sexta-feira, 14 de maio de 2010

Maria do Carmo Ferreira (Retrato Falado)


(para o Targos, in memoriam)

Cachorrinho peralta
de onde vem você
sem fada-madrinha
sem anjo-da-guarda
sem estrela-guia
sem breve & brevê?

Cachorrinho pernalta
tipo S.R.D.
mais pra vira-lata
que pra pequinês
e a cauda emplumada
em chapéu tirolês.

Cachorrinho pintado
a dedo a pincel
preto branco preto.
Onde a tinta acaba
como sobrancelhas
dois pingos de mel.

Cachorrinho da breca
treloso malcriado
travesso fujão.
Tão sem cerimônia
me abanando o rabo.
Tão sem proteção.

Cachorrinho frajola
todo serelepe
sem isto de medo.
Num salamaleque
saltou da coleira
mais ágil que coelho.

Cachorrinho risonho
como aconteceu?
Não foi de verdade
(nem passa por sonho)
foi tão de repente
(mentira, eu abono!)

que você morreu!

Fonte:
"Jogos Florais & Animais" (livro infantil de poemas) in http://www.blocosonline.com.br/sites_pessoais/sites/lm/cao/lmcpo05.htm

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Martha Medeiros (Saudade)

Fonte:
Foto e montagem de José Feldman

Raduan Nassar (Aí pelas Três da Tarde)


(para José Carlos Abbate)

Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo, aplicando-se em idéias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares a sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo "ciao" ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o decoro (o seu decoro, está claro), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome em seguida no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado) e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá ao fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.

Fonte:
NASSAR, Raduan. "Menina a caminho", Companhia das Letras - São Paulo, 1997.

Raduan Nassar (1935)



Raduan Nassar nasceu em 27 de novembro de 1935, em Pindorama, cidade do interior do Estado de São Paulo, filho de João Nassar e Chafika Cassis. Seus pais haviam se casado em 1919 na aldeia de Ibel-Saki, no sul do Líbano e em 1920 imigraram para o Brasil. Seu pai junta-se a parentes que já estavam aqui e se inicia no ramo do comércio, no interior do Estado do Rio de Janeiro. Em 1921 mudam-se para a cidade de Itajobi, no Estado de São Paulo.

Mudam-se, em 1923, para Pindorama, cidade vizinha de Itajobi, e lá seu pai abre uma venda, que posteriormente seria transformada em uma loja de tecidos, a Casa Nassar.

Pelas mãos da parteira Rosa Conca, na casa da família em Pindorama (esquina da Rua 15 de Novembro com 1º. de Maio), nasce Raduan, sétimo filho de João e Chafika (antes, haviam nascido Violeta, Rosa, Norma, Uydad, Raja e Rames; depois viriam Rauf, Leila e Diva — todos ainda vivos.

Em 1943 o autor inicia seus estudos no Grupo Escolar de Pindorama. Expansivo e de ótima memória, Raduan é freqüentemente chamado para recitar poesias nas datas comemorativas, mesmo com sua dificuldade em pronunciar corretamente o "r" fraco. Segundo ele, neste ano tem "uma das melhores alegrias da infância" de que se lembra, ao ganhar um casal de galinhas-de-angola do pai.

Torna-se coroinha em 1946, após dois anos do início de sua fase de fervor religioso que o levava a ir à missa todos os dias para comungar. Neste ano, sentado na varanda de sua casa, livra-se definitivamente do "trauma" do "r" fraco, ao tentar decorar o Hino à Bandeira (cantando inúmeras vezes o verso "Salve lindo pendão da esperança").

No ano seguinte inicia o curso ginasial na vizinha cidade de Catanduva e começa a trabalhar com o pai. Para facilitar a ida dos filhos à escola, João Nassar muda-se com a família para Catanduva em 1949. Nesta época Raduan tem uma coleção de pombas — que foram citadas em seu romance Lavoura Arcaica — que acabará deixando em Pindorama quando da mudança.

Em 1950, durante uma aula na quarta série do ginásio, Raduan sofre a primeira das sete convulsões que sofreria nos dois dias seguintes. O diagnóstico alarmista e incorreto de um médico — que chegou a mandar isolar sua casa — seus pais decidem levá-lo para São Paulo em um avião-ambulância. Lá é tratado por um neurologista, tendo retornado da crise com amnésia parcial e passa a ter um comportamento introvertido. Debilitado, não consegue concluir o ano letivo.

No ano seguinte reinicia seus estudos, tendo como professora de português sua irmã Rosa. Orientado por ela, começa a ler clássicos brasileiros como parte do currículo escolar. Com sua assistência também, faz consideráveis progressos no aprendizado da língua, em âmbito familiar.

Em 1952 inicia o curso científico em Catanduva, ao mesmo tempo em que começa a criar peixes em um tanque que ele mesmo constrói no quintal de casa.

Buscando sempre facilitar a vida escolar dos filhos, João Nassar resolve transferir-se para São Paulo, em 1953. A família se instala no bairro de Pinheiros, zona oeste da capital paulista, na Rua Teodoro Sampaio, 2.173. No mesmo local, João Nassar abre um armarinho, o Bazar 13, que anos depois viria a se tornar uma empresa comercial de expressão naquela cidade. Raduan trabalha ao lado do pai durante o dia e conclui o segundo ano do científico no curso noturno do Instituto de Educação Fernão Dias Pais, situado também em Pinheiros.

No ano seguinte troca o científico pelo curso clássico, mais voltado para a área de Ciências Humanas, e conclui o colegial na mesma escola.

Em 1955 ingressa ao mesmo tempo na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e no curso de Letras Clássicas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP). No segundo semestre abandona o curso de Letras. No curso noturno de Direito, conhece Hamilton Trevisan, procedente de Sorocaba (SP), e com aspirações literárias.

No segundo ano, Trevisan apresenta o escritor a Modesto Carone, outro sorocabano, que acabara de ingressar na Faculdade de Direito. Modesto também tinha projetos definidos no terreno da literatura. Como Raduan já começasse a manifestar suas primeiras preocupações nesta área, as conversas entre os três passam a ser dominadas por temas literários.

Em 1957 Raduan ingressa no curso de Filosofia da USP. Era o sexto entre os irmãos a freqüentar a mesma faculdade. Na Faculdade de Direito conhece José Carlos Abbate, um paulistano que acabaria se tornando um de seus melhores interlocutores. Inseparável, o grupo de quatro amigos começa a se encontrar com regularidade na Biblioteca Mário de Andrade e na biblioteca da Faculdade de Direito, onde discute autores e obras e faz boa parte de suas leituras. Também se tornam comuns as noitadas em salões de snooker e bares do centro velho da cidade.

No ano de 1958 interrompe praticamente o curso de Filosofia ao restringir sua freqüência a uma disciplina (Sociologia). No ano seguinte, decidido a dedicar-se integralmente à literatura, abandona o curso de Direito (estava no último ano) e atende só com trabalhos ao curso de Estética na Faculdade de Filosofia.

Falece João Nassar, em 1960, após oito anos de enfermidade. No ano seguinte o escritor desliga-se dos negócios da família. Escreve o conto "Menina a caminho". Viaja para Matane, no Canadá francês, onde viviam duas tias, irmãs de seu pai. De lá segue como imigrante para os Estados Unidos, onde permanece por apenas dois meses.

De volta ao Brasil, em 1962, retoma o curso de Filosofia. Reaproxima-se dos irmãos, com quem passa a ter ótimo diálogo, muito embora lhes fale de seus projetos literários.

Concluído o curso de Filosofia, em 1963, no ano seguinte viaja para Lüneburg, interior da Alemanha Ocidental, a fim de estudar alemão. Através de cartas de amigos e de familiares, toma conhecimento do golpe militar de 31 de março. Comunica ao Departamento de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP sua decisão de não assumir a assistência da cadeira de Psicologia Educacional no campus de São José do Rio Preto daquela instituição. Ao mesmo tempo, abandona o curso de alemão e decide voltar para o Brasil. Antes disso vai ao Líbano e conhece a aldeia de seus pais.

Começa, em 1965, na Chácara Tapiti, em Cotia, São Paulo, a se dedicar à criação de coelhos. Ernst Weber, que mais tarde se dedicaria, como ele, ao jornalismo, era seu sócio. No ano seguinte Raduan passa a presidir a Associação Brasileira de Criadores de Coelho, ocasião em que promove uma concorrida exposição de coelhos e pássaros no Parque da Água Branca. Continua, no entanto, a se encontrar com o grupo de amigos da Faculdade de Direito, na casa de Hamilton Trevisan, onde discutem política e literatura.

Em mutação constante, encerra a criação de coelhos e funda, com os irmãos, em 1967, o Jornal do Bairro, contando com a participação ativa de José Carlos Abbate, que era o redator-chefe da publicação, e de Ernst Weber, então iniciando sua carreira no jornalismo. Apesar de regional, o jornal dedicava parte de seu espaço a textos referentes à política nacional e internacional.

O escritor faz, em 1968, as primeiras anotações para o futuro romance Lavoura arcaica. Dois anos depois escreve a primeira versão da novela Um copo de cólera e os contos O ventre seco e Hoje de madrugada.

Em 1971 morre sua mãe, Chafika, segundo ele "criadora de mão cheia" de galinhas e perus. Dela lhe veio o gosto por criação de animais. Apesar de não ter fé religiosa, participa em 1972 da leitura comentada que a família faz do Novo Testamento. As reuniões semanais para este fim se entendem ao longo de quase todo o ano. Ao mesmo tempo, ele retoma as leituras do Velho Testamento e do Alcorão (esta iniciada em 1968). A preocupação com temas religiosos irá mais tarde se refletir de modo acentuado em Lavoura arcaica. Escreve Aí pelas três da tarde, que sai como matéria no Jornal de Bairro e anos depois aparecerá republicado como conto em outros veículos.

Em 1973 conhece a professora Heidrun Brückner, do Departamento de Línguas Germânicas da USP, que viria a se tornar sua companheira.

No ano seguinte, por discordar da mudança editorial no Jornal de Bairro, deixa em abril a direção do semanário, que tirava 160 mil exemplares por edição. Sem alternativa imediata, começa a escrever Lavoura arcaica, trabalhando dez horas por dia, até concluí-lo, em outubro. Seu irmão Raja, formado em direito e licenciado em filosofia, é o primeiro leitor dos originais. À revelia de Raduan, Raja tira duas cópias do romance e decide passá-las para amigos. Uma dessas cópias acaba chegando às mãos de Dante Moreira Leite, ex-professor de Raduan na Faculdade de Filosofia, que encaminha os originais à Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro.

Em 1975, com a ajuda financeira do autor, a José Olympio publica Lavoura arcaica.

O livro ganha, em 1976, o prêmio Coelho Neto para romance, da Academia Brasileira de Letras, cuja comissão julgadora tinha como relator o crítico e ensaísta Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde). Recebe, ainda, o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (na categoria de Revelação de Autor) e Menção Honrosa e também Revelação de Autor da Associação Paulista de Críticos de Arte — APCA.

Em 1978 a Livraria Cultura Editoria, de São Paulo, publica Um copo de cólera. A novela recebe o prêmio Ficção da APCA.

Em 1982 sai a edição espanhola de Lavoura arcaica, pela editora Alfaguara, de Madri. Segunda edição do mesmo livro pela Nova Fronteira, do Rio de Janeiro.

A Editora Gallimard, da França, lança Lavoura arcaica e Um copo de cólera num só volume, em 1984. A segunda edição de Um copo de cólera é publicada em São Paulo pela Editora Brasiliense (a 3a. edição sairia em 1985 e a 4a. em 1987). Raduan compra a Fazenda Lagoa do Sino, em Buri, sudeste do Estado de São Paulo e passa a se dedicar integralmente à produção rural. Morre o amigo Hamilton Trevisan, cujo livro de contos, O bonde da filosofia, seria publicado em março de 1985 pela Global Editora, de São Paulo. Numa entrevista ao "Folhetim", suplemento do jornal Folha de São Paulo, Raduan deixa claro que abandonou a literatura: no mesmo número, o jornal publica o conto O ventre seco.

Em 1987 a editora Suhrkamp lança o livro Lateinamerikaner über Europa, uma coletânea de ensaios e depoimentos de escritores latino-americanos sobre a Europa, organizada por Curt Meyer-Clason, que inclui A corrente do esforço humano, de Raduan Nassar.

A revista espanhola El Paseante publica, em 1988, os contos Aí pelas três da tarde e O ventre seco (o primeiro seria publicado ainda na Folha de São Paulo em1989 e o segundo, também neste ano no Jornal do Brasil).

Sai a terceira edição de Lavoura arcaica, em 1989, pela Companhia das Letras, de São Paulo, hoje em sua quarta reimpressão.

Em 1991 é publicada pela Suhrkamp, de Frankfurt, a edição alemã de Um copo de cólera. A segunda edição sai neste mesmo ano.

1992 marca a quinta edição de Um copo de cólera, pela Companhia das Letras, de São Paulo, hoje em sua segunda reimpressão.

Comemorando os 500 títulos da Companhia das Letras, é feita uma edição não-comercial de Menina a caminho.

José Castello, jornalista voltado para livros e autores, teve publicado em 1999 o livro "Inventário das Sombras" (Editora Record - Rio de Janeiro, pág.173), no qual traça o perfil de diversos escritores. Autor de "O Poeta da Paixão", "O Homem sem Alma", "Na Cobertura de Rubem Braga" e "Uma Geografia Poética", assim vê o escritor Raduan Nassar (parte):
(...)
Atrás da máscara
"Nós buscamos outras realidades porque não sabemos
como desfrutar da nossa; e saímos de dentro de nós mesmos
pelo desejo de saber como é o nosso interior."

Montaigne

Raduan Nassar não suportou ser um grande escritor e desistiu da literatura para criar galinhas. Trocou a criação estética, que é complexa e desregrada, pela mecânica suave da avicultura, e parece muito satisfeito com isso, tanto que, resistindo a todos os apelos, se recusa a voltar atrás em sua decisão. Meteu-se assim em uma situação embaraçosa na qual o exterior (a figura do escritor) e o interior (o ato de escrever) se confundem, armadilha em que, de modo mais discreto, todos os escritores de alguma forma estão presos, e que não chega a configurar uma escolha, mas um destino. Raduan abandonou a ordem do verbo, que está sempre contaminada pelo vazio e pelo espanto, para retornar à ordem natural dos animais, que é mais silenciosa, mas também mais previsível. Ovos, poedeiras, rações, pequenas pestes podem ser controlados; a escrita, não.

O sucesso de seus dois primeiros livros, Lavoura arcaica e Um copo de cólera, parece ter excedido em muito aquilo que Raduan esperava de si, e, ultrapassado pela própria obra, ele tomou a decisão de recuar. O sucesso, em seu caso, tornou-se uma carga: ele é aquele que não suporta vencer e, assim que a vitória se configura, precisa fracassar para se tornar menos infeliz. Restou a sombra de algo intolerável, a literatura, que, vista sem as pompas da reputação e da fama, tem a aparência de uma emboscada. Escrever não é só seguir uma rotina, manter-se atento e cumprir as regras dos manuais.

Mas por que terá Raduan, ao tomar a decisão de abandonar a literatura, conservado para si a imagem de escritor? Por que terá resolvido ser um homem com duas sombras — uma do escritor consagrado, outra do sujeito que desistiu de ser escritor? Raduan não é um Rimbaud, que, ao resolver que a escrita não o interessava mais, virou a página de sua biografia e, trocando de máscara, foi viver como um mercenário na África. Ao contrário, mesmo desistindo da literatura, ele não deixou de se apresentar, quase obstinadamente, como um escritor militante. Raduan é, ninguém tem dúvida, um grande escritor. Por isso, a solução que deu a seu impasse chega a parecer, às vezes, mentirosa. Quem estará dizendo a verdade: o Raduan que desistiu da literatura e se tornou só um homem silencioso com suas galinhas, ou o Raduan que, mesmo sem escrever, insiste em se ver como um escritor?" (...)

OBRAS DO AUTOR
1. Editadas em livro:
- Lavoura arcaica (romance), 1975
- Um copo de cólera (novela), 1978
- Um copo de cólera / Lavoura arcaica, 1980
- Menina a caminho (conto), 1994
2. Em periódicos nacionais e estrangeiros:
- Aí pelas três da tarde (conto), Jornal de Bairro, São Paulo, 16/02/72
- idem, El Paseante, Madri, Siruela, dez. 1988
- idem, Folha de São Paulo, São Paulo, 21/01/89
- O ventre seco (conto), Folha de São Paulo, São Paulo, 16/12/84
- idem, El Paseante, Madri, Siruela, dez. 1988
- idem, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18/03/89
- Eustáquio Gomes - Notas à margem de Um copo de cólera (ensaio), in —, Ensaios Mínimos, Pontes/Editora da Univ.Estadual de Campinas UNICAMP, 1988.
- Afrânio Coutinho e J. Galante Sousa - Enciclopédia de LiteraturaBrasileira, Oficina Literária Afrânio Coutinho, Rio de Janeiro, 1990
- Brésil: Les belles étrangéres, Paris, Ministère de la Culture et de la Communication, 1987
- La Literature Brésilienne, Paris, L'o&il de la Lettre Groupment de Libraries, 1987
CINEMA:
- Um copo de cólera. Roteiro. Por Aluizio Abranches e Flávio R. Tambelllini, 1995.
- Lavoura Arcaica. Direção e roteiro de Luiz Fernando Carvalho, estrelado por Seltom Mello, Leonardo Medeiros, Simone Spoladore, Raul Cortez e Juliana Carneiro da Cunha. Fotografia de Walter Carvalho. Trilha sonora:Marco Antônio Guimarães. Prêmios: Melhor Contribuição Artística - Festival de Montreal - Canadá - 2001; Prêmio Especial de Júri: Festival de Biarritz - 2001; Prêmio do Público: 25a. Mostra BR de Cinema - São Paulo - 2001; Prêmio Ministério da Cultura - Festival Rio-BR 2001.
Fontes:
- José Castelo - Inventário das Sombras , Editora Record, Rio de Janeiro, 1999, "Atrás da Máscara"
– Cadernos de Literatura Brasileira. Instituto Moreira Salles. Edição 2. Setembro dr 1996.
– Retrato: Revista Veja. 30 de julho de 1997.

Raduan Nassar (O escritor em Xeque)



Entrevista concedida à Revista Veja, em 30 de julho de 1997.

É um caso curioso, o do escritor paulista Raduan Nassar. Há 21 anos ele tenta fugir da literatura, mas de tempo em tempo acaba enrolado em relançamentos, homenagens e leituras públicas de obras suas. Foi o que aconteceu nos últimos meses. Autor de apenas dois livros, o romance Lavoura Arcaica e a novela Um Copo de Cólera, além de alguns contos publicados aqui e acolá, Nassar, fazendeiro de profissão, é venerado pela crítica literária como um dos melhores escritores brasileiros. A unanimidade a favor é tanta que ninguém percebeu que a ligeira recaída do autor, o conto "Mãozinhas de seda", escrito no ano passado, não é nada mais do que uma "molecagem", como ele próprio o define. Antes de viajar para o Oriente Médio, em companhia do diretor Luiz Fernando Carvalho, que prepara um filme baseado em Lavoura Arcaica, Nassar concordou em falar a VEJA, superando a sua aversão a entrevistas. Ele reafirma que não pretende voltar à literatura e aproveita para verter seu copo de cólera sobre essa tal modernidade.

Veja -- O brasileiro é essencialmente caipira, como acredita o presidente Fernando Henrique Cardoso?

Nassar -- O brasileiro em geral não sei, que não sou sociólogo, mas posso falar de mim. Me sinto caipira se acontece de eu entrar num shopping. Me sinto caipira diante da parafernália eletrônica. Me sinto caipira diante da desenvoltura urbana de certos cidadãos, uma desenvoltura que literalmente me faz mal. Me sinto caipira diante da progressiva impessoalidade nas relações humanas. Me sinto caipira porque sou contra o desperdício e contra essa nova mania do usa-e-joga-fora. Tenho um amigo que vive me dizendo que, se é para ter rádio, eu deveria trocar o meu. Então, também sou caipira por ainda gostar de rádio e por ter o rádio que sempre tive. Agora, se eu disser que não dispenso logo cedo uma boa horinha de música caipira, aí já vão dizer que, se não sou o Jararaca, sou então o Ratinho. Pensando bem, acho que sou o Jararaca. Seja quem eu for, que fique bem claro que me lixo para essa entidade que se identifica com o que está aí e que porta o elegante nome de "homem moderno", que mais parece griffe de moda. Mesmo quando se tranca no banheiro, esse homem está sempre de celular no ouvido, o que é o fim da picada. Aproveito para repetir o que o Carlos Drummond de Andrade disse há uns quinze anos nestas mesmas páginas amarelas: isso não é civilização, isso é uma porcaria!

Veja -- Por que o senhor voltou a publicar e está aparecendo em público?

Nassar -- Meu nome vem circulando nos últimos meses, mas isso não quer dizer que eu tenha voltado a escrever. Literatura para mim é coisa do passado. Não acredito que se possa recuperar aquele impulso vital que leva alguém a mergulhar de cabeça numa atividade. Depois que se perde isso, a gente tem mais é que cair fora. Não se faz literatura para valer com paixão requentada. Mesmo a literatura mais pessimista, aquela que afirma que o nosso mundo é o pior dos mundos, acaba até se desmentindo pelo entusiasmo com que se expressa. Já disseram que a voz sem entusiasmo jamais será ouvida.

Veja -- Mas o seu conto "Mãozinhas de seda" foi escrito no ano passado.

Nassar -- Aquilo foi uma molecagem.

Veja -- Por quê?

Nassar -- Uma molecagem contra mim mesmo, pois dá seqüência à minha inequívoca vocação para o suicídio autoral, como já disseram. No momento em que o seu trabalho está sendo divulgado como nunca, publicar um texto como esse é o mesmo que fazer um esparramo com o ventilador. A hipocrisia de intelectuais, a troca de favores entre eles, o comércio de prestígio, tudo isso não acontece só no Brasil. Não revelei nada de novo em "Mãozinhas de seda", só registrei o que é consenso entre os próprios intelectuais. Os mais inseguros e suscetíveis ficaram ouriçados, começaram a achar que a coisa é com eles, mas o texto não tem endereço certo, não tem CEP, nem nada.

Veja -- Mas não há notícia de crítica ruim a um livro seu. É bom ser unanimidade?

Nassar -- Duvido dessa suposta unanimidade dos críticos. Devem existir inúmeros leitores que não gostam dos meus livros.

Veja -- O que o senhor acha da crítica literária brasileira atual?

Nassar -- Não sei se as gerações de críticos anteriores foram tão melhores, como dizem. Às vezes penso que a crítica literária seria dispensável. Já aconteceu de eu ler autores incensados por críticos de peso e me sentir um completo débil mental por não conseguir enxergar tudo aquilo que eles viram. Acho impressionante essa capacidade de construir edifícios teóricos sobre o nada. Devemos tirar o chapéu para tanta imaginação. A crítica talvez seja importante para divulgar obras que poderiam passar despercebidas, embora a duração de certos livros dependa muito mais do boca-a-boca de leitores anônimos qualificados.

Veja -- As panelinhas literárias fazem parte do jogo ou dá para evitá-las?

Nassar -- Nunca participei de panelinhas, e prefiro não falar nada sobre o seu comportamento. Me limito a lembrar que a Rua Aurora dos velhos tempos em São Paulo, clássica por seus bordéis, seria um templo em comparação a elas.

Veja -- O fato de ter abandonado a literatura não o teria transformado em um personagem fascinante?

Nassar -- Abandonei o curso científico e pulei para o clássico, abandonei um curso de letras na universidade, o curso de direito no último ano, a empresa familiar assim que meu pai faleceu. Abandonei ainda uma criação de coelhos, o jornalismo e outras coisas mais. Tudo somado, só levei a pecha de inconstante. Por que só quando abandonei a literatura eu teria me transformado em personagem fascinante? Não é esquisito?

Veja -- O senhor se sente mitificado pelos críticos?

Nassar -- Quem sabe? O que posso dizer com certeza é que exercício crítico e mitificação não deveriam andar juntos, embora boa parte dos críticos empregue toda sua vida e energia na construção de mitos. É um processo que vem de longe e termina nas escolas. Os autores que constam dos currículos escolares acabam desumanizados, são transformados em pequenos deuses. O resultado disso é que o próprio ato de escrever é sacralizado, quando escrever é uma atividade como qualquer outra. Pessoalmente, fui vítima desse ensino da literatura nas escolas. Tanto que fiz segredo para minha família até as vésperas de eu ser publicado -- tinha receio de que me tomassem por pretensioso. Isso sem falar do massacre que a gente sofria nas livrarias. Era eu entrar numa livraria para achar que não teria nada a acrescentar à montanha de coisas que já tinham sido ditas, o que chegava a me levar a pensar em desistir dos meus objetivos literários. Eu não me dava conta então de que escrever tem muito a ver com história pessoal, muito a ver com exorcizar condicionamentos, fantasmas, demônios e sabe-se lá mais o quê. Nesse sentido, escrever é uma atividade incomparavelmente mais acessível e eficiente do que um divã de psicanalista. Acho até que parei de escrever porque me dei alta na auto-análise que fazia.

Veja -- Como a literatura deveria ser ensinada nas escolas?

Nassar -- Não sei, só desconfio de que ela não deveria ser ensinada como vem sendo. De um modo geral, acho que os professores transferem para os alunos gostos e critérios pessoais, o que acaba formando um rebanho destinado a adorar certos nomes. Talvez se devesse treinar o aluno a pensar com a própria cabeça, a ser ele mesmo na sua relação com as leituras -- supondo-se, é claro, que o professor também conseguisse pensar com sua própria cabeça.

Veja -- Qual a função da literatura hoje, se é que ela tem alguma?

Nassar -- Para quem faz, seria se ocupar em fazer. Para quem lê, se ocupar em ler. As duas ocupações seriam bons recursos para ludibriar a existência, o que não é pouco, sobretudo se se tratar de uma literatura portadora de reflexão sobre a vida. Escritores e leitores de uma literatura assim corresponderiam à parte da espécie que não consegue se ajustar a esse mundo. Uns e outros sairiam da sua solidão na medida em que a leitura promoveria um encontro entre eles. Agora, do ponto de vista de uma função social mais ampla, não consigo enxergar nada com clareza. Pode até ser uma grande inutilidade.

Veja -- O senhor vai ao cinema e ao teatro?

Nassar -- Há muitos anos não vou ao cinema e nem me lembro da última vez que fui ao teatro. Em parte por preguiça, mas sobretudo porque perdi o interesse. Não me faz falta. Acontece de eu ver um filminho em vídeo, mas é raro, e gosto quando vejo. Acho que existe uma oferta exagerada do que chamam de bens culturais. Como as informações passam por produto de maior valor no mercado, isso explica por que existe tanta gente de língua de fora atrás de um grande número delas. Me pergunto se as pessoas são mais felizes assim. Torço para que sejam.

Veja -- E televisão?

Nassar -- Vejo um bocado de TV, talvez por comodismo. Assisto a telejornais e acompanho novelas. No momento, estou começando a engatar em A Indomada. Vi Renascer, por exemplo, com muito interesse. Seu autor, Benedito Ruy Barbosa, se não estivesse na televisão, suponho que estaria escrevendo romances. Boa parte dos bons ficcionistas está hoje na televisão. Curto muito o trabalho de atores, e o Brasil tem alguns excelentes. Falar do Raul Cortez, como Berdinazi em O Rei do Gado, é incorrer num lugar-comum. Gosto também do trabalho daquele jovem, o Selton Mello, que teve seu melhor desempenho em Tropicaliente, com momentos antológicos. Agora, como televisão, o que mais me pegou nesses últimos tempos foi o Brasil Legal, da Regina Casé. A zorra das suas reportagens acaba em um milagre incrivelmente saboroso.

Veja -- Qual foi o último livro que o senhor leu?

Nassar -- Ficou difícil ler alguma coisa nos últimos anos por causa da diarréia antidiscursiva que acabou atacando também a prosa. É uma palavra solta aqui, é outra sem qualquer nexo lá, uma poesia que uma hora é pintura, aí não já não é mais pintura, é música, é eletrônica, é o escambau. Confesso que não tenho recursos e nem paciência. Fico até me perguntando se esses poetas imaginam que o leitor deve se debruçar a vida toda sobre o que eles fazem, para poder sacar alguma coisa. Me pergunto também se não existiria algo de comum entre essa moda antidiscursiva e subnutrição mental. Continuo pensando que as palavras, como os indivíduos, só ganham força quando se organizam ao lado de outras. Mas o desmanche não vem acontecendo só na literatura e nas oficinas de carros roubados.

Veja -- Onde mais?

Nassar -- De uns anos para cá, o mundo perdeu a graça. Depois do desmanche do Leste Europeu, andaram inclusive espalhando por aí que a História também foi desmanchada. Parece que literatura e contexto político nunca andaram tão sintonizados, é desmanche para tudo quanto é lado. Desmanche de estatais, desmanche de amizades, de linguagem. Por sinal, tem poeta vestido com macacão e mecânico de oficina lendo Joyce. Ficou difícil apostar em utopias, acho mesmo que no mundo todo só se pode falar em geléia geral. Mas desconfio de que o motor da História vai se acelerar logo mais com convulsões pela sobrevivência. Afinal, este mundo não foi criado por um deus bondoso, o deus bondoso só reina de fachada -- um mundo como o nosso só pode ser obra exclusiva do capeta.

Veja -- O senhor é um produtor rural insatisfeito?

Nassar -- Não há como não me sentir insatisfeito. Fala-se muito na falta de uma política agrícola, mas tudo não passou de papo-furado até agora. Na minha opinião, a questão agrícola brasileira só será encaminhada quando for alterada a relação entre setor urbano e setor rural. O setor urbano está montado no setor rural, e de nada adiantaria uma reforma agrária sem corrigir essa distorção. Um exemplo: para beber em poucos minutos uma Coca-Cola, o produtor rural precisaria desembolsar o equivalente a 10 metros quadrados de terra. É isso mesmo: na região da minha fazenda, 1 metro quadrado de terra sai por 10 centavos. Passei a converter também em sacos de milho os valores de produtos e serviços urbanos. Você precisa de trinta sacos de milho de 60 quilos para pagar uma consulta médica de meia hora. A conversão que venho fazendo na minha vida pessoal se tornou tão obsessiva que, se vou ao dentista, logo vejo nele um pé de milho. Para não falar das margens de lucro da grande indústria e da atuação do setor financeiro. Mas vamos parar por aqui que acabo saindo do sério.

Veja -- O que o senhor gosta de fazer nas horas vagas?

Nassar -- Gostar, gostar para valer, eu gosto mesmo é de dormir. Dormir é a melhor coisa deste mundo. Nem leitura, nem diversão, nem uma boa mesa, nada se compara. Sexo então é fichinha perto. É um momento de magia quando você, só cansaço, cansaço da pesada, deita o seu corpo e a sua cabeça numa cama e num travesseiro. Ensaio, prosa, poesia, modernidade, tudo isso vai para o brejo quando você escorrega gostosamente da vigília para o sono. É o nirvana!

Veja -- E entre um nirvana e outro, o que haveria para fazer?

Nassar -- Há duas velhas sugestões. "Cultivar o seu próprio jardim", que é a do Voltaire, cínica e pessimista. E a sugestão do poeta Jorge de Lima, fervorosa e otimista: "Há sempre um copo de mar para um homem navegar". No fundo, são dois trapaceiros, pois as alternativas são ilusórias, em qualquer dos casos a gente acaba entrando pelo cano. Bom mesmo é dormir.

Fonte:
Revista Veja. Editora Abril. 30 de julho de 1997.

Carlos Leite Ribeiro (O Avô Guido - Parte Final) Novela em 4 partes



- Fernando: - O melhor é esperares aqui, sossegadinho, enquanto eu vou pôr a "mamã"a casa. Depois, eu próprio, te levarei a tua casa. Mas toma atenção, não te mexas deste sítio, nem um metro sequer.
- Sandro: - Está bem, eu prometo tudo ao “papá”…
- Fernando: - Se não me obedeceres, esfolo-te vivo. Sabes ou imaginas o que é ser esfolado vivo?
- Sandro: - Se sei, é a lei dos "Lobos Maus"!
- Fernando: - Pois, se te moveres desse maple até eu chegar, será aplicada a lei daqui, ou seja a lei do Oeste!

Novamente, em casa da sua amiga Isabel, Margarida, preparava-se, pela terceira vez para se deitar.

Toda a casa se encontrava em desalinho, pois, com a precipitação de levar o Sandrito a São Pedro de Moel, Teresa não fizera nenhuma arrumação à casa.

Já se encontrava na cama, quando a campainha da porta tocou repetidamente. Levantou-se e…

- Margarida: - Quem é?... Quem está a bater a estas horas à porta?...
- Fernando: - Sou eu, o Fernando ou o Josué; já nem sei quem sou. Abra por favor…
- Margarida: - Mas então não acompanhou o avô a Trás-os-Montes?
- Fernando: - Pois não. No regresso a São Pedro de Moel, tive um furo num pneu, o que me atrasou um pouco. Quando cheguei ao hotel, já o avô tinha-se ido embora…
- Margarida: - Ai que pena, fico bastante preocupada…
- Fernando: - Mas o pior, foi o avô ter levado aquele "terrorista"do Sandrito (ou Paulo...) ou lá o que é…
- Margarida: - Aquele miúdo só nos tem dado problemas. E agora, ele é bem capaz de contar tudo ao avô Guido
- Fernando: - Por esse motivo vim cá pedir-lhe que me acompanhe a Trás-os-Montes, a casa do avô Guido
- Margarida: - Mas...eu não o posso acompanhar. Estou aqui em Leiria, em missão profissional, por isso não posso ausentar-me... o telefone está a tocar, pode ser o Augusto. O senhor Josué não se importar, atenda; o telefone que está aí no corredor...
- Fernando: - Com todo o prazer... ...Sim, estou...É sim, é esse número... a Margarida?...Está, está, mas está a descansar … Digo-lhe, sim... Estou a compreender...O casal de turistas americanos, anularam a viagem...muito bem, muito bem...dar-lhe-ei o recado. Boa noite...
- Fernando: - O telefonema era para mim?
- Fernando: - Era sim. Até que enfim que consegui saber o seu nome: Margarida! É um nome bonito, como aliás a dona...
- Margarida: - E de quem era o telefonema?
- Fernando: - Era da agência "Turismo ao Alcance de Todos", para a avisar que o casal de turistas americanos, anulou a viagem à última hora.
- Margarida: - Sendo assim, tenho de regressar imediatamente a Lisboa...
- Fernando: - Impossível!... Tem de me acompanhar a casa do avô Guido... Sabe, estou muito preocupado com o que lhe teria dito aquele endiabrado miúdo. Por favor, não me deixe sozinho nesta altura!
- Margarida: - Mas tem de compreender, se o acompanhar, fico em risco de perder o meu emprego…
- Fernando: - Há muito tempo que preciso de uma secretária e, a Margarida vem mesmo a propósito!
- Margarida: - Eu, sua secretária?
- Fernando: - A Margarida sabe escrever música?
- Margarida: - Infelizmente não sei…
- Fernando: - Que pena! mas...mas sabe escrever no computador?...
- Margarida: - Não percebo mesmo nada…
- Fernando: - Línguas?...
- Margarida: - Só sei dizer em francês, Bonjour ...E em inglês, Yes
- Fernando: - Nada mais?!
- Margarida: - Nada...mesmo nada!
- Fernando: - Pelo menos, terá boa letra?
- Margarida: - É detestável! Até a minha assinatura é ilegível!
- Fernando: - Estupendo! Você tem todas as condições desejáveis. É justamente aquilo que necessito, uma secretária que não saiba fazer nada. Enfastiam-me as secretárias eficientes! Não acha que são insuportáveis?
- Margarida: - Sim, concordo... Bem tentei que não me contrata-se como sua secretária, mas não tive êxito!
- Fernando: - Enquanto a Margarida acaba de se arranjar, vou meter gasolina no carro e, ver a pressão dos pneus e o óleo. Durante a viagem, continuaremos a falar.
- Margarida: - Então até já. Não se esqueça de fechar a porta…
- Fernando: - Margarida, somos amigos, não é verdade?...
- Margarida: - Claro que sim!

Já amanhecia, quando iniciaram a viagem rumo a Trás-os-Montes e, quando chegaram a casa do avô Guido, o Sol já tinha nascido.

Josué Teixeira, parou o carro diante do grande portão e, fez ressoar por duas vezes a volumosa aldraba de bronze, a qual produziu um atroador ruído, ali naquele vetusto casarão, a que não faltava certa beleza.

- Augusto: - Ah, é o menino Josué, estava à sua espera. O senhor Guido, ainda está deitado e, parece que está calmo.
- Fernando: - Augusto, quem vos meteu na cabeça, trazerem o Sandro?
- Augusto: - O senhor Guido não quis esperar. Apenas os senhores saíram dos seus aposentos, teimou em partir, dizendo que não queria incomodá-lo, obrigando a acompanhá-lo. Quando descemos para o hall, encontra-mos o rapaz que se aproximou de nós. O senhor Guido convidou-o a vir com ele, e ele aceitou logo o convite. Resultado, tivemos mesmo que trazer o garoto.
- Fernando: - Mas esta embrulhada nunca mais acaba?...
- Augusto: - Receio bem que não, senhor Josué. Quer subir?... estão os dois no quarto do avô, a tomar o pequeno almoço.

Subiu os degraus em dois pulos, acariciando, ao passar, as faces da velha Elisa, a mulher do Augusto, que lhe dava as boas-vindas.

Ao entrar no quarto do ancião, acalmou momentaneamente o seu nervosismo. Ele estava sentado na sua esplêndida e tão chorada cama de colunas, de mogno escuro. Com a cabeça recostada nas suas almofadas de penas, o Avôzinho tomava café com leite e torradas. Numa mesita instalada junto do leito, Sandrito fazia o mesmo.

O rapazito ostentava no lábio superior uns magníficos bigodes de café com leite, que lhe davam um aspecto cómico.

- Fernando: - Bom dia e bom apetite!
- Sandro: - Olá,"papazinho"!... Bom dia, não quer café com leite?
- Avô Guido: - Vocês são muito teimosos, mas confesso que estava à vossa espera, pois, com certeza que não iam abandonar o vosso querido filhinho, estou certo?
- Sandro: - "Mamãzinha", dá-me mais café com leite e mais torradas, está bem?
- Margarida: - Não comas muito, olha que ficas com dores de barriga...
- Sandro: - Já não tenho dores de barriga!
- Augusto: - Com a precipitação da partida, o senhor Guido deixou os medicamentos, no Hotel, em São Pedro de Moel.
- Avô Guido: - Vocês têm de me darem razão, confio eu num velho tonto como o Augusto, e depois acontece-me destas. Ele, quer ver se eu morro primeiro do que ele, mas não vai ter esse prazer!
- Fernando: - Não diga isso avô, pois, o Augusto é um verdadeiro amigo que tu tens. Não é um criado, é um amigo!
- Avô Guido: - Lérias, lérias...Ele quer é que eu morra primeiro do que ele.
- Fernando: - Não se preocupe com os medicamentos, pois, tenho que ir hoje a Bragança assinar um contrato e trago-lhe os medicamentos.
- Augusto: - Parece-me que esses medicamentos, só se encontram em Lisboa ou no Porto…
- Fernando: - Talvez não seja assim como dizes, Augusto. Avô não se preocupe, pois, hoje à noite, terá cá os medicamentos.
- Avô Guido: - Podes ir Fernando, mas vais sozinho, pois, a tua esposa e o teu filho, ficam aqui ao pé de mim.
- Fernando: - Mas...mas avô, a Márcia
- Margarida: - Podes ir, querido "maridinho", pois, eu ficarei com o nosso querido "filhinho". Depois, regressaremos ambos a Leiria. Como sabes, o Sandrito, anda na escola e não quer perder o ano...
- Sandro: - O que tem, se eu perder mais um ano?... O meu pai diz que eu sou estúpido por feitio e natureza!
- Avô Guido: - Oh Fernando, tu dizes isso ao teu filho?...
- Fernando: - Sim... Sim, eu digo-lhe isso... mas é só às vezes e por brincadeira. Todos nós sabemos que o Sandrito é muito inteligente, e muito aplicado na escola.
- Margarida: - É um dos melhores alunos da escola onde anda.
- Avô Guido: - Tu, Fernando, tens que ter muito cuidado com essas considerações que dizes ao garoto, pois, não podes nem deves desmoralizar o teu filho. O vosso filho, não é, querida Márcia.
- Margarida: - Sim, sim avô, eu, até já tenho chamado a atenção do Fernando, para certos termos que ele usa para com o menino.
- Avô Guido: - E, não se esqueçam que ele é o único filho que vos resta, pois, os outros morreram todos…
- Margarida: - Morreram todos?!
- Fernando: - Pois... os outros morreram todos. Até parece que não te lembras dessas tragédias, Márcia?
- Margarida: - Eu lembrar-me?... Ah, pois...Pois morreram todos…
- Fernando: - Coitadinhos, ficamos sempre muito constrangidos quando pensamos neles. Não chores Márcia, senão também eu começarei a chorar…
- Avô Guido: - E, por cada funeral, paguei cerca de mil euros, fora as flores e os arranjos das campas.
- Margarida: - Pois...pois foi assim mesmo. Mas não quero recordar esses momentos dramáticos.
- Fernando: - Nós temos sofrido muito, Avôzinho... foram desgostos em cima de desgostos…
- Sandro: - Mas eu já tive irmãos?! Não me lembro.
- Margarida: - É que nós, eu e o Fernando, procurámos sempre esconder estes tristes factos do Sandrito
- Fernando: - Bem, como se costuma dizer "barco parado, não segue viagem...", e eu ainda tenho que ir a Bragança e, depois possivelmente ao Porto.
- Sandro: - Posso ir contigo,"papá"?
- Margarida: - Não,"filhinho", tu ficas aqui ao pé da "mamã", pois, o "papá" tem muitas voltas a dar e muito trabalho a fazer.
- Sandro: - Os "papás"são todos a mesma coisa!
- Avô Guido: - Sandrito, vai brincar para o pátio, mas com muito juízo...
- Fernando: - E eu, vou indo. Adeus minha querida "mulherzinha"!
- Fernando: - Adeus,"amor" e boa viagem. Encontrar-nos-emos em Leiria. Um beijo!

Já era noite quando Josué Teixeira regressou a casa do avô, naquela pequena aldeia transmontana. Tocou a albarda de bronze da porta e, o velho criado Augusto, veio abrir-lhe. Ao entrar no grande salão do vetusto casarão, teve uma grande surpresa…

- Avô Guido: - Olha Márcia, o teu querido esposo já chegou!
- Fernando: - Mas, Márcia, ainda não regressou a Leiria?!
- Avô Gildo: - Desculpa, filho, mas eu é que tive a culpa, pois, consegui convencer a tua esposa a ficar. Não te zangues comigo. Também seria inútil regressar, pois, a Márcia está aqui muito a seu gosto, não é verdade, filhinha?
- Margarida: - Assim é, avô…
- Avô Guido: - E até mais, prometeu-me que ficará alguns dias aqui, junto de mim...
- Margarida: - Fizeste boa viagem,"querido"Fernando? Espero que não estejas muito zangado comigo, por me encontrar ainda aqui...
- Fernando: - Como sabes, ou deves de calcular, até estou muito contente por te encontrar aqui, junto ao avô.
- Margarida: - Sabes,"amor", necessitava de um pouco de repouso para os nervos e, esta tranquilidade aldeã, far-me-á bem. Amanhã, mando vir roupas, pois, não posso andar muito tempo com esta. Embora este trajo azul, me fique bem, não é verdade, querido “maridinho”?
- Fernando: - Qualquer coisa, te fica maravilhosamente bem, meu "amor"!
- Margarida: - No outro dia, disseste-me que te enlouqueço, quando visto este azul. Claro que dizes sempre coisas parecidas, qual for o vestido e a cor que envergue... olha, "querido", queres um cafezinho?...faz tanto frio lá fora na estrada, que o café, decerto, saber-te-á bem…
- Avô Guido: - Estou a gostar muito de os ouvir. Fico muito contente que sejas carinhoso com a tua mulher, não posso com os matrimônios que se tratam friamente sem calor e sem amor.
- Margarida - O Fernando sempre foi muito carinhoso. Está sempre a chamar-me diminutivos ternos, como: queridinha, amorzinho, fofinha, etc.…
- Fernando: - Bem!... Creio que o avô deve descansar. Os seus medicamentos estão aqui. Agora, é conveniente ir para a cama descansar.
- Avô Guido: - Eu vou já, vou já. O Sandro dormirá aqui ao lado, e a Elisa já preparou o quarto lá de baixo, para vocês e espero que fiquem lá muito bem. A cama é muito boa.
- Fernando: - Muito bem, avô, ficaremos lá, perfeitamente e quentinhos...
- Avô Guido: - Escuta lá, Fernando, prometes que ficarão cá uns dias?...
- Fernando: - Não sei... Não sei se os meus afazeres profissionais o permitirão…
- Avô Guido: - Se te for impossível pelo menos, deixa-me a Márcia e o Sandrito. Tu podes vir de vez em quando, ver-nos…
- Fernando: - Oh avô, amanhã decidiremos...Agora, dorme tranquilo, pois, bem precisas de descansar.
- Margarida: - Mas. Aonde está o Sandrito?... Já há um bom par de horas que não lhe ponho os olhos em cima…
- Avô Guido: - Não te preocupes, minha filha, pois vamos já saber... Augusto...oh Augusto, onde estás?
- Augusto: - Estou aqui, senhor Guido... Quer os seus medicamentos?
- Avô Guido: - Não, não quero ainda os medicamentos, mas sim saber, onde se encontra o pequeno Sandrito?
- Augusto: - Deve de estar... deve de estar...ou está...
- Avô Guido: - Que mistério é esse? Onde está o rapaz?
-Augusto: - O rapaz estava a brincar no pátio, e depois...o senhor Guido sabe daquela gaiola... a gaiola dos pássaros...
- Avô Guido: - Claro que sei, a gaiola que tem dezenas de pássaros…
- Augusto: -Pois...que tinha dezena de pássaros, mas, o Sandrito abriu-lhes a porta da gaiola e eles fugiram…
- Fernando: - Ai, aquele diabo de rapaz!...
- Avô Guido: - E Augusto, onde está agora o Sandrito?
- Augusto: - Bem, como os pássaros fugiram todos, como já lhe disse...fugiram todos... eu, meti o Sandrito dentro da gaiola!
- Avô Guido: - Como assim, tu fizeste isso?!
- Augusto: - Se abrir aquela janela, ouvirá decerto, o berreiro que ele está lá a fazer dentro da gaiola.
- Avô Guido: - Olha lá, mas porque é que tu meteste o rapaz dentro da gaiola?... Não me digas que estás à espera que ele cante. Traz-mo já cá imediatamente.
- Fernando: - Mas o Avôzinho, precisa de se deitar, para descansar…
- Avô Guido: - Não tentem disfarçar e aliviar a vossa culpa, pois, vocês os dois é que deviam de estar dentro daquela gaiola. Imaginem bem a qualidade de educação que têm dado ao vosso filho! Vão, vão-se deitar, que eu próprio falarei com o miúdo. Vão indo, vão indo…
- Margarida: - Então, até amanhã, avô. Com sua licença vou me vou retirar para o meu quarto…
- Fernando: - Margarida, agora que estamos sós, posso saber porque motivo ainda continua nesta casa, e não regressou a Leiria?
- Margarida: - Se me fala nesse tom, não lhe responderei. Procure ser um pouco mais simpático, o que nem lhe deve ser muito difícil…
- Fernando: - Perdoe-me, Margarida, mas confesso que estou um pouco desorientado. Ocorreram tantas coisas ao mesmo tempo, e este miúdo dá-me cabo dos nervos. Sinto-me responsável por tal escolha, melhor, por toda esta situação.
- Margarida: - Eu só fiquei cá, para não deixar o Sandrito sozinho, pois, o avô fez questão que ele ficasse e, assim, talvez acabasse por comprometer, irremediavelmente esta estranha situação, ao contar ao avô, certas coisas…
- Fernando: - Já estou a compreender tudo, mil agradecimentos e mil perdões, pela minha conduta de há pouco. Estou a ficar refém daquilo que projectei na tentativa em dar ao avô Guido, um fim tranquilo…
- Margarida: - Por favor, não se esforce para se mostrar agradecido. Eu também tenho uma certa quota do que aconteceu e ainda está a acontecer. Sejamos sensatos.
- Fernando: - Não pretendo mostrar-me grato, pois, estou-o na realidade. Mas, sobretudo, sinto-me confuso, porque tenho a impressão de que, no fundo, você está aborrecida comigo, por a ter arrastado para esta situação tão bizarra.
- Margarida: - Não estou, não contra sua. Não vê que me sinto contentíssima, por ter podido ser útil neste processo, sobretudo, ao avô Guido?
- Fernando: - Quer dizer que só entrou nesta estória em atenção à situação do avô? É de agradecer a sua nobre actuação.
- Margarida: - Parece-me que estou a ler certas dúvidas no seu olhar…
- Fernando: - A Margarida, não pode ler nada no meu olhar!
- Margarida: - Engana-se Josué...
- Fernando: - Então, como é tão boa em ler nos meus olhos, deve ler também outras coisas, não é assim?
- Margarida: - Talvez....deixe-me rir!
- Fernando: - Como, por exemplo, que a achei encantadora, desde o primeiro momento em que a vi...
- Margarida: - Talvez.... Não sou feia de todo (segundo dizem) e, já percebi que o seu coração estremece com facilidade, perante os encantos femininos. E o avô confirmou, digamos, essa sua faculdade.
- Fernando: - Você se diverte enraivecendo-me, mas não consegue, pois, não conto zangar-me consigo de maneira nenhuma. Sabe, não há um só "teimoso"… E eu não quero ser teimoso. Adivinha que...
- Margarida: - Desculpe pois, tenho a imaginação muito fatigada pelos últimos acontecimentos, por isso, não posso dedicar-me às suas adivinhas. Vou para o meu quarto, pois, estou a cair de sono…

Margarida despediu-se do Josué com um seco “boa noite”, e penetrou no amplo quarto, mobilado à antiga, mas tão acolhedor e confortável, que parecia dar-lhe as boas-vindas.

Ao centro, viam-se duas camas iguais, cobertas com grossas colchas de seda, já um pouco desbotadas. Riu-se e pensou alto: “Gosto desta casa, pois, é um verdadeiro lar. Ao entrar, recordei logo a minha. Não é que se assemelhem em nada, mas por causa do ambiente, qualquer coisa de "indefinível", que flutua e constitui o espírito das habitações. A cama é macia, mas, mesmo que fosse dura, não daria por isso.

Alguém bate à porta do quarto…

- Elisa: - Dão-me licença, posso entrar?
- Margarita : - Entre, entre Elisa ...
- Elisa: - Tomei a liberdade de lhe trazer uma das minhas camisas de dormir. As noites aqui em Trás-os-Montes, são muito frias, e , embora a flanela seja muito grossa, talvez a senhora não veja inconveniente em…
- Margarida: - Pois claro que a vestirei, e vou ficar até muito quentinha. Muito obrigado Elisa!
- Elisa: - Trouxe também, uma bata e umas chinelas e, também coloquei uma botija de água quente na cama. Terá cobertores suficientes?
- Margarida: - Creio que sim. Dormirei formidavelmente, como uma princesa!
- Elisa: - Não tenha pressa de se levantar cedo, pois, trazer-lhe-ei o pequeno-almoço aqui à cama.
- Margarida: - Que luxo! Muito obrigado, Elisa!

Depois de bater à porta, Fernando (Josué) entrou no quarto para lhe desejar uma boa noite…

- Fernando: Eu vou também fazer soninho. Procure sonhar comigo, Margarida, está bem?...
- Margarida: - Procurarei sonhar consigo e com esta situação. Espero que não se transforme em pesadelo…
- Fernando: - Então, boa noite...querida!
- Margarida: - Que disse... Querida?!
- Fernando: - Como ouviu muito bem. Eu disse "querida", e não retiro uma só letra sequer! Até amanhã e boa noite!

Passados breves minutos, novamente bateram à porta…

- Fernando: - Márcia, Márcia!...
- Fernando: - Quem está a bater à porta?...
- Fernando: - Sou eu... o Fernando... abra a porta por favor!
- Margarida: - O Fernando?! Mas o que é que você quer?!
- Fernando: - Ora...o que hei-de querer, querida “esposa”?... entrar no nosso quarto para me deitar…

Ela saltou da cama, compreendendo logo que ocorria, qualquer coisa fora do vulgar. Embrulhou-se na enorme bata que a Elisa lhe tinha emprestado e abriu a porta. No limiar, apareceram à sua frente, o Fernando, terrivelmente confuso, igualmente vestido com um roupão e um pijama e, atrás dele, o avô Guido, com a sua inseparável bengala e um olhar trocista…

- Avô Guido: - Queria convencer-me de que vocês estão bem instalados, e assim, desci em pessoa, para verificar com os meus olhos... Só não compreendo que faz este maroto, que ainda não se deitou, ao lado da sua bela esposa?...
- Fernando: - Ia, deitar-me...agora mesmo, avô...
- Avô Guido: - Anda, deita-te e fica caladinho. Mete-te já na cama, pois, quero aconchegar-te a roupa, como fazia quando eras pequeno...
- Fernando: - Mas, avô... Eu ainda tenho que fazer ginástica junto à lareira…
- Avô Guido: - Ginástica, a estas horas e junto à lareira?...
- Fernando: - Sim, sim...é um hábito já muito antigo, sabe?... Faço-o sempre antes de deitar-me…
- Avô Guido: - Palhaçadas!... Deixa-te de tolices e, vai já para a cama, vá que já é muito tarde e está muito frio…
- Fernando : - Mas...Avô, tente me compreender…
- Avô Guido: - Não estou a compreender mesmo nada. Tira o roupão…Assim... gora mete-te debaixo da roupa. Gosto muito que ainda sejas obediente. Agora, aconchegar-te-ei e ficarei mais tranquilo, e depois, mando o Augusto retirar a cama que não vai ficar ocupada. … Augusto e Elisa, retirem esta cama para a arrecadação!
- Fernando: - Pronto, pronto avozinho, já estou na caminha junto à minha querida esposa...já se pode ir embora descansado...
- Avô Guido: - Estou a ver, estou a ver… boas noites, meus filhos. Levo a chave, para os deixar fechados, caso contrário, estou certo de que amanhã, quando eu me levantasse, a "gaiola"estaria vazia. Bons sonhos, meu filhos queridos filhos!...
- Fernando: - Avô!...não feche a porta...Avô...Avô...Avô!...
- Margarida: - Augusto!...Elisa!... por favor, abram esta porta!
- Fernando: - Augusto!...demónio de homem parece que é surdo!... Augusto!...Vou dar um pontapé nesta porta...ai..ai..ai...que magoei o meu pé...
- Margarida: - Isto é completamente absurdo! É ridículo! Como eu fui capaz de me meter numa trapalhada destas!
- Avô Guido: - Não gritem, nem batam mais na porta. Que grandes idiotas que vocês são! Pensavam assim poder enganar o avô, sem vergonha nenhuma! Vou abrir a porta para podermos falar…
- Fernando - Avô, engana-lo como?... Sinto-me envergonhado…
- Avô Guido: - Naturalmente ser velho, não quer dizer que seja idiota. Vejo muito mal, estou muito surdo, mas nunca confundiria o meu neto verdadeiro com o seu meio-irmão. Que farsa vocês urdiram, pensado em enganar-me…
- Fernando: - Então quer dizer que?...
- Avô Guido: - Que, se te confundi por momentos…isso foi de curta duração, e apenas enquanto a minha cabeça não regulava bem, logo a seguir ao ataque do coração...depois comecei a compreender tudo o que me estavam a fazer, ou seja, a armarem-me em parvo. Comecei a averiguar a grandeza da minha desgraça. Logo que regressei a casa o meu advogado avisou-me o meu neto tinha morrido.
- Fernando: - Avô, tente compreender, eu queria evitar-te um grande desgosto…
- Avô Guido: - Bem sei, Josué, nunca deixaste de me querer muito. Desde muito pequeno, que foste sempre o meu verdadeiro neto. Fui a Leiria, impulsionado pela curiosidade e, também para te criar dificuldades e divertir-me um pouco, assim, como também ao idiota do Augusto. Perdoa esta travessura de velho, mas vocês são uns cretinos... querem enganar-me, a mim, a mim, o Guido Ribeiro, transmontano dos quatro costado!
- Augusto: - Senhor Guido, não se excite assim, deve ir deitar-se e procurar descansar....
- Avô Guido: - Cala-te, mentecapto. Tu és o pior de todos! Julgavas-te mais esperto do que eu?! Pois, saíram-te as coisas ao contrário, cabeça de pardal! Julgavas tu que eu não reconhecia o menino Josué?... Como vês, de nada serviu armarem esta comédia grotesca. Isto também é contigo, pequena linda…
- Margarida: - Perdoe-me, senhor Gildo. Encontrei-me metida neste caso sem ainda compreender como e porquê.
- Avô Guido – Cala-te, cala-te, pois não preciso de explicações. Não me enternecerás com a tua cara bonita e a tua voz de rolinha mansa. Ora, não te armes em "mosca morta", pois nem merece a pena.
- Fernando: - Escuta, avô a Margarida é…
- Avô Guido – Ah, se chama Margarida e não Márcia! E esse tão "bonitinho" rapaz (como é o nome dele?) onde é que o arranjaste?...
- Fernando: - É filho da…
- Avô Guido: - Compreendo. E aquela engraçada “cunhadita” que dançava tão desajeitadamente?...
- Fernando: - É, a...
- Avô Guido: - Muito me ri...ri de vocês! Sobretudo de ti e da tua linda noiva, Josué. Suponho que seja tua noiva... não o podem negar, pois, até parecem mesmo uns pombinhos... comem-se um ao outro, com os olhos…
- Margarida: - Nada disso, senhor Guido, nada disso!
- Fernando: - Ainda...não é minha noiva.
- Avô Guido: - Ainda não é?... Então do que estás tu à espera? Não me digas que ainda não te declaras a ela. Porquê, meu filho, estás com medo de seres recusado ou com vergonha?
- Fernando: - É que não me atrevo a…
- Avô Guido: - Pois, atreve-te grande tolo me saíste...Não vês que ela não deseja outra coisa. Que te ama?...
- Fernando: - Avô, compreende... A Margarida é a melhor pequena que eu conheci... prontificou-se a ajudar-me, simplesmente por bondade. Nunca conheci outra como ela. Mas o caso é que...Margarida é... seria... enfim, a definitiva!
- Margarida: - Josué, por favor, não faca mais confusão na minha cabeça.
- Avô Guido: - Ai...o meu remédio, Augusto... Sofri muito, estes dias. Mas, agradeço-te, filho, pois embora não sejas o Fernando, quero-te como se o fosses.
- Margarida : - Sente-se mal, avô?
- Avô Guido: - Não pequena, só estou um pouco cansado…
- Augusto: - Vou chamar o já médico!
- Avô Guido: - Não...não é preciso...já está a passar. Sofri muito com a morte do meu neto, mas, foi Deus que assim o quis. Não te assustes, pequena, pois, em breve estarei melhor... Margarida, é um nome bonito e, tu és muito bonita... olha lá porque estás a choras? Olha filha, limpa esses belos olhos. Mereces ser feliz, porque tens bom corarão, e o Josué também, aliás, sempre o teve desde criança. Hão-de ser muitos felizes e terão filhos bonitos. Mais bonitos do que esse "demónio", que está para aí; como é que se chama esse "ranhoso"?... Quero saber o nome verdadeiro.
- Margarida: - Chama-se Paulo…
- Avô Guido: Ele é muito esperto (embora não seja inteligente) pelo caminho, contou-me histórias muito divertidas. Gostaria que ele ficasse aqui mais uns dias... faz-me rir...Eu... Eu…
- Fernando: - Olhe, o avô adormeceu. É o melhor que nos podia ter acontecido. Está esgotado, coitado do avô Guido, vou pôr-lhe uma manta por cima...
- Margarida: - Vou aproveitar o fato do avô estar a dormir, para me ir embora. Embora me custe bastante, não me despedir dele. É tão bondoso!
- Fernando: - Se é esse o teu desejo, Margarida…
- Avô Guido: - Mas qual desejo... Mas qual desejo, qual carapuça. Estou mesmo a ver que já não se pode descansar um pouco... Seus finórios... Augusto, Augusto...Dá-me a minha bengala…
- Margarida: - A bengala, avô?...
- Avô Guido: - Sim, a bengala. Era o que vocês precisavam, apanhar ambos com ela. Não têm vergonha de gozarem e fazerem pouco de um pobre velho?
- Fernando: - Mas, avô compreenda por favor...
. Avô Guido: - Cala-te!...Augusto, ajuda-me a levantar...Agora, dá-me aquelas chaves do quarto…
- Margarida: - Mas o avô vai-nos fechar novamente, aqui dentro do quarto?... Nem quero acreditar.
- Fernando: - Mas, avô escute-me por favor!
- Avô Guido: - Calem-se, calem-se por favor. Olha que apanham mesmo com a bengala. Ficam aqui fechados até se declararem um ao outro, e não demorem muito. Deitem-se, deitem-se já, pois, a noite é, e têm muito tempo de falarem do que me tramaram. Boa noite e acordem muito bem dispostos e com as consciências limpas. Não preciso de mais desculpas de vossa parte.

Ao sair do quarto depois de fechar a porta à chave, encontrou o Sandro no corredor…

- Sandro: - Olá avozinho, andava mesmo à sua procura, pois a cozinha está fechada à chave…
- Avô Guido: - Olha "netinho"…Vai mas é chamar avô a outro!...

FIM

Fonte:
Colaboração do autor.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Pablo Neruda (Saudade)


Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...

Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...

Saudade é sentir que existe o que não existe mais...

Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.

E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.
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Fonte:

domingo, 9 de maio de 2010

Trova 145 - Barreto Coutinho (Limoeiro/PE)

Nelson Saúte (O Marido Deixa-Andar e a Mulher Furiosa)



A mulher estava farta do marido deixa-andar. O homem não tinha como mudar. Todos lhe passavam à frente. Na rua olhavam-no desdenhosos. Até o panhonho da esquina comprara um carro. Ele, nada. Os filhos dos vizinhos andavam em escolas privadas, pavoneavam-se. O marido dela nada persistia na desgraça. Passara o tempo da balalaica, o que dera nele? Agora, quando todos estavam a evoluir, ele persistia. Quando lhe indagava, ele respondia, sussurrando:

- Eu sou coerente.

- Mas marido nós vamos comer coerência aqui em casa?

A verdade é que não faltava comida em casa. Esse era o argumento. Os filhos iam à escola pública. Por vezes não tinham carteiras, sentavam-se no chão. Os vidros eram partidos, as casas de banho fediam. Mas isso não era culpa do Estado. Quem vandalizava?

O homem não perdia a fleuma. Explicava com bons modos que ele não entrava na onda do novo-riquismo, não praticava nenhum tipo de falcatrua para enriquecer. Não iria satisfazê-la a todo o custo. Acreditava no mérido. Persistia no trabalho. Afinal, um homem de valores.

- Marido tu não queres evoluir mesmo!

- Até pode ser.

Ela foi previsível. Foi-se embora. Abandonou tudo: a casa, os haveres corroídos pelo tempo, os filhos assombrados com o infuturo, o marido. Aquilo que poderíamos chamar família.

Ele ficou com os filhos, continuou o mesmo. Ela vigiava-o. Ia sabendo do homem à distância ou através dos filhos. Quando queria dizer o que quer que fosse do pai, os filhos reprovavam com olhar. Ou diziam apenas:

- Mãe.

Nem ela, nem ele se engajaram noutra relação. Estavam separados. Mas algum os unia. Algo de invísivel.

Um dia soube que ele tivera direito a um carro de alienação no serviço. Era bom técnico e ganhou essa benesse.

A mulher ficou furiosa.

- O sacana enquanto esteve comigo nunca me quis dar um carro. Agora, que está sozinho anda de carro?

Num desses dias, ela abeirou-se da casa que habitara e munida de paus e pedra desfigurou o carro, descarregando sobre ele toda a sua bilis. O homem ouvia um barulho esquisito lá de dentro e vozes que se avolumavam. Saíu ainda de pijama e se defrontou com aquele insólito.

A mulher tresloucada à porta de casa, derrubando o carro novo. Como sempre, um grupo de vizinhos curiosos, que murmuravam.

O homem olhou para a mulher e não conseguiu pronunciar uma palavra que fosse. Estava incrédulo.

Ela fixou-o com aquele seu olhar felino, que o fazia estremecer, e disse, antes de irromper numa convulsão dos diabos:

- Toda a vida eu quis uma vida melhor. Agora que me fui embora é que compras um carro? Não, eu não vou permitir que vivas bem sem mim!

O homem caminhou em direção da mulher e amparou-a num abraço, abriu ala no meio dos que se aglomeravam e levou-a para dentro de casa.

Lá fora, ficou o espanto dos que assistiram à inusitada cena e um carro completamente espatifado.

Fonte:
http://www.pnetliteratura.pt/

Nelson Saúte (As Mãos dos Pretos)



Mais de três dezenas de autores estão reunidos numa antologia do conto moçambicano, que dá pelo nome "As Mãos dos Pretos". Organizado pelo também escritor Nelson Saúte, este livro foi dado a conhecer ao público em Fevereiro último, pelas Publicações Dom Quixote.

A ficção moçambicana tem atravessado diferentes períodos. Uns mais ricos e interessantes, outros que acusam um menor entusiasmo literário. Contudo, existiu na segunda metade do século XX um florescer da ficção narrativa em Moçambique, de onde Nelson Saúte recuperou alguns nomes de escritores que trouxeram à literatura do país uma pluralidade de posturas estilísticas e de novas linguagens, confirmando assim o renascer de uma ação criativa substancialmente melhorada.

Sem qualquer critério especial de seleção, a não ser a qualidade dos textos, Nelson Saúte reuniu em livro um conjunto de mais de três dezenas de autores que traduzem nas suas palavras "o devir moçambicano, de forma excepcionalmente esplendorosa".

Nesta viagem à ficção moçambicana, o organizador d' "As Mãos dos Pretos" ressalva da década de 40 dois dos poetas maiores de Moçambique: José Craveirinha e Rui Knopfli, responsáveis "pela excelente tradição poética que as gerações posteriores beneficiaram e beneficiam. Craveirinha pela força telúrica dos seus versos (...) e Knopfli pelo ecletismo da sua poesia, pela modernidade e pelo complexo entendimento do destino de um país e dos seus homens (...)", esclarece Nelson Saúte no prefácio.

Num contexto anterior à independência, Nelson resgata como manifestações únicas da prosa de ficção moçambicana nomes como João Dias (Godido e Outros Contos, em 1952), Luís Bernardo Honwana (Nós Matamos o Cão Tinhoso, em 1964), Orlando Mendes (Portagem, em 1966) e Carneiro Gonçalves (Contos e Lendas, em 1975). "As Mãos dos Pretos", que deu nome a esta antologia, é também título de um dos textos selecionados para ilustrar a obra de Luís Bernardo Honwana. Nelson Saúte justifica a escolha deste texto com a seguinte frase: "talvez seja o mais belo conto que jamais se escreveu desde sempre na literatura moçambicana". Nos anos 80 registou-se então uma verdadeira explosão de talentos, a maioria dos quais confirmaram-se mais tarde. À sombra do projecto "Charrua", a literatura moçambicana foi conquistando nomes e enriquecendo com escritas emblemáticas. Ungulani Ba Ka Khosa com as suas estórias e Mia Couto, um dos mais conhecidos escritores moçambicanos da actualidade, são dois dos nomes que se destacam nesta época. Orlando Muhlanga, com o Diário de Sangue, um dos prosadores mais importantes do final do século XX revela-se já nos anos 90. "Com uma impressiva capacidade efabulatória, Muhlanga conta a guerra no seu interior, na dimensão fortíssima da sua crueldade", relembra Nelson Saúte. A par de Ba Ka Khosa e Mia Couto, Aldino Muianga, Lília Momplé e Paulina Chiziane, entre outros, vêm colocar um ponto final na característica trágica que ensombrava a ficção moçambicana até então. Por último, a antologia intitulada "As Mãos dos Pretos" fica concluída com três textos do responsável pela apresentação deste manancial de ficção, Nelson Saúte.

Nelson Saúte (1967)


Nelson Saúte nasceu em Maputo, Moçambique, em 1967. Formado em Ciências de Comunicação, na Universidade Nova de Lisboa, foi jornalista na imprensa, na rádio e televisão e foi docente universitário.

Atualmente reside entre Maputo e S. Paulo, onde frequenta o mestrado em Sociologia na USP (Universidade de São Paulo).

Publicou volumes de poesia, de ficção e de entrevistas, compilou e organizou antologias de poesia e de contos.

Seus livros estão publicados em Moçambique, Portugal, Brasil, Itália e Cabo Verde. É autor, entre outros títulos, de “O Apóstolo da Desgraça” (1999, contos) e “Os Narradores da Sobrevivência” (2000, romance), dos livros de poesia “A Pátria Dividida” (1993), “A Cidade Lúbrica” (1998), “A Viagem Profana” (2003) e “Maputo Blues” (2007), e organizou “As Mãos dos Pretos” (2001, antologia do conto moçambicano) e “Nunca Mais É Sábado” (2004, antologia de poesia moçambicana). “Escrevedor de Destinos” (2008) é o seu mais recente livro.

No Brasil é autor da Língua Geral onde editou “O homem que não podia olhar para trás” (Infanto-juvenil da coleção Mama Africa, em 2006) e o livro de contos “Rio dos Bons Sinais” (2007 na Língua Geral no Brasil e na Dom Quixote em 2008).

Fonte:
http://www.pnetliteratura.pt/membro.asp?id=551

Carol Almeida (Um Best-Seller é um Best-Seller)

Especialistas falam das leis que regem o mercado dos livros mais vendidos.

“Como posso escrever um livro pensando em agradar ao mesmo tempo a um caminhoneiro, uma dona de casa do Kansas e um nobre inglês? O que faço é seguir uma trilha imaginária de ideias que satisfaçam a minha curiosidade e emoções. O resto é sorte.” Sidney Sheldon

O prato fundo aguardava pelo caldo quente de uma receita que, estava certo, só poderia ser mágica, talvez até magicamente malévola. Um conforto apetitoso para os inocentes juízes que imaginam ser próprio da alquimia criar algo que escapa de sua compreensão e, pior, de seu controle. Mas a sopa não veio e no prato fundo ficou apenas o reflexo de dúvidas projetadas na porcelana da lógica crítica. O que best-sellers e mega-sellers têm a ver com isso? Eles eram o prato do dia, o que não foi servido. Imaginava-se que esse prato poderia ser desmembrado pelo aguçado paladar de gourmets literários prontos para descrever todos os ingredientes que fizeram daquela obra um caldo comercialmente imbatível e, quem sabe, copiar a receita em causa própria.

Quando surgiu na mesa a ideia de um texto sobre a liga que une livros de ficção que vendem milhões de cópias, havia no ar uma condenável inocência de que não poderia ser tão difícil assim, ou ao menos não tão rebuscadamente difícil, extrair o sumo do sucesso editorial de títulos que, a despeito de todas as profecias sobre o fim do livro, quebram recordes de venda, chegam aos cinemas, à TV e transformam alguns escritores em milionárias ou bilionárias celebridades. Mas aí veio o primeiro sinal de que a sopa não chegaria assim mágica à mesa. Depois de um silencioso suspiro, Luciana Villas-Boas, diretora editorial da Record, foi desanimadoramente sincera: “Acho essa matéria que você está fazendo tão difícil. Acho que você vai penar.”

O que Luciana gentilmente quis dizer é que, não, ela não tinha receita, sequer ingredientes, que pudessem apontar o caminho das galinhas dos ovos de ouro do mercado editorial. No entanto, assim como ela, vários outros editores nos levaram a entender que, uma vez dentro da indústria de romances comerciais, existe, da parte das companhias editoras, um jogo de apostas altas em um atípico pôquer de cartas que se repetem na mesa, ainda que quase todas elas sejam de baralhos diferentes. E que, sim, assim como todo jogo, é preciso Sorte e Sensibilidade, nessa ordem, para saber jogar alto em títulos que podem dar certo.
Com a Sorte, a mesma mencionada acima pelo best-seller Sidney Sheldon, não nos foi cedida conversa. Mas com a Sensibilidade, houve um diálogo mais ou menos consensual que nos levou a entender, por exemplo, por que dificilmente um romance brasileiro emplaca entre os mais vendidos e quais os motivos que levam um editor a comprar os direitos de alguns títulos nos cada vez mais disputados leilões editoriais.

E antes de falar da Sensibilidade, uma breve introdução ao contexto das cartas repetidas.
No Brasil muito em particular, o mercado comporta pouca diversidade de títulos por ano. Em 2009, foram publicados cerca de 22 mil diferentes livros novos, enquanto nos Estados Unidos esse número foi de mais de 520 mil. Sendo assim, e segundo os editores brasileiros, não há espaço para a coexistência para mais de uma, ou no máximo duas febres temáticas. Portanto, a lista dos livros de ficção mais vendidos reflete aquilo que chamaremos da síndrome Andy Warhol do mercado editorial. Uma que transforma temas da ficção em uma serialização que pega carona e, para refletir recente caso de tema dominante, vampiriza um ou dois títulos de sucesso. As editoras passam a adotar uma reprodutibilidade mecânica refletida em estranhamente semelhantes capas de livro. No decalque editorial, alguns lançamentos chamam atenção pelo pouco disfarçado sintoma de Mulher Solteira Procura.

De outra maneira, não há como explicar casos como da capa e o próprio nome de Chá das cinco com o vampiro, da editora Objetiva. O livro, escrito pelo paranaense Miguel Sanches Neto, nasceu de conversas com o escritor curitibano Dalton Trevisan (conhecido por sua reclusão e nada contente com o lançamento de Sanches Neto), e agora é vendido, ao menos superficialmente, como mais um romance vampiresco adolescente, com direito a uma capa escura que ilustra a meia imagem de um aparentemente sedutor e nobre sanguessuga.
Apostando na compra impulsiva das imagens repetidas – mais uma vez, Andy Warhol, o profeta – a Objetiva e outras editoras como a Novo Século que recentemente lançou Opúsculo, paródia da saga Crepúsculo com capa e fontes praticamente idênticas à dos livros de Stephenie Meyer, tentam se segurar em alguma brecha do tronco temático para não sofrer as consequências dos ventos fortes que devastam os mais fracos .

Mas o caso da reprodução dos vampiros – e hoje o maior achado editorial não está na saga Crepúsculo (Intrínseca) e sim nos também seriados romances de Diários de um vampiro (Record) – é apenas mais um dos vários exemplos de temas dominantes que puxa linhas de genéricos e similares. Nos anos 1980, eram os thrillers policiais que se espalhavam pelos mais nobres displays das livrarias, em meados dos anos 90, com o surgimento do fenômeno Harry Potter (cujos direitos de publicação dos dois primeiros livros foram adquiridos por uma pechincha de 5 mil dólares pela editora Nova Fronteira), se espalhou pelo mercado brasileiro a febre da literatura fantástica, mais tarde ancorada por lançamentos cinematográficos que deram maior impulsão à venda dos livros.

As editoras começaram então a observar o público jovem com outros olhos e, com a garantia da preservação de best-sellers adultos por aquilo que não deixa de ser uma continuidade do fantástico em temas religiosos (O código da Vinci e seus discípulos), elas investiram nos anos 2000 em romances com jovens protagonistas que, entre eventos de aventuras sobrenaturais, estavam dispostos a evangelizar sobre o amor e o pecado original. Nada disso, no entanto, estava previsto. Para desconsolo de quem trabalha comprando o futuro, todas essas tendências simplesmente aconteceram.

“Esse é o mercado do imponderável”, sintetiza o professor e diretor da Biblioteca Nacional, Muniz Sodré, um dos poucos acadêmicos a publicar um livro sobre o mercado e os pontos de interseção entre os livros mais vendidos: Best-Sellers, a literatura de mercado, na coleção Princípios (Ática), publicado em 1988, quando o termo mega-sellers (títulos que vendem milhões) ainda não existia.

Para Sodré, sempre existiram e continuarão existindo pontos em comum entre todos os best-sellers de ficção, a independer do gênero em que eles se encaixam. Segundo ele, do ponto de vista do conteúdo, há quatro elementos presentes em todos os mais vendidos. O primeiro seria uma “retórica literária e clichês bem agenciados”, com uma linguagem de fácil acesso e amplo espaço para diálogos. O segundo seria a presença constante do mito do herói e, por tabela, a oposição entre o Bem e o Mal. O terceiro elemento seria o da “atualidade”, que tenta dar contextos contemporâneos à trama desenrolada e, por fim, o fator “pedagógico”, aquele que, no dobrar da última página, sempre tem algo a ensinar nas esperadas lições de moral. Com todos esses elementos se constrói uma literatura – e Sodré sustenta que se trata sim de uma literatura – “normalizadora”, em que facilmente o leitor consegue identificar o “normal” e o “estranho”. “A única diferença desses títulos para literatura canônica é que os grandes escritores inventam em cima da língua vernacular escrita. Eles criam uma nova língua. A literatura de massa não ficcionaliza a língua, mas sim o conteúdo.”

Os editores que buscam novos títulos, conhecedores e já experientes em identificar todos esses elementos, sustentam que eles podem até ajudar na hora de fazer escolhas, mas não determinam decisões. O que determina, segundo Tomás Pereira, um dos sócios da editora Sextante (nome constante na lista dos 10 mais vendidos), é a sensibilidade de leitor e a Amazon. “Acredito que a Amazon foi uma revolução no mercado editorial. Há uma grande quantidade de informação sobre cada título ali, explicações e referências muito mais vastas que qualquer livraria poderia oferecer. Se eu quero saber o ranking de vendas de um livro lá fora, posso ver como ele funcionou na França, na Alemanha. O que está começando a fazer sucesso nos Estados Unidos, as críticas, opinião dos leitores, tudo isso encontro lá”. Quanto ao “feeling”, Pereira explica que o processo é bem simples: “A primeira pergunta que você se faz é ‘qual é o tema desse livro?’. A segunda é ‘É um livro que leio com maior facilidade?’ e depois vem a sua própria experiência de leitor”.

Tomás Pereira, que hoje divide com seu irmão Marcos Pereira a tarefa de comandar a Sextante, lembra que a editora começou a publicar ficções depois que seu pai, Geraldo Jordão, leu sobre O código da Vinci na revista Publisher’s Weekly. “Ele resolveu então ler a história. E no dia depois que tinha pego o livro, disse que deveríamos publicar aquilo”, lembra Tomás. A essa altura, o romance começava a fazer sucesso nos Estados Unidos, mas o autor Dan Brown ainda era um ilustre desconhecido do leitor brasileiro. Com insistência do pai e relutância dos filhos, os direitos de publicação foram comprados por 12 mil dólares (contra 10 mil dólares que a Record havia oferecido, na pessoa de Luciana Villas-Boas). Os caixas das livrarias, a receita da Sextante e os mais de três milhões de exemplares vendidos só no Brasil sabem o resto da história.

Ao contrário de Muniz Sodré, Tomás acredita que, uma vez criadas as caixas que compartimentam gêneros, esses romances que vendem centenas de milhares e milhões de exemplares não deveriam ser chamados de literatura. “Trata-se de ficção comercial”, simplifica ele. “Acho que há leituras das quais você sai enriquecido com ideias e conceitos que você guarda pra vida inteira. Isso é literatura. Desses livros comerciais, posso não lembrar nada depois que fecho a última página, mas não vou esquecer aquela experiência extremamente prazerosa que tive durante sua leitura”. Para Tomás, é essa “experiência de leitura” a seiva que alimenta a procura pelo próximo grande best-seller.

Com um termo mais mercadológico, Juliana Cirne, que gerencia a comunicação da editora Intrínseca (coligada da editora Sextante e proprietária dos direitos da saga do jovem Percy Jackson, o novo Harry Potter), define isso como uma “pegada de turning pages” que, em outras palavras, seria explicada pelo grau de ansiedade que um leitor tem em saber o que acontece na próxima página.

Veterana de cassinos do mercado editorial, Luciana Villas-Boas diz que nem mesmo a sensibilidade de leitora ajuda na hora de escolher alguns títulos. “Acho que essa sensibilidade vai até se deteriorando com o tempo”, reflete. Ainda assim, experiente no ramo, ela afirma que, em última análise, tudo se reduz a um jogo e que, não, profissionais do marketing e a vasta publicação sobre tendências de consumo não têm relação alguma com o que acontece no mercado editorial.

“É impossível que análises de consumo identifiquem tendências para o mercado editorial.” Ainda segundo Luciana, essas mesmas pesquisas de marketing podem sim ajudar na venda dos livros, mas não na produção deles ou seleção de títulos por parte das editoras. “Se houvesse fórmula o negócio editorial não seria tão difícil. Você tem que apostar em vários títulos que não certo para conseguir achar um que sustenta a editora por muito tempo. Há um elemento de jogo muito grande”, garante.

Nesse jogo de mais exceções do que regras, há três pontos em comum entre todos as pessoas entrevistadas para este texto. A primeira é de que se torna mais fácil promover e vender um título hoje entrando em contato direto com o leitor, seja a partir de comunidades na internet ou mesmo com a bem-sucedida distribuição de livros pela Avon (as revendedoras da linha de cosméticos venderam cerca de 300 mil cópias da Menina que roubava livros por todo o País, incluindo aí localizações sem acesso a livrarias).

O segundo consenso está na resposta do porquê da comum ausência de títulos nacionais na lista dos mais vendidos. “Raramente no Brasil você tem histórias que retratem um momento histórico e que sejam contadas com uma linguagem fina, porém sem malabarismos vanguardistas e sem buscar a linguagem da rua que o escritor desconhece e, por isso, quando escreve, soa muitas vezes forçada”, aponta Luciana. Juliana Cirne, da Intrínseca, pontua que o caso é, em alguns momentos, prioridade administrativa. “Já chegaram coisas muito bacanas de escritores brasileiros, mas ainda não temos estrutura para atender o autor nacional, que é alguém que acompanha mais de perto o processo de edição do livro. Mas estamos crescendo muito, quem sabe logo em breve teremos esse espaço”.

Tomás Pereira, da Sextante, retoma a questão do conteúdo industrial: “Falta quantidade e qualidade” para que romances nacionais se encaixem no perfil comercial. Muniz Sodré segue a mesma opinião: “A quantidade acaba gerando qualidade e o Brasil não tem uma indústria editorial forte que comporte uma grande produção nacional.” Para todos eles, questões de identificações com realidades mais próximas podem muito bem ser substituídas por elementos universais da fantasia que se desloca de um eixo local.

O terceiro ponto em comum no caso específico do Brasil se explica com aquele efeito da síndrome Andy Warhol. Os editores entendem que existem filões temáticos e, para eles, nada mais natural que buscar o melhor caminho na mesma estrada. Até que, um dia, a repetição se esgote, o tema se sature e alguém comece a juntar os misteriosos ingredientes certos para a próxima sopa que irá aquecer o mercado editorial.

Fonte:
Pernambuco. Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado. Edição 51.