, Invasão, Alterego e Galeria do Sobrenatural, na revista Scarium Megazine, em fanzines impressos (Astaroth e Juvenatrix antigos), fanzines eletrônicos (Astaroth e Juvenatrix novos, no TerrorZine) e diversos sites (como o Boca do Inferno). Acredita que a publicação de seu livro solo não demora muito. Tomara
.

Fonte:
A Lua Mortal. /

Dante Mendonça (Pela Própria Natureza)


São diversos os mapas do Paraná. Norte, Sul, Leste, Oeste, cada qual enxerga o Paraná conforme lhe parece. Com o sol das três fronteiras alargando o horizonte, me acomodei no alto de uma árvore do Parque do Iguaçu e desenhei o mapa do Paraná, segundo a divisão geopolítica vista pela República Independente de Foz do Iguaçu.

Foz do Iguaçu é independente por natureza. E se assim não é de fato e de direito, falta pouco para o brado retumbante às margens plácidas do lago Itaipu. Visto lá do alto, o território de Foz do Iguaçu abrange a Argentina, o Paraguai e mais uma área de 199.314 km² que se estende até o Ocenao Atlântico. Terras essas pertencentes à 5ª Comarca de São Paulo, até 1853, e que agora, pelo menos na cartografia oficial, diz-se de jurisdição do Estado do Paraná. O que parece verdade, em parte: do ponto de vista das Cataratas, Curitiba nem mesmo é capital. Para alguns iguaçuenses, não passa de nascente do Rio Iguaçu. Outros, mais benevolentes, admitem Curitiba como a Cidade Industrial da Foz.

Isto, Serra Acima. Serra Abaixo, Paranaguá é o entreposto de importação da Região Metroplitana de Foz do Iguaçu, que comprende Puerto Iguazu, Ciudad del Leste e mais algumas povoações da Argentina e Paraguai. Antes de grande valia para o intercâmbio comercial com o mundo, o Porto de Paranaguá hoje é de relativa importância para a Costa Oeste, dizem os entendidos da logística muambeira: depois que o governador Roberto Requião trancou com a chave da discórdia o livre comércio portuário, o calado do Canal da Galheta pouco importa. Um metro ou dez metros, tanto faz. Através da bacia do Prata, agora os navios de todas as bandeiras descarregam os containers “in loco”, na barranca do Rio Paraná.

A única preocupação da República Independente de Foz é que, num próximo decreto sem pé nem cabeça (até ano passado, pelo menos 13 leis e decretos do governo haviam sido derrubados pelo Supremo), Roberto Requião decrete os importados como produtos transgênicos. Com isso, o “vizinho” governador só iria desmerecer o conceito de seriedade do comércio local perante o mundo.

Não fossem os escorchantes pedágios do Paraná, Foz do Iguaçu contaria com uma infraestrutura até razoável. Apesar de acanhado porte, o aeroporto Afonso Pena vem cumprindo sua função de trampolim para as Cataratas. De Curitiba, onde passa algumas horas conhecendo a cidade do alto do ônibus para depois comer galinha com polenta em Santa Felicidade, o turista tem algumas opções menores no Paraná: passeio de litorina na Serra do Mar, seguido do Barreado em Morretes; turismo rural nas coxilhas de São Luiz do Purunã, com suas belas pousadas; os campos de Guarapuava; uma ou outra fazenda de café em extinção na região de Londrina; comprar bonés em Apucarana; a Festa Nacional do Porco no Rolete de Toledo; isso antes do destino final: Cataratas do Iguaçu, uma das 7 Maravilhas do Mundo.

Com se não bastasse tanta autossuficiência (citar energia é covardia), a República Independente de Foz do Iguaçu possui dois dos melhores times de futebol do mundo, Grêmio e Internacional.

E mar, quem precisa de mar, tendo o Oceano de Itaipu a seus pés?

(*) Dante Mendonça é jornalista e artista gráfico em Curitiba, Pr. O texto foi publicado originalmente na Coluna de Dante Mendonça no Paraná Online

Fonte:
Jornal Guatá.

Dante Mendonça (Lançamento de “Serra Acima Serra Abaixo: o Paraná de trás pra frente”)



Serra Acima Serra Abaixo: o Paraná de trás pra frente” é o novo livro de Dante Mendonça. Cartunista, jornalista e escritor, neotrentino radicado em Curitiba desde 1970, Dante de certa forma continua e amplia seu último livro, “Curitiba, Melhores Defeitos, Piores Qualidades”. Naquele, a capital era o tema. Neste, desfilam história, ficção, curiosidades, “causos” e aspectos pitorescos das cidades do Paraná, o “Brasil Diferente” de Wilson Martins.

Serra Acima é o planalto, Serra Abaixo é o litoral. Serra Acima estão, por exemplo, os Campos Gerais, com seu dicionário específico. Ou o leitor dele se serve antes de viajar para a região ou ficará muito complicado entender o que as pessoas querem dizer, em sua fala sincopada. É uma mistura de sotaque leitE quentE com termos campeiros, de sílabas e letras às vezes engolidas.

Serra Abaixo está o mar. Mas também está o berço do barreado, um prato de substância, talvez da beira do Atlântico, talvez de margens mais fluviais. Uma origem, pois, controvertida. Onde foi mesmo, de verdade, que nasceu esta mistura de carne e temperos que cozinha em fogo lento, por mais de um dia inteiro, na panela de pressão primitiva, barreada com “cola” de farinha, cinza e água? Antonina, Morretes, Paranaguá? A resposta exigiu um Simpósio do Barreado, de debates temperados pelo espírito de notáveis daqui e de alhures, de ontem e de hoje. Em debate que tem carmelengo pra garantir a lisura dos trabalhos, as falas às vezes são destemperadas, mas tudo termina em paz.

O livro, temperado pelo humor de Dante, tem ilustrações de Benett e capa desenhada por Solda. Um trio que estará unido no dia do lançamento, dia 13 de março, a partir das 11h, no Restaurante do Passeio Público, em Curitiba. Vai ter a feijoada tradicional e um barreado orientado pelo marumbinista Paulo Henrique Schmidlin, o Vitamina. A hora do almoço terá animação da Filarmônica de Antonina.

Enfim, será um sábado Serra Acima, com música de Serra Abaixo e se Deus quiser, o sol também.

Serviço:

Lançamento do livro “Serra Acima Serra Abaixo: o Paraná de trás pra frente” (Editora Bernúncia, 551 páginas, R$ 50,00).

Local: Restaurante do Passeio Público

Data e horário: 13 de março de 2010 (sábado), às 11h, com barreado no cardápio e show da Filarmônica Antoninense (das 12 às 13 horas).

Autor: Assessoria de Imprensa

Fonte:
Fundação Cultural de Curitiba

quinta-feira, 11 de março de 2010

Trova 124 - Arlindo Tadeu Hagen (Juiz de Fora/MG)

Cláudio de Souza (Reflexão)


"Só morre o homem que viveu apenas a vida do corpo. Esse devolve à terra tudo que recebeu. Mas os homens que refletem sua vida na vida dos outros, os que se transpõem de si mesmos para a coletividade, deixam na herança luminosa a eficiência póstuma da ação fertilizante. Do túmulo dos primeiros nenhuma luz se acende além dos fátuos fogos da decomposição; do túmulo dos segundos, a luz duradoura que ultrapassa os séculos".

Cláudio de Souza (1876 - 1952)
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Fonte:
Edson Ribeiro Scabora. Pais & Filhos: a arte de educar nossos filhos transformando crianças em homens. Maringá,PR: Ed. do Autor, 2008.

Cláudio de Souza (1876 - 1954)



Cláudio de Sousa (C. Justiniano de S.), médico e teatrólogo, nasceu em São Roque, SP, em 20 de outubro de 1876, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 28 de junho de 1954.

Era filho do escrivão Cláudio Justiniano de Sousa e de Antônia Barbosa de Sousa, e casado com Luísa Leite de Sousa, filha dos barões de Socorro. Feitos os estudos preliminares em São Roque, seguiu para o Rio de Janeiro, onde se formou em Medicina em 1897. Desde os 16 anos colaborava na imprensa carioca, em O Correio da Tarde e A Cidade do Rio.

Diplomado, foi residir em São Paulo. Ali instalou consultório médico e continuou colaborando na imprensa paulistana. Foi professor de Terapêutica na Escola de Farmácia de São Paulo, hoje integrada à USP. Em 1909, juntamente com um grupo de intelectuais, foi um dos fundadores da Academia Paulista de Letras. Na imprensa, escreveu também sob os pseudônimos Mário Pardal e Ana Rita Malheiros.

Em 1913, mudou-se para o Rio de Janeiro. Passou então a dedicar-se inteiramente à ficção e ao teatro, deixando a clínica médica. Naquele ano estreou na literatura com o romance Pater, muito bem recebido pela crítica. Suas peças de teatro, como Flores de sombra (1916) e O turbilhão (1921), obtiveram êxito com sucessivas representações.

Iniciador do teatro ligeiro de comédia, escreveu diversas peças, todas muito apreciadas e levadas com idêntico sucesso no país e no exterior. Pronunciou conferências, no Brasil e no exterior, reunindo-as em volumes. Publicou igualmente diversos livros registrando impressões de viagem.

Foi presidente da Academia Brasileira de Letras por duas vezes, em 1938 e 1946. No ano do cinqüentenário de fundação da ABL, como presidente, promoveu as solenidades comemorativas e editou o volume ilustrado Revista do Cinqüentenário.

Foi o fundador (1936) e primeiro presidente do Pen Clube do Brasil.

Terceiro ocupante da Cadeira 29 da Academia Brasileira de Letras, eleito em 28 de agosto de 1924, na sucessão de Vicente de Carvalho e recebido pelo Acadêmico Alfredo Pujol em 28 de outubro de 1924. Recebeu os Acadêmicos Osvaldo Orico e Clementino Fraga.

Bibliografia
Além dos relatos de viagem e obras de ficção, Cláudio de Sousa escreveu inúmeras peças teatrais, em geral ligeiras e humorísticas, muitas delas traduzidas para outros idiomas. Além da literatura e teatro, deixou ainda vários artigos e textos médicos.

Teatro
Mata-a ou Ela te Matará (1896);
Eu Arranjo Tudo (1916);
Flores de Sombra (1916);
O Assustado das Pedrosas (1917);
Um Homem que Dá Azar (1918);
Outono e Primavera (1918);
A Jangada (1920);
A Sensitiva (1920);
O Turbilhão (1921);
O Exemplo de Papai (1921);
O Milhafre (1921);
Os Bonecos Articulados (1921);
Uma Tarde de Maio (1921);
Ave, Maria (1921);
O Galho Seco (1922);
O Conto do Mineiro (1923);
A Escola da Mentira (1923);
Noves Fora... Nada (1924);
A Matilha (1924);
A Arte de Seduzir (1927);
Os Mestres do Amor (1928);
Os Arranha-céus (1929);
O que não existe (1933);
Rosas da Espanha (1933);
O Grande Cirurgião (1933);
Papai, Mamãe, Vovó (1936);
Fascinação (1936);
Pátria e Bandeira, (1942);
Le Sieur de Beaumarchais, (1942).

Ficção e relatos
Pater, (1913);
A Conversão, (1917);
Ritmos e Idéias, ensaios (1917);
Da Eva Antiga à Eva Moderna, conferência (1917);
Maria e as Mulheres Bíblicas, conferência (1921);
De Paris ao Oriente, viagem, 2 vols. (1921);
Os Infelizes, romance (1926);
As Mulheres Fatais, romance (1928);
As Conquistas Amorosas de Casanova, romance (1931);
Um Romance Antigo, (1933);
Três Novelas, (1933);
Nosso Primeiro Comediógrafo, conferência (1934);
O Teatro Brasileiro, conferência (1935);
Viagem à Região do Pólo Norte, (1939);
Terra do Fogo, viagem (1939);
O Humorismo de Machado de Assis, conferência (1939);
Impressões do Japão (1940);
Os Paulistas, seu Passado, seu Presente, conferência (1941);
O Teatro Luso-brasileiro do Século XVI ao XIX, conferência (1941);
Raul Pompéia, conferência (1941);
Os Últimos Dias de Stefan Zweig, ensaio biográfico (1942);
A Vida e o Destino, contos (1944);
Sol e Sombra, contos (1945);
Assistência aos Escritores, conferência (1944);
Pirandello e seu Teatro, conferência (1946).

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

Monteiro Lobato (A Policitemia de Dona Lindoca)



Dona Lindoca não era feliz. Quarentona bem puxada, apesar dos trinta e sete anos em que fizera finca-pé, via pouco a pouco chegar a velhice com seu empaste de feições, rugas e macacoas.

Não era feliz, porque nascera com o gênio da ordem e do asseio meticuloso – e agente assim passa a vida a amofinar-se com criados e coisinhas. E como também nascera casta e amorosa, não ia com o desamor e desrespeito do mundo. O marido jamais lhe retribuíra o amor como os mimos entressonhados em noiva. Não tinha “caídos”, nem usava para a sua sensibilidade, sempre menineira, desses pequeninos nada cariciosos que para certas criaturas constituem a suprema felicidade na terra.

Isso, porém, não traria a dona Lindoca mal de monta, excedente a suspiros e queixas às amigas, se a certeza da infidelidade do Fernando não visse um dia estragar tudo. Estava a boa senhora a escovar-lhe o paletó quando sentiu vago aroma suspeito. Foi logo aos bolsos – e apanhou o corpo de delito num lencinho perfumado.

- Fernando, você deu agora para usar perfume? – indaga a santa esposa, aspirando o lenço comprometedor. E “Coeur de Jeannette”, inda mais...

O marido, pegado de surpresa, armou a cara mais alvar de toda a sua coleção de “caras circunstanciais” e murmurou o primeiro rebate sugerido pelo instinto de defesa: - você estar sonhado, mulher...

Mais teve de render-se à evidência, logo que a esposa lhe chegou ao nariz o crime. Há coisas inexplicáveis, por mais lépida que seja a presença de espírito de um homem traquejado. Lenço cheiroso no bolso de marido que jamais usou perfume, eis uma. Põe em ti o caso, leitor, e vai estudando desde já uma saída honrosa para a hipótese de te suceder o mesmo.

- Pilhéria de mau gosto do Lopes ...

O melhor que lhe acudiu foi lançar à conta do espírito brincalhão do seu velho amigo Lopes mais aquela. Dona Lindoca, está claro, não engoliu a grosseira pílula – e desde aquele dia entrou a suspirar suspiros de um novo gênero, com muita queixa às amigas sobre a corrupção dos homens.

Mais a realidade era diferente de tudo aquilo. Dona Lindoca não era infeliz; seu marido não era um mau marido; seus filhos não eram maus filhos. Gente toda ela muito normal, vivendo a vida que todas as criaturas normais vivem. Dava-se apenas o que se dá sempre na existência da generalidade dos casais pacíficos. A peça matrimonial “Multiplicativos” tem um segundo ato em excesso trabalhoso na procriação e criação dos rebentos. É uma doradoura de anos, na qual os atores principais mal têm tempo de cuidar de si, tanto lhes monopolizam as energias os cuidados absorventes da prole. Nesse período longo e rotineiro, quanto perfume vago não trouxe da rua o doutor Fernando! Mas o olfato da esposa, sempre saturado com o cheirinho das crianças, jamais deu tento de nada.

Um dia, porém, começou a dispersão. Casaram-se as filhas e os filhos foram deixando o borralho um por um, como passarinhos que já sabem fazer uso das asas. E como o esvaziamento do lar ocorreu no período muito curto de dois anos, o vácuo trouxe a dona Lindoca uma penosa sensação de infelicidade.

O marido não mudara em coisa nenhuma, mas como só agora dona Lindoca tinha tempo de dar-lhe atenção, parecia-lhe mudado. E queixava-se dos seus eternos negócios fora de casa, de sua indiferença, do seu “desamor”. Certa vez, perguntou-lhe ao jantar:

- Fernando, que dia é hoje?
- Treze, filha.
- Treze, só?

Está claro que treze só. Impossível que fosse treze e mais alguma coisa. É da aritmética.

Dona Lindoca arrancou um suspiro dos mais sugados.

- Essa aritmética antigamente era bem mais amável.

Pela aritmética antiga, hoje não seria treze só – e sim treze de julho...

O doutor Fernando bateu na testa.

- É verdade, filha! Não sei como me escapou que é hoje dia dos teus anos. Esta cabeça...
- Essa cabeça não falha quando as coisas a interessam. É que para você eu já passei...

Mas console-se meu caro. Não me ando sentindo bem e breve deixarei você livre no mundo. Poderá então, sem remorso, regalar-se com as Jeannettes...

Como as recriminações alusivas ao caso do lenço perfumado fossem uma “Scie”, o marido adotara a boa política de “passar”, como no pôquer. “Passava” todas as alusões da esposa, meio eficaz em torcer em germe o pepino de um debate tão inútil quão indigesto. Fernando “passou” a Jeannette e aceitou a doença.

- Sério? Sente qualquer coisa, Lindoca?
- Uma ansiedade, uma canseira, isto desde que vim de Teresópolis.
- Calor. Estes verões cariocas derrancam até aos mais pintados.
- Sei quando é calor. O mal-estar que sinto deve ter outra causa.
- Nervoso, então. Por que não vai ao médico?
- Já pensei nisso. Mais, a qual médico?
- Ao Lanson, filha. Que idéia! Pois não é o médico da casa?
- Deus me livre. Depois que matou a mulher do Esteves? Isso quer você...
- Não matou tal, Lindoca. É tolice propalar essa maldade inventada por aquela canina da Marocas. Ela é que diz isso.
- Ela e todos. Voz corrente. Além do mais, depois daquele caso da corista di Trianon...

O doutor Fernando espirrou uma gargalhada.

- Não diga mais nada! – exclamou. – adivinho tudo. A eterna mania.

Sim, era a mania. Dona Lindoca não perdoava a infidelidade do marido, nem do seu nem do das outras. Em matéria de moralidade sexual não cedia milímetro. Como fosse de natural casta, exigia castidade de todo mundo. Daí o desmerecerem ante seus olhos todos os maridos que na voz das comadres andavam de amores fora do ninho conjugal.Aquele doutor Lanson perdera-se no conceito de dona Lindoca não porque houvesse “matado” a mulher do Esteves – pobre tuberculosa que mesmo sem médico tinha de morrer –, mas porque andara às voltas com uma corista.

A gargalhada do marido enfureceu-a.

- Cínicos! São todos os mesmos... Pois não vou ao Lanson. É um sujo. Vou ao doutor Lorena, que é homem limpo, decente, um puro.
- Vai filha. Vai ao Lorena. A pureza desse médico, que eu cá chamo hipocrisia requintada, com certeza lhe há de ajudar muito a terapêutica.
- Vou sim, e nunca mais me há de entrar aqui outro médico. De Lovelaces ando eu farta – concluiu dona Lindoca sublinhando a indireta.

O marido olho-a de soslaio, sorriu filosoficamente e, “passando” o “Lovelaces”, pôs-se a ler os jornais.

No dia seguinte, dona Lindoca foi ao consultório do médico puritano e voltou radiante.

- Tenho uma policitemia – foi logo dizendo. – garante ele que não é grave, embora requeira tratamento sério e longo.
- Policitemia? – repetiu o marido com vincos na testa, sinal de que entendia suas pitadas de medicina.
- Que espanto é esse? Policitemia, sim, a doença da minha margarida e da grã-duquesa Estefânia, disse-me o doutor. Mas cura-me, assegurou – e ele sabe o que diz. Como é fino o doutor Lorena! Como sabe falar!...
- Sobretudo falar...
- Já vem você. Já começa a implicar com o homem só porque é um puro... Pois, quanto a mim, só sinto té-lo conhecido agora. É um médico decente, sabe? Fino, amável, muito religioso. Religioso, sim! Não perde a missa das onze na Candelária. Diz as coisas de um modo que até lisonjeia agente. Não é um sujo como o tal Lanson, que anda metido com atrizes, que vê humores em tudo e põe as clientes nuas para examiná-las.
- E o teu Lorena como as examina? Vestidas?
- Vestidas, sim, está claro. Não é nenhum libertino. E se o caso exige que a cliente se dispa em parte, ele aplica os ouvidos mas fecha os olhos. É decente, ora aí está! Não faz do consultório casa de encontros.
- Venha cá, minha filha. Noto que você fala com leviandade de sua doença. Tenho minhas noções de medicina e parece-me que essa tal policitemia...
- Parece nada. O doutor Lorena afirmou-me que não é coisa de matar, embora de cura lenta. Doença até distinta, de fidalgos.
- De rainha, grã-duquesa,sei...
- Só que exige muito tratamento – sossego, regime alimentar, coisas impossíveis nesta casa.
- Por quê?
- Ora essa. Quer você que uma dona de casa possa cuidar de si tendo tanta coisa em olhar? Vá a pobre de mim deixar de matar-se na trabalheira para ver como isto vira de pernas para o ar. Tratamento na regra, só para essas que tomam o marido das outras. A vida é para elas...
- Deixemos isso, Lindoca, até cansa.
- Mas vocês não se cansam delas.
- Elas, elas! Que elas, mulher? – exclamou, já exasperado, o marido.
- As perfumadas.
- Bolas.
- Não briguemos. Basta. O doutor... ia-me esquecendo. O doutor Lorena quer que você apareça por lá, no consultório.
- Para quê?
- Ele dirá. Das duas às cinco.
- Muita gente a essa hora?
- Como não? Um médico daqueles...Mas a você não fará esperar. É negócio à parte da clínica. Vai?

O doutor Fernando foi. O médico desejava adverti-lo de que a doença de dona Lindoca era grave, havendo perigo sério caso o tratamento que prescrevera não fosse seguido à risca.

- Muito sossego, nada de contrariedades, mimos. Principalmente mimos. Indo tudo a contento, num ano poderá estar boa. Do contrário, teremos mais um viúvo em pouco tempo.

A possibilidade da morte da esposa, quando assim se antolha pela primeira vez ao marido de coração sensível, abala profundamente. O doutor Fernando deixou o consultório e rodando para casa ia a recordar o tempo róseo do namoro, o noivado, o casamento, o enlevo dos primeiros filhos. Não era meu marido. Podia até figurar entre os ótimos, no juízo dos homens que se perdoam uns aos outros os pequenos arranhões no pacto conjugal, filhos da curiosidade adâmica. Já as mulheres não compreendem assim, e dão demasiado vulto a borboleteios que muitas vezes só servem para valorizar as esposas aos olhos dos maridos. Assim é que a notícia da gravidade da moléstia de dona Lindoca despertou em Fernando um certo remorso, e o desejo de redimir com carinhos de noivos os anos de indiferença conjugal.

- Pobre Lindoca. Tão boa de coração... Se azedou um bocado, a culpa foi só minha. O tal perfume... Se ela pudesse compreender a absoluta insignificância do frasco donde emanou aquele perfume...

Ao entrar em casa indagou logo da esposa.

- Está em cima – respondeu a criada.

Subiu. Encontrou-a no quarto, numa preguiçosa.

- Viva a minha doentezinha! E abraçou-a e beijo-a na testa.

Dona Lindoca espantou-se.

- Ué! Que amores esses agora? Até beijos, coisas que me dizias fora da moda...
- Vim do médico. Confirmou-me o diagnóstico. Não há gravidade nenhuma, mas exige tratamento de rigor. Muito sossego, nada de amofinações, nada que abale o moral. Vou ser o enfermeiro da minha Lindoca e hei de pô-la sãzinha.

Dona Lindoca arregalou os olhos. Não reconhecia no indiferente Fernando de tanto tempo aquele marido amável, tão perto do padrão com que sempre sonhara. Até diminutivos...

- Sim – disse ela –, tudo isso é fácil de dizer, mas sossego de fato, repouso absoluto, como, nesta casa?
- Por que não?
- Ora, você será o primeiro a dar-me aborrecimentos.
- Perdoe-me, Lindoca. Compreenda a situação. Confesso que não fui contigo o esposo entressonhado. Mas tudo mudará. Você está doente e isto vai fazer com que tudo renasça – até o velho amos dos vinte e anos, que não morreu nunca, apenas encasulouse.

Não imagina como me sinto cheio de ternura para com a minha mulherzinha. Estou todo lua-de-mel por dentro.

- Os anjos digam amém. Só receio que com tanto tempo o mel já esteja azedo...

Apesar de mostrar-se assim tão incrédula, a boa senhora irradiava. O seu amor pelo marido era o mesmo dos primeiros tempos, de modo que aquela ternura o fez logo reflorir, à imitação das árvores desfolhadas pelo inverno a um chuvisco de primavera.

E a vida de dona Lindoca mudou. Os filhos passaram a vir vê-la com freqüência – logo que o pai os advertiu da vida periclitante da boa mãe. E mostravam-se muito carinhoso e solícitos. Os parentes mais chegados, também por influxo do marido, amiudaram as visitas, de tal jeito que dona Lindoca, sempre queixosa outrora de isolamento, se fosse queixar-se agora seria de solicitude excessiva.

Veio uma tia pobre do interior tomar conta da casa, chamando a si todas as preocupações amofinantes.

Dona Lindoca sentia um certo orgulho da sua doença, cujo nome lhe soava bem aos ouvidos e fazia abrir a boca dos visitantes – policitemia... E como o marido e os demais lhe lisonjeassem a vaidade enaltecendo o chique das policitemias, acabou por considerar-se uma privilegiada.

Falavam muito na rainha Margarida e na grã-duquesa Estefânia como se fossem pessoas de casa, havendo um dos filhos conseguido e posto na parede o retrato de ambas. E certa vez que os jornais deram um telegrama de Londres, noticiando achar-se enferma a princesa Mary, dona Lindoca sugeriu logo, convencidamente:

- Vai ver que é uma policitemia...

A prima Elvira trouxa de Petrópolis uma novidade de sensação.

- Viajei com o doutor Maciel na barca. Contou-me que a baronesa de Pilão Arcado também está com policitemia. E também aquela grandalhona loura, mulher do ministro Francês – a Grouvion.
- Sério?
- Sério, sim. É doença de gente graúda, Lindoca. Este mundo!... até em questão de doença as bonitas vão para os ricos e as feias para os pobres! Você, a Pilão Arcado e a Grouvion, com policitemia – e lá a minha costureirinha do Catete, que morre dia e noite em cima da máquina de costura, sabe o que lhe deu? Tísica mesentérica...

Dona Lindoca fez cara de nojo.

Eu nem sei onde “essa gente” apanha tais coisas.

Outra ocasião, ao saber que uma sua ex-criada de Teresópolis fora ao médico e viera com o diagnóstico de policitemia, exclamou, incrédula, a sorrir com superioridade:

- Duvido! A linduína com policitemia? Duvido!... Vai ver que quem disse tal bobagem foi Lanson, aquela topeira.

A casa virou perfeita maravilha de ordem. As coisas surgiam à hora e no ponto, como se anões invisíveis estivessem a prover tudo. A cozinheira, ótima, fazia pitéus de arregalar o olho. A arrumadeira alemã dava idéia de uma abelha em forma de gente. A tia Gertrudes era uma nova governanta de casa como jamais existiu outra.

E nenhum barulho, todos na ponta dos pés, com “psius” aos estouvados. E presentinhos. Os filhos e noras jamais esqueciam a boa mamãe, ora com flores, ora com os doces de que ela mais gostava. O marido fizera-se caseiro. Deu jeito aos negócios e pouco saía, e à noite nunca, passando a ler para a esposa os crimes dos jornais nas raras vezes em que não tinha visitas.

Dona Lindoca começou a viver vida de céu aberto.
- como me sinto feliz agora! – dizia. – Mas para que nada haja perfeito, tenho a policitemia. Verdade é que esta doença não me incomoda em nada. Não a sinto absolutamente – além de que é uma doença fina...

O medico vinha vê-la amiúde, mostrando boa cara à doente e má ao marido.

- Demora ainda, meu caro. Não nos iludamos com aparências. As policitemias são insidiosas.

O curioso era que dona Lindoca realmente não sentia coisa nenhuma. O mal-estar, a ansiedade do começo que a levara a consultar o médico, de muito que havia passado. Mas quem sabia da sua doença não era ela, e sim o médico. De modo que enquanto ele não lhe desse alta, teria de continuar nas delícias daquele tratamento.

Certa vez, chegou a dizer ao doutor Lorena:

- Sinto-me boa, doutor, completamente boa.
- Parece-lhe, minha senhora. O característico das policitemias é iludir assim os doentes, e pô-los derreados ou liquidados, à menor imprudência. Deixe-me cá levar o barco a meu modo, que para outra coisa não queimei as pestanas na escola. A grã-duquesa Estefânia também se julgou boa, certa vez, e contra o parecer do médico assistente deu-se alta a si própria...
- E morreu?
- Quase. Recaiu e foi um custo pô-la de novo no ponto em que estava. O abuso, minha senhora, a falta de confiança no médico, tem levado muita gente para outro mundo...

E repetiu ao marido aquele parecer, com grande encanto de dona Lindoca, que não cessava de abrir-se em elogios ao grande clínico.

- Que homem! Não é a toa que ninguém diz “isto” dele, Neste rio de Janeiro das más-línguas.

“Amantes, minha senhora”, declarou ele outro dia à prima Elvira, “ninguém me apontará jamais nenhuma”.

O doutor Fernando ia se saindo com uma ironia à moda antiga, mas recolheu-se a tempo, por amor ao sossego da esposa, com a qual jamais esgrimira depois da doença. E resignou-se a ouvir o estribilho de sempre: “É um homem puro e muito religioso. Fossem todos assim e o mundo seria um paraíso”.

Durou seis meses o tratamento de dona Lindoca e duraria doze, se um belo dia não rebentasse um grande escândalo – a fuga do doutor Lorena para Buenos Aires com uma cliente, moça de alta sociedade.

Ao receber a notícia dona Lindoca recusou-se a dar crédito.

- Impossível! Há de ser calúnia. Vai ver como ele logo aparece por aqui e tudo se desmente.

O doutor Lorena jamais apareceu; o fato confirmou-se, fazendo dona Lindoca passar pela maior desilusão de sua vida.

- Que mundo, meu Deus! – murmurava. – em que mais acreditar, se até o doutor Lorena faz dessas?

O marido rejubilou-se, por dentro. Sempre vivera engasgado com a pureza do charlatão, comenta todos os dias em sua presença sem que ele pudesse explodir o grito d’alma que lhe punha um nó na garganta: “Puro nada! É um pirata igual aos outros”

O abalo moral não fez dona Lindoca recair enferma, como era de supor. Sinal de que estava perfeitamente curada. Para melhor certificar-se disso o marido lembrou-se de consultar outro médico.

- Pensei no Lemos de Souza – sugeriu ele. – está com muito nome.
- Deus me livre! – acudiu logo a doente. – dizem que é amante da mulher de Bastos.
- Mas trata-se de um grande clínico, Lindoca. Que importa o que lá do seu namoro dizem as más-línguas? Neste Rio ninguém escapa.
- A mim importa muito. Não quero. Veja outro. Escolha um decente. Sujeiras não admito aqui.

Depois de comprido debate acordaram em chamar Manuel Brandão, professor da escola e já em adiantado grau de senilidade. Não constava que fosse amante de ninguém.

Veio o novo doutor. Examinou cuidadosamente a doente e ao cabo concluiu com absoluta segurança.

- Vossa excelência não tem nada – disse ele. – absolutamente nada.

Dona Lindoca pulou, muito lépida, da sua preguiçosa.

- Então sarei de uma vez, doutor?
- Sarou... Se é que esteve doente. Não consigo ver sinal nenhum em seu organismo de doença presente ou passada. Quem foi o médico?
- O doutor Lorena...

O velho clínico sorriu, e voltando-se para o marido:

- É o quarto caso de doença imaginária que o meu colega Lorena (aqui entre nós, um refinadíssimo patife) leva a explorar durante meses. Felizmente raspo-se para Buenos Aires, ou “desinfetou” o Rio, como dizem os capadócios.

Foi um assombrado. O doutor Fernando abriu a boca.

- Mas então...
- É o que lhe digo – reafirmou o médico. – A sua senhora teve qualquer crise nervosa que passou com o repouso. Mas, policitemia, nunca! Policitemia!... até me espanta que tão grosseiramente pudesse o tal Lorena iludir a todos com essa pilhéria...

A tia Gertrudes voltou para sua casa no interior. Os filhos foram se tornando mais parcos nas visitas – e os demais parentes idem. O doutor Fernando retornou a vida de negócios e nunca mais teve tempo de ler crimes para a desconsolada esposa, sobre cujos ombros recaiu a velha trabalhadeira de zelar pela casa.

Em suma, a infelicidade de dona Lindoca voltou com armas e bagagens, fazendo-a suspirar suspiros ainda mais profundos que os de outrora. Suspiros de saudade. Saudade da policitemia…


Fonte:
Monteiro Lobato. Negrinha.

Alfredo de Castro (Trovas)


Quem dá flores com freqüência
para alegrar sofredores,
guarda nas mãos toda a essência
que se desprende das flores!

Ela passa, e o seu perfume
deixa um rastro na calçada
E eu morrendo de ciúme
finjo que não sinto nada!

Ninguém sabe, nesta lida,
onde a surpresa é mais forte:
se nos mistérios da vida
ou nos segredos da morte!

Amanheço, contemplando
essa beleza sem par.
do ouro do sol enfeitando
as águas verdes do mar!

Vou mandar fazer, mulata,
numa oficina de artista,
duas sandálias de prata
para os seus pés de sambista!

Quando a nossa mocidade
vai-se embora, tristemente,
é que a sombra da saudade
passa a ser sombra da gente!

Eu comparo o meu carinho
quando embalo a neta amada,
ao pôr-do-sol, de mansinho,
embalando a madrugada!

Num constante desafio
vão medindo os seus valores,
a fúria do mar bravio
e a calma dos pescadores!

Em noites de serenata,
a lua, lá no horizonte,
é uma coroa de prata
que o céu ostenta na fronte!

O mundo farto de escolhos,
descuidado em seus desvelos,
tingiu de roxo os meus olhos
e de prata os meus cabelos!

Sempre vazio o plenário...
Não tem jeito, não há meio...
- "Agora é o nosso salário!"
E o plenário ficou cheio!

A bondade é um sábio meio
de ajudar-se e de ajudar:
"Quem enxuga o pranto alheio
não tem tempo de chorar"!

Mudemos juntos a Terra,
que é só conflitos e dor,
trocando as glórias da guerra
pelas vitórias do amor!

Quem na vida quer vencer,
sentir o sabor da glória,
nunca deve se esquecer:
- sem luta não há vitória!
==============

Alfredo de Castro (1922)


Nasceu em Pouso Alegre, MG, a 8 de junho de 1922. Filho de Rodrigo Pereira de Castro e de Amélia de Castro. Casado com Haydée Coutinho de Castro. Tem 4 filhos, 9 netos e uma bisneta. Bacharel em Direito e Técnico em Contabilidade. Gerente-Adjunto aposentado da Caixa Econômica Federal. Náufrago-de-guerra e Ex-Combatente do Exército Brasileiro no último conflito mundial.

Ocupou a cadeira nº 32 da antiga Arcádia de Pouso Alegre, fundada pelo Dr. Jorge Beltrão. É Membro efetivo da AHARPA (Associação Histórica e Artística de Pouso Alegre). Colaborou com vários jornais, revistas, coletâneas e mostras de arte. Possui em sua galeria perto de duas centenas de troféus, medalhas, cartões de prata e diplomas, como prêmios por sua participação em Concursos de Trovas e em Jogos Florais. É Membro Fundador da Academia Pousoalegrense de Letras, ocupando a cadeira nº 18, cujo patrono é Dr. José Antônio Garcia Coutinho.

Publicou: "Fagulhas Evangélicas", trovas, 1953; "Torpedeamento", poema, 1955; Participou das seguintes coletâneas publicadas pela Arcádia de Pouso Alegre: "Coletânea Poética", sonetos, 1955; "5 Poetas em 1 Livro", sonetos, 1956; "Cigarras em Desfile", trovas, 1957; "Garimpeiros de Sonhos", sonetos, 1957; "Cantigas de Pouso Alegre", trovas, 1963; "Enquanto o Mandu. Corre", trovas, 1964; "Na Taça da Saudade", trovas, 1979; "Em Prosa e Verso", sonetos, trovas e contos, publicados pela Academia Pouso-Alegrense de Letras, 1996, e, "Cantigas do Mandu", trovas, 1998.

Fonte:
http://www.ubtjf.hpg.ig.com.br

quarta-feira, 10 de março de 2010

Trova 123 - Bastos Tigre (Recife/ PE)

J. G. de Araújo Jorge (As Seis Faces da Mulher)



Uma vez, numa entrevista, quiseram saber qual era, para mim, a mulher ideal. Fisicamente? Não, o jornalista queria saber mais, referia-se ao espírito, a alma, a personalidade. Se a pergunta se cingisse ao físico, eu não resistiria a tentação de roubar alguns versos de Vinícius, da sua "Receita de Mulher". Só alguns, esta claro. Mas acrescentaria outros. Vinícius não se refere, por exemplo, aos cabelos. E para mim, mais que os, olhos, que os lábios, os cabelos são um elemento de importância definitiva. Não emolduram apenas o rosto, os olhos, os lábios, mas toda a mulher. Dão-lhe um toque de graça especial.

Naturalmente tem que ser leves, finos, soltos, para que o vento brinque de poesia com eles. Já perguntei num poema:

"A visão do teu pescoço branco, velado como um templo,
pelo véu de teus cabelos louros, que eu descubro
nos delírios de minha fantasia:
Ah! não será isto poesia?"

E num outro:

"Gosto de encher as mãos com os teus cabelos
como um lavrador a recolher, feliz
as louras messes de uma farta colheita."

Não importa, entretanto, a cor, o tom que apresentem: podem fazer noite, tarde ou manhã, virem carregados de sombra ou de sol.

" Quando em teus cabelos louros
ou negros
mergulho o rosto,
parece
que faz sempre sol-posto
que a noite mansamente nos meus olhos desce!"


Importa é que sejam bastos, esvoaçantes como gazes, como painas, como sonhos. Em matéria de mulher sou contra qualquer racionamento. Subscreveria, em que pese a minha vocação socialista, aquele verso de Vinícius:

". . . E que existe um grande latifúndio dorsal."

Também já confessara:

"Gosto de tuas costas (como um arco, flexível)
que se alargam em duas luas imensas, geminadas."

Mas estas respostas não serviriam a pergunta do entrevistador.
Qual a mulher ideal, para mim?

Lembro-me de que respondi que ideal é sempre a mulher que a gente gosta, e que nos compreende. Mas pensei depois no assunto, e nasceu o poema. A mulher ideal, única, tem seis faces. Seis faces que a tornam múltipla, e infinita, para a nossa vida, a nossa ternura, o nosso amor. Na realidade, há todas as mulheres, na mulher que a gente ama. Disse isto no poema:

" As Seis Faces... "

Quando te encontro e observo que ficaste mais linda
e soltaste os cabelos para me agradar,
e me entregas os lábios num beijo leve e morno como a aragem,
e tranças os teus dedos em meus dedos, e me olhas
como no dia em que te tirei para dançar pela primeira vez,
é que percebo que continuas
a namorada.

Quando te preocupas com o tempo porque vou sair,
e recomendas detalhes como se me visse criança,
e repreendes a minha falta depois que as visitas se foram,
e endireitas a minha gravata, e escolhes a minha camisa,
e me fazes trocar os sapatos que não combinam;

quando surpreende o meu cansaço, e me enlaças,
e recosta a minha cabeça em teu colo,
e me dás conselhos como se eu pudesse segui-los,
é que descubro que há em ti, para mim, até mesmo
um pouco de mãe.

Quando te consomes muito mais com as minhas preocupações
e advinhas meus pensamentos, me prevines contra falsos amigos,
e te empenhas em partilhar também minha luta;

e economizas, como se com isso poupasses minhas forças,
e, sem querer, com uma palavra, desvendas uma solução
tão próxima e tão evidente, mas que meus olhos não percebiam;
quando à noite , na sombra, sem tocarmos os corpos,
conversamos, esquecidos, como dois amigos numa encruzilhada,
é que compreendo que tu és
a companheira.

Quando chego, e ao abrir a porta, estás à espera
com tua felicidade que me envolve e me aconchega,
e tirar da minha mão a pesada pasta de couro,
e me entregas os lábios (úmidos e trêmulos);

quando te encontro depois, em todos os detalhes cotidianos
e prosaicos, que fazem o melhor da vida:
minha toalha de banho no lugar; meus chinelos no seu canto;
minha roupa limpa sobre a cama; aquela jarra com flores arrumada;
aquela mesa posta, com seus talheres brilhando;
aquele odor de refeição que é o perfume do lar;
quando te vejo, leve e diligente, a circular pela casa
que consideras teu Reino, teu Mundo, teu Universo;
sei que tu és então
a esposa.

Quando à noite, de tarde, ou de manhã, (é um momento imprevisto
e nunca marcado) sinto que precisas de mim, que te faço falta,
como do ar, ou da água, de alimento, ou de vida,
e te encontro ao meu lado sempre irrevelada, e te dispo,
e se desencontraram as mãos e nossos corpos
e subitamente nos jogamos, como banhistas
contra o mar, contra as ondas, o mar desconhecido
as ondas que afogam e arrastam,
e de súbito estamos salvos na areia, como náufragos, és
a amante.

Quando te encontro ao meu lado, deitada numa nuvem
a acompanhar outras nuvens preguiçosas e itinenrantes
no céu do coração;

quando te pões a falar como crianças nas brincadeiras
em diminutivos, em “faz-de-contas” de pura imaginação,
e de ti restou apenas o contato dos nossos corpos, que
permaneceu em nós
entretanto distante, imaterial, a planar
como aquela gaivota na vaga luz da tarde que se esvai;
quando estirados na areia, cansados, mas felizes,
já podemos conversar, eu diria nesta hora que tu és
simplesmente
a irmã.

Quando penso em ti, e te sei tantas, no milagre da multiplicação
do amor,
recolho-me a ti, como pássaro às ramagens, onde encontra
a sombra, o ninho, o balanço, o fruto, - o impulso
para o vôo.

E amo, e trabalho, e sonho, e canto.

Fontes:
Crônicas de JG de Araujo Jorge extraído do livro " No Mundo da Poesia " Edição do Autor, 1969.
Imagem = Montagem sobre desenho obtido em http://soimagens.blogs.sapo.pt/

Aparecido Raimundo de Souza (Mulher ideal)


A Mulher ideal …
É aquela que se apresenta perante a sociedade como a mais formosa dama.
Mas quando na intimidade partilhe todos os segredos..

Enfim, a Mulher ideal …
É aquela que mesmo não sendo Deusa, sabe como ninguém trazer um pedacinho do céu.
(Anônimo)
______________
Qual seria, na sua concepção, meu caro leitor amigo, a mulher perfeita? Seria aquela que os antigos veneravam como a Amélia, que era de verdade, que não fazia exigências, que passava fome e achava bonito dormir no chão, eternizada nos versos de Ataulfo Alves? Ou uma mistura de Marilyn Monroe em Nunca fui Santa e Anita Eckberg em A Doce Vida de Fellini? Qual seria, afinal, a mulher dos sonhos de cada um de nós, simples mortais? Na prática, essa deusa seria a que o Roberto Carlos imortalizou na sua Mulher de 40? Será que ainda pode ser encontrada alguma dessa espécie numa esquina qualquer do destino?

Segundo uma determinada corrente, a mulher ideal é como peça rara de museu, jóia não encontrada em lugar nenhum. Diamante não lapidado. Aquela que não gasta telefone, nem água, nem luz, nem bebe refrigerante em excesso. A mulher ideal não frequenta salões de beleza requintados, não faz fofoca com as amigas, não pinta as unhas de vermelho, não tinge os cabelos com cores berrantes, não usa brincos, não usa piercing, nem raspa as pernas. Não usa sapatos de grife, nem veste roupas caras nem põem os cartões de crédito do marido à beira de um ataque de histerismo.

A mulher ideal não gasta, ou melhor, não desperdiça sabão em pó, nem água sanitária. Não usa o fogão e, por conseqüência, mantém cheio o botijão de gás. Não quebra copos, não suja pratos, nem diz palavrões. Tampouco solta gases em festinhas de crianças ou reuniões importantes. Alheia a caras feias, não seduz, se deixa ser cantada, emprega seus dias da melhor maneira, tentando aprimorar o conhecimento e expandir os horizontes. Jamais paga o mico de falar mal do seu amado quando ele chega quase ao romper da manhã.

É impecável, submissa, leal, econômica, companheira, sobretudo, companheira. Tem o nobre dom de tocar na mente daquele que ousa a se ajoelhar a seus pés estimulando o infeliz a realizar tarefas importantes, como a ir ao mercado, levar o cachorrinho para fazer pipi, comprar o jornal de domingo e aturar a sogra achata e rabugenta. A mulher ideal sabe como ser a amante exata, como distribuir seus encantos e atributos na medida certa, e, acima de tudo, aprende com a convivência diária como deixar o coração da sua cara metade com as batidas descompassadas, mas sem que o sujeito tenha um infarto e caia fulminado.

Não usa óculos escuros, jamais sai de casa de saia comprida, ao contrario, vai para as ruas com essas sainhas esvoaçantes que, ao sabor do vento, deixam à mostra as frutas saborosas que deixa qualquer homem de olhos esbugalhados. A mulher ideal é aquela vidrada em calcinhas minúsculas, a que veste blusinhas que permitem ficarem os seios em constante estado de ebulição. A mulher ideal é lógica, e, dentro dessa lógica, não comete certas asneiras como: arranjar um cara duro que pinte no pedaço só para tirar umazinha, também não trai, não flerta, ou arranja uma barriga indesejável só para dizer para as amigas que “é linda a gravidez”.

Extremamente fina e requintada nos menores gestos, onde chega abafa. A mulher ideal, nesse emaranhado todo, se assemelha àquela marca italiana e muito cobiçada de automóvel, a Ferrari. É sensual, nunca passa dos vinte anos, vive nativa do seu ar de superioridade, mas, ao mesmo tempo, é humilde a ponto, inclusive, de se mostrar soberba e impecável no andar, e no modo de se vestir. Sabe como atrair o oposto sem trair os sentimentos verdadeiramente de quem ama e os deixa expostos, a céu aberto. A mulher ideal não se importa com a pouca carne do traseiro magro, nem em transformar os pneuzinhos e culotes em fantasmas a lhe assombrarem diante do espelho.

Milagrosa, consegue freqüentar academias sem aparecer por lá, como igualmente ao visitar o dentista deixá-lo de boca geometricamente aberta. Faz chover em dia de sol, nevar em pleno calor e, quando gosta de verdade, deixa que a volúpia do amor maior atravesse o corpo da criatura que ama, de um lado para outro, sem se importar com seu coração safenado.

Para outro seguimento, todavia, a mulher ideal é ainda mais complexa: escorregadia, gentil, não contesta, seduz com palavras as próprias palavras, não pensa em luxúria, não se embriaga, é tolerante e não tropeça na estupidez das desvairadas, nem se deixa dominar pela burrice enfática das loiras. É, acima de tudo, forte, briguenta, boa no meio do campo, sabe chutar as bolas para o gol e no momento exato derrubar o goleiro por mais forte e esperto que seja, ou queira parecer, diante da sua rede. É livre de pensamentos impuros, conhece os direitos melhor que qualquer advogado, sentencia uma causa como nenhum juiz seria capaz de fazê-lo. É a tábua da salvação para o náufrago, a bóia para o desesperado no meio do rio, a respiração boca-a-boca quando a vida de um moribundo apaixonado está se esvaindo, é a maca para alojar o atropelado no meio da avenida, como o sol quente que brilha resplandecente quando o frio gélido insiste em apertar os ossos.

Para os filósofos e pensadores, a mulher ideal é aquela criatura divina, imaculada, que procura, acima de tudo, uma razão para viver, para a busca constante a si mesma, sem se perder na procura. Mulher ideal é ainda a que se entusiasma com aquelas que almejam um ideal e o alcançam sem pisotear os que vêm logo atrás. Para os loucos, bem, para os loucos, a mulher ideal é aquela que beija os pés, ajoelha, reza, engole o suor supremo com o objetivo de alcançar o êxtase da fome que a devora por dentro. É a regra que quebra todas as regras, que passa por cima de tabus e preconceitos e supera o insuperável.

É ainda, a mulher ideal, a que fala a língua dos homens e dos anjos, como também a do diabo e dos quintos do inferno. Para os aficcionados em sexo, a mulher ideal é aquela que já vem com os motores esquentados - a que se entrega convidativa a um passeio agradável por seu corpo. Vive somente para dar, não na acepção da palavra, mas igualmente receber, dar e se dar, às avessas, sem amarras, sem subterfúgios; receber reciprocamente, e, nessa reciprocidade, ser tocada, tocar, extasiar, gritar, urrar, ir às nuvens. Com o que o seu homem trouxe da rua, na comida colocar o seu tempero secreto, a sua massa de tomate, o seu coentro, o seu eu; misturar salsa, cebolinha, pedacinhos de pimentão e uma pitada quase invisível de bom óleo português e, em seguida, colocar tudo na panela e fritar, cozinhar a fogo alto, e acabe virando comida de primeira, incendiada em escala interplanetária.

Para a maioria, bem, para a maioria, que é a que realmente conta, a mulher ideal não existe. É utópica e onipresente. Inexistente como Deus no céu. Nasceu morta, ou melhor: sequer chegou a ser concebida.

Fontes:
Colaboração do Autor
– Imagem = http://meuslivros.weblog.com.pt/

Dinair Leite (Paranavaí Trovadoresco)

Praça do Japão (Paranavaí/PR)
Pela Maria da Penha,
lei-justiça conquistada,
quebro pau e queimo lenha
mas, congraço a mulherada!

Nossa vida fica triste,
vendo Jesus na paixão,
porém nossa alma resiste
e espera a ressurreição!

Não pule do trem do tempo
em desembarque apressado.
Viaje sem contratempo
e não pare adiantado.

Raiz? O que são raízes?
São alinhavos de Deus,
juntando os homens felizes,
quer sejam cristãos ou ateus...

Da inocência e da virtude
Deus capacitou o ser,
e deu-lhe franca atitude
do livre-arbítrio exercer!

Você que não me respeita,
a você eu sempre arrosto:
- Sai de perto, não me peita,
pois respeito é bom e eu gosto!

Quem nasceu pra dar amor
fraternal e compaixão,
é feliz se tira a dor
do seu próximo irmão.

Inocência adorna a fronte
de toda pessoa nova,
depois se esvai no horizonte
mas, volta perto da cova.

Se a violência o esfola,
tristeza no peito cresce
de quem fez do crime escola
sem ver, que o que sobe desce...

Quero ser sempre a criança
com desejo de estudar,
curiosa e na esperança
de nunca me completar...
----


Fonte:
Colaboração da autora

terça-feira, 9 de março de 2010

Trova 122 - Cícero Rocha (Juiz de Fora/MG)

Luís de Camões (Soneto 3)


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.
________________________

Mor = maior
Soía = do verbo soer: costumava, era comum, ocorria com frequência.
========================
Mudanças são contínuas. O interessante deste soneto de Camões é o jogo de imagens sucessivas que em si mesmas expressam a movimentação dos acontecimentos, pontos de reflexão do autor. Deve-se perceber que o ritmo vai acompanhando a estrutura do soneto até o final inesperado, quando é revelada uma mudança da própria mudança.

Fonte:
Luís de Camões. Lírica de Camões – melhores poesias. Seleção e notas de Célia A. N. Passoni. 2. ed. SP: Núcleo, 1997.

Nilton Manoel (Fazer Trovas e Ser Trovador?)

O que é trova?

“Trova é uma composição literária de quatro versos setissilábicos, rimando o primeiro com o terceiro e o segundo com o quarto; sistema de rimas ABAB, tendo sentido completo quanto a mensagem". Na conceituação, a fala dos trovadores:

Que linda trova perfeita
Que nos dá tanto prazer;
Tão linda depois de feita!
Tão difícil de fazer!
(Adelmar Tavares)

Pelo tamanho não deves
Medir valor de ninguém;
Sendo quatro versos breves,
Como a trova nos faz bem!
(Luiz Otávio)

Quero fazer uma trova
Minha estrela não ajuda;
Busco a técnica que aprova
E faço uma trova muda.
(Nilton Manoel)

Hênio Tavares, no livro “Teoria Literária”, 5ª edição, pág. 309, define: ”Trova é uma composição literária monostrófica, formada de quatro versos que condensam todo o pensamento ou emoção”. Trova é uma redondilha maior, ou seja, seus versos são feitos em sete sílabas poéticas cada.

*Aparício Fernandes diz: A trova é um estado de graça. Simples e expressiva, quando bem feita cala profundamente na alma popular, pois vai bem com o temperamento emotivo e fundamentalmente lírico de nosso povo.

* Nilton da Costa Teixeira? “Quem faz trovas não vive só tem a mente repleta de ilusões”.

* Judith Coelho Maciel: “ A trova é uma epopéia em quatro versos”.

Luiz Otávio, fundador da UBT, através do Decálogo de Metrificação (editado em Ribeirão Preto, em 1975) orienta: “Ao estudarmos a Arte de Trovar ou a composição da Trova, devemos analisa-la em duas em duas partes: o corpo e a alma ou a forma e o fundo".

Não se pretende ensinar a ninguém a ser trovador; no entanto todas as artes tem sua aprendizagem técnica. Além desses conhecimentos é necessário o dom. O idioma e o verso são os instrumentos do poeta. Há no meio dos trovadores, esta fala:” todo trovador é poeta, mas nem todo poeta é trovador”. O poeta deve estudar a fundo a língua, seu meio de comunicação e assim ampliar os horizontes de sua produção literária. O idioma dá vida a mensagem que só um poeta pode captar.

Procure num dicionário o significado de cada palavra. Ex.: Ritmo, Melodia,Mensagem etc.

Vale lembrar que, a maioria dos poetas que são premiados em concursos literários, escreve e reescreve um texto diversas vezes, para depois envia-lo para a banca de julgadores. Nem toda trova premiada merece ficar oculta, sem difusão em jornais ou livros. As trovas de concursos exploram o tema proposto e podem não ser boa para determinado momento, mas serem popularizadas e terem mensagens populares significativas. Um achado literário pode não servir para determinado concurso, mas.... Há dezenas de trovas popularizadas que jamais foram premiadas e centenas de trovas de primeiros lugares que só brilharam no evento e não são conhecidas nem pelos concorrentes do mesmo evento. O poeta não deve esquecer que a edição de livro é a realização do Escritor. Quem faz o escritor são seus leitores. Jorge Amado,nos diz:” A trova e o trovador são imortais”.

Fonte
Portal Movimento das Artes. 08/06/04

Edson Ribeiro Scabora (Pais & Filhos: a arte de educar nossos filhos transformando crianças em homens)


"O destino de muitos homens dependeu de ter havido ou não ter havido uma biblioteca na sua casa paterna"

Neste domingo estive presente em uma reunião da Academia de Letras de Maringá, onde um dos convidados foi o escritor Edson Ribeiro Scabora, que nos apresentou o seu livro Pais & Filhos: A arte de educar nossos filhos transformando crianças em homens. Segundo ele, este livro se originou de suas observações sobre as crianças de hoje em dia, que parecem não ter sonhos, pois ao contrário de seus pais, possuem tudo o que desejam. Enfim, após explicar sobre a ausência de horizontes das novas gerações, falou-nos uma história que seu pai lhe contara:

"Havia um médico que era muito diferente de seus colegas de profissão, que quando não estava em seu consultório estava usando um macacão jeans e um chapéu de palha. Sempre muito sorridente e nunca se alterava. Quando ele não estava tratando das pessoas, estava a plantar árvores, usando sempre o lema "sem sofrimento não há crescimento". Raramente regava suas árvores, pois segundo ele, molha-las as deixaria muito acomodadas, e mais fracas, pois elas não aprofundariam as suas raízes em busca da água, e ficando preguiçosas quando vir os ventos e o frio, elas não resistiriam.

Plantava uma árvore e batia nele com um jornal enrolado e dizia " A água está lá embaixo, busque-a".

Um dia, nosso palestrante foi conhecer a casa deste médico na cidade onde o pai dele nascera, pois achava que esta história era invenção. Ficou impressionado, pois no lugar onde o pai falara, as árvores estavam, fortes como granito e robustas.

A lição que esta história nos ensina é que, como aquelas árvores, pela adversidade e privação que sofreram, se beneficiaram de um modo que o conforto e as coisas entregues de bandeja não conseguiriam.

Enfim, ele encerra com "Adversidade e privação versus tranquilidade e benefícios. O que deve ser usado para a educação de nossos filhos?"

"Ser pai é a maior de todas as dimensões humanas. Portanto devemos exercê-la com a maior responsabilidade.
Se assim o fizermos, nossas crianças se transformarão em verdaeiros homens e mulheres. Homens e mulheres úteis à sociedade, empreendedoras, sensíveis às necessidades alheias, ousadas, criativas, responsáveis.
Este livro não possui uma receita, mas tenta mostrar um caminho. Este livro não dá o peixe, mas tenta ensinar a pescar. Mostra os erros comuns que cometemos ao educarmos nossos filhos.
Define os três tipos de pais: os pais medíocres, os pais talentosos e os pais geniais. Mostra os três alicerces que tem o poder de transformar crianças em verdadeiros homens e mulheres.
Mostra que a natureza e suas leis, entre elas a lei do "sem sofrimento não há crescimento", são as mesmas leis dos pais geniais."
(palavras do autor, na orelha do livro)

Fontes:
- Palestra proferida por Edson Ribeiro Scabora, na Academia de Letras de Maringá, em 7 de março de 2010.
- Edson Ribeiro Scabora.Pais & Filhos: A arte de educar nossos filhos transformando crianças em homens. Maringá/PR: Edição do Autor, 2008.

Edson Scabora (Um Mal chamado Analfabetismo)


Eu gostaria de começar com uma pergunta. Uma pergunta muito importante. Qual é o maior patrimônio de um homem? O maior bem, o maior patrimônio que um homem pode ter, é a liberdade.

"Liberdade, essa palavra
Que o sonho humano alimenta.
Que não há ninguém que explique
E ninguém que não entenda".
Cecília Meireles

A liberdade é o nosso maior patrimônio. Mas quanta gente é como o cão que procura um dono.

A liberdade duplica as forças e o valor de um homem, dizia o general francês Dumouriez.

Mas o homem parece não perceber o valor da liberdade, aliás, a liberdade e a saúde se parecem; não lhes conhecemos bem o valor senão quando nos faltam.

A liberdade é tão importante que os romanos podiam tirar a vida de seus filhos, mas não tiravam a sua liberdade.

Companheiros e companheiras, o amor à liberdade deve ser invencível como é a morte; deve ter a sede do infinito; deve ser grande , como grande é o universo.

Gonçalves de Magalhães, o poeta que iniciou o romantismo no Brasil, médico e também diplomata, com uma frase resumiu a importância da liberdade: “que me importa morrer! A vida é nada, a liberdade é tudo!

E ouçam o que José Bonifácio falou sobre a liberdade: “sem liberdade individual não pode haver civilização nem sólida riqueza; não pode haver moralidade e justiça; e sem moralidade e justiça, estas filhas do céu, não há nem pode haver brio, força e poder entre as nações.

E Godwin, um filósofo inglês corretamente escreveu: “a liberdade é a escola da inteligência”.

Mas o que é um homem livre? Quais são as características de um homem livre? O que faz de um homem um ser livre?

"Não me apontes o caminho,
o rumo certo pra chegar ao cimo.
Deixa-me encontrá-lo para que seja
meu...
Não me reveles a mais brilhante estrela,
Aquela que te guia.
Eu buscarei a minha...

Não me estendas a mão quando eu cair.
Em tempo certo, em hora exata,
Eu ficarei de pé...

Não te apiedes de mim.
É minha estrada, é minha estrela,
É meu destino.

Deixa apenas que eu seja.
Sem ti..."
Eliette Ferreira

Livre é aquele que encontra sozinho o seu caminho. E feliz e rica é a nação cujos governantes investem na liberdade dos seus cidadãos, ensinando-os a pescar como disse à 2000 anos o mestre Jesus. E no Brasil inventam o bolsa família, vale gás, salário desemprego...e aos poucos, a nação vai se acostumando a viver de esmolas, e se tornando cada vez mais pobre e o seu povo cada vez mais dependentes e acomodados.

17 bilhões de reais são gastos com o bolsa família eu um ano. Será que este dinheiro todo, aplicado em educação, não traria maiores benefícios para o Brasil.

O que eu sei e posso lhes afirmar, é que em toda a história da humanidade, os países que optaram por dar o peixe, não conseguiram se firmar como nação forte, rica e livre.

O homem sempre se fez prisioneiro de angústias, medos, e culpas. O homem sempre se fez prisioneiro da solidão, da impossibilidade de agir, de padrões pré-determinados. O homem sempre se fez prisioneiro das doutrinas, de normas, de dogmas e das religiões.

Ser livre é essencialmente ter a capacidade de escolha. Onde não existe escolha, não há liberdade. O homem faz escolhas da manhã à noite e se responsabiliza por elas assumindo seus riscos (vitórias ou derrotas). Escolhe roupas, amigos, amores, filmes, músicas, profissões...
A escolha sempre supõe duas ou mais alternativas; com uma só opção não existe escolha nem liberdade. As escolhas nem sempre são fáceis e simples.

Escolher é optar por uma alternativa e renunciar às outras.

E é aqui que nós chegamos ao tema desta palestra.

Livre é aquele que encontra sozinho o seu caminho. Como encontrar o caminho sem o poder que nos dá o conhecimento, a educação.

Como impedir que o meio e os poderosos que nele vivem, lhe roube a liberdade sem o poder do conhecimento, da educação.

Como não ser prisioneiro de angústias, medos, culpas, solidão, impossibilidade de agir, padrões pré-determinados, doutrinas, normas, dogmas, religiões, etc., sem o poder do conhecimento, da educação. Como fazer as escolhas corretas sem o poder do conhecimento, da educação. A educação nos dá o discernimento para fazermos as escolhas corretas. E aí a gente entende o porque dos nossos governantes gastar 17 bilhões em vale disso e vale daquilo.

Como ser uma nação livre sem o poder do conhecimento, da educação. É impossível se construir uma nação forte e livre sem o poder da educação.

De Amicis, um escritor italiano dizia: “uma casa sem livros é uma casa sem dignidade.” E Channing, um pastor protestante corretamente dizia: “agradecido seja Deus pelos livros. Eles são a voz dos longínquos e dos mortos, e nos tornam herdeiros da vida espiritual dos séculos passados.”

O historiador escocês, Hume, certa vez falou: É raro, é muitíssimo raro, que o verdadeiro homem de letras não seja pelo menos um homem de bem”. As letras, diz um provérbio, não despontam as lanças. E Teofrasto, um filósofo grego que viveu por volta de 300 antes de Cristo, escreveu: “o único homem que tem a prerrogativa de não ser estranho entre os estrangeiros, é o homem de letras”.

E também disse De Amicis, que o destino de muitos homens dependeu de ter havido ou não ter havido uma biblioteca na sua casa paterna.

E daí nós podemos concluir, que o destino de muitas nações dependeu da importância que seus governos deram ou não deram à educação.

E hoje o mundo se divide em dois mundos: de um lado o mundo dos países que acreditaram e acreditam na educação e de outro lado o mundo dos países que não acreditaram e continuam não acreditando na educação.

E a que mundo pertence o Brasil?

Porque será que conteiners e mais conteiners de soja, milho, trigo, são trocados por algumas unidades de celulares, carros importados, máquinas para indústrias. E então a cada ligação que fazemos de um celular, estamos enriquecendo ainda mais aqueles que acreditaram no conhecimento. E então, estes países, cada vez mais ricos, compram os nossos supermercados, os nossos shopings, a nossa energia elétrica, a nossa água, e toda a nossa riqueza.

E assim, cada vez, mais e mais conteiners de soja, milho, trigo, são trocados por algumas unidades de produtos de alta tecnologia, fruto do poder do conhecimento e da educação. E assim, nós, os pobres países pobres, e pobres por nossa própria culpa, pois somos nós que escolhemos os nossos governantes, vamos ficando cada vez mais pobres e principalmente, cada vez mais perdendo a nossa liberdade.

E nossos filhos?

E eu então lhes perguntaria: e nossos filhos? como se encontram as habilidades de nossos filhos? Como está a sua escrita, a sua leitura? Será que eles sabem interpretar corretamente um texto qualquer? Será que eles sabem redigir um bom texto? Como eles se sairiam em uma entrevista para um emprego? 75% dos brasileiros são analfabetos funcionais. E os nossos filhos?


Aí então eu lhes faço uma advertência:

Quantas horas seus filhos passam em frente ao computador? Quantas horas seus filhos passam assistindo tv? Quantas horas seus filhos passam jogando vídeo games?

Quantos livros seus filhos já leram durante toda a vida deles?

Constantemente vejo os pais de meus alunos comprarem tênis de marca que custam 600, 700 reais. Constantemente vejo os pais de meus alunos comprarem roupas de grifes, caríssimas.

Dificilmente vejo pais comprando livros para seus filhos lerem. Com o dinheiro de um tênis de marca, daria para os pais comprarem livros para seus filhos lerem, nos 3 anos do ensino médio. Mas quando pedimos para comprarem 1 ou 2 livros, as reclamações que ouço, me fazem crer que o Brasil parece não ter futuro.

Talvez isto explique o nosso país. As suas desigualdades sociais, a sua pobreza. E principalmente os nossos governantes.

E eu quero deixar aqui uma sugestão para melhorar a educação em nossa cidade: valorizem mais o professor. Apóiem mais os professores de seus filhos. Acreditem mais na escola. Entre a palavra do professor e a de seu filho, fique com a palavra do professor. Os professores hoje estão acuados diante de tanta violência por parte de seus alunos. Não há mais respeito.

E como ensinar se a quem eu tento ensinar não me respeita. Ajudem a cuidar da escola, ensinando seus filhos a respeitarem a figura do professor.

Ensinando seus filhos a conservar o jardim, a não rabiscar as carteiras, a não quebrar as vidraças. Ensinem seus filhos a não colocar apelidos em seus amigos. Não incentivem a violência, as brigas na escola. Façam do ambiente da escola um lugar agradável de se estar.

Fonte:
Instituto Progredir. Academia de Crescimento Pessoal e Empresarial.

Emílio Germani (O Vinho)


O sangue da terra é presença constante na casa do lavrador de origem italiana.

A recepção das visitas é sempre com uma bela jarra de vinho branco ou tinto, segundo a hora em que é servida.

Não há gaúcho italiano que não tenha seu vinho, não há vinho que não seja consagrado pelo suor e o trabalho dessa gente laboriosa de Caxias, Bento, Mato Perso e arredores, o ano inteiro zelando seu parreiral.

Nas refeições e nos momentos de descanso, festivos ou de alegres comemorações, sem escurecer os seus horizontes de esperança, o vinho nunca está só.

Em sua índole indomável e varonil, nos momentos de solidão ou melancolia, recordando a vida dura do começo, com a sanfona resfolegando melodias folclóricas, canta, bebe, brinda pelos feitos do passado, na esperança das realizações do futuro, das mulheres que amou, da casa que construiu e do vinho que nunca faltou.

As pendências desaparecem quando alegres bebem. Seja de manhã, de tarde ou à noite, reina alegria. Nada turva a harmonia da numerosa família.

O tinto ou o branco de Caxias ou de Bento, de aroma e sabor agradável, lembrando o amor e o trabalho árduo de sol a sol, anos e anos seguidos, cuidando a propriedade e criando os filhos, olhando para o futuro da vida digna que levam, para a consagração do pão e do vinho, ergueram-se altares em toscas ermidas.

O vinho na colônia italiana é a luz da vida, sob o fulgor das estrelas. Depois de um santo trabalho coletivo, de homens e mulheres decididos, o vinho é um personagem indispensável nas conversas e na harmonia ombro a ombro.

Bendito o vinho puro e caprichado, tradição da Serra Gaúcha!

Fonte:
Emílio Germani. Folhas Esparsas. Maringá: Ed. do Autor, 2009.

Emilio Germani (Folhas Esparsas)


SENTIMENTOS IMORTAIS

Nas andanças de minha longa existência,
Escutei de sábios amigos ancestrais
A lenda que guardei na consciência.
Da remota ilha dos sentimentos imortais.

Quase todos lá viviam, inclusive o Amor,
Numa vida calma, tranqüila e paradisíaca.
Mas o prenúncio de um furacão trouxe o terror,
Com medo da destruição o pânico ataca.

Cada sentimento tratou de fugir.
Ao fim deixaram apenas o Amor,
Que não teve como com eles partir;
Negaram-lhe carona com muita dor.

A Tristeza estava com o barco pleno de aflição,
No barco da Alegria nada mais cabia de contente,
A Avareza com o barco cheio com sua coleção.
Se o Amor ficasse, morreria certamente.

No desespero, um barco no horizonte apareceu,
Um velho ao leme aportou na ilha mansamente;
A esperança do Amor de repente renasceu,
Talvez pudesse se salvar finalmente.

Aproximando-se cansado e olhar cristalino,
Viu que o velho era o Tempo salvador,
Compreendeu a mensagem do destino
Que o Tempo jamais esquece um grande Amor.

PRECE PREVENTIVA

Só o Senhor sabe quando vai me chamar;
Ainda com tempo de lembrar minhas ilusões,
Enquanto sinto a beleza e o amor de aqui estar,
Vivendo as amizades da vida e as satisfações.

Dá-me ainda a oportunidade de fazer esta prece,
Na esperança de aplacar as culpas que cometi,
E alcançar o lugar que minha alma merece,
Grato pela misericórdia dos benefícios que recebi.

Senhor!
Agora que anotaste todos os erros meus,
Que extingui da juventude as ilusões.
Em Tua onipotência espero a graça de Deus,
Conservando toda a confiança e disposições.

Senhor!
Neste tempo de tantos desenganos que presenciei,
Ceticismos e desprezos dos valores morais,
Da boa fé e formação que da família herdei,
Deixo em Tuas Excelsas mãos meus instantes finais.

Senhor!
Agora que as forças começam a falhar,
Alerto o meu espírito e começo a raciocinar,
Embora me arrepie só de pensar,
Sei que quando Tu queres, a hora vai chegar,

Senhor!
Agora que aprendi a precariedade das coisas,
O limite das ambições e das lutas que vivera,
Reconheço minha pequenez e no meu ser sinto as brisas
Aguardando tranqüilo o destino que me espera.

Senhor!
Agora que já alcancei da vida o ponto audaz,
Com Elza constituí a família mais linda e querida,
Ajuda a mim e a ela envelhecermos em paz.
Suportar tudo, e receber de Ti a melhor acolhida.

Senhor!
Agora aumentam os cuidados ao meu redor
O constante zelo, o carinho e toda a atenção.
Advertindo sutilmente a minha consciência, o terror,
Que fatalmente meus derradeiros dias chegarão.

Senhor!
Agora com a vista turva e degenerada,
Pernas trôpegas, ouvidos moucos e vida dura,
Redobra minha força ao imprevisto dessa parada,
Ajuda-me tolerar com serenidade e fé segura.

Senhor!
Conceda-me a graça de não cair em atitudes avessas,
Não chorar o passado, nem duvidar do futuro,
Não perder o ânimo nem descrer de Tuas promessas,
Chegar digno e altivo ao termo que procuro.

Senhor!
Agora, sem saber quando e quem vai partir primeiro,
Entrego à Tua guarda meus amados familiares,
Bem assim cada confrade e confreira, amigos e companheiros,
A quem desejo felicidade total em suas ações e seus lares.

SEXAGENÁRIA MARINGÁ

Quando te conheci, cidade menina,
Engatinhavas com cara suja e poeirenta,
Bem diferente de agora, vencedora heroína,
Formosa, grávida de vida, completando sessenta.

Foram os pioneiros, homens e mulheres,
que gente forte e corajosa que era aquela!
Com eles ganhaste beleza para seres
Adulta e altaneira e linda, não mais donzela.

Muitas pessoas valorosas deram a vida,
Cessaram as forças, tombaram em pplena jornada,
Pioneiros valentes que tiveram honrosa caída,
Criaram com amor esta terra bela e amada.

Ainda estão na lembrança de alguns remanescentes
O primeiro cinema, o primeiro hospital, a primeira venda,
A primeira casa, a primeira igreja, os primeiros crentes.
O primeiro colégio, os primeiros alunos e primeiro estudo.
O primeiro Rotary, a primeira história e a primeira lenda.
O primeiro hotel, o primeiro prédio, o primeiro tudo.

Não foi milagre e nem magia, foi trabalho duro,
Gente jovem e forte, cheia de fé e vontade.
Com esperança e visão fizeram do nada, para o futuro
Esta cidade que deixam ao cuidado da posteridade
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__________

Fonte:
Emílio Germani. Folhas Esparsas. Maringá: Edição do Autor, 2009.