quarta-feira, 2 de junho de 2010

José Paulo Paes (Os Melhores Poemas)



Publicado em 1996, Os Melhores Poemas de José Paulo Paes é uma seleção, feita por David Arrigucci Jr, eficiente da produção de um dos nomes mais importantes da poesia contemporânea brasileira.

O primeiro aspecto que chama a atenção na sua obra é o caráter extremamente conciso, quase telegráfico de sua linguagem. Trata-se do que se convencionou chamar de minimalismo, que remonta em alguns aspectos à literatura telegráfica de Oswald de Andrade. É o que se percebe no poema abaixo.

POÉTICA

conciso? com siso
prolixo? pro lixo

Note como, de forma bastante resumida e econômica, pregam-se as idéias mais importantes do fazer literário de José Paulo Paes (daí o título): a concisão, ou seja, a preocupação com o essencial é considerada uma atitude certa, ajuizada, com siso. Dentro desse postulado, ser prolixo, ou seja, usar palavras em demasia, sem conseguir ser sucinto, é produzir arte sem qualidade, que merece ir para o lixo.

Pode-se observar no texto apresentado também o destaque que é dado à palavra no seu aspecto material, concreto, ou seja, no plano do significante. É uma característica constante em José Paulo Paes e que o vincula ao Concretismo, movimento literário inaugurado em 1956 por Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos. Ainda assim, não se deve pensar que se trata aqui de mero exercício lúdico com o texto produzindo arte alienada, qualidade constante e injustamente apontada nessa vertente artística. Basta ler exemplos como a seguir.

EPITÁFIO PARA UM BANQUEIRO

negócio
ego
ócio
cio
0

Deve-se lembrar que epitáfio é um texto que se coloca sobre um túmulo e que se propõe como um resumo da existência daquele que está enterrado. O título do poema, portanto, nos ajuda em muito na interpretação do poema. Trata-se de uma súmula do que a vida de um banqueiro. Sua primordial preocupação já aparece no primeiro verso: negócio. Esse termo é uma palavra-valise, ou seja, contém dentro de si várias outras, que são desmembradas nos versos subseqüentes, sempre contribuindo para compreensão do texto. Basta lembrar que “ego” lembra o egocentrismo que representou a preocupação com lucro acima de tudo, quase como um “cio”, uma obsessão desenfreada, numa atividade inútil, já que a usura é o pão ganho sem suor (“ócio”), que acabou por anular a existência desse sujeito, conforme muito bem se vê no último verso pelo signo “0”.

Entretanto, o poeta não se aproxima apenas de Oswald de Andrade e dos concretistas. Sente-se nele uma familiaridade com Drummond, principalmente no aspecto gauche de alguns poemas. Basta ler o texto abaixo, retirado de Prosas Seguidas de Odes Mínimas, um dos momentos mais felizes do autor.

CANÇÃO DO ADOLESCENTE

Se mais bem olhardes
notareis que as rugas
umas são postiças
outras literárias.
Notareis ainda
o que mais escondo:
a descontinuidade
do meu corpo híbrido.
Quando corto a rua
para me ocultar
as mulheres riem
(sempre tão agudas!)
do meu corpo.
Que força macabra
misturou pedaços
de criança e homem
para me criar?
Se quereis salvar-me
desta anatomia,
batizai-me depressa
com as inefáveis
as assustadoras
águas do mundo.

Note que o eu-lírico se descreve como uma junção um tanto desajeitada do adolescente com o amadurecido, criando um híbrido dotado de uma anatomia que inspira dó ou riso. Mas o tom drummondiano também é percebido pelo cansaço com que enxerga a geração humana. E, assim como o poeta mineiro, o desencanto com a nossa espécie não é suficiente para anular de maneira niilista o desejo por viver. É o que se vê abaixo, em “Mundo Novo”.

MUNDO NOVO

Como estás vendo, não valeu a pena tanto esforço:
a urgência na construção da Arca
o rigor na escolha dos sobreviventes
a monotonia da vida a bordo desde os primeiros dias
a carestia aceita com resmungos nos últimos dias
os olhos cansados de buscar um sol continuamente adiado.

E no entanto sabias de antemão que seria assim. Sabias que a pomba iria trazer não um ramo de oliva mas de espinheiro.

Sabias e não disseste nada a nós, teus tripulantes, que ora vês lavrando com as mesmas enxadas de Caim e Abel a terra mal enxuta do Dilúvio.

Aliás, se nos dissesses, nós não te acreditaríamos.

Veja que se assume o tom de “no entanto, prosseguimos animadamente vivendo” de algumas peças preciosas do Rosa do Povo, de Drummond, pois ocorre também a defesa da existência, por pior que seja.

Além de vincular-se ao célebre poeta da pedra, José Paulo Paes apresenta a mesma afetividade com que Bandeira recupera, por meio da memória, personagens do seu círculo familiar, principalmente as que povoaram sua infância. É o que pode ser visto, entre tantos exemplos, no texto abaixo, que resume as características das várias personagens descritas na obra, em poemas individualizados.

A CASA

Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas.

Na livraria, há um avô que faz cartões de boas-festas com corações de purpurina.
Na tipografia, um tio que imprime avisos fúnebres e programas de circo.
Na sala de visitas, um pai que lê romances policiais até o fim dos tempos.
No quarto, uma mãe que está sempre parindo a última filha.
Na sala de jantar, uma tia que lustra cuidadosamente o seu próprio caixão.
Na copa, uma prima que passa a ferro todas as mortalhas da família.
Na cozinha, uma avó que conta noite e dia histórias do outro mundo.
No quintal, um preto velho que morreu na Guerra do Paraguai rachando lenha.
E no telhado um menino medroso que espia todos eles; só que está vivo: trouxe- até ali o pássaro dos sonhos.
Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-na depressa.

Antes que ele acorde e se descubra também morto.


É interessante perceber que o estilo conciso adotado pelo autor acaba por tornar todo o poema densamente carregado de significado. Tudo contribui para o sentido geral do texto. Basta notar as referências, explícitas ou implícitas, à idéia de morte em quase todas as personagens: “avisos fúnebres”, “romances policiais”, “caixão”, “mortalhas”, “outro mundo”, “morreu”. Olhar para o passado e relembrar figuras que não existem mais é ter consciência da passagem do tempo, o que implica a noção de envelhecimento e morte.

Outro aspecto importante para ser lembrado, e que constitui uma pista interpretativa bastante útil deixada pelo autor, é o fato de que a recuperação do seu passado é obtida graças à asa dos sonhos. Podem ser vistos aqui traços que nos façam prestar atenção ao caráter romântico (sonho, fantasia, emotividade) e algo entre simbolismo e surrealismo, principalmente este último. José Paulo Paes detona um conjunto de imagens de relação absurda entre si, como que ditadas por um pensar em delírio e, portanto, livre das peias racionalistas. No entanto, é esse pássaro dos sonhos que lhe dá fôlego suficiente para ter, absurdamente ou não, uma visão ousadamente perfeita de nossa realidade.

Dentro ainda do campo do absurdo, deve-se lembrar que um esquema muito comum no poeta é a utilização das antíteses e principalmente paradoxos (figuras de linguagem ligadas à oposição) na expressão de sua realidade. O que José Paulo Paes parece fazer é juntar elementos completamente contrários e por meio da forte tensão que se forma dessa união ganhar energia suficiente para que se enxergue mais eficientemente a realidade do que pela lógica racional. É o que se vê, entre tantos casos, no trecho abaixo:

OUTRO RETRATO

O laço de fita
que prende os cabelos
da moça do retrato
mais parece uma borboleta.

Um ventinho qualquer
e sai voando
rumo a outra vida
além do retrato.

Uma vida onde os maridos
nunca chegam tarde
com um gosto amargo
na boca.

Deve-se observar que a idéia de laço, numa análise superficial, está ligada a prisão, opondo-se, portanto, a vôo. No entanto, de forma surrealista, o nó corredio é facilmente associado a borboleta. Um estudo profundo revela que tal associação não é, porém, absurda, já que remonta à idéia de que todo retrato faz retomar um passado em que sonhos, desejos eram montados cheios de idealização. Dessa forma, o poema acaba por avaliar agudamente o presente, que se desviou grosseiramente das expectativas de um passado ingênuo.

Também é necessário lembrar que José Paulo Paes possui um ponto de contato com uma qualidade comum a Bandeira e Drummond: a emotividade retirada das coisas simples, cotidianas. Consegue, da mesma forma que os dois pilares da poesia modernista, ter os mesmos passos de um cronista moderno, alçando vôos líricos altíssimos.

Curioso é perceber que os últimos quatro textos, tratados por nós como poemas, na realidade são “prosas”. Sua elaboração, no entanto, recebe um trato de linguagem tal que se aproximam por demais da poesia. Pode-se tratar, portanto, de um famoso gênero criado pelos simbolistas, o da prosa poética, já percorrido por Cruz e Sousa, Aníbal Machado e Rubem Braga. Mas José Paulo Paes, nesse contexto, é insuperável.

Há também em Paes a presença de odes. Entende-se esse gênero como o de poemas para a exaltação. Têm, tradicionalmente, um tom grandioso. No entanto, o presente poeta engrandece coisas simples, como um alfinete, um fósforo, uma garrafa ou até mesmo a tinta de escrever, como se vê a seguir

À TINTA DE ESCREVER

Ao teu azul fidalgo mortifica
registrar a notícia, escrever
o bilhete, assinar a promissória
esses filhos do momento. Sonhas

mais duradouro o pergaminho
onde pudesses, arte longa em vida breve
inscrever, vitríolo o epigrama, lágrima
a elegia, bronze a epopéia.

Mas já que o duradouro de hoje nem
espera a tinta do jornal secar,
firma, azul, a tua promissória
ao minuto e adeus que agora é tudo História.


Deve-se lembrar o mesmo comentário que Antonio Candido fez sobre a crônica no primeiro volume da coleção Para Gostar de Ler, da Ática. Há em José Paulo Paes uma predileção pelo pequeno, pelo mínimo, que lhe alimenta de fôlego suficiente para não só engrandecê-lo, mas também de buscar o gigantesco. Como nos dizeres de um outro crítico, David Arrigucci Jr, José Paulo Paes consegue o máximo com o mínimo. É o que se vê majestosamente na sua ode mais extensa, “À Minha Perna Esquerda”, em que consegue relatar o drama (que não resvala no piegas) de ter o referido membro amputado. É um dos textos mais belos, carregado do trágico, patético e até mesmo do irônico, traço muito comum do poeta, aliás. Sua dor pessoal acaba destilando imagens demoníacas e surrealistas que fazem eco na dor existencial humana.

Dessa forma, não se deve pensar que, mesmo inspirado em monstros sagrados de nossa poesia, o poeta acaba perdendo sua qualidade, ou mesmo sua grandiosidade. Como já se disse, José Paulo Paes está entre os maiores nomes da nossa literatura, merecendo ser leitura não apenas para vestibular, mas para momentos em que se busca o prazer estético, um dos ingredientes básicos para uma existência completa.

Fonte:
www.lol.pro.br

Batista de Lima (O Herói que não Retorna)



Gerôncio era o coveiro de Tabocal. Rezava todo dia para que alguém morresse. Mas, quando muito, havia um sepultamento por ano. Era às vezes um velhinho que morria de velho ou um anjinho que morria de fome. Preferível ser um velho, daqueles com dente de ouro ou aliança de casamento esquecida pela família na inutilidade da mão esquerda.

Para evitar de desenterrar defunto pobre, Gerôncio conhecia de cor e salteado os portadores de dente de ouro da região. Aí era só ir, no dia do enterro, alta noite, com a lanterna, o martelo e a pá, retirar a terra frouxa da cova e desenterrar o morto. Depois, era só quebrar o dente com o martelo e levar o ouro para casa. Ele não esquece a morte do Pai do coronel Nicodemos. Foram cinco dentes de ouro dezoito. Finalmente comprou seu casebre onde mora até hoje, lá na ponta da rua.

Mas aí morreu a filha do fazendeiro Antônio Moreno. A menina tomava banho na beira do rio às oito da manhã quando caiu durinha. Não tornou mais. Trouxeram o corpo para casa e velaram até às cinco da tarde, quando se procedeu o enterro com todos os rituais cristãos. O repinique o dia inteiro, no sino da capela, parecia anunciar enterro de anjo rico. As flores eram muitas. No campo santo foi aberto o caixão para que o irmão mais velho, chegado de longe na última hora, visse o corpo da irmã. Estava linda, com todos seus anéis nos dedos e colares no pescoço.

Gerôncio não esperou pela meia-noite, veio logo às sete e escavou a sepultura da menina. Mal abriu a tampa do caixão, a finada mexeu-se e foi logo limpando a terra dos olhos. O coveiro, assombrado, embrenhou-se na mata em disparada e nunca mais foi visto por ali. Quanto à moça, que voltou para casa assombrando a cidadezinha, foi dada como doente de catalepsia, escapada por milagre. Hoje está lá contando a história para quem quiser ouvir e ainda guarda a fazenda Gitirana para dar de presente ao salvador de sua vida. Só que o delegado tem uma cela pronta pra quando Gerôncio voltar.

Fontes:
Nilto Maciel e Soares Feitosa. Jornal do Conto

Considerações sobre "A Literatura no Brasil"



A crítica literária brasileira tem passado por nítidas mudanças nos últimos 40 anos. Dentro do âmbito acadêmico, duas figuras marcaram o pensamento crítico brasileiro da segunda metade do século XX: Afrânio Coutinho e Antonio Cândido. Nas décadas de 80 e 90, a tendência da crítica, nas universidades brasileiras, foi de retomada e releitura da historiografia e crítica realizada desde os primeiros românticos com seus bosquejos e florilégios, passando pela geração do realismo-naturalismo de Sílvio Romero, Araripe Jr. e José Veríssimo, até os dias de Antonio Cândido. Sobre o trabalho crítico deste último, foram publicados estudos de relevo como Antonio Cândido: a palavra empenhada, de Célia Pedrosa ou "Antonio Cândido: formação da literatura brasileira", de Benjamin Abdala.

Mesmo Alfredo Bosi vem merecendo várias reflexões do seu trabalho de crítico, como bem o demonstram, por exemplo, os excelentes artigos de Roberto Reis "A redoma e o bumerangue: assédios à cultura brasileira", e o de Roberto Schwarz, "Discutindo com Alfredo Bosi". Mas sobre Afrânio Coutinho encontramos parcos comentários e miúdas menções, sempre em comparação ao trabalho de Antonio Cândido, em estudos que resumem os passos que tem dado a historiografia literária no Brasil. Podemos citar entre outros: "Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica brasileira moderna", de Flora Sussekind; "Historiografia literária do Brasil", de Benedito Nunes; além do artigo de Luís Roberto Veloso Cairo intitulado "História da Literatura, Literatura Comparada e Crítica Literária: frágeis fronteiras disciplinares."

Diante da carência de trabalhos de peso sobre Afrânio Coutinho, justifica-se a pretensão de fazer algumas considerações, ainda que de forma preliminar, sobre as idéias e pretensões do autor nos prefácios e introdução da monumental obra que organizou, dirigiu e publicou em seis volumes: A literatura no Brasil. Em 1952, Afrânio foi encarregado pelo professor Leonídio Ribeiro, diretor do Instituto Larragoiti, de planejar e dirigir a publicação de uma história literária, A literatura no Brasil, com a colaboração de uma equipe de especialistas. A obra foi publicada, em quatro volumes, de 1955 a 1959, sendo ampliada para seis volumes na edição de 1968 –71, revista e atualizada em 1986.

Afrânio Coutinho nasceu em Salvador, Bahia, a 15 de março de 1911, filho de família tradicional, fez os cursos primário e secundário em sua terra natal, onde também se formou em Medicina em 1931. Não seguiu a carreira de médico, mas exerceu a função de professor do ensino secundário e de bibliotecário até 1942. Após cinco anos nos Estados Unidos, trabalhando como redator-secretário da revista Seleções do Reader’s Digest, foi nomeado professor catedrático de literatura no Colégio D. Pedro II. Em 1948, inaugurou, no Suplemento Literário do Diário de Notícias, a seção "Correntes Cruzadas", que manteve até 1961, debatendo problemas de crítica e teoria literária. Em 1940, publicou seu primeiro livro de crítica: A filosofia de Machado de Assis. Em 1958, fez concurso para livre docente da cadeira de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, hoje UFRJ. Em 1967, consegue criar a Faculdade de Letras e foi seu primeiro diretor, função que exerceu até 1980, quando se aposentou.

Em seu artigo "Rodapés, tratados e ensaios...", acima citado, Flora Sussekind traça em linhas gerais, as transformações por que tem passado a crítica literária brasileira nas últimas quatro décadas. Ela descreve três modelos de crítico na história da crítica no Brasil: o crítico de rodapé, o crítico universitário e o crítico teórico. O primeiro, muito popular nos anos 40 e 50, era o homem de letras, o bacharel, tinha como veículo privilegiado o jornal, era cultivador da eloqüência, adaptado às exigências e ao ritmo industrial da imprensa, acostumado a ter uma publicidade muito grande e um diálogo estreito com o mercado e com o movimento editorial. O crítico universitário, que apareceu nos meados dos anos 40, era o tipo ligado à especialização acadêmica, o homem formado e pós-graduado em Letras, cujas formas de expressão dominantes seriam o livro e a cátedra; e, por fim, o crítico teórico, "um desdobramento do personagem anterior e tendo como marca distintiva a auto-reflexão", porque, nas décadas de 60 e 70, dificultado o acesso à imprensa, a crítica universitária se vê restrita à população acadêmica mesmo.

Afrânio Coutinho se encaixava entre os críticos do segundo modelo, tendo feito parte de "uma geração de críticos, e críticos-escolares, que passa a olhar com desconfiança crescente para o modelo tradicional do ‘homem de letras’ e para o tratamento anedótico-biográfico em geral concedido à literatura na imprensa." O organizador de A literatura no Brasil defendia ardorosamente a habilitação específica para o crítico literário: "Formação tão ampla e complicada só pode ser adquirida no lugar adequado que são as universidades e faculdades de letras." (Jornal de letras, agosto de 1957). Em razão dessa postura, Afrânio protagonizou um combate, que durou quase uma década, à critica de rodapé, nos anos 50, tomando Álvaro Lins como alvo predileto.

Uma vez delineado o perfil do crítico, Flora Sussekind tece considerações sobre a obra A literatura no Brasil. A autora afirma que Afrânio defendia a autonomia plena do literário, fazendo uma supressão parcial da história em seus estudos literários. Ele reclamava que a crítica até então tinha sido dominada pelos fatores extrínsecos ou externos condicionantes da gênese do fenômeno literário. Afrânio delineia para a história literária um desenvolvimento imanente, interno, não condicionado por influências extraliterárias. Isto porque, para ele, o processo social se apresenta como fator eminentemente externo, ‘moldura’ para o que se desenrola no campo de produção cultural. Enfim, Afrânio propunha o privilégio de uma crítica estética.

De fato, Afrânio alega no prefácio à segunda edição de A literatura no Brasil que a obra é "uma história da literatura e não da cultura brasileira. O conceito dominante no livro é literário, isto é, encara a literatura como literatura, reduzindo-se por isso aos gêneros propriamente literários". Além de defender a supremacia da literatura sobre a história: "Se examinarmos as nossas obras, no particular, veremos que as domina o espírito histórico e não o espírito literário. São obras de história e não de literatura (...) Nossos historiadores conservando uma ilustre tradição, sempre se mostram com veleidades de fazer história literária, à maneira histórica, e não literária, é claro." (ALB, p. 61).

Deixando a história num lugar secundário, Afrânio declarava fazer uma história da literatura baseada na crítica estética e definia: "O estético é aquilo a que aspiram atualmente os estudiosos do problema em todo o mundo. A concepção estética da crítica impõe o reconhecimento do primado do texto. Parte do pressuposto de que o estético reside na obra, e não no autor ou no meio, o que leva a colocar em segundo plano os métodos extrínsecos de abordagem da literatura, como os históricos, sociológicos, biográficos, eruditos, válidos somente na medida em que proporcionam esclarecimentos sobre a obra." (ALB, p. 63)

Contudo, a história não parece ter ocupado um lugar assim tão secundário no projeto de Afrânio. Sobre o assunto, assegura Benedito Nunes que "dois critérios distintos presidem a historiografia de Afrânio Coutinho: um propriamente histórico, que leva à investigação dos traços nativistas; outro, estilístico, enquadrando, esteticamente, a periodologia literária."

Quanto à periodização, João Alexandre Barbosa a considera um dos pontos altos do trabalho de Afrânio Coutinho. Ele comenta em "Ensaio de historiografia literária brasileira" que "o maior valor da obra organizada e dirigida por Afrânio Coutinho reside na tentativa de elucidar modernamente alguns dos problemas fundamentais da Historiografia Literária, sobressaindo o da periodização que, na obra, obedeceu a critérios estilístico-sociológicos." João Alexandre observa que Afrânio procurou uniformidade na denominação de épocas, segundo uma determinante espiritual, inspiradora do estilo artístico, em lugar das tradicionais demarcações políticas de período colonial e nacional. Além disso, com a periodização estilística foi possível a Afrânio resgatar o Barroco brasileiro.

Realmente, Afrânio declara que "o princípio periodológico, tanto quanto o próprio princípio da história literária, deve decorrer de um conceito geral de literatura" (ALB, p. 14). Ele organizou sua história da literatura reagindo aos métodos historicistas dos historiadores anteriores, principalmente Sílvio Romero, porque a crença dominante até então era de que "a literatura é uma simples divisão da história geral" (ALB, p. 13). Enquanto a crítica estética adotada por Afrânio "considera a literatura com natureza e finalidades específicas, com valor próprio e exigindo escala de padrões própria para ser devidamente julgada" (ALB, p. 11).

Para Afrânio, na literatura brasileira, como na portuguesa, as divisões tradicionais dos períodos literários referem-se, com ligeiras diferenças, a critérios políticos e históricos, com subdivisões arbitrárias, por séculos, decênios ou escolas literárias. Também sempre houve uma mistura na utilização dos termos indicadores do tempo; era, fase época, período, idade e, como conseqüência, a falta de critério científico no estabelecimento dos períodos acarreta o ceticismo de muitos (ALB, p. 14). Afrânio, então, descreve as soluções brasileiras para o problema da história da literatura e para a periodologia encontradas pelos críticos anteriores: a utilização da fórmula cronológica e da conceituação sociológica e historicista (ALB, p. 20). Afrânio faz um relato resumido do que tem sido a prática da historiografia literária no Brasil desde os românticos, com ênfase no em Sílvio Romero, duramente criticado por ter concebido a literatura apenas como resultante de forças exteriores determinantes (meio, raça e momento). Afirma que o maior problema para os historiadores anteriores foi a periodologia; em seguida, descreve com detalhes, as divisões periódicas feitas por Wolf, o cônego Fernandes Pinheiro, Sílvio Romero (novamente criticado com dureza, por ter apresentado uma primeira divisão como definitiva e em edições posteriores de sua história da literatura apareceu com mais três), José Veríssimo, Ronald de Carvalho, Artur Mota e Afrânio Peixoto. Todos igualmente pecaram por incidirem no critério político, misturando-o com a pura cronologia (ALB, p. 23).

Para Afrânio, de Wolf a Sílvio Romero, e de José Veríssimo a Ronald de Carvalho, o problema da periodização vincula-se ao conteúdo nacional da literatura. Sem condenar o nacionalismo, Afrânio declara que a verdadeira solução está na historiografia literária que seja a descrição do processo evolutivo como integração dos estilos artísticos. Assim, as divisões de A literatura no Brasil correspondem aos grandes estilos artísticos que tiveram representação no Brasil. Para Afrânio, a evolução das formas estéticas no Brasil corporificou-se nos seguintes estilos: barroquismo, neoclassicismo, arcadismo, romantismo, realismo, naturalismo, parnasianismo, simbolismo, impressionismo, modernismo (ALB, p. 23-24). E foi dessa forma que fez a divisão em sua obra, utilizando o termo ‘era’, temos no volume dois as eras barroca e neoclássica, o volume três trata da era romântica, as eras realistas e de transição estão nos volume quatro, a era modernista preenche todo o volume cinco, sendo o volume seis todo dedicado para o contemporâneo na literatura, contendo a evolução do conto, da literatura dramática e da lírica e um capítulo para a literatura infantil, entre outros.

Flora Sussekind considera que a periodização de Afrânio apresenta alguns problemas exatamente porque, quando ele fala da sucessão de estilos estéticos que compõem a sua obra, refere-se a uma escalada evolutiva linear cujo cume estaria na solidificação da ‘consciência nacional’. A autora observa que ‘evolução’ e ‘nacionalidade’ parecem ser as noções chaves para Afrânio, parecendo por sua vez insinuar que Afrânio continua, como seus antecessores, preso à história e à cronologia, repetindo na sua história da literatura o que havia condenado nos outros. Mas Afrânio explica nas páginas iniciais de seu primeiro prefácio que "a crítica estética não implica o afastamento ou isolamento de outros conhecimentos necessários à situação da obra literária e à compreensão de suas relações no tempo e no espaço. São conhecimentos secundários, subsidiários, auxiliares, mas que não se podem omitir" (ALB, p. 12). Afrânio nunca pretendeu expulsar os elementos histórico e temporal de sua obra, somente tentou lhes dar um papel apenas secundário.

Não se pode tirar o crédito de Afrânio Coutinho ter percebido que a periodização era um dos problemas nevrálgicos da historiografia literária brasileira e ele feriu todos os pontos fundamentais do assunto: a) que os critérios político e cronológico não ofereciam qualquer orientação para a caracterização literária do período; b) que tais critérios implicavam o reconhecimento da dependência e determinação da literatura pelos acontecimentos políticos ou sociais; c) a ausência de limites precisos e absolutos entre os períodos; d) que os períodos são unidades vitais, dotados de realidade, não existindo entre eles fronteiras nítidas, nem marcos iniciais e términos fixos; e) que dificilmente uma obra se poderia definir como totalmente pertencente a um estilo. Afrânio buscava uma atualização metodológica constante, mas sobretudo queria tornar a literatura independente da história, da política e outros elementos que a pudessem manter atrelada. Ele desejava a autonomia da literatura, ele acreditava que ela poderia ser autônoma. Afrânio percebeu que a crítica só funcionava quando estudava a literatura atrelada a elementos extrínsecos: o método histórico, o biografismo, língua, raça, meio geográfico e social, momento. Afrânio alega que "os conhecimentos da história econômica, social, política, da história das idéias, história das outras artes, etnologia, antropologia, filosofia são colaterais ou auxiliares. A literatura está para os outros fenômenos da vida em posição de relação, não de dependência ou submissão (...) tendo o mesmo valor que as demais expressões da atividade humana" (ALB, p. 12). Situação parecida vive a crítica contemporânea, quando os críticos universitários que adotam a literatura comparada como campo de estudos realizam sua pesquisa atrelando a literatura aos estudos culturais.

Os três prefácios e a introdução de Afrânio Coutinho para a obra A literatura no Brasil contém um material riquíssimo para análise e reflexão. Os dois primeiros prefácios são bem extensos e detalhados, com cerca de 50 páginas cada um, sendo que o prefácio para a 3ª edição só contém três parágrafos. O prefácio à primeira edição está dividido em 6 partes: a questão da história da literatura, a periodização, as soluções brasileiras, definição e caracteres da literatura brasileira, as influências estrangeiras e, finalmente, o conceito e plano da obra. Cada parte é cuidadosamente trabalhada para mostrar ao leitor a importância e conveniência da crítica estética. Nesse mesmo prefácio, Afrânio se utiliza muito da história para apontar os fatos marcantes da historiografia literária brasileira desde seus inícios e para elucidar os problemas fundamentais da mesma. Se no prefácio não foi possível abrir mão do elemento histórico, muito menos no desenvolvimento total da obra e Afrânio era consciente disso. Como já foram apontados, os pontos altos da obra são a renovação da periodologia, o resgate do Barroco, percepção aguçada dos principais problemas que afligiam o fazer da historiografia literária e o trabalho em equipe. É importante ressaltar que Afrânio não convocou a colaboração de críticos apenas do eixo Rio-São Paulo, mas também de outros estados do Brasil, como o baiano Herom de Alencar, valorizando e resgatando os estudos críticos em âmbito nacional.

Também vale a pena destacar o fato de que Afrânio não ignorou a questão da formação da literatura brasileira. Flora Sussekind é da opinião de que o interesse de Antonio Cândido ao escrever a Formação da literatura brasileira foi detectar o momento em que a literatura brasileira passou a constituir um sistema por aqui, e que para Afrânio "a constituição de um sistema literário não é propriamente uma questão, trata-se, na verdade, de registrar as diferentes manifestações literárias que se sucederam no Brasil". Ele estaria interessado apenas na literatura que circula no país. Mas Afrânio descreve ou tenta descrever o que ele chama de drama da formação da literatura brasileira.

O assunto para o qual Antonio Cândido dedicou todo um livro, ocupa umas quinze páginas do prefácio à primeira edição, mas é bastante curioso observar as considerações feitas por Afrânio Coutinho sobre as características que marcam a evolução da literatura brasileira (ALB, p. 25-39): predomínio do lirismo, exaltação da natureza, ausência de tradição, alienação do escritor, divórcio com o povo, ausência de consciência técnica, culto da improvisação, literatura e política, imitação e originalidade, metrópole e província (grifo nosso). São dez ao todo. Quatro se destacam porque já antecipavam as insatisfações da atualidade com as exclusões e elitismo do cânone literário nacional. Afrânio descreve o escritores como alienados porque vivem divorciados de uma tradição, separados dos predecessores, da sociedade que o desconhece, ignorante de seus pares aos quais não presta atenção. Esses elementos resultam em marginalidade, isolamento, esquecimento após a morte, sendo que atualmente sabemos que tais condições atingiram principalmente as escritoras.

Outro ponto relevante destacado por Afrânio é o da ausência de tradição. A luta entre a tradição importada e uma possível tradição nova se constituiu no grande drama de nossa evolução intelectual, não permitindo que vingasse uma tradição por aqui, que se constituísse num ‘passado útil’ para a inspiração dos escritores. Cada escritor, cada geração sente-se obrigada a partir do começo (ALB, p.36). Além disso, permanece hoje o divórcio com o povo, Afrânio foi atualíssimo em afirmar que a literatura no Brasil sempre foi destinada a um público reduzido, de elite. O conteúdo de A literatura no Brasil mostra isso: o cânone apresentado no livro está ampliado, resgatando a literatura de várias regiões do Brasil, nunca antes estudadas ou catalogadas por nenhum estudioso, mas ainda de caráter elitista, privilegiando a literatura erudita, mas não a literatura popular ou a de massa. Entramos o século XXI e o povo continua sem poder aquisitivo para comprar livros, como disse Afrânio: "povo distante, deserdado e analfabeto".

No prefácio à segunda edição, publicada uns dez anos depois da primeira, encontramos um Afrânio Coutinho bem mais cauteloso. Esse prefácio se inicia com Afrânio apresentando suas credenciais de professor catedrático e habilitado a organizar tal obra de historiografia por convite de Leonídio Ribeiro, pessoa de autoridade e respeito na época. Receber um convite dessa natureza já demonstravam o prestígio e a qualificação de Afrânio para a realização da empreitada de uma publicação de uma história da literatura brasileira. O prefácio é tão ou mais longo que o primeiro, contendo 28 partes de poucos parágrafos cada uma. De antemão, Afrânio avisa aos leitores que vai discutir os pontos de doutrina da obra e responder às críticas emitidas quando da sua primeira publicação. Em seguida discorre cuidadosamente sobre a nova critica, o conceito de estética, a periodização, as relações entre literatura e história, entre história e crítica, a autonomia da literatura, espírito profissional, concepção estilística, literatura e vida, o demônio da cronologia e o barroco, entre outros assuntos. Ou seja, tudo o que já havia mencionado na primeira edição, acrescido de outros elementos considerados relevantes para legitimar seu ponto de vista de que o melhor método a ser adotado era o da crítica estética.

O prefácio à terceira edição ocupa meia página, com três curtíssimos parágrafos, apenas para informar que o modernismo tinha chegado ao seu término por volta de 1960 e os novos rumos abriam um período já cognominado de pós-modernismo; que a Literatura Brasileira atingira o estágio de total identidade e autonomia nacional na década de 80 e que as edições anteriores há muito esgotadas justificam a republicação de A literatura no Brasil. Parece bem patente que nesse momento, sendo a terceira edição de 1986, Afrânio, já aposentado, considere que já disse o que tinha para dizer e sabendo que a crítica estética já está ultrapassada, não sente necessidade de acrescentar mais nada aos leitores em termos de prefácio.

Finalmente, importa observar que Afrânio bem registrou que "a vida brasileira exerce-se como num balanço em que as duas pontas são a metrópole e as províncias (...) o regionalismo é uma constante em nossa literatura das camadas periféricas, surgindo sempre movimentos de renovação literária. Os diversos focos regionais de cultura e civilização têm também personalidade estética". Afrânio constatava na década de 50 um problema que permanece vivo no Brasil: o desequilíbrio em todos os aspectos entre os centros culturais e as regiões mais longínquas do país. Tem sido efervescente nos últimos anos, dentro das universidades brasileiras, a quantidade de estudos e pesquisas de resgate da literatura de negros, de autoria feminina, de homossexuais, de regiões distantes e esquecidas do Brasil, como Acre, Roraima e Rondônia, por exemplo.

É bem verdade que A literatura no Brasil não contempla e nem registra a literatura desses estados, mas é o primeiro manual de literatura brasileira a fazer um estudo mais apurado de autores do Amazonas, Pará desde os tempos mais remotos. Também é a obra que reúne, senão ainda todas, mas o maior número de escritoras brasileiras, até da região norte e nordeste. Tudo isso já constituía grande inovação do Cânone para a época, com ampliações nas segunda e terceira edições, valendo dizer que A literatura no Brasil mesmo que ainda bastante inserida na visão homocêntrica, etnocêntrica e elitista tradicionais, o é em escala bem menor que as historiografias anteriores e mesmo posteriores como as obras de Massaud Moisés, José Aderaldo Castello, Luciana Stegagno Picchio e Luiz Roncari.

Fontes:
http://www.coladaweb.com.br
Imagem = http://www.tabernalibraria.com.br

terça-feira, 1 de junho de 2010

Raimundo Nonato da Silva (Amor, Ausência e Saudade)


Há cinco coisas no mundo
Que detesto com razão
O desengano e ausência
A distancia e a solidão
E a saúde maldosa
Que corrói meu coração

Saudade é destruição
Que de tudo está no meio
É passagem de quem parte
Companhia de quem veio
Desta palavra saudade
Eu mesmo sinto receio

Saudade é como um correio
Que em todo canto vai
A solidão é a carta
Da mão do carteiro sai
Quem sente saudade chora
Quem sente solidão cai

Deixa tristeza em quem vai
E acompanha quem vem
O mar da saudade é cheio
Quanto mais se tira tem
Eu não desejo saudade
Para mim nem pra ninguém

Mas, ter saudade também.
Demonstra ter esperança
De um passado que pode
Voltar a trazer lembrança
É como diz o ditado
Quem espera tudo alcança

Quando a ausência se avança
De uma pra outra parte
A minha alma se agita
O meu coração se parte
Vivo mas, me sinto morto.
Porque vejo em mim um marte

Eu não encontrei descarte
Pra dar à negra distancia
Que feriu meu sentimento
Encheu meu peito de ânsia
Como desculpa de morte
Que chega sem importância

O desengano trás ânsia
Depleção e desespero
É como canção cantada
Na voz de pássaro algoreiro
Aos poucos vai diluindo
Meu coração por inteiro

Sei que não fui o primeiro
A conviver com a saudade
Mas, não queria sentir.
Solidão nem solidade
Porque saudade destrói
E solidão me evade

Saudade é como uma grade
Xilindró é solidão
A distancia é a algema
A ausência é um marrão
E o desengano à estrada
Pra casa da ilusão

Queria dar um cartão
Vermelho ou amarelo agora
Pra expulsar a saudade
Do meu coração pra fora
E dizer a solidão
Sai de mim e vai embora

O desengano devora
Isto é a verdade pura
A solidão trás tristeza
Saudade trás amargura
São duas doenças crônicas
Que tenho e não acho cura

Uma com outra mistura
E me bota no sufoco
Por não suportar eu sinto
Que estou ficando louco
A saudade e a solidão
Vai me matar pouco a pouco

Saudade me deixa louco
Ó que solidão tremenda
Se no lugar da saudade
Fosse prata e desce renda
Se solidão fosse ouro
Eu faria boa renda

Não tenho nem encomenda
Uma é ruim outra não presta
Se a saudade é pesada
Solidão é desonesta
Quem vê uma vê a outra
Mas, todo mundo detesta.

Sentir saudade não presta
E viver só é ruim
Eu não desejo saudade
Para você nem pra mim
Saudade é consumação
E solidão é o fim

Mas, já que a vida é assim.
De um jeito ou outro qualquer
Sente solidão o homem
Sente saudade a mulher
Embora nem um dos dois
Sente as duas porque quer

Se a ausência quiser
A distancia diz eu entro
Do campo do coração
Solidão escolhe o centro
Mas, não vou abrir meu peito.
Pra saudade morar dentro

Têm horas que me concentro
Pensando em meu desengano
Saudade destrói projeto
Solidão desmancha plano
Ó Deus tenha dó de mim
Que eu também sou humano

Afaste este desengano
Que quem olha pra mim nota
Que saudade e solidão
Aos poucos me derrota
Um sorrir outra diz
Vou matar este idiota

Eu não quero boa nota
No que não tem serventia
Quero encontrar a paz
O amor à alegria
Sai saudade e solidão
Ó Deus me dê companhia

É saudade e solidão
As coisas pior do mundo
Mas, solidão e saudade.
Não ficou pra todo mundo
Por que aquilo que sinto
Ninguém suporta um segundo

Vida de gente que ama
E de gente sem amor
Quando um está feliz
O outro sente uma dor
Porém tem gente que nasce
Só para ser sofredor

Esta vida de novela
De dor maldade e drama
Quem não ama tudo esquece
Tudo só lembra quem ama
Saudade maltrata o peito
E solidão me inflama

Se meu coração é mole
Seu coração endurece
Deixe o seu peito sorrir
Já que meu peito padece
Apenas quero dizer
Que quem ama não esquece

A dor do amor da febre
Arde no corpo da gente
Dói no corpo e dói na alma
No coração e na mente
Dói mais que dor de cabeça
Dor de ouvido e de dente

Fontes:
Colaboração do poeta

Walcyr Carrasco (A Noite do Ridículo)


Nem o materialista mais ferrenho resiste a um ritualzinho para garantir o bom astral do ano que entra. O réveillon transforma-se na noite do ridículo. Qualquer um perde a compostura para garantir umas vibraçõezinhas. Certa vez fui convidado para uma casa noturna elegantíssima. Parti em doce companhia, com um casal de amigos. Lá pelas tantas veio a promoter :

- À meia-noite, cada um deve comer sete uvas e dar sete pulinhos com a perna direita.

Boa parte dos presentes gostou da idéia. Não demorou muito, ao som de rojões, começou o pula pula. Minha acompanhante quase quebrou o nariz, embaraçada no longo de seda. Na pressa de comer as uvas, lancei uma na cabeça de meu amigo. A própria promoter despencou do salto. Ouvi gritinhos por todo lado. Há pessoas capazes de se arriscar ainda mais. Um casal desceu até Santos só para botar os pezinhos (aliás, bem gordos) no mar. Acabaram entrando de corpo inteiro. Ela quase foi arrastada pela maré. Gritava, agitando os braços. e o marido agitava de volta, saudando. Pensou que era alegria. Foi salva por um pai-de-santo que fazia oferendas a lemanjá. Voltaram exaustos. A gripe bateu no dia seguinte. O marido é de um otimismo inexorável:

- Tivemos sorte. Não virou pneumonia.

O cardápio da ceia segue regras. Não se podem comer aves, pois elas andam para trás. Como falta glamour ao filé, um número surpreendente de mesas oferece pernil de porco. Lentilhas obrigatórias, para trazer fartura. Tudo acompanhado por champanhe. Ou sidra! Ainda não me informaram se congestão dá sorte. Na sobremesa, não pode faltar romã. Deve-se comer e guardar sete caroços embrulhados na carteira o ano todo. Assim não faltará dinheiro. Já fiz. Depois de algum tempo, os caroços ficam bem escurinhos. e o papel vira um trapo. Cada vez que se abre a carteira, voam em alguma direção. Suo frio. Salvo os carocinhos, mesmo sob o olhar horrorizado de um diretor de banco. Sempre juro não guardar mais caroço nenhum. Na última hora, não resisto. Na semana passada mesmo, saí para comprar uma romã. Aliás, caríssima. Sem dúvida, os caroços resolvem a vida dos fruteiros.

Deve-se usar roupa branca. De preferência. nova. Meu armário parece de médico. Ano após ano, fui acumulando calcas, camisas e camisetas. Por sorte nunca me dediquei, até hoje. a cuecas vermelhas. Há quem não dispense uma, embora fiquem horríveis sob a calça alva. No último réveillon, uma amiga apareceu de preto. Os presentes torceram a boca. de horror.
- Quero dar uma virada.

Por incrível que pareça, a virada aconteceu. Agora ela garante que só usará negro. o resto da vida. Sim. porque além das mandingas conhecidas, cada pessoa inventa as próprias. Um não pode ficar de costas pela janela. Outro deve se pendurar no parapeito. Uma vez fui a uma festa em uma cobertura. À meia-noite., insuflados pelo anfitrião, os presentes atiraram moedas pelo terraco. Quase assassinaram uns adolescentes que passavam na calçada, Agora, descobri uma nova maneira de eliminar maus fluidos. Acende-se uma fogueira. Os convidados se reúnem em volta. Gritam, bem alto, agitando as mãos:

-Vamos jogar a inveja! Vamos jogar a má sorte!

Belo espetáculo! Um amigo revela:

- O ideal é fazer a fogueira na praia. Depois, entrar no mar, saltar sete ondas. Voltar para a areia, ajoelhar e acender urna vela. Aí, abraçar correndo todo mundo que estiver por perto. mesmo desconhecidos.

- É réveillon ou competição de atletismo? - espantei-me.

Outra atividade imprescindível para muitos é mostrar o bumbum para a lua. No ano passado, uma festa inteira se entregou a esse inusitado ritual de prosperidade. Ninguém deveria olhar o bumbum alheio. Mas um malvado tirou fotos! Surpresa. Lá estava, toda arrebitada, a mãe do dono da festa, pacata senhora de 80 anos.

- A senhora também? - admirou-se o filho.

- Fiz e sou feliz - respondeu, orgulhosíssima.

Quem tentar cumprir tudo que aconselham acabará com uma fratura exposta. Imagino alguém tentando dar sete pulinhos e, ao mesmo tempo, expor o bumbum ao luar. Pessoalmente, sou cético. Se andei comprando lentilhas, velas brancas e as tais romãs, foi por via das dúvidas. Não é que creia nas bruxas. Mas não custa garantir.

Fontes:
Revista Veja. 24 de dezembro de 1997.

A. A. de Assis (A Língua da Gente) Parte 13


12. Rebaixa de fatos de banho

Aproveite: estão liquidando os maiôs. Isso mesmo: em Portugal, rebaixa é liquidação; fato é roupa; e fato de banho é, naturalmente, traje de praia: maiô, biquíni, calção etc.

Quando você for lá, vá sabendo: a língua é (quase) a mesma. Sublinhe o pormenor: quase. Nos jornais de lá você vai logo notar algumas diferenças gráficas. Por exemplo: eles escrevem académico, Amazónia, António, bónus, fémur, fénix, fenómeno, quilómetro, ténis... (com acento agudo, quando aqui marcamos tais palavras com acento circunflexo); eles conservam, mais do que nós, as consoantes chamadas “mudas” (escrevem acto, accionista, adopção, baptismo, correcto, director, excepção, óptimo, optimismo...). Na linguagem oral também será fácil perceber características interessantes: eles “engolem” alguns fonemas: cr’oa, difr’ente, espr’ança...; eles usam habitualmente, no tratamento íntimo, o pronome tu; e no tratamento mais cerimonioso, além de o senhor, a senhora, a senhorita, valorizam muito a fórmula Vossa Excelência.

O que mais chama atenção, entretanto, é o vocabulário. Você, por certo, já ouviu falar que bicha em Portugal é fila, daí resultando frases como estas: “Ontem à noite havia uma bicha enorme na porta do teatro”... “Favor não furar a bicha”... E como baguete (pão) é cacete, não estranhe se ouvir alguém dizer: “Entrei na bicha para apanhar um cacete quentinho”. Outra palavra curiosa é troço (trecho de estrada). Você poderá encontrar placas assim: “Troço escorregadio”... “Longo troço em declive”...

Autocarro é ônibus, berma é acostamento, peão é pedestre, e aparcar é estacionar. Descapotável é conversível, gasolineiro é frentista de posto (hoje raramente encontrável por lá), boleia é carona, e demasia é troco. Romagem é romaria, renda é aluguel, betão é cimento, e piroso é brega, jeca. O avião, quando levanta voo, descola; quando desce, aterra. Canalizador é encanador, casa de banho é banheiro, e banheiro é como se chama o salva-vidas. Retrete é privada, autoclismo é caixa de descarga, defumos é exaustor, e esquentador é aquecedor. Pastilha elástica é chiclete, sandes é sanduíche, e ementa ou preçário ou carta de pratos é o que chamamos cardápio ou menu. Capachinho é peruca, penso é curativo, e casa com recheio é casa com os móveis. Mandato a distância é controle remoto; atendedor automático ou gravador de chamadas é secretária eletrônica, e ficha é tomada. Relvado é campo de futebol, equipa é time, e golo da igualdade é gol de empate. Camião é caminhão, camionista é motorista, e portagem é pedágio. Estomatologista é dentista, peúga é meia para homem, e elétrico é bonde.

Mas nada disso é problema, porque tanto lá como cá amizade é amizade, amor é amor, abraço é abraço. Um abraço enorme, que já dura mais de 500 anos e que a cada dia é mais dengoso.
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Fonte:
A. A. de Assis. A Língua da Gente. Maringá: Edição do Autor, 2010

Davi Martins (O Galo de Barcelos)



Eram tempos de devoção aqueles, em que os cristãos firmavam e consolidavam a sua presença no Reino de Portugal que acabava de se tornar independente do Reino de Castela para, a partir de então, seguir o seu próprio destino.

Ora, isso aconteceu já lá vão quase novecentos anos. Nesses tempos remotos as pessoas não tinham uma idéia de fronteira, clara e nítida, como aquela que nós temos hoje. Esses portugueses, nossos antepassados, veneravam S. Tiago e invocavam a sua proteção, com a mesma fé com que nos nossos tempos veneram Santo António, como se o santo fosse uma espécie de avô simpático e bonachão de quem se lembravam nos momentos difíceis.

As pessoas deslocavam-se a Compostela para pedir uma graça ao Apóstolo, tal como hoje recorrem à ajuda de um amigo influente. Para lá chegarem caminhavam léguas e léguas, dormiam ao relento, comiam por caridade, numa choupana ofereciam-lhes uma tigela de sopa, mais adiante um camponês repartia com eles o seu pão escuro.

Humilde, vestido de estamenha (hábito de frade), um peregrino seguia o seu caminho, a estrada de Santiago, apoiado no seu grosso bordão. Talvez porque não fosse tão pobre como outros, pernoitava nas estalagens.

Na noite em que este homem encontrara abrigo na pequena hospedaria de Barcelos, uma aldeia nos confins de Portugal, já muito próxima da Galiza, nessa noite, dizia eu, quis a pouca sorte que o dono do estabelecimento tivesse dado pela falta de uma bolsa com moedas de ouro que era toda a sua fortuna.

Algumas pessoas tinham passado lá o serão, comendo, bebendo, contando histórias e conversando numa grande algazarra, sentadas diante de uma grande lareira onde ardia um enorme tronco, enquanto esbravejavam com a animação e agitavam canecas de vinho por cima das cabeças. Qualquer deles poderia ter sido o larápio, mas eram todos vizinhos, conhecidos e amigos de longa data, pelo que o estalajadeiro não desconfiou dos seus clientes habituais. Esta razão foi quanto bastou para que as suspeitas recaíssem sobre o nosso peregrino, suspeitas logo seguidas da acusação:

- Ladrão! Foste tu, só podes ter sido tu, que aqui toda a gente se conhece. Não escapas, vais ver! O juiz logo te dirá! Verás o que te espera!

E assim foi. O juiz sentenciou o homem como tendo sido ele o autor do roubo, apesar de as moedas não terem sido encontradas na sua posse, e logo ali o condenou a morrer na forca.

Quando o carrasco o conduzia para o meio da praça onde ia ser executada a pena, o peregrino lembrou-se de pedir:

- Esperem! Levem-me outra vez ao juiz, que eu ainda tenho uma coisa para lhe dizer.

Após alguma hesitação, o homem foi levado à presença do juiz que estava agora sentado à mesa e se preparava para se banquetear com um belo capão (galo) assado
que estava na sua frente, temperado e tostado que fazia crescer água na boca.

- Meu senhor, ouvi mais uma vez que estou inocente do crime de que me acusam. Tomo Nossa Senhora por minha testemunha e aqui mesmo lhe peço que me faça um milagre. Se aquilo que eu digo for verdade, e eu estiver inocente, esse galo que tendes na vossa frente e vos preparais para comer, agora mesmo tornará à vida, se levantará e cantará!

Naquele preciso momento, o galo deu um pulo dentro da assadeira e começou a cantar.

Os presentes ficaram boquiabertos e de olhos esbugalhados. Nunca tal se vira.

O homem tinha conseguido provar a sua inocência e ao juiz apenas restou deixá-lo ir-se embora em paz.

O galo ficou imortalizado através do artesanato em barro produzido na região de Barcelos que a imaginação dos oleiros tem recriado, geração após geração, profusamente colorido.

Fonte:
Davi Martins. Estórias e Lendas de Encantar.
Imagem = http://portukale.com/

Aníbal Machado (Cadernos de João)



Análise da obra

Publicado em 1957, Cadernos de João traz a seguinte nota introdutória: "Estes cadernos encerram, revistos e aumentados pelo autor, o ABC das Catástrofes e Topografia da Insônia (Hipocampo, 1951, edição de 120 exemplares) e Poemas em Prosa (Coleção Maldonor, Editora Civilização Brasileira, 1955, edição de 330 exemplares), sendo que os Poemas não obedecem à ordem primitiva". Além dos citados poemas, de algumas crônicas, está em Cadernos uma variedade caleidoscópica de reflexões, imagens, parágrafos descontínuos em que o humor e o lirismo constituem nota constante.

Além dos citados poemas, de algumas crônicas, está em Cadernos uma variedade caleidoscópica de reflexões, imagens e parágrafos descontínuos em que o humor e o lirismo constituem nota constante.

A relação dialética ali estabelecida entre o escrever e o viver, que mutuamente se fecundam, referendam a auto-classificação da Aníbal Machado como "sobretudo um surrealista", conforme entrevista que concedeu a Jones Rocha.

Cadernos de João é o que se pode considerar uma promessa tardia de Aníbal Machado, pois carrega, em pleno Terceiro Tempo Modernista, forte tempero da Primeira Fase do Modernismo. Tal se explica por seu autor ter participado intensamente da Semana de 22, inclusive alimentando-lhe no campo teórico, mas ter se guardado para o grande público.

Dessa forma, Aníbal Machado consegue casar inovação e maturidade. O primeiro aspecto revela-se pela busca de formas e temáticas novas, pelo toque surrealista de suas construções e pelo tom crepuscular, melancólico dos simbolistas do início do século XX. O segundo justifica-se pelo fato de o escritor ter demorado muito para ser editado, o que ocasionou seu encorpamento (há quem aponte na dilação ou atraso o motivo para uma possível pouca qualidade do escritor, já que, tanto tempo encubado, acabou gorando, tal a impressão de ele não estar apresentando nada de novo. No entanto, existem os que vêem aqui que esse clima de “falta de novidade” foi provocado por Aníbal Machado, seus textos e teorias serem por muito tempo comentados, falados. Quando os publicou, já se conhecia há muito suas capacidades e potencialidades).

Quando se menciona a herança simbolista do autor, é importante notar a principal contribuição que recebeu desse movimento literário: a prosa poética. A obra em questão utiliza pequenos fragmentos em sua imensa maioria em prosa, mas vazados de uma alta elaboração de linguagem e de lirismo, característica mais comum na poesia. Tal forma de composição é a que melhor cabe no escritor, pois lhe dá liberdade para a expressão das inúmeras vozes que povoam o seu imaginário de artista sensível (é interessante notar que essa idéia é semelhante a um dos seus textos, A Insurreição dos Internos, em que o eu-lírico confessa estar dominado por inúmeros eus internos, todos malignos, e que sua única saída seria fazê-los sair).

Temática

Busca do Novo – Perfeitamente encaixado no espírito da fase heróica do Modernismo, Aníbal Machado busca sempre escapar à rotina por meio de uma forma diferente, inusitada de enxergar a realidade. Veja como isso se revela no excerto abaixo:

Espaço

O pássaro agonizante põe pela boca os milhares de quilômetros que devorou pelos ares.

Note que muitas vezes, como acima, a novidade está apenas em enxergar o velho, o rotineiro de forma diferente, bastando uma simples inversão de óptica.

Considerações Filosóficas

Assumindo o posto de grande teórico do Modernismo, o autor derrama reflexões quase que doutrinárias, ou seja, com a preocupação de passar ensinamentos. É como ocorre abaixo:

Parece absurdo mas é compreensível que, no céu falso das vaidades endurecidas, o avanço de certas verdades tenha de ser protegido por um grupo de pequenas mentiras.

O melhor momento da flecha não é o de sua inserção no alvo, mas o da trajetória entre o arco e a chegada – passeio fremente.

Narrações

Alguns textos contam histórias plenas de emotividade, algumas até de dramaticidade. Aproximam-se muitas vezes das crônicas narrativas.

Descrições Poéticas

Ao contrário das descrições típicas, sua preocupação não é apenas caracterizar, tornar único o objeto descrito. Há também a intenção de tornar a linguagem ímpar. É o que se vê a seguir:

A CASA ROUCA

Ficara o galo, sobrevivência da ruína.

Rouco o seu canto. Canto que não parecia mais de galo, senão a própria voz da casa abandonada. Casa rachada ao sol, aluindo-se ao vento de chuva.

Não mais agora figuras humanas entrando; apenas lagartixas e morcegos para recepção às sombras.

Casa rouca submersa no matagal, teu galo ficou. E seu canto perdeu o timbre de sol, já não inaugura os dias. E se fez adequado aos estragos do reboco, à podridão das esquadrias – última secreção de pareces gemidas.

Galo rouco. Casa rouca.

O texto acima possui inúmeros exemplos de elaboração lingüística, mas o mais marcante é o que caminha para o cruzamento entre a idéia de casa e a de galo, a ponto de os dois possuírem o mesmo adjetivo, variando apenas o gênero: rouco / rouca. O silêncio de um equivale ao abandono e decadência da outra.

Retratos de Personagens

Em vários momentos, alguns com o mesmo título, pipocam descrições de figuras humanas. Vale aqui o que se observou em vários momentos desta análise: busca-se sempre o inusitado, o diferente, ou pelo menos um olhar novo sobre o velho.

Lições para a Vida

Vários textos de Cadernos de João passam ensinamentos para um viver melhor que implica a valorização de um estado de simplicidade da existência em contato com os prazeres esquecidos em nosso cotidiano urbano, burguês e pragmático. É o que se pode ver em O Banho das Cinco Esposas ou abaixo:

Consumimos o melhor tempo da vida a apalpar o terreno, reunir dados, instalar sondas, armar os aparelhos, ajuntar material. Tudo para começarmos a viver. Quando se aproxima o dia da prova – que dia? que prova? – nossas armas estão caducas, o celeiro apodrecido. Vem-nos então a revolta contra as extorsões do tempo; depois, a desconfiança de que fomos logrados.

E não nos conformamos em reconhecer que na longa prorrogação com que disfarçamos o nosso medo de viver estava a própria realização de nossa vida.

Viver é o mesmo que preparar-se para viver.

Metalinguagem

É uma constante na obra a análise sobre o ato de escrever, como se o escritor se voltasse sobre si mesmo ou se se enxergasse durante a sagrada ação da escritura. É o que percebemos no trecho a seguir:

Retira do teu poema as estridências do grito, se queres que ele tenha mais alcance e ressonância.

Note que sua postura, muitas vezes, é doutrinária, o que é justificável, já que se consagrou como um dos grandes teóricos do Modernismo.

Imagens Surrealistas

Constante em toda a obra, a técnica de associar caótica e desconexamente idéias e palavras é uma das marcas registradas de Aníbal Machado. O escritor parece estar liberando todo o seu inconsciente, possibilitando imagens que são fruto do delírio, do sonho, do onírico.

Epigramas

Seguindo o seu caráter doutrinário, o autor vaza em alguns momentos textos extremamente curtos, mas densos de reflexão. É o que acontece no exemplo abaixo.

O homem que ri liberta-se. O que faz rir esconde-se.

Teu inimigo de certo modo te pertence: é um dos teus aspectos.

Fonte:
http://www.passeiweb.com

Astolfo Lima Sandy (O Menino Que Desejava Reinventar o Mundo)


As estantes do meu avô materno – velho Mestre de Latim e primo legítimo do notável poeta Gerardo Melo Mourão – eram todas na chave, e somente através do vidro de cada porta eu conseguia visualizar a lombada das belas encadernações francesas de mil oitocentos e antigamente. Postava-me um tempão a escorrer a vista pelas prateleiras, soletrando nomes estrambóticos que eu imaginava pertencerem aos inventores do mundo: Shakespeare, Goethe, Hordellin, Sófocles, Aristóteles e tantos mais. Machado de Assis e José de Alencar seriam apenas amigos do vô, e a esses eu concederia menor importância. Interessavam-me, isto sim, os caras das capas luxuosas aos quais, vez por outra, meu estimado velho se punha a manusear como se estivesse degustando delicioso cálice de vinho. “Formidável” – repetia para si mesmo em voz quase inaudível, olhos fitos em um poema de Banville.

Ficava eu de longe a torcer que vovô esquecesse as chaves em algum lugar, o que dificilmente ocorria, dado que naquele tempo era comum mantê-las sempre em fecho, penduradas no cós das calças, do modo como ele fazia em gesto automático logo que abria ou travava uma fechadura. Apenas uma vez vacilaria, por conta de um filho seu que acabara de chegar de Fortaleza e com quem ficara a bater papo e consultar livros durante horas. No abre e fecha de estantes, terminaram por deixar só encostada a porta da principal, do que me aproveitei para subtrair o livro mais bonito. Fui flagrado, contudo, por meu sábio avô no exato instante em que virava a primeira página da Divina Comédia “Não é um tipo de leitura adequada para sua idade” – diria, recolhendo o tomo do Paraíso, que eu só tentaria desvendar alguns anos mais tarde.

Meu primeiro contato com o universo da literatura, portanto, foi essa coisa meio que transgressora, misto de curiosidade e temor, porém sincera e espontânea a ponto de consolidar em mim profundo respeito pelos verdadeiros astros da boa escrita. Não que eu viesse a me transformar num sujeito seletivo em suas futuras leituras ou mesmo nas eventuais construções literárias que pudesse produzir um dia. Nada disso. Bem ao contrário, vez que até escreveria livros, mas nunca me supondo escritor ao molde como ficou cunhada em mim a imagem de um verdadeiro artista das letras. Seria, quando muito, um escrevinhador autônomo, contido, apenas a perpassar as banalidades do cotidiano, sem ousar nas tentativas vãs, jamais querendo me estender nos assuntos mais relevantes que já haviam sido vasculhados pelos reais construtores da Literatura.

E foi imbuído desse espírito, despojado de ambições menores que adentrei, já maduro, ao cenário onde pontificavam os senhores e senhoras do velho tronco genealógico que controla nosso Estado desde que Martins Soares Moreno por aqui aportou, conforme já relatei na minha Breve História da Literatura Cearense, publicada neste blog. Ou seja: era eu (e ainda sou) figura totalmente indesejável ao meio. Um sujeito sem cargos nas administrações públicas, distante das academias, desprovido de títulos e que, embora originário de uma família que ajudou a desbravar seu amado Ceará, tentava credenciar-se com um nome que, se em Minas Gerais (terra de meu pai) dava título a uma cidade, aqui, para eles, nada representaria. “Quem?” – costumavam indagar, desdenhosos e infames. “Astolfo Lima sandy, já ouviram falar?” – respondiam entre dentes, sem que pudessem disfarçar o risinho não menos cafajeste.

E todo esse falso desassombro, essa empáfia desmedida e esse deliberado boicote ao meu texto, se fizeram mais acentuados depois que redigi um “Abecedário de Autores Cearenses” e joguei na Internet, denunciando logo em seguida algumas farsas que eram bastante comuns por aqui. Por exemplo: se houvesse um Concurso Literário, era quase certo que o vencedor estaria dentre aqueles mais visíveis nas colunas sociais, geralmente um medalhão prenhe de títulos e condecorações, mas com uma escrita questionável. Deles que chegavam ao cúmulo de intimidar os jurados que não fizessem parte da mesma confraria. “Olhem, eu estou participando desse Prêmio, viram bem?!” Certa vez duas instituições muito populares por aqui firmaram parceria na elaboração de um Concurso Literário que oferecia ótima grana em dinheiro e mais uma viagem à Europa. Sabem quem ganhou! Pois é: um deles, que, por acaso, ocupava a vice de uma co-patrocinadora do evento, o que era proibido pelo regulamento. Levou o prêmio no grito, sem que enfrentasse qualquer resistência por parte daqueles que haviam sido logrados. Apenas este que vos fala teve a hombridade de por a boca no trombone, se bem que a partir de então se transformasse em “persona non grata” no mundinho torpe da literatura provinciana.

A mesquinhez chegou a um ponto tal que eu jamais ganharia qualquer prêmio no Ceará, ainda que tivesse os mesmos textos contemplados em vários outros Estados da Federação, inclusive recebendo o Prêmio da Biblioteca Nacional pelo livro “A Grande Fábrica de Brinquedos”, que fora sistematicamente ignorado em todos os concursos em que eu o submetera por aqui. Apenas uma única vez, começo do ano passado e quase uma década depois de haver lançado meu primeiro livro, tive um romance premiado por um órgão oficial da terra, se bem que eu não entenda até o presente momento o motivo de terem demorado mais de um ano para depositarem a primeira parcela correspondente ao mesmo, o que só ocorreu no mês passado, após eu ter ido pelo menos uma dúzia de vezes a tal repartição, sem que me explicassem claramente o porquê de tanta demora. Uma coisa desgastante em que até cogitei de comunicar ao Governador, um político honrado a quem vivo a enaltecer pela excelente administração que está fazendo em nosso Estado, e que muito provavelmente nem tomou conhecimento desses pequenos “entraves burocráticos”.

Em off, da boca ferina de alguns espiroquetas que tiveram suas obras desclassificadas no referido certame, cheguei a escutar que o prêmio seria anulado, muito embora eu já estivesse com o contrato assinado e o resultado devidamente publicado no Diário Oficial. Tudo não mais que guerrinha psicológica – imaginei – ainda que eu não pudesse descartar nada em uma terra onde eles podem simplesmente tudo. A única coisa que me deixou mais tranqüilo foi saber que um dos jurados que selecionaram as obras é gente famosa na literatura nacional. Será que se atreveriam?

Fontes:
Ceará, Terra do Sol. http://cearaterradosol.blogspot.com/

segunda-feira, 31 de maio de 2010

A. A. de Assis (A Língua da Gente) Parte 12



11. Cardio ou corde?

Cardio ou corde, o coração é o mesmo. A diferença é que cardio é grego e corde é latim. A medicina usa preferentemente a forma grega (cardiologia, cardiopatia, eletrocardiograma). Corde (em latim cor, cordis) aparece mais na linguagem figurada, tomando-se coração como símbolo dos sentimentos e da vontade. Daí temos, por exemplo, cordial ( = de coração). A propósito, é bom lembrar que o tradicional “cordialmente”, no fecho das cartas, só se justifica quando de fato existe amizade “de coração” entre o remetente e o destinatário. Com igual sentido, temos ainda os verbos concordar (para indicar que dois corações convergem, isto é, ambos “querem” a mesma coisa) e discordar (para indicar que dois corações divergem, isto é, um “quer” alguma coisa e outro quer algo oposto). Durante muito tempo as pessoas acreditaram também que o coração fosse a sede da inteligência e da memória, daí resultando a expressão saber de cor (ter na memória) e os verbos decorar (memorizar) e recordar (trazer de volta à memória).

Aproveitando o fio da meada, parece oportuno recordar um pouco daqueles adjetivos “chiques” chamados eruditos. Daremos a seguir uma pequena lista, colocando entre parênteses o substantivo a que cada adjetivo se refere: acrídio (gafanhoto); adamantino (diamante); álgico (dor); angelical (anjo); anímico (alma); anserino (ganso, pato); aquilino (águia); argênteo (prata); arietino (carneiro); asinino (burro, jumento); áureo (ouro); auricular (orelha, ouvido); austral (sul); avuncular (tio); axial (eixo); bélico, belicoso (guerra); bubalino (búfalo); canoro (canto); capilar (cabelo); ciático (quadril); cínico (cão); columbino (pombo); consuetudinário (costumes); cúprico (cobre); digital (dedo, número); domiciliar (residência); ebúrneo (marfim); eclesial (igreja); embrionário (embrião, início); êneo (bronze); episcopal (bispo); epistolar (carta); equino (cavalo); etílico (álcool); falimentar (falência); felino (gato); fiducial, fiduciário (confiança); fluminense, fluvial (rio); fraterno (irmão); gástrico (estômago); glacial (frio, gelo); hebdomadário (semana); hepático (fígado); heráldico (brasão); hígido (saúde); hípico (cavalo); ictíico (peixe); ígneo (fogo)...

Laborioso (trabalho); lácteo (leite); lúdico (brinquedo, jogo); matutino (manhã); meridional (sul); mnemônico (memória); monacal, monástico (monge); monetário (moeda); ocidental (oeste); murino (rato); ocular (olho); náutico (barco, navio); nodal (nó); ofídico (cobra); onírico (sonho); oriental (leste); ovino (ovelha); papilonáceo (borboleta); paradisíaco (paraíso); pecuniário (dinheiro); persecutório (perseguição); pétreo (pedra); písceo (peixe); plúmbeo (chumbo); pluvial (chuva); probatório (prova); pueril (criança); radical (raiz); renal (rim); sacarino (açúcar); senil (velho); setentrional (norte); sideral (astros, estrelas); somático (corpo humano); telúrico (terra); uxoriano, uxórico, uxório (esposa); varonil/viril (homem, varão); vascular (vasos sanguíneos); venoso (veia); vesical (bexiga); vespertino (tarde); vulpino (raposa).
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Fonte:
A. A. de Assis. A Língua da Gente. Maringá: Edição do Autor, 2010

domingo, 30 de maio de 2010

Silviah Carvalho (Sonoridade Poética)


VENTO DA MUDANÇA

Sinto o vento da mudança em meu rosto,
uma troca de pele fora de tempo,
sendo o vento a trazer o perfume desconhecido,
tornando as águas dentro de mim em lamento.

Como se eu pudesse controlar as estações,
misturo lugar e tempo, algo que não entendo...
acima do alcance da minha mente, da minha visão
mas que faz pulsar vorazmente meu coração.

Inquietude vã, pois o vento sopra onde quer,
e eu só diminuo a força do lume,
(querendo na verdade extingui-lo), move o meu
ser em discórdia com tempo, não remo contra a maré.

Aceito de bom grado a solidão... Novamente (!)
companheira e amiga da minha fé
dou a carta de alforria ao amor, porém, tristemente.

Peço que vá, é livre! leve seu amor e não lamente,
vives-te em mim o tempo necessário,
para não ser esquecido, infelizmente.

Deixe o frescor deste vento que me muda,
amadurecer dentro de mim a sua ausência,
sem lágrimas nem retorno... E sem clemência.

AS MÃOS E O FRUTO

Como olhar numa tela uma paisagem, ver-se dentro dela,
Fazer dela tua morada, ali tudo poderá acontecer,
Seremos marionetes na sua mão... Até quando!
O fruto maduro caiu da árvore, esmagou-se ao chão,
Quem se importa? O poder te enaltece,
Tens mais que uma vida, a minha. Quantas mais te fartarão?

Era só uma imitação, não era para vê-lo, nem amá-lo,
Nem confundi-lo com um menino? Sua fome era grande,
Quem poderia contê-lo? Alimentou-a, hoje ela vive morta!
As águas passam o rio não! A cor dos olhos não muda,
No lavar de nossas lágrimas. É tempo de recomeçar,
Seguir novo rumo. Simplesmente, muda seu destino.

Não acredite em seus sonhos, melhor mudar de plano,
Assim pusestes um fim. Temor? Talvez, pensava que era
Só um sonho de menina, mais um sonho... Outra menina!
Não era! É amor verdadeiro, Você se entristece ao vê-la de
Novo vivendo sem vida? Não deixe que eu creia no que penso,
Pois penso que tua verdade, não é ponto de partida.

Vem a tempestade, o vento sopra forte,
O Carvalho, porém, aprofunda suas raízes no chão,
Um fato. Tome como lição, tire proveito disto, finca tuas raízes
Na realidade, faz nela morada. Deixe de construir castelos na areia,
Pois, ainda há quem crer em contos de fadas.

Sou um carvalho, mas não tenho a força dele,
Sou só um galho agora preso ao seu coração,
Planta-me, deixe que eu aprofunde minhas raízes,
São raízes de amor sincero que não terminam nunca,
Ainda que caia o tronco, elas ficam numa eterna espera.

Será que as chuvas do amor sobre elas cairão, regando-as
Para que se vistam na primavera? Será que deixará que
Eu morra aos teus pés, será que sua estiagem matará seu coração?
Eu pensei que houvesse sentimento, que houvesse verdade nessa ilusão.
...Mas agora, você é o fruto, eu as mãos.

QUEM DERA...

Ah, alma, pode ser que você chegue às margens do pior
antes de ser libertada e, em uma síncope não voltes mais,
... Quem dera dominar o tempo e as estações!
contar meus dias, mudar de pele, dominar minhas emoções.

Quem dera poder voltar atrás, fazer outras escolhas, consertar
meus erros, eu escolheria não amar mais. Não é o amor que me
assusta e, sim, as conseqüências do amar desesperadamente...
Um amor plenamente possível morre, inconseqüentemente.

Não posso dizer que haja chance, ou que a vida faz sentido,
pois o fardo do sofrimento parece uma pedra pendurada
em meu pescoço, é ela que faz o peso necessário para conservar
no fundo o meu querer...talvez assim nunca mais me faça sofrer.

Na tempestade vi o quanto era frágil minha embarcação,
observei a Águia quando rasgava as alturas e não se inquietava
a respeito de atravessar o rio, enquanto que, o só imaginar, dentro
de mim desfalece o coração... Esvazio-me nesta triste e fria canção.

Descubro que nada é em vão, mas que tudo é propicio a mim,
o sofrimento me põe à parte na vida como um decreto de morte,
ausente de tudo que me faz bem, abatida, me entrego resignada,
esperando as palavras certas para, enfim, ser libertada.

Fonte:
http://www.silviah.net/

A. A. de Assis (A Língua da Gente) Parte 11



10. Um régulo na panturrilha

Não se assuste se ouvir alguém dizer que fulano tem um régulo na panturrilha. Significará apenas que o tal fulano tem um reizinho na barriguinha. Se os diminutivos em português fossem todos marcados por inho ou zinho, seria moleza (barquinho, barzinho). O problema é que muitos deles vieram prontos do latim, mantendo a forma erudita; outros chegaram até nós via espanhol, francês, italiano, e alguns nem parecem diminutivos. Por exemplo: é fácil entender que caixinha é diminutivo de caixa, porém nem todos percebem de imediato que cápsula (do latim capsa = caixa) é a mesma coisa, isto é, uma caixinha.

Assim também acontece com régulo, diminutivo erudito de rei, e com panturrilha, palavra que pedimos emprestada ao espanhol e que em geral é empregada no sentido de barriga da perna (daí que os jogadores de futebol frequentemente se queixam de “contratura na panturrilha”). A palavra tem origem no latim pantex (= barriga), que virou panza em espanhol e pança em português. De pantex temos também os verbos empanturrar e empanzinar.

Pode ser útil anotar outros diminutivos igualmente interessantes: asterisco (diminutivo do lat. aster = astro, estrela – repare que o asterisco [*] é uma estrelinha); botija (do lat. buttis = pote, tonel); caniço (de cana, cano); cassete (do fr. casse = caixa – cassete é a caixinha onde se guarda a fita); castanhola (de castanha); castelo (do lat. castrum = fortaleza); cedilha (diminutivo da letra grega zeta [z] – o sinal que colocamos embaixo da letra ç era originalmente um pequeno z); crepúsculo (do lat. crepus = escuro); cubículo (de cubo); donzela (de dona); edícula (do lat. aedes = casa); espátula (de espada); fascículo (do lat. fascis = feixe – de varas, de folhas de papel etc.); flâmula (do lat. flama = chama); flóculo (de floco); flósculo, florículo (de flor); folíolo (de folha); goela (do lat. gula = esôfago); gorjeta (de gorja = garganta); grânulo (de grão); janela (do lat. janua = entrada, porta); lagartixa (de lagarto); lamparina (de lâmpada); luneta (do lat. luna = lua); maçaneta (de maçã – as maçanetas antigas tinham, quase todas, a forma de uma pequena maçã); mantilha (de manta); moela (provavelmente de mo, moinho); molécula (do lat. moles = massa, corpo); músculo (do lat. mus, muris = rato – observe que o bíceps tem a forma de um ratinho); neblina (do lat. nebula = névoa); nódulo (do lat. nodus = nó); opúsculo (do lat. opus = obra); ósculo = beijo (do lat. os, oris = boca – para beijar a pessoa contrai os lábios, faz uma “boquinha”); palito (do lat. palus = pau); parcela, partícula (de parte); pastilha (de pasta); película (de pele); pipeta (de pipa); radícula (do lat. radix, radicis = raiz); roseta (de rosa); sarjeta (de sarja = escoadouro de águas); Venezuela (de Veneza – o nome foi dado pelos colonizadores ao observarem o grande número de cabanas construídas sobre estacas nas águas do lago Maracaibo, lembrando uma pequena Veneza); versículo (de verso); vesícula (do lat. vesica = bexiga); vírgula (do lat. virga = vara – a vírgula tem a forma de uma varinha).
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Fonte:
A. A. de Assis. A Língua da Gente. Maringá: Edição do Autor, 2010

Lucia Rodrigues (O Ócio e a Palavra)

Lá estava eu ociosa, o físico, porque serviço braçal tinha, e muito, mas quando tem algo me incomodando fico sem ação e o lado direito do cérebro trabalha sem parar, pensando sobre os acontecimentos da semana que se finda. Me vi questionando sobre o conceito de ótimo, bom, regular e ruim, aplicado às pessoas. Por exemplo, um educador só pode ser bom ou ruim. O conceito ótimo e regular não se mede. Afinal, o que é ser ótimo em algo? O ótimo é um bom melhorado, quanto? O regular é o medíocre, pois significa que o nominado não tem capacidade nem para ser ruim, que é o extremo do bom. O bom nos preenche até fisicamente, pois enchemos e esvaziamos nosso pulmão para pronunciar esse adjetivo de qualidade, lembrando que o ruim só existe devido a inveja pelo bom. Portanto, só podemos classificar (?) alguém como bom ou ruim! Outro espaço que ocupou meu ócio foi que pela milionésima vez observei duas pessoas trabalhando com o mesmo assunto, com diferenças de local e platéia, uma recebeu todo aplauso da crítica por ser famosa e a outra ficou na obscuridade ou até no esquecimento, pois alunos nem sempre percebem o jogo de palavras. O que difere uma pessoa da outra sair do anonimato e virar uma celebridade? Seria o destino? Sorte? Iluminada? Por quem? Da mesma maneira, vejo colegas que precisam lutar muito para publicar seus manuscritos ou outra expressão de arte, e nem sempre conseguem patrocínio. Será que tem a ver com nosso país que não valoriza a cultura, ou não é um bom investimento? Realmente o ócio é a oficina do demo, porque bons pensamentos não são fabricados nela, e o que ficaram são perguntas sem respostas. Só me resta a resignação, coisa de santa, o que não sou! Vou à luta agora! Fui!

Fonte:
http://www.osabordamaturidade.com/2010/05/as-palavras.html

Astolfo Lima Sandy (Estante de Livros)



Astolfo Lima Sandy é autor do livro Mão de Martelo e outros contos (Fortaleza: Programas Editoriais Casa de José de Alencar/Coleção Alagadiço Novo – Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1998). Participou do Almanaque do conto cearense (Recife: Ed. Bagaço, 1997), da Antologia do Conto Nordestino ano 2000 (Recife: Ed. Micro, 2000) e da revista Caos Portátil: um almanaque de contos (Fortaleza: Letra & Música, 2007). Em 2002 recebeu o Prêmio da Biblioteca Nacional para escritores com obra em fase de conclusão, com o livro A Grande Fábrica de Brinquedos, inédito em 2007. Tem contos em suplementos literários e sites na internet. Vencedor de vários prêmios literários. Concluiu em 2007 o romance Exuberante pós-nada (vencedor do Edital de Literatura da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará/SECULT, em 2007).

Constituído de 23 narrativas curtas, Mão de Martelo e outros contos apresenta um painel de personagens e situações bastante variados, quase sempre localizados na zona urbana e num tempo histórico indefinido. A maioria das histórias se desenvolve no curto espaço de uma sala, de uma casa pequena. Em outras, o drama deixa estes espaços para alcançar a rua, como em “Bandeira Dois”. O protagonista se desloca de casa, onde promove uma baderna, para a rua, um táxi, e pratica um assalto. Assim, os demais personagens (como num filme) desaparecem do foco narrativo. Nesta linha (de denúncia da miséria, dos problemas sociais) se situa também “Os meninos”. A técnica utilizada neste, no entanto, é diversa daquele: toda a ação se desenrola na rua. Aliás, o conflito é narrado num só parágrafo, como se o narrador portasse uma câmera e focasse os personagens, um grupo de meninos de rua, em tempo restrito a uma ação rápida de assalto. Semelhante a este é “O grande salto”. Mais uma vez a rua como palco. As únicas falas são do protagonista – o palhaço, o contorcionista, sem nome – que tenta ganhar uns trocados dos transeuntes à custa de piruetas, saltos, malabarismos.

Os personagens de Astolfo são quase sempre disformes, tortos, grotescos, como caricaturas. O político descrito pelo narrador em “Tiro Certeiro” é um exemplo disso: “Elemento pernóstico, com seu crânio disforme afinando drasticamente para baixo, e que, de perfil, lembrou-me um cavalo com nariz de Pinóquio.” O mesmo ocorre quando o protagonista de “Mão-de-martelo” se descreve: “silhueta longa, grave inclinação para a esquerda, enquanto enorme nariz emoldura-me a face descorada.” Sandoval Balheiros, de “Teoria do equilibrista”, é descrito como semelhante a um faquir. Os “seios flácidos da índia velha”, da mulher do protagonista de “Bandeira dois”, aparecem algumas vezes, como a pintar a miséria em que viviam os personagens. A pintura distorcida de alguns personagens se mostra também em “O Debate”, no qual “senhores sisudos” debatem assunto da mais alta importância: a Constituição do País. Um, “muito magro, ares de intelectual”; outro, “meio estrábico”; um terceiro, “cara de pouca inteligência”. Além dos debatedores, personagens menores e também sem nome surgem e desaparecem como simples figurantes exóticos: “uma mulher muito loura enfeitada de batom e joias”, “um palhaço tomando coca-cola”, “uma garota sardenta”, “uma senhora gorda”.

O uso contínuo da narração, entremeada de breves diálogos e descrições físicas e psicológicas de personagens, dá vigor à linguagem dos contos de Astolfo. Em “Luz e Sombras” os movimentos narrados apresentam a linguagem do cinema, na visão de um homem paralisado, à espera de um ataque.

O ponto de vista nas narrativas de Astolfo é ora na primeira pessoa, ora na terceira. No conto que dá título ao livro o narrador é o protagonista, que vai se pintando ao longo da história: como adquiriu o codinome, como participa das rodas de samba, como se operou nele a transformação interior (o aperfeiçoamento de “alguns defeitos morais”, como a mentira, a hipocrisia, a inveja, o sadismo). A descrição que faz de si mesmo se mostra nos moldes do monólogo interior. Esta e outras descrições breves se apresentam dentro da narração, ausente de diálogos. Somente uma personagem menor surge de inopino, apenas mencionada – a mãe –, que não passa de simples adereço, complemento necessário à narração. No centro da trama está o narrador, o protagonista perfeito, porque personagem único. O mesmo se dá em “Barriga de Pano”. O personagem fantasiado de Papai Noel narra a sua breve história de aposentado em busca de uns trocados, até furtar um par de tênis e ser conduzido à polícia. Em “Tiro Certeiro” Astolfo alcança ponto mais alto, em relação aos dois primeiros contos, na maneira de narrar. Um homem indignado com a realidade se faz justiceiro em sua própria casa, como se o mundo se resumisse a uma tela de televisão. Ao se servir de expressões como “acionar o gatilho”, “mirar o distintivo prateado”, “atingir indiscriminadamente quem aparecesse à tela”, dá a ideia de uso de arma de fogo. Entretanto, ao correr da história, o leitor perceberá que o jogo verbal do contista conduz a uma leitura mais larga, mais funda, mais vertical. O protagonista “elimina” mentalmente os políticos que aparecem na tela, como num desabafo. Seria um louco, um esquizofrênico a agir e falar, como se os “personagens” da televisão, as figuras em movimento na tela fossem reais. O personagem lembra aqueles que veem nos personagens de novelas televisivas pessoas de carne e osso.

Poucas são as narrativas em que o ponto de vista é de narrador onisciente, como “Pequena História de Velhos”. Acompanham a narração a nomeação de móveis de uma casa: guarda-roupa, gancho da rede, lençóis, cadeiras, móveis do quarto, oratório. E nada de diálogo: “Há algum tempo, o ancião não discute mais. Perdeu o derradeiro fio de voz.” Em outro conto, “Teoria do equilibrista”, o foco narrativo se dá de duas maneiras, na terceira e na primeira pessoa. Naquela, a narração sai da pena ou da boca do escritor/narrador onisciente; nesta, constituída de falas, com travessão, o protagonista (o pai) se dirige a outro personagem (o filho), e este, em falas mais breves, ora contesta as lições do pai, ora lhe faz perguntas. No interior das falas mais longas, aqui e ali o narrador toma a palavra, como para quebrar a monotonia do diálogo. Semelhante a este conto, na forma, é “O Batom”, no qual médico e paciente conversam. A narração de pequenos incidentes é mero complemento da história lida nas falas dos personagens. Em outros contos se dá exatamente o inverso: a narração, mais longa, é intercalada de breves diálogos.

Em “O encontro” tudo gira em torno do tempo ou da psicologia do tempo. A imagem que o leitor vai formando é a de um homem desiludido com o tempo: “Até a comemoração dos meus aniversários esqueci.” Em “A carta”, desde os primeiros momentos o leitor é conduzido a ver na história em desenvolvimento a presença do ciúme: “o (envelope) farejei como se buscasse vestígios de um perfume.” Mais adiante outra pitada de ciúme: “Ela não tardaria em retornar de um tal curso que agora frequenta.” No final, o narrador confessa: “Antes que o demônio do ciúme envenenasse de vez minha alma” (...).

O choque entre personagens nem sempre significa conflito nos contos de Mão de Martelo, embora o leitor se prepare para um desenlace trágico. Leia-se “Escambo”, que pode ser visto como um conto fantástico. O narrador, cidadão urbano, depara um “desses povoados perdidos no meio do sertão” e, para espanto seu, encontra uma sociedade diferente da sua, espécie de sociedade alternativa, onde o escambo substituiu o comércio normal e, por consequência, tudo se transformou: a política, a religião, a segurança pública, a prática da educação e da saúde etc. Constituído de breves narrações e longo diálogo, esse conto pode ser visto como uma sátira. Essa singularidade pode ser encontrada também em “Meu tio Ambrósio e os poetas”, assim como em “Confissão”.

Ao término da leitura de Mão de martelo e outros contos, percebe-se em Astolfo Lima Sandy um contista “sisudo”, embora não lhe falte humor, aliado ao sarcasmo, dedicado a temas fundamentais da tragédia humana e voltado para a elaboração de narrativas em que as mais variadas técnicas se mesclem, dando origem a pequenas histórias simples, porém nada banais, e sem muitas arestas a serem aparadas.

Fontes:
Nilto Maciel. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza: Imprence, 2008. p. 277.
Imagem de Giuseppe Maria Crespi.

Astolfo Lima Sandy (Casinha de Bonecas)



Eu sabia do esconderijo de Bebel, mas fingi que não. Mamãe, logo que recolheu a maninha, trancou-se no quarto com papai e lhe contou tudo. O velho saiu de lá furioso, deu socos na mesa e depois me chamou, para investigar se eu ocultava alguma coisa. Apertou meu pulso, me olhou longamente e exigiu que lhe contasse toda a verdade. Eu disse sem pestanejar que não sabia de nada, puxei meu braço e fugi.

Agi assim para proteger minha irmã. Bebel está na casa dos trinta, porém sua cabecinha é de uma criança. Ultimamente, sempre que o dia amanhece, ela corre com seu passo bambo, se mete no vestido branco de mamãe e fica na janela olhando a rua. Quando sumiu só conseguiram localizar a danadinha tarde da noite. Vinha suja e descabelada. Um vendedor de flores foi quem a viu no casarão abandonado, brincando com bonecas.

Meu pai é violento e não perdoaria se descobrisse meus segredos. Ele ainda não se livrou da mania de julgar que somos todas estúpidas. Eu, por exemplo, tenho doze anos e penso como adulta. Bebel é o contrário, mas nos damos muito bem. Aprendo com ela certas coisas que só mesmo uma pessoa de mais idade pode ensinar, e ela, comigo, tudo aquilo que mamãe não quer que a irmãzinha entenda. Acho que a gente se completa.

Os olhos de Bebel brilham iguais aos meus, quando estamos as duas em frente à TV e assistimos às cenas mais picantes de uma novela. Ela também fica trêmula ao deslizar a mão entre as pernas, deixando escorrer uma baba grossa pelo canto da boca. A única diferença é que sei me controlar: corro para o quarto, apago a luz e permaneço debaixo dos lençóis imaginando sonhos que papai nem desconfia.

Bebel ainda é meio tola em certas coisas. Nem sabe falar direito. Pronuncia apenas uns grunhidos que só eu sou capaz de compreender, porque aprendi a ler em seus olhos os desejos e desenganos; separar no tom desses gemidos os espantos e as alegrias. Ela confia em mim como se eu fosse a sua própria cabeça. Não larga do meu pé. O tempo todo atrás: “Dá, dá, dá...”

Conduzo Bebel diariamente até o sótão, abro o baú que só eu sei onde se esconde a chave e deixo que a mana remexa em tudo. Fico olhando enquanto ela se veste de branco diante do espelho quebrado, passa gel nos cabelos e pinta os lábios de batom. Adoro quando ela abre aquele sorriso inocente e tenta calçar os saltos altos que mamãe não usa mais. Gosto de ver Bebel caminhar com seu passo torto, cair, rolar pelo chão até compreender que precisa usar as próprias pernas. Quem não me conhece é de pensar que eu não presto. Mas se engana. A nossa amizade fica melhor assim. Bebel adora que seja assim. Às vezes ela passa a mão pesada sobre meus cabelos e me beija a face com seus lábios pegajosos.

Acho bárbaro ver Bebel se debruçar na janela, para aguardar que o moço da casa em frente atravesse a rua. Toda vez que isso acontece ela bate palmas com aflição, rosna feito uma gata em cima do telhado e deixa escapar mais saliva pelo canto da boca. Se ele acena para nós, minha irmã fica agitadíssima, coça a cabeça sem parar e repete muitas vezes a mesma lengalenga: “Dá, dá, dá...” Uma vez esse rapaz piscou um olho para nós e ficou na porta de sua casa, acenando. Acho que mamãe percebeu, porque logo nos chamou e repreendeu só a mim. Disse que o moço tinha débitos com a justiça e que era bem provável que usasse drogas; achava melhor não darmos cabimentos a ele. Ah, mamãe, mamãe! Sempre dependente do papai. Até o seu modo de falar, agora, é uma cópia perfeita daquilo que ele costuma dizer. Reparando melhor, até a cara dos dois está parecida. Também não é de se admirar: vivem no maior amasso. Coisa mais ridícula, meu Deus, um casal de velhos namorando! Ela pensa que eu não sei o que fazem quando finjo que vou para o colégio e fico trancada no sótão com Bebel; que não ouço seus gemidos.

Mas, no fundo, penso que mamãe só falou essas coisas todas do nosso vizinho porque não gosta que eu desperte em Bebel aquilo que julga prejudicial para uma mente despreparada. Entende que é perversidade eu alimentar certos delírios da maninha. Faço que escuto, mas ajo mesmo é de acordo com o que penso. É muito legal ver Bebel se sentindo mulher, vestir a calcinha pelo avesso, passar blush nas sobrancelhas, tudo de uma forma muito natural. Vibro ainda mais quando o rapaz de quem já falei olha diretamente para mim e sorri. Acho lindo o seu olhar sonhador, daí que detesto quando teima em colocar aqueles óculos enormes, escuros, sem graça nenhuma. Ele tem mais que a idade de nós duas juntas, mas é um homem muito bom. Há um tempo atrás ele disse que, se fosse do nosso interesse, a gente podia brincar de bonecas em sua casa. Alertou sobre o casarão desabitado, que era muito perigoso, e pediu apenas que eu não comentasse o assunto com mais ninguém.

Topei na hora a proposta porque vi que era ótimo nós termos mais um participante nessas distrações. Meu único medo é de que descubram lá em casa o novo esconderijo e venham brigar com o nosso amigo. Papai – como é de costume, aliás – anda cada vez mais bravo. Ontem caminhava de um lado para outro como se procurasse alguma coisa; cochichou pelos cantos com mamãe e depois o encontrei calibrando a velha espingarda de caça.

Também ando bastante ansiosa nesses últimos dias. Agora, quando as brincadeiras acontecem, eu sou sempre a filha e Bebel é a mãe. Do mesmo jeito que se faz numa casinha de bonecas, com a diferença de que, na nossa, as pessoas se mexem de verdade e todas têm alma. O moço pega Bebel pelo braço e seguem até o quarto dele. Tudo como na vida real. Os dois caem na cama, se cobrem com o lençol, enquanto eu fico na sala vendo um filme na TV e comendo pipocas. Depois ele vem, me põe no colo, acaricia minha nuca e me deixa toda arrepiada. Ele garantiu que hoje iremos trocar os papéis: Bebel será a filha...

Fontes:
Nilto Maciel e Soares Feitosa. Jornal do Conto.

Astolfo Lima Sandy (1948)



Astolfo Lima Sandy, natural de Sobral (1948), fez sua estréia em 1998 com o livro Mão de Martelo e Outros Contos, pela UFC.

Em 2002 ganhou o Prêmio da Biblioteca Nacional para escritores com obra em fase de conclusão, com o livro A Grande Fábrica de Brinquedos.

Participou do JORNAL de Contos Cearenses (Ed. Bagaço, Recife); da Antologia do Conto Nordestino – Ano 2000 (Ed. Micro, Recife);

Ganhou alguns Prêmios Literários; tem inéditos dois livros de contos, um de novelas.

Fonte:
Nilto Maciel e Soares Feitosa. Jornal do Conto.