terça-feira, 27 de abril de 2010

Raul de Leoni (Antologia Poética)


LEGENDA DOS DIAS

O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas... e, à saída,
Leva uma crença vaga, indefinida,
De achar o Ideal nalguma encruzilhada...

As horas morrem sobre as horas... Nada!
E ao Poente, o Homem, com a sombra recolhida
Volta, pensando: "Se o Ideal da Vida
Não veio hoje, virá na outra jornada..."

Ontem, hoje, amanhã, depois, e assim,
Mais ele avança, mais distante é o fim,
Mais se afasta o horizonte pela esfera...

E a Vida passa... efêmera e vazia:
Um adiamento eterno que se espera,
Numa eterna esperança que se adia...

HISTÓRIA ANTIGA

No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube por que foi... um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era... Não sabia...

Desde então, transformou-se de repente
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para frente...

Nunca mais nos falamos... vai distante...
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la...

PLATÔNICO

As idéias são seres superiores,
— Almas recônditas de sensitivas —
Cheias de intimidades fugitivas,
De crepúsculos, melindres e pudores.

Por onde andares e por onde fores,
Cuidado com essas flores pensativas,
Que tem pólen, perfumes, órgãos e cores
E sofrem mais que as outras cousas vivas.

Colhe-as na solidão... são obras-primas
Que vieram de outros tempos e outros climas
Para os jardins de tua alma que transponho,

Para com ela teceres, na subida,
A coroa votiva do teu Sonho
E a legenda imperial da tua Vida.

CANÇÃO DE TODOS

Duas almas deves ter...
É um conselho dos mais sábios;
Uma, no fundo do Ser,
Outra, boiando nos lábios!

Uma, para os circunstantes,
Solta nas palavras nuas
Que inutilmente proferes,
Entre sorrisos e acenos:
A alma volúvel da ruas,
Que a gente mostra aos passantes,
Larga nas mãos das mulheres,
Agita nos torvelinhos,
Distribui pelos caminhos
E gasta sem mais nem menos,
Nas estradas erradias,
Pelas horas, pelos dias...

Alma anônima e usual,
Longe do Bem e do Mal,
Que não é má nem é boa,
Mas, simplesmente, ilusória,

Ágil, sutil, diluída,
Moeda falsa da Vida,
Que vale só porque soa,
Que compra os homens e a glória
E a vaidade que reboa
Alma que se enche e transborda,
Que não tem porquê nem quando,
Que não pensa e não recorda,
Não ama, não crê, não sente,
Mas vai vivendo e passando
No turbilhão da torrente,
Través intrincadas teias,
Sem prazeres e sem mágoas.
Fugitiva como as águas,
Ingrata como as areias.

Alma que passa entre apodos
Ou entre abraços, sorrindo,
Que vem e vai, vai e vem,
Que tu emprestas a todos,
Mas não pertence a ninguém.
Salamandra furta-cor,
Que muda ao menor rumor
Das folhas pelas devesas;
Alma que nunca se exprime,
Que é uma caixa de surpresas
Nas mãos dos homens prudentes;
Alma que é talvez um crime,
Mas que é uma grande defesa.

A outra alma, pérola rara,
Dentro da concha tranqüila,
Profunda, eterna e tão cara
Que poucos podem possuí-la,
É alma que nas entranhas
Da tua vida murmura
Quando paras e repousas.
A que assiste das Montanhas
As livres desenvolturas
Do panorama das cousas

Para melhor conhecê-las
E jamais comprometê-las,
Entre perdões e doçuras,
Num pudor silencioso,
Com o mesmo olhar generoso,
Com que contempla as estrelas
E assiste o sonho das flores...

Alma que é apenas tua,
Que não te trai nem te engana,
Que nunca se desvirtua,
Que é voz do mundo em surdina.
Que é a semente divina

Da tua têmpera humana,
Alma que só se descobre
Para uma lágrima nobre,
Para um heroísmo afetivo,
Nas íntimas confidências
De verdade e de beleza:

Milagre da natureza
Transcorrendo em reticências
Num sonho límpido e honesto,
De idealidade suprema,
Ora, aflorando num gesto,
Ora, subindo num poema.

Fonte do Sonho, jazida
Que se esconde aos garimpeiros,
Guardando, em fundos esteiros,
O ouro da tua Vida.

Alma de santo e pastor,
De herói, de mártir e de homem;
A redenção interior
Das forças que te consomem,
A legenda e o pedestal
Que se aprofunda e se agita
Da aspiração infinita
No teu ser universal.

Alma profunda e sombria,
Que ao fechar-se cada dia,
Sob o silêncio fecundo
Das horas graves e calmas,
Te ensina a filosofia
Que descobriu pelo mundo,
Que aprendeu nas outras almas

Duas almas tão diversas
Como o poente das auroras:
Uma, que passa nas horas;
Outra, que fica no tempo.

INGRATIDÃO

Nunca mais me esqueci! ... Eu era criança
E em meu velho quintal, ao sol-nascente,
Plantei, com a minha mão ingênua e mansa,
Uma linda amendoeira adolescente.

Era a mais rútila e íntima esperança...
Cresceu... cresceu... e aos poucos, suavemente,
Pendeu os ramos sobre um muro em frente
E foi frutificar na vizinhança...

Daí por diante, pela vida inteira,
Todas as grandes árvores que em minhas
Terras, num sonho esplêndido semeio,

Como aquela magnífica amendoeira,
E florescem nas chácaras vizinhas
E vão dar frutos no pomar alheio...

ARTISTA

Por um destino acima do teu Ser,
Tens que buscar nas coisas inconscientes
Um sentido harmonioso, o alto prazer
Que se esconde entre as formas aparentes.

Sempre o achas, mas ao tê-lo em teu poder
Nem no pões na tua alma, nem no sentes
Na tua vida, e o levas, sem saber,
Ao sonho de outras almas diferentes...

Vives humilde e inda ao morrer ignoras
O Ideal que achaste... (Ingratidão das musas!)
Mas não faz mal, meu bômbix inocente:

Fia na primavera, entre as amoras.
A tua seda de ouro, que nem usas
Mas que faz tanto bem a tanta gente...

CIGANOS

Lá vêm os saltimbancos, às dezenas
Levantando a poeira das estradas.
Vêm gemendo bizarras cantilenas,
No tumulto das danças agitadas.

Vêm num rancho faminto e libertino,
Almas estranhas, seres erradios,
Que tem na vida um único destino,
O Destino das aves e dos rios.

Ir mundo a mundo é o único programa,
A disciplina única do bando;
O cigano não crê, erra, não ama,
Se sofre, a sua dor chora cantando.

Nunca pararam desde que nasceram.
São da Espanha, da Pérsia ou da Tartária?
Eles mesmos não sabem; esqueceram
A sua antiga pátria originária...

Quando passam, aldeias, vilarinhos
Maldizem suas almas indefesas,
E a alegria que espalham nos caminhos
É talvez um excesso de tristezas...

Quando acampam de noite, é no relento,
Que vão sonhar seu Sonho aventureiro;
Seu teto é o vácuo azul do Firmamento,
Lar? o lar do cigano é o mundo inteiro.

Às vezes, em vigílias ambulantes,
A noite em fora, entre canções dalmatas,
Vão seguindo ao luar, vão delirantes,
Alados no langor das serenatas.

Gemem guzlas e vibram castanholas,
E este rumor de errantes cavatinas
Lembra coisas das terras espanholas,
Nas saudades das terras levantinas.

E, então, seus vultos tredos envolvidos
Em vestes rotas, sórdidas, imundas.
Vão passando por ermos esquecidos,
Como um grupo de sombras vagabundas.

Lá vem os saltimbancos, às dezenas,
Levantando a poeira das estradas,
Vêm gemendo bizarras cantilenas,
No tumulto das danças agitadas.

Povo sem Fé, sem Deus e sem Bandeira!
Todos o temem como horrível gente,
Mas ele na existência aventureira,
Ri-se do medo alheio, indiferente.

E, livres como o Vento e a Luz volante,
Sob a aparência de Infelicidade,
Realizam, na sua vida errante,
O poema da eterna Liberdade.
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Mais poesias de Raul de Leoni em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/06/raul-de-leoni-poesias.html

Fontes:
– LEONI, Raul de. Trechos escolhidos. Org. Luiz Santa Cruz. Rio de Janeiro: Agir, 1961. (Série Nossos clássicos).
– LEONI, Raul de. Luz mediterrânea. São Paulo: Livraria Martins, 1959
– Colaboração de Antonio Manoel Abreu Sardenberg

Raul de Leoni: “Semeador de Harmonia e Beleza”

artigo de José Antonio Jacob

Raul de Leoni Ramos nasceu em Petrópolis-RJ, e faleceu na "Vila Serena", em Itaipava-RJ, (30 de outubro de 1895 - 21 de novembro de 1926). Bacharel em Direito, prosador, diplomata e político. Chegou a eleger-se deputado estadual.

Acima dessas coisas foi poeta.

Foi o poeta de maior realce na última fase do simbolismo, e justamente considerado como uma das figuras mais notáveis do soneto brasileiro de todos os tempos.

Parnasianos, simbolistas e até modernistas o têm em alta conta, apreciando-o sem reservas. Cada um de seus versos tem sonoridade e ritmo primorosos, especialmente os dos sonetos, em decassílabos, mesclados de simbolismo e de modernismo, com tessitura clássica e técnica parnasiana. São versos considerados dos mais perfeitos: em idéia, filosofia, e essência das temáticas.

O seu ritmo peculiar e admirável de versificação, o conjunto de idéias sublimes de suas palavras, são os aspectos mais fortes que envolvem a magnífica harmonia da unidade de pensamento que existe em toda sua obra.

O nome de Raul de Leoni é dos mais reconhecidos pela crítica brasileira, não havendo uma só voz discordante, o que não acontece com outros poetas, sobretudo, os da sua época que eram conhecidos poetas independentes, Augusto dos Anjos, Alceu Wamosy , José Albano, Andrade Muricy e outros. Ao próprio Muricy declarou o poeta Alberto de Oliveira: "Raul de Leôni é o maior de vocês todos. Li o seu livro, agora, em Petrópolis, e é extraordinário".

A mesma unanimidade não tem a crítica ao situar o poeta, em diferentes julgamentos, onde foi colocado nas escolas e posições poéticas as mais diferentes e contraditórias. Enquanto alguns dos seus críticos o consideram um genuíno parnasiano, outros enxergam nele o simbolista autêntico, terceiros acreditam ter sido um neo-parnasiano e outros o situam num grupo completamente independente das regras poéticas e influências de escolas e movimentos literários.

Todavia a crítica literária brasileira é unânime em assinalar a alta linhagem clássica da poesia de Raul de Leoni, fundada na homogeneidade da sua primazia gramatical, temática e métrica, e consolidada no seu bom gosto literário, reconhecidos como impecáveis, desde a sua época até os dias atuais.

Diante da grandeza da sua escassa obra e da diversidade da crítica, ao situar o poeta nesta ou naquela escola literária, não existe aqui propósito de fazer análise da obra de Raul de Leôni: com respeito e admiração reconhecemos não existir a menor possibilidade de alguém tentar fazer, em poucas palavras, um julgamento ou estudo crítico legítimo sobre a prosa, filosofia e poesia de Raul de Leoni.

A sua poesia embora contenha formas antigas e clássicas, é caracterizada por um imperecível espírito de modernidade, o que lhe assegura compreensão ilimitada e aperiódica, e o introduz na seleta plêiade dos poetas imortais.

Para melhor entendimento sobre a poesia de Raul é preciso voltar ao século passado, precisamente em 1922, quando publicou o seu livro clássico "Luz Mediterrânea", onde está a essência da sua poesia, (grande parte em sonetos decassílabos) no meio da "explosão" do modernismo no Brasil.

Já em 1919, segundo alguns críticos ainda sob a ascendência parnasiana, ele publicara o extraordinário poema "Ode a um Poeta Morto" em homenagem a Olavo Bilac.

Depois do acontecimento da "Semana de Arte Moderna", em 1922, os integrantes deste movimento, simpatizantes do "futurismo", do "dadaísmo", do "imagismo", do "surrealismo", do "ultraísmo" e principalmente do "concretismo", que segundo um dos seus mais importantes seguidores, Haroldo de Campos, "a melodia na música, a figura na pintura, o discurso-conteudista-sentimental na poesia são fósseis gustativos que nada mais dizem à mente criativa contemporânea", iniciaram, em São Paulo, e depois país afora, uma implacável crítica objetivando a destruição das "fórmulas já caducas" e "tradicionais" dos poetas parnasianos, simbolistas, românticos, e dos demais gêneros de poesia consagrados pelo tempo, logrando, extirpar, definitivamente, das letras brasileiras, os preceitos considerados "ultrapassados" pelo indeclinável julgamento modernista que havia no Brasil de então.

De todos os poetas brasileiros, de qualquer escola onde existissem regras poéticas, incluindo os independentes, o único que não sofreu sequer um sopro de menosprezo do assíduo fôlego da "corrente modernista brasileira" foi Raul de Leoni.

Seus sonetos, de métricas perfeitas, repletos de metáforas e de concepções filosóficas extraordinárias, corriam nos cadernos de poesia dos moços e moças da época, que compreendiam aqueles versos de palavras doces, que continham, ao mesmo tempo, tanta simplicidade e tanto esclarecimento.

Ao homem erudito a mensagem poética de Raul de Leoni causou, em todos os tempos, uma exclusiva distinção, pois que, se ao adolescente é de fácil entendimento, ao homem letrado dá o sinal da desmedida idéia que ele tinha sobre a profundidade dos mistérios da vida (ou das "cousas" da vida, conforme ele mesmo) porque, segundo alguns críticos, ele foi um profundo conhecedor da Alma Humana.

Rodrigo Melo Franco de Andrade, prefaciando "Luz Mediterrânea", único livro de verso do poeta, escreveu: "Para Raul de Leoni, as idéias representam seres vivos". (...) "Ele foi entre nós, e o foi com singular grandeza, o único poeta de emoção puramente filosófica".

Os seus sonetos "Ingratidão", "História Antiga" "Perfeição" "Legenda dos Dias" e "Argila", popularíssimos, de indizível simplicidade e de extraordinária beleza, estão entre os sonetos brasileiros mais importantes e imperecíveis.

Segundo Agrippino Grieco, em artigo sobre os inéditos de Raul de Leôni, o soneto "Ingratidão", um dos mais bonitos e singelos, foi casualmente encontrado, por Luís Murat, no álbum íntimo de poesias de uma encantadora dama dos meios sociais de Santa Catarina, com uma especial dedicatória do poeta, que já a havia esquecido.

A 1ª edição do "Luz Mediterrânea", de 1922, saída, em vida do autor, por ele mesmo organizada, começa com o poema "Pórtico" (onde ele se desvencilha, quase por completo, dos laços da influência do Parnaso brasileiro) e termina com o "Diálogo Final", tendo sido os "Poemas Inacabados" (que o poeta, ao pressentir a morte prematura, pediu para sua mulher queimar, e ela não compreendeu o seu pedido) que fazem parte da 2ª edição, e das edições seguintes, foram anexados ao "Luz Mediterrânea" pelos outros editores das mesmas.

O soneto "Argila", que muitos chamaram "Eufemismo", considerado um dos mais bonito da sua obra, não foi publicado antes por respeito que o poeta tinha pelos escrúpulos cristãos e religiosos de sua mãe, já que alguns de seus amigos, equivocadamente, achavam que o soneto tinha conotação pagã e erótica. Somente após a morte do poeta e da mãe, Dona Augusta Villaboim Ramos, e cessados os motivos para a publicação o soneto foi publicado.

Segundo Agrippino Grieco este soneto "todo brasileiro deveria saber de cor".

Após a sua morte em Itaipava seu corpo foi conduzido para Petrópolis, que lhe prestou suas últimas homenagens, sepultando-o à sombra do Cruzeiro das Almas, erigindo-lhe um mausoléu e dando o seu nome a um trecho da Rua Sete de Setembro.

Quase oitenta anos da sua morte e Raul de Leoni é venerado por seus inúmeros leitores, mas ainda não chegou às carteiras universitárias dos cursos de Letras do nosso pais, onde por mérito poético, e para o bem dos estudantes da poesia brasileira, já deveria estar presente, se algum outro, menos competente e mais favorecido, não estivesse ocupando o seu lugar
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Biografia de Raul de Leoni em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/06/raul-de-leoni-1895-1926.html

Fonte:
Colaboração de Antonio Manoel Abreu Sardenberg

XVI Jogos Florais de Curitiba (Classificação Final - Âmbito Estadual)


Tema IMAGEM (Líricas-filosóficas)

VENCEDORES

- A. A. de Assis (Maringá)
- Gerson Cesar Souza (São Mateus do Sul)
- Maria Lúcia Daloce (Bandeirantes
- Neide Rocha Portugal (Bandeirantes)
- Vanda Fagundes Queiroz (Curitiba)

MENÇÕES HONROSAS

- Maria Lúcia Daloce (Bandeirantes)
- Neide Rocha Portugal (Bandeirantes)
- Nei Garcez (Curitiba)
- Roza De Oliveira (Curitiba)
- Wandira Fagundes Queiroz (Curitiba)

MENÇÕES ESPECIAIS

- A. A. de Assis (Maringá)
- Amália Max (Ponta Grossa)
- Maria Da Conceição Fagundes (Curitiba)
- Vanda Fagundes Queiroz (Curitiba)
- Wandira Fagundes Queiroz (Curitiba)
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Tema PIJAMA (Humorísticas)

VENCEDORES

- A. A. de Assis (Maringá)
- Lucília A. T. Decarli (Bandeirantes)
- Luiz Hélio Friedrich (Curitiba)
- Maria Lúcia Daloce (Bandeirantes)
- Maurício N. Friedrich (Curitiba)

MENÇÕES HONROSAS

- Gerson Cesar Souza (São Mateus do Sul)
- Maria Aparecida Pires (Curitiba)
- Neide Rocha Portugal (Bandeirantes)
- Vanda Alves da Silva (Curitiba)
- Vanda Fagundes Queiroz (Curitiba)

MENÇÕES ESPECIAIS

- A. A. de Assis (Maringá)
- Istela Marina Gotelipe Lima (Bandeirantes)
- Neide Rocha Portugal (Bandeirantes)
- Nei Garcez (Curitiba)
- Wandira Fagundes Queiroz (Curitiba)

Fonte:
UBT/Curitiba

domingo, 25 de abril de 2010

Trova Triste - Ivan Augusto de Andrade Teixeira (Ribeirão Preto/SP)


Ivan Augusto de Andrade Teixeira, natural de Ribeirão Preto (11/8/47) morre, a 20 de abril de 2010. Professor e Técnico em Contabilidade pelo Colégio Amaro Cavalcante, sempre esteve envolvido com atividades sócio culturais. Como sócio fundador da União Brasileira de Trovadores, deixou boas trovas premiadas em concursos de diversas entidades trovadorescas. Foi sepultado no jazigo da família. Ivan Augusto era filho da profa. Ophélia e do trovador Nilton da Costa Teixeira.

Antonio Brás Constante (Ameaças Ameaçadoras por Telefone)



(O telefone toca).

- Alô?

- Escuta bem cara, nóis tamo com a tua filha aqui com a gente e se não rolar grana ela morre, sacou?

- Filha? Que filha? Quiçá em outrora eu ainda tivesse uma filha, mas expulsei aquela delinqüente de minha residência e da minha vida há meses.

- Não brinca, mané. Se tu não passar a grana, eu e meus mano vamo fazê ela. Tá me entendendo cumpadi?

- Se vocês forem “fazer” ela, aconselho que tomem cuidado. Ela fazia ponto na esquina aqui de casa sabiam? Um escândalo. E este foi apenas um dos motivos pelos quais eu a expulsei daqui...

- Então tá, ô esperto. Se tu não tem apego com a tua filhota, nóis vai acha tua esposinha e judiar dela. Que tal? Agora tu vai colaborar?

- Se acharem, podem ficar com ela. Mas prometam que vão judiar bem dela. A ordinária fugiu com nosso vizinho Edward, levando todas as economias que tínhamos no banco, em conta conjunta. Eu nunca pude me vingar do que ela fez. Se pegarem os dois, posso até tentar arrumar algum dinheiro para vocês, mas tem que me garantir que vocês vão torturar aqueles desalmados com vontade.

- Olha aqui Sangue bom, vamo fazê melhor então. Nóis vamo toca fogo na tua baiúca e ver se tu ri disso, que tal?

- Prometem que fazem isto? Seria fantástico, já que a casa está no seguro. Se queimarem ela, que por sinal foi hipotecada pela safada da minha “ex”, vão estar me fazendo um bem enorme...

- Malandro, tu ta tirando onda com a nossa cara. Saca só, nóis vai te pega e mete três azeitona nas tuas fuças, te borda na bala, tá ligado?

- Eu... Depois de tudo que aconteceu, estava pensando em me matar mesmo... Só não tive coragem de cometer tal ato de suicídio, e aplacar esta dor atroz que esmaga meu coração... Vocês fariam isso por mim?

- Caramba, Zé ruela! Tu não te sensibiliza com nada? A gente até ia desistir de te amolar, mas não podemo deixa barato assim. Vamo te que se vinga de ti cumpadi.

- E como pretendem fazer isto, seus bárbaros execráveis e sem cultura? Façam o que quiserem. Sou um ser amargurado pela mordaz crueldade do destino. Um arremedo humano que não liga mais para nada...

- Vamo vê se tu diz isto depois que a gente largar a “encomenda” aí no teu colo.

- Que encomenda?

- Tua sogra reclamona e teu cunhado bebum, seu mané. Nóis seqüestrou ele e a velha, mas não quis abrir o jogo logo de cara, pois achou que tu não ligava muito pros dois. Mas depois de passar um tempo com eles aqui no cativeiro, a gente se ligou do castigo que os dois são, e resolvemo entrega eles ai bunito, e é o que vamo fazê agora.

- NÃO, eles não! Quanto dinheiro vocês querem para ficar com os dois?

- Esquece brou. O lance agora é pessoal. Daqui a pouco tamo largando eles aí pra morar contigo.

- Não, isso não! Tenham um pouco de humanidade, de compaixão, de clemência, por favor, Não! NÃO! NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃO!

Fonte:
Colaboração do autor.

Nilto Maciel (Aqueles Homens Tristes)


Deitou-se ao lado da mulher, como se preparasse para morrer, sem uma palavra, um gesto de carícia, qualquer menção de repetir cotidianas cenas de brutalidade e desejo. Fechou os olhos e imobilizou-se. Queria apenas pensar, pensar ilimitadamente, desprender-se de todos os laços palpáveis de seu conhecimento, perder-se por corredores e labirintos, por horizontes e profundezas. Desordenar as coisas, as pessoas, o mundo. Fazer redondos os quadrados, aparar arestas, encrespar as formas planas, reduzir a montículos as grandes montanhas, agigantar-se. Como em noites idas.

Não conseguia compreender como e por que tudo se deformava e nunca teve coragem de contar nenhuma de suas descobertas a ninguém. A não ser as mentiras menos assombrosas: aquela porção de frutas amontoadas, a paulada na cabeça de fulano, a tempestade, os monstros. Umas já se haviam perdido no tempo ou tinham ocorrido com outras pessoas. Às vezes discutiam, se ameaçavam e até se matavam, raivosos, incapazes de ouvir tantos disparates, insultos, desafios.

E a mulher, os filhos, os companheiros de caça, o resto será que não saía, um pouquinho só, além dos limites da mesmice? Ou também sentiam medo de contar novidades?

De noite, depois de fechar os olhos, entregar-se ao invisível, tudo virava de cabeça para baixo, transformava-se, confundia-se. A mulher se fazia outra, os filhos morriam, sumiam, se batiam contra feras. Os bichos se devoravam, violentos, estraçalhavam-se, sangrentos. Muitas águas, muito fogo, ventanias de arrastar homens e animais. E nada era verdade, quando não era mentira. Sua mentira.

Não, talvez não fosse bem assim. De dia, os olhos viam o mundo e o mundo existia. De noite, os olhos de dentro viam o mundo, porém um outro mundo.

Abriu os olhos, levantou-se, suado e trêmulo, e olhou para as estrelas que piscavam no céu e para o fogo que ardia ao redor das cabanas. A mulher dormia, os filhos dormiam, todos dormiam. Deu dois passos, escutou o grito dos bichos e sentou-se numa pedra. Aonde andavam as milhares de pessoas de minutos atrás? Onde estavam aquelas construções enormes, feito cabanas sobre cabanas? E os objetos que se locomoviam, feito tartarugas de rodas, a conduzir gente, às carreiras? E os outros que voavam, feito pássaros? O que fazia tanta gente ajoelhada, diante de imagens de barro e homens que falavam de “morada do céu”? E por que quase todos não paravam de suar, o dia todo a derrubar árvores, cavar o chão, lavrar a terra, bater ferros, sob as ordens de uns poucos? Que diabo significavam pedaços de papel coloridos e numerados que aqueles recebiam dos chefes e trocavam por comida, roupa, objetos variados de propriedade dos mesmos chefes?

O sol se anunciou vermelho e encantatório por detrás das montanhas. E se lá vivessem aqueles homens tristes?

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contos Reunidos vol.1. Porto Alegre: Bestiário, 2009. p.14.
- Imagem = http://sequicosacro.blogspot.com/

Folclore Indigena (A Mandioca)



Lenda Baré

A filha de um poderoso tuxaua (chefe) foi expulsa de sua tribo, por ter engravidado misteriosamente. Foi viver em uma velha cabana distante. Parentes iam levar-lhe comida para seu sustento. E, assim, a índia viveu até dar a luz a uma linda menina, muito branca, que chamou de Mani.

A notícia do nascimento espalhou-se por toda aldeia, fez o grande chefe esquecer os rancores e, cruzar os rios, para ver sua filha. O avô se rendeu aos encantos da criança que se tornou muito amada. No entanto, ao completar 3 anos, Mani morreu de forma misteriosa, sem nunca ter adoecido. A mãe ficou desolada e sepultou a filha de acordo com o costume, no meio da oca. Ao amanhecer, viu uma plantinha brotar da terra que molhara com suas lágrimas. A plantinha começou imediatamente a crescer e furou o teto da oca, onde floriu e deu pequenos frutos.

A tribo acorreu, maravilhada. Ao revolverem a terra, observaram que a planta saía do ouvido de Mani e mostrava raízes grossas e brancas em forma de chifre. “Manihua!" exclamaram os índios. Então, muitos passarinhos vieram, comeram as frutinhas e saíram semeando a maniva (manihua). Os pássaros de goela branca semearam a maniva branca e os de goela amarela, a maniva amarela. A raiz por ser semelhante a um chifre (aca), foi denominada mandioca (manihuaca).

Lenda Tupi

Há muitos anos passados apareceu grávida a filha de um cacique. Querendo punir o autor da infelicidade de sua filha, o cacique usou de todos os meios para saber quem havia sido o autor da desonra de sua filha que, apesar dos castigos recebidos, nunca disse quem lhe havia tirado a virgindade e que também nunca havia mantido relações sexuais com nenhum homem. O pai resolveu, então, matar, sacrificar a filha, quando, num sonho, lhe apareceu um homem branco que lhe disse para não matar a moça, que ela era inocente. Passados os nove meses nasceu uma menina muito bonita e, para surpresa de todos, de cor branca. A menina que recebeu o nome de Mani, morreu após um ano sem haver adoecido nem sofrido nenhuma dor. Mani foi enterrada na sua própria casa e, de sua sepultura, nasceu uma planta que, por ser desconhecida, nunca foi arrancada. Um dia, a sepultura se abriu e, nas suas raízes, brancas como Mani, os indígenas encontraram alimento para matar a fome. Mandioca, na língua tupi, vem de Mani-oca, que significa casa de Mani. (Dicionário de Folclore para Estudantes)

Lenda Apurinã

Saíra, a filha do chefe Cauré, era a mais bela da tribo. Um dia, porém, ela engravidou sem ter sido dada em casamento a nenhum guerreiro. O desgosto de Cauré foi imenso. Chamou a filha e questionou-a sobre o pai da criança. Saíra emudeceu. A decisão de Cauré foi inexorável. Ela seria banida da tribo e viveria confinada em uma oca no centro da mata. Ela deu a luz a uma linda menina de pele alva e olhos azuis. Ao ver a beleza da neta, Cauré caiu de amores pela menina. Regressou para a tribo com a filha Saíra e a neta Mani. No entanto, ao completar 4 anos, a menina morreu de forma misteriosa. Era costume da tribo Ipurinã cremar seus mortos mas, desolado, Cauré quebrou a tradição e enterrou Mani na entrada de sua oca. Passaram-se quatro luas e da terra em que Mani foi enterrada nasceu uma planta que, depois de um certo tempo, desnudou-se das folhas. Cauré julgava que as folhas fossem eternas e ficou triste pois a planta havia morrido. Resolveu arrancá-la e, ao fazê-lo, viu surgir, à guisa de raízes, grandes tubérculos radiculares. Curioso, resolveu mordê-la e, ao mastigá-la, achou-a deliciosa. Desde então a mandioca passou a ser um importante alimento para os índios.

Lenda Pareci

Zatinaré e sua mulher, Kokoterô, tiveram dois filhos: Atiolô e Zokooiê. Atiolô era menina. Por esta razão o pai não lhe dava a menor importância; tratava-a displicentemente e, se ela dizia alguma coisa, respondia-lhe assobiando. A pobrezinha não se lembrava de uma só vez que tivesse obtido dele uma resposta em palavras. Por isso, vivia triste e acabrunhada, pelos cantos da ocara; não sorria, não brincava... Um dia, tomou uma resolução. Foi a sua mãe e pediu-lhe que a enterrasse viva:

"Talvez desse modo, mamãe, eu possa fazer algo de bom por nosso povo."
"Não fales assim!" Replicou a mãe, aterrorizada com a idéia. "Tremo só de pensar..."

Finalmente, após vários dias de insistência, Atiolô conseguiu convencê-la. A mãe tomou a filha e levou-a até um cerrado. Sepultou-a ali. Mas o sol estava muito quente. A menina sentia muito calor. Queria outro lugar. Novamente, tomou-a Kokoterô; desta vez, escolheu o campo, aberto e de capim verde e macio. Enterrou-a. O calor, porém, era ainda maior. Atiolô não quis ficar ali. Enfim, acharam um bom local. Era o bosque, escuro, silencioso, calmo. Lá, a menininha não sofreria; lá poderia descansar sossegada. Atiolô rogou à mãe que se afastasse. Atendendo-a, a mulher foi-se retirando. Contudo, não pode resistir e voltou-se. Do túmulo, saía uma plantinha que ia crescendo vagarosamente. Correu para a sepultura; a plantinha diminuiu.

Desde esse dia, começou a tratá-la. Todas as tardes, regava-a com água fresca. A arvorezinha desenvolveu-se. Passaram-se várias luas. Quando ninguém esperava, um grito irrompeu do solo. A índia tremeu de medo. Agarrou o arbusto pelo caule e arrancou-o. Que surpresa! A raiz era grande e grossa; a casca era morena, da cor da pele das jovens da taba; a polpa era branca e gostosa. Kokoterô colocou-a nas costas e carregou-a para casa. Mostrou-a aos índios. Estavam todos espantados.

"Nunca vimos isso antes!" Diziam uns para os outros. Provaram-na e gostaram. Era a mandioca, um dos melhores alimentos que tem os índios até hoje. Eis porque a mandioca não cresce bem no campo ou no cerrado. Prefere sempre a sombra da floresta.

Lenda Bakairi

O veado foi beber água e o peixe bagadu (pirara), espécie de bagre brasileiro comum nas Amazônia, que estava preso num regato quase seco, pediu-lhe ajuda: "Faz uma corda de embira e puxa-me até o rio." Lá chegando, o peixe convidou o veado para ir até sua casa no fundo do rio, onde lhe serviu mingau (pogü) e beiju.

O veado, que desconhecia aquelas iguarias, ficou encantado e o peixe levou-o até sua roça de mandioca. Quando o veado foi embora, o peixe presenteou-o com mudas de mandioca, para que as plantasse também. Em casa, o veado fez uma roça de mandioca. E, tornou-se o senhor da mandioca, pois só a sua família a consumia. Um dia, Keri o encontrou e pediu-lhe mandioca. O veado negou, Keri ficou bravo, segurou o veado pelo pescoço e assoprou na sua cabeça, onde surgiu uma galhada. Keri levou a muda de mandioca, deu de presente as mulheres Bakairi e mostrou-lhes, conforme o veado lhe ensinou, o que deviam fazer para não morrer com o veneno.

Fonte:
http://www.lendorelendogabi.com/

Viviane Tremeia (Num Porto Qualquer)


(Conto classificado em terceiro lugar no Prêmio Escriba de Contos 2009)

Tem os olhos fixos num lugar qualquer. Os cabelos opacos, o rosto pálido levemente inclinado para os pés que se mexem vagarosamente, sem parar. Não se ouve um ruído, e a pouca luz que entra pela porta não alcança a poltrona que fica ao lado da cama onde ela tem passado os dias. O que eu faço? Como tirá-la dessa inércia sem tamanho? Desde que este quarto passou a ser o único lugar que existe, ninguém mais acessou o seu humor, nem quase tudo o que lhe fazia ser quem era. Desde o olhar generoso, o riso solto, as palavras certas, aos gestos mínimos como o de abanar as mãos para diminuir nossos problemas ou de empunhar os braços para nos dar uma bronca. Eu fecho os olhos e ainda consigo vê-la caminhando rápido entre uma peça e outra da casa. Ouço os gritos vindos da cozinha quando ela resolvia se enfurecer com o papagaio, presente de grego da minha avó paterna, ou a boa gargalhada quando não cabia de alegria por estar simplesmente viva. Já faz algum tempo que isso tudo seria para sempre. Por uma fresta de intenção, ainda consigo ver minha mãe de ontem nesse pouco dela de hoje que faço força para reconhecer.

Os dois eram inseparáveis. Meu pai sempre fora o porto seguro, o ferrolho, a mão quente, forte e alerta. Ela, um pássaro feliz, que rodopiava pelos caminhos dele como se enfeitasse e colorisse. Um dia, lembro-me de ter entendido o sentido de cumplicidade ao vê-los caminhando pelo jardim da nossa casa. Conversavam baixinho para que não ouvíssemos a conversa. Um parava para podar um galho seco, o outro acompanhava com os olhos admirando o gesto. Meu pai gostava de mexer com carros antigos. Era engraçado vê-la admirando um motor 250-S, como se
realmente a interessasse. Formavam uma dupla e tanto. Não era raro vê-los olhando longamente um para o outro, como se falassem sem o uso das palavras. Minha mãe tinha o poder de alegra-lo. Ele, o dom de aninha-la e adorna-la. Ambos, a sabedoria de serem felizes.

“Verônica, que loucura é essa agora. O que tu estás fazendo?” Foi a única vez que o vi levantar a voz para ela. Enquanto gritava, minha mãe rasgava cada uma das fotos que eles haviam recém trazido da última viagem de férias. Chorando em desespero, com raiva transpirando pelos punhos, ela murmurava quase como num transe que não aceitaria de jeito nenhum. Que deveria ser um equívoco, que não poderia ser verdade. Concentrada na tarefa, ela não vira que todos nós na sala estávamos aturdidos pela cena. Meu pai constrangido se movia em vão de um lado para o outro como se entendesse o que se passava, mas não quisesse nos dizer.

Aquele episódio foi apenas o primeiro de uma sequência de vários bem estranhos, carregados de angústia e incompreensão. Passamos a vê-la falando sozinha pela casa, fitando, por tempos, o pátio dos fundos pela janela da cozinha. Percebemos o descuido com as roupas que usava e evitava qualquer tentativa de conversa que fazíamos.

“Próstata, meus filhos. Estou com câncer de próstata”. Repetia nosso pai completamente arrasado pela notícia. Esfregando as mãos pesadas no cabelo ralo e grisalho e sem coragem para nos fitar os olhos, seu corpo foi se encolhendo e um homem impotente e desatinado surgiu em nossa frente. Era isso. A insistência o fez confessar. Nenhum de nós aguentava mais assistir nossa mãe desaparecendo de si.

Corri para abraçá-lo. Seu choro fora inédito. A estranheza, absoluta e, como um susto, tudo mudara diante de nós. Incólume, a certeza de que jamais seríamos os mesmos e entre nós um olhar conivente de quem busca uma saída.

Ele nunca adoecia. Lembro da mãe me dizendo: “Juliana, tu devias ter puxado ao teu pai, igual ao Murilo”, meu irmão mais novo. “Estás sempre doente, menina!” Já o Tiago, o irmão do meio, era como eu. Qualquer resfriado era motivo para gazear aula. O nosso pai não. Não havia o que derrubasse o homem. Sim, a doença fatal era descabida, um desaforo.

O médico lhe dera um prognóstico vago. Tudo dependeria do tratamento. Meu pai ergueu-se num pacto particular impressionante. Dispondo-se a enfrentar a morte, a dor, a doença. Minha mãe não. Irônica e lentamente como um câncer, a doença dele a consumia, levando-a para longe de nós, para um porto qualquer de endereço desconhecido.

Os dias transformaram-se em meses que tornaram-se anos e minha mãe jamais voltou.
Não houve sequer um especialista que não tivéssemos procurado para tentar resgatá-la.
Assistimos, em pânico, o abandono de si mesma, como um mistério silencioso e cruel.
Num domingo desses, peguei os dois caminhando no pátio como nos velhos tempos.

Meu coração se encheu de esperanças. Meu pai acariciava a cabeleira desajeitada de minha mãe, enquanto a consolava do seu pavor sem volta. Sim, era assim que chamávamos o que nós víamos. Ela não reagia. Via-se que o desvio pego por ela já havia sido por demais percorrido. Os olhos ternos do meu pai clamavam por uma reação. Mostrava-se forte, com a vivacidade que sempre nos balizou. A doença dormia no corpo dele, os sinais eram de um homem absolutamente saudável. Ela, nunca mais voltara.

Estico os lençóis ainda quentes, abro a janela do quarto, olho para ela o mais fundo que consigo pelo tempo que ela me permite. Com meus braços em seu contorno, me faço presente. “Mãe? Fala comigo. Onde te encontro, mãe? Em que porto te perdeste?”

Cinco anos se passaram desde o anúncio da doença do meu pai. Ela pisca os olhos em resposta e um sorriso seu, de canto de boca, me acende.

Fonte:
Grupo Oficina Literária de Piracicaba. http://golp-piracicaba.blogspot.com/

Durval Mendonça (Trovas que eu Dou à Vida !) Parte III


IN MEMORIAM a Renato Vieira. da Silva
Vai, Poeta, deslumbrado,
tu que soubeste entendê-las,
buscar no céu constelado
tua coroa de estrelas!

Exausta de solidões
de um céu escuro e vazio,
a lua busca emoções
no leito alegre do rio.

Quando, amorosas, nos pisam,
em sublime ditadura,
as mulheres escravizam
com desumana ternura.

Essa ternura em teus lábios,
quando me beijas, querida,
faz-me esquecer os ressábios
dos lábios frios da vida.

Chopin!... A tarde morrendo...
Prelúdios tristes, sombrios,
como lágrimas correndo
daqueles dedos esguios...

Rosas rubras, amarelas,
rosas de todo matiz,
não sois, por certo, mais belas
do que a Rosa que me quis.

Na estrada de Samaria,
por um gesto de bondade,
um homem bom construía
a própria imortalidade.

Nossa estória - grande anseio
de coisas inatingidas;
romance deixado a meio
no meio de duas vidas...

Vai a lua em serenata
pela noite andando ao léu,
triste boêmia, de prata,
pelas esquinas do céu.

O nome - por que dizê-lo?
da mulher, hoje esquecida.
Foi sonho... Foi pesadelo?
Ou, talvez, a própria vida?

Dois destinos paralelos,
na trilha de um só desejo,
são duas linhas de anelos
que se tocam pelo beijo.

Pelada, aos gritos, na rua...
Vidraça que se estilhaça...
"A minha, não, é a tua!"
E depois... a infância passa.

Pelo terror que a sublima,
pela incerteza que lança,
vejo a Rosa de Hiroshima
como a Rosa da Esperança...

Sentadinha aí defronte,
professorinha, conduzes
para as luzes do horizonte
meu horizonte sem luzes.

Com humildade e paciência,
como juncos eu me inclino
para abrandar a inclemência
dos vendavais do destino.

Quando uma lágrima desce
dos teus olhinhos levados,
Deus, no céu, sorrindo esquece
de castigar-te os pecados.

Sertanejo amargurado,
teu triste olhar me comove,
quando te vejo ajoelhado
pedindo chuva e não chove.

Teu amor - minha utopia ...
Esfinge dos meus fracassos ...
Pedaço de fantasia,
que se desfaz em pedaços.

Maroto, o sol se deleita
sobre o mar lá no horizonte:
um olho rubro que espreita
a praia nua defronte.

Em meu caminho sem luz,
sem pousada, sem roteiro,
eu não carrego uma cruz,
eu sofro um calvário inteiro.

Bateram, fui ver. À toa...
Ninguém bateu... Ilusão!
Deve ter sido a garoa
fugindo da solidão.

A lágrima, companheiro,
que reflete minha mágoa,
parece mais um braseiro
que uma simples gota dágua.

Alta noite... Um sino plange...
No espaço, a lua silente
traz a arrogância do alfange
no lirismo do crescente.

Quando meus sonhos dispersos
o luar envolve e conduz,
eu me ponho a fazer versos
bebendo taças de luz...

De mãos dadas, lentamente,
vamos indo, aí, à toa...
Garoa molhando a gente...
Que bem me importa a garoa!...

Ah, como são transitórias
minhas raras alegrias!
Elas me vêm de vitórias
num mundo de fantasias.

Às vezes, a conjuntura
faz covardes destemidos.
Eu já vi muita bravura
por privação de sentidos.

As vitórias que eu consigo
neste mundo de ilusões
vêm, por certo, dos perigos
que transponho aos trambolhões

Desprezando minhas queixas,
passando de andar felino,
deixas no rastro que deixas
o rastro do meu destino.

Um burro, ao filho imprudente,
ajuda, num bom conselho:
- Olha, filho, muita gente
não te serve como espelho...

Como é belo, à luz mortiça
do dia, quando desmaia,
ver o mar, que se espreguiça,
rolando, em ondas na praia

Vale de lágrimas, eis
o mundo que nos foi dado...
Tantas regras, tantas leis,
e... cada vez mais errado!

Destino, que a gente inculpa
e nos livra de embaraços,
em ti jogamos a culpa
dos nossos próprios fracassos.

Teu beijo tem tal ternura
e tal calor aparenta,
que sua temperatura
deve andar pelos quarenta.

Engraçado, mas profundo,
não sei se já percebeste:
hoje, as almas do outro mundo
têm medo das almas deste.

Este sorriso em meu rosto
é, por estranha ironia,
mais filho do meu desgosto
do que de minha alegria.

A gente vê a poesia
mais natural e mais pura,
quando a rês, lambendo a cria,
dá-lhe um banho de ternura.

Chuva que empoça no chão
e depois, em mudo anseio,
mostrando ter coração,
reflete o céu de onde veio.

Chica da Silva amorosa,
crioula terna e gentil,
canela tingindo a rosa
numa florada de abril!

Maria gosta de beijo
e diz que sente vergonha.
Maria, pelo que vejo,
tem é medo da cegonha.

0 meu barraco é tão pobre,
que a verdade, nua e crua,
é que meu corpo se cobre
com o manto branco da lua.

Sempre justa e compassiva,
sua vida foi tão breve...
Quando Mamãe era viva,
minha cruz era mais leve.

Garoa - tédio que desce
maçante, fina sem dó...
De tão miúda, parece
que é chuva desfeita em pó...

Quando uma lágrima aflora
em teus olhos muito azuis,
vejo a beleza da aurora
nessa gotinha de luz.

Chico-Rei, tua ternura
por teus irmãos de senzala,
a História, mística e pura,
fez justiça em exaltá-la.

Pela vida a gente avança,
não vamos sós, na verdade;
a nosso lado a esperança
vai arrastando a saudade.

Este amor que me ofertaste
e, comovido, eu aceito
é pedra de luz no engaste
da jóia que tens no peito.

Teu beijo é o determinismo
de milênios num segundo;
sensação rósea de abismo...
e o paraíso no fundo.

Hoje, triste, no meu canto,
revejo minhas memórias
e surpreende- me este pranto,
banhando antigas vitórias.

Se eu pudesse a meu destino,
dar um destino a meu jeito,
o meu mundo de menino
jamais seria desfeito.

Penetrantes, importunos,
belos no verde invulgar,
tens olhos são dois gatunos
das esmeraldas do mar.

Por que minutos felizes,
inconsequente, me furtas,
quando tu mesma me dizes
que as horas boas são curtas?

Saudade, mágoa feliz
que vive em nossa lembrança;
tristeza que se bendiz,
quando se tem esperança.

A vida tem seus volteios:
ora sobe, ora é descida
e arrasta nos seus rodeios
os sem-destino da vida.

Na incerteza dos caminhos,
eu, de revés em revés,
vou arrancando os espinhos
que vão ferindo meus pés.

Em nossa casa singela
do meu tempo de criança,
minha mãe vinha à janela
esperar sua esperança.

Fonte:
– UBT Juiz de Fora

Aparecido Raimundo de Souza (Mula sem cabeça)



Dona Glória bate desesperadamente à porta do quarto de seu filho Fumarato. Não é a primeira vez que o faz. Está preocupada, impaciente, temerosa. Grita para se fazer ouvida:

- O que faz aí trancado, meu filho?

Fumarato em meio a desordem que reina lá dentro, responde, aos berros:

- Estou brincando, mãe.
- Brincando com quem, ou com quê?
- Sozinho.
- Que barulho estranho é esse?
- Não estou ouvindo nada.

À medida que mantém o diálogo, dona Glória insiste com as pancadas. A palma de sua mão inchou e uma vermelhidão muito forte tomou o lugar da cor natural.

- Destranque e venha lanchar. Cetotifeno, seu coleguinha, se abancou à mesa e lhe espera.
- Já vou, mãe, já vou.

A zoada persiste veloz como um tufão que se realça. Parece um ritual macabro. A impressão de dona Glória é a de que alguma coisa sofre horrores nas mãos do menino. O que ela ouve se assemelhava a grunhidos, urros e relinchos de dor e agonia entrecortados, como se um animal indefeso tivesse sendo barbaramente espancado. Mas impossível. O quarto de Fumarato fica no oitavo andar de um prédio de apartamentos. A janela do garoto media com a de outro edifício, de forma que não assiste razão para qualquer pessoa normal aceitar a idéia de que lá dentro tenha sido introduzido um animal, qualquer que seja o tamanho dele. Ademais, não existe como. Além da portaria não permitir, ela ou a empregada teriam se dado conta e brecado. Que alguma coisa diferente se metera lá dentro, não havia mais duvidas. Os estrondos produzidos não deixavam margens a dúvidas. Dona Gloria não ficara louca, Dorinha e Cetotifeno igualmente ouviam os urros e os chiados, sem, no entanto, identificarem sua possível origem. O que mais intrigava: Fumarato não possuía computador, nem aparelho de tevê. Aquele barulho inexplicável não advinha de nenhum jogo caseiro conhecido, menos ainda de um aparelho eletroeletrônico ligado.

- Abra Fumarato.
- Calma mãe!
- Cetotifeno está aqui. O café foi servido. Dorinha trouxe pão quente e a manteiga que você gosta. Venha, filho. Está me ouvindo?

Ouvindo Fumarato certamente estava. E bem. No entanto, alguma coisa fora dos padrões normais rolava à solta. A voz do guri, ora sobressaia aos relinchos, ora sumia de vez. Às vezes a balburdia aumentava de intensidade, outras cessava misteriosamente. Dona Glória não desistia e parecia cosida a parede.

- Filho, pare com essa bagunça.
- Que saco mãe! Vê se me erra.
- Cetotifeno vai subir pra casa dele. Não faça desfeita ao seu colega.
- Não faça o que, mãe?
- Desfeita, filho, desfeita.

Dona Glória se afasta, tolhida por forte indisposição que a invade. Pede socorro a empregada, sem esmiuçar os comentos malévolos que assaltam seu espírito. Dorinha acode e volta à carga pancadeando a porta com mais intensidade.

- Pó, qual é, mãe. Já vou...
- Não é sua mãe, sou eu, Dorinha.
- Me esquece, cara. Vá lavar as loucas.
- Que diabos acontece ai?
- O que você acha?
- Se eu soubesse alguma coisa não te perguntaria. Vamos, fale comigo. O que se passa?
- Dorinha, você não vai acreditar.
- No que não vou acreditar? Tente?
- Pintou aqui no meu quarto uma mula...
- Uma o quê?
- Uma mula.
- Faça me rir, garoto. Saia para o café. Deixe de pilherias. Você está bem grandinho para essas criancices. Vamos, abra...
- Assim que eu der cabo da mula...
- Só falta você me convencer de que essa mula é sem cabeça...
- Pêra ai, Dorinha. Como sabe?
- Adivinhei. Agora saia. Tenho mais que fazer. Preciso limpar seu quarto.

Dona Glória se prostra a porta. Junto dela, Cetotifeno.

- Filho, se não sair daí, interfonarei para a portaria.

Faz um gesto a Cetotifeno para que a ajude e intervenha. Cochicha com o moleque algumas palavras. O guri aquiesce e repete a história de providenciar reforços.

- Fumarato, sua mãe vai mandar subir a galera. Se eu fosse você caia fora daí agora. Abre ai, ô mané! Vou rachar no trecho. Qualé a sua, mano!
- Assim que acabar com a mula sem cabeça eu saio.
- Pirou, meu?
- Não.

As tentativas restam, por fim, infrutíferas. A contenda segue indiferente as batidas e as súplicas dos mais chegados. O subsíndico chega acompanhado com dois funcionários da administração. Os petitórios para que Fumarato deixe o quarto são redobrados. Nada. Dona Glória decide, então, pelo arrombamento. A ninguém mais interessa aquele estado de intranqüilidade. O pessoal põe a porta ao chão. A cena que surge, entrementes, é violenta e brutal. Assas incrédula e chocante. Fumarato está montado, a cavaleiro, sobre o lombo de um bicho enorme, que jaz estirado. Em volta, sangue por todos os lados respingados pelas paredes e móveis. Uma mancha se estende pelo chão e se transforma num desenho de dimensões grotescas escorrendo para o lado onde fica a cama. A cortina é aberta e a janela escancarada. Um “Meu Deus, que horror!” uníssono se faz ouvir em meio a uma onda de terror e ceticismo. A galera petrifica as feições. Dona Glória desmaia. Dorinha lhe segue os passos e vomita as tripas. Cetotifeno sai correndo em desabalada carreira. O pessoal do socorro acode com álcool e massagens. Fumarato realmente havia acabado de matar uma mula. Uma mula enorme. E sem cabeça.

Fonte:
Colaboração do autor.