quinta-feira, 29 de julho de 2010

Silviah Carvalho (O Poeta)


É aquele que ama um pouco mais,
E nunca ama por amar
E sonha um pouco mais, voa um pouco mais alto
E um pouco mais longe...

Chega onde poucos conseguem chegar
Entra nos labirintos da mente
Conhece o passado e presente
Deduz o futuro com tanta exatidão
Que parece viver um passo a frente

Nele existe um pouco mais de emoção
Um pouco mais de atenção
Um pouco mais de alegria
E um pouco mais de solidão

Um pouco mais de sinceridade
Coisa pouca dentro de muita gente
Um pouco mais da louca igualdade
Que o faz assim, tão diferente

Ele tem um pouco mais de quase tudo
Guardado dentro da mente
De tudo faz um poema, revela tudo que sente

Assim é o poeta
Ama sem ser amado; espera sem ser esperado
E muitas vezes, morre abandonado

Por vezes, só depois da morte
Tem seus poemas lembrados...

Fonte:
Colaboração da Poetisa

Joaquim Cardozo (Os Anjos da Paz)


Aos mortos de Lídice e de Coventry
Aos mortos de Hiroshima e Nagasaki

Serão os anjos da paz
Estes seres nebulosos
Surgidos da noite enorme
– Noite de luto e mortalha. . .

Vestidos de dor, manchados
Da lama de terra e sangue
Que há nos campos de batalha?
Serão os anjos da paz?

Eles vieram da noite
No sopro da tempestade
Trazendo nas vestes negras
Do lado do coração
Uma camélia tão branca
De um branco muito mais branco
Que as asas de uma ave branca
Que as asas de uma ave mansa
Passando na claridade
Num vôo só de esperança
Sem sombra deixar no chão.

Mas eles têm sobre o peito
Têm sobre o peito a couraça
Feita de ferro e marfim. . .
Feita do plasma candente
Que restringe e que amordaça. . .
Feita de fluidos ardentes:
Matéria que cristaliza
Na saliva das serpentes.

Serão os anjos da paz
Estes seres nebulosos
Surgidos na noite enorme?

Porque vieram de longe
Da mais distante paisagem,
Porque solenes chegaram
De além das nuvens, de além
Dos ninhos da ventania,
Não se pense, não se diga
Que trazem de Deus mensagem,
Que são anúncios de aurora,
Que os seus cantos são consolos
São divinos de harmonia.

Porque do rosto arrancaram
A velha e sinistra máscara
De algozes petrificados
E sobre o rosto colaram
A doce e ferida face
De mortos purificados
Não são menos as reservas
De rudes conquistadores
Não são menos as relíquias
Dos injustos, dos impróprios,
Dos de sempre vencedores.

Estes seres nebulosos
Que passam nos ares mortos
Entre o fumo e o sol do incêndio
Como estranhos meteoros
Não são os anjos da paz.

Soldado desconhecido
Cinza de carne e de terra
Duro minério sofrido
Planta do amor e da guerra
Soldado desconhecido
Escuro soldado pobre
Agora mostra o teu rosto
Agora limpa os teus olhos
Da seca espuma de sangue
Que toda a face te cobre.

Soldado desconhecido
Escuro soldado pobre
Afasta a nuvem de sono
Com que a morte te humilhou
Desfaz o véu de vertigem
Que o céu das almas nublou
Verás então que estes anjos
Agora os ares rompendo
Em luz de sonho e de amor
São aqueles mesmos fantasmas
As mesmas aves sedentas
Que em longos tempos antigos
Sempre o teu corpo rondaram
Pelo calor do teu sangue
Pelo sal de teu suor.

Soldado desconhecido
Enxuga os vidros do dia
Da névoa azul da distância:
Que se estenda além das cores
Além das ondas impuras
A visão maravilhosa,
Céus mais justos se incorporem
Aos relevos das alturas

Que nos campos se propague
Se renove eternamente
Do teu ser a flor perene,
Nasçam folhas nas ramagens
Em manhãs resplandecentes
Nasçam frutos, madrugadas. . .
E a erva má do desespero
Não ressurja entre as sementes.

Soldado, soldado pobre
Soldado desconhecido
Símbolo dos deserdados
Marca de treva e silêncio
Muda memória encoberta
Força adulta e indefinida
Que a própria dor não consome
Soldado desconhecido
Soldado escuro, soldado
Agora mostra o teu rosto
Agora diz o teu nome.

O soldado:

Embora o corpo repouse
Já livre do meu cansaço
E o nível da luz se estenda
Na ausência do sofrimento,
Uma dor sinto no braço
Profunda como a lembrança,
Dor ainda na perpétua
Cicatriz do movimento.

Pois assim mesmo encerrado
Nestas muralhas de frio,
Daqui, da sombra fechada
Do chão que eu próprio formei,
Eu vejo a chama do dia
Eu vejo a glória do rei,
Vejo a flor, o verde, o gado,
O idílio, a pátria de alguém
Por quem feri e matei.

Aqui no centro isolado
Deste casulo de cinza
Guardo o sopro que me resta,
Ouvindo os surdos gemidos,
As vozes desesperadas,
As palavras proferidas
Pelas bocas soterradas,
Pelos lábios das feridas,
Como a chuva sobre o sono
Dessa eterna madrugada.

Mas a dor de mim reflui,
Dor que exprimo e em que me exalto
Sentindo bater nas lajes,
Como em tambores de asfalto,
A marcha da multidão:
Sentindo as ondas de ferro,
Sentindo as ondas de assalto
Que vêm dos carros de guerra
Até às grades de pedra
Que encerram meu coração.

Um desejo então consagro,
Profiro sobre as memórias;
Desejando que me dessem
Uma terra, um chão mais doce,
Uma terra sem fronteiras,
Sem crateras, sem trincheiras,
Um chão puro e mais feliz
Onde pastassem ovelhas
Ou, bebendo o azul do dia,
Crescessem também roseiras.

Terra fértil, solo ativo,
Chão materno e universal,
Onde o meu corpo voltasse
Ao seu repouso natal;
Onde o meu corpo lavrado,
Perdido em nome e lembrança,
Chegasse enfim à amplitude
Da pureza vegetal.

1947

Fonte:
http://www.joaquimcardozo.com/

Joaquim Cardozo (A Pesca de Lagostim)

Pintura de Imarly Bosetti Martinez,
A noite estava escura, com nuvens pesadas ameaçando chuva, nuvens densas não deixando ver as estrelas, e um vento pequeno soprava; esse ambiente tempestuoso e fusco anunciava a possibilidade de uma boa pesca de lagostim. Por isso resolvemos fazê-la. Estávamos, para isso, preparados na praia; dispostos a partir numa jangada, em demanda de uns recifes de pedras, distantes, no mar àquela hora em maré vazante.

Ótimo! A maré baixa facilitaria descobrir nas pedras as melhores locas desse apreciado crustáceo. Equipados com os utensílios indispensáveis à pescaria – os cestos, as iscas, as forquilhas, os feixes de folhas secas de bananeira que acenderíamos e com eles ofuscaríamos os lagostins –, com tudo isso, ficamos aguardando a vinda da jangada. Éramos quatro: eu e mais três amigos, dois dos quais nunca tinham participado de semelhante proeza.

A maré continuava a descer. Estávamos já impacientes com a espera, um pouco longa; por fim a jangada, com a sua doce pancada, o seu choque uniforme na água levemente intranqüila, chegou bem perto da praia. Entramos n’água e alcançamos aqueles paus flutuantes, que nos levariam aos recifes distantes e, a essa hora, já quase inteiramente descobertos; nos aconchegamos, o melhor que pudemos, no seu dorso, e logo depois o jangadeiro deu sinal de partida.

Atravessamos aquele mar macio, manso, de água parada, contida pelos recifes. Íamos alegres, satisfeitos, esperançosos no bom êxito da nossa atuação como pescadores de lagostim. Era mais uma experiência que realizávamos como pescadores improvisados. De longe ainda avistávamos a praia, e as luzes das casas iam, aos poucos, se envolvendo na bruma que cobria, àquela hora – quase dez horas da noite – o povoado de onde partimos. Por fim, tudo do lado da terra desaparecera. Daquele lado, tudo eram sombras tempestuosas. Navegamos por pouco tempo e chegamos afinal aos recifes. Era um conjunto de pedras eriçadas, surgindo, naquele momento, das águas da maré baixa, e que fica, quase sempre, inteiramente coberto nas marés altas.

Chegamos, derivamos um pouco à procura de um bom lugar para saltarmos sobre as pedras; não foi muito fácil encontrá-lo, no entanto conseguimos desembarcar, e, numa pedra das mais salientes, o jangadeiro amarrou a jangada. Do lado do mar aberto vinham, no sopro de um vento forte, alguns golpes de ressaca.

Saímos depois os cinco, pois o jangadeiro ia conosco – pescador experimentado que era nos ajudaria naquela pesca. Saímos a caminhar sobre os recifes, pisando com precaução para não escorregar nas pedras lisas, úmidas e musgosas. Percorremos, nos afastando do ponto em que desembarcamos, uma grande distância, até que deparamos com um lugar onde, por certo, existiam boas locas de lagostim. Acendemos os feixes de folhas secas de bananeiras; empunhamos o archote, iluminando a região, dirigindo-o para as locas, agora visíveis, dos lagostins, que iam aos poucos saindo dos seus esconderijos, que eram muitos. Atraídos pela luz cegante das tochas, os crustáceos ficavam fascinados e se deixavam facilmente apanhar. Usamos então as forquilhas sobre o dorso de cada um, prendendo-os, um após outro, sem grande dificuldade. Presos nas forquilhas os jogávamos depois dentro dos cestos. Cada um de nós se ocupava de uma loca, fazendo descer a isca na ponta de um pau, como chamariz; fazendo saírem da toca os mais recalcitrantes.

Estávamos tão empenhados naquela distração e tão embevecidos com o sucesso da pescaria que não tínhamos o sentimento de que tudo aquilo devia se passar em poucos momentos, pois era certo que aquelas pedras, dentro de pouco tempo, estariam cobertas totalmente pelas águas. Daqueles recifes, não mais se veria daí a pouco, uma ponta de pedra aflorante. Estávamos dominados realmente por uma verdadeira fascinação, uma espécie de atração que nos provocava aquele exercício de pescar. Era uma obsessão permanente, aquela de querer desvendar e prender os pequenos seres que apareciam à luz dos fachos acesos. Os lagostins se deslumbravam e nós ficávamos enlevados em vê-los evoluir dentro da noite das águas; noite dentro da noite tempestuosa e que se converteria muito em breve no mais escuro e rumoroso aguaceiro.

Pescávamos e nada mais víamos ou pressentíamos, como se toda aquela festa pudesse se prolongar até alta madrugada. Pescamos, de qualquer modo, ainda por algum tempo, e estávamos já com os nossos cestos repletos de crustáceos, mas eram tantos e tão fáceis de apanhar que continuávamos sem o menor receio do surgimento de qualquer imprevisto. De repente, porém, alguém lembrou que a maré tinha virado. Precisávamos bater em retirada quanto antes; precisávamos voltar com urgência ao ponto onde desembarcamos da jangada; foi uma surpresa, e como que um despertar. Com toda a pressa, começamos a juntar os cestos e todos os outros utensílios usados na pesca, e logo procuramos chegar, o mais breve possível, ao local onde tínhamos deixado amarrada a jangada. Estávamos bastante longe do local.

Devíamos caminhar depressa e com maior precaução do que tivemos antes, pois as águas agora cobriam grande parte das pedras, e era difícil manter o equilíbrio sobre elas, dado o jogo de ondas da maré crescente. Conosco, voltava também o jangadeiro, que conhecia bem o local onde tínhamos desembarcado. Saímos como que de um sonho, para, aos poucos, entrarmos num verdadeiro pesadelo. A marcha de volta, que sobre os recifes fazíamos, se realizava com dificuldade crescente. Carregados com os apetrechos da pesca, sobretudo o cesto com os lagostins, enfrentávamos uma situação muito diferente daquela em que nos encontramos em nossa vinda: as pedras, mais do que pensávamos, estavam quase todas levemente cobertas pelas águas da maré. Algumas pontas, entretanto, ainda afloravam; em muitos lugares caminhávamos com os pés já mergulhados e o perigo de escorregar era mais freqüente. Prosseguimos, apesar de tudo, com rapidez, e, quando escorregávamos, tínhamos o cuidado de nos amparar nas pedras mais altas e agudas. As águas do mar, cada vez mais fortes, espadanavam, fazendo mesmo pequenas ressacas, que molhavam a todos nós; íamos, cautelosamente, sobre as pedras alagadas, mantendo acesos os fachos de folhas de bananeiras; restavam, porém, poucos luzeiros desse tipo e, se não alcançássemos em tempo o ponto onde deixamos a jangada, teríamos que ficar no escuro, e enfrentar as trevas daquela noite fechada; de vez em quando, atirávamos na água uma tocha quase inteiramente consumida; acendíamos outra e, aos poucos, chegamos ao ponto onde devíamos ter amarrado a jangada. Digo devíamos ter, porque, no referido local, a situação das pedras, com o crescimento da maré, modificou-se por completo; e a ausência da embarcação em que viéramos nos dava uma incerteza se que era realmente aquele o lugar do nosso desembarque.

Havia dúvida a respeito do local, até que o jangadeiro reconheceu a pedra onde amarrara a jangada, constatando realmente que a mesma se tinha desprendido e devia estar à deriva, perdida na escuridão da noite. O jangadeiro pensava em lançar sobre as pedras o tauaçu, as depois achou que ele não daria uma ancoragem suficiente, e desistira. Aqueles paus flutuantes estariam, agora, à deriva no mar; mas em que direção? A que distância das pedras do recife?

Não se podia saber. Talvez estivesse na direção da praia, talvez se afastando mar adentro. Estávamos perplexos e confusos. E agora, como voltar ao povoado de onde viéramos? Um certo nervosismo se apoderou de nós todos. Ficamos ainda comentando o que tinha acontecido e esquecemos por um momento que a maré subia. A maré subia! De cada vez que a onda vinha, atingia as pedras ainda descobertas num ponto mais alto. De repente, tivemos que fazer as nossas confissões.

Soube então que dois dos que estavam comigo não sabiam nadar; numa atitude nervosa, quase alucinados, eles estavam prevendo um fim desesperado: se a maré, crescendo, chegasse a cobrir totalmente as pedras e, sobre estas, as águas atingissem, como de habitual, a altura de um metro, decerto morreríamos afogados.

Eu e o meu amigo, que sabíamos nadar, ficamos também dominados por uma angústia terrível, que era pensar como íamos deixar ali, sobre as pedras, os dois que não sabiam nadar; e pensar de que maneira poderíamos vencer a nado a distância, agora mais longa, e num mar muito agitado; distância dos recifes até a praia.

E a maré subia! Subia! Ouvíamos a onda bater cada vez mais alta nas pedras, cada vez mais avançava e se arrastava de volta, em curvas caprichosas. A maré subia! Os fachos que ainda nos iluminavam iam, pouco a pouco, acabando. A luz não dava para distinguir cinco metros de noite sobre o mar, e, na área, nada se via que pudesse ser uma jangada. Certamente ela estava bastante afastada dos recifes.

Foi então que o jangadeiro tomou uma resolução: atirar-se à água e procurar a jangada. Não devia estar muito longe, dizia ele. E assim fez; lançou-se na água e começou a nadar; logo perdemo-lo de vista, penetrou na noite escura, marítima. Perguntamos aos berros:

– Jangadeiro! Algum sinal da jangada?

Ouvíamos, vindo da distância escura, a sua resposta:

– Nenhum! A escuridão não me deixa distinguir coisa alguma!

A aflição entre nós prosseguia, ou melhor, subia, como subia a maré, no mesmo compasso da maré, com a mesma ondulação, as mesmas súbitas pancadas. Os amigos que não sabiam nadar começaram a chorar, desolados, perdidos na ausência de tomarem uma decisão. Depois de algum tempo, todos os fachos quase queimados, ficamos à espera de qualquer sinal do jangadeiro; por fim, vimo-lo aproximar-se, nadando, para o local onde estávamos; chegava cansado e desanimado.

– Então? dissemos todos. Já com a água no meio da canela, respondeu:

– Nada! Está muito escuro, é impossível ver dois metros adiante.

Tomei então a deliberação seguinte: disse-lhe que voltasse a nadar em torno daquele ponto onde estávamos, mas agora levaria um facho na mão, um dos que ainda restavam, para melhor iluminar aquelas águas escuras.

E ele voltou a investigar a densa escuridão, agora erguendo numa das mãos um luzeiro; nadando somente com os pés e o braço livre, avançou mar adentro; em breve saiu daquela treva espessa, tornou-se apenas um ponto luminoso que, de repente, desaparecera. Ficamos aflitos. Cada vez mais os que não sabiam nadar não davam pausa ao seu desespero, choravam, gemiam, arrancavam os cabelos. E a maré subia! Subia! Subia; as águas do mar subiam, e os fachos de luz morriam. De repente, ouvimos um grito distante:

– Achei a jangada!

Foi um alívio. Aos lábios de todos voltou um sorriso de alegria, houve um desafogo, até os que choravam criaram novo ânimo, convictos de que o seu terrível dilema tinha cessado. Mas logo, para destruir toda a esperança, veio outro grito:

– Não! Não é; é um tronco boiando.

De novo, e agora mais profunda, a decepção; um desânimo total apoderou-se de todos nós; naquele momento, pensamos e decidimos morrer todos. Nunca deixaríamos ali, abandonados, os que estavam fadados a perder a vida sob as águas de maré cheia; tínhamos determinado.

Faríamos, entretanto, o máximo que pudéssemos. Tentaríamos levá-los, os dois em nossas costas, até a praia, enfrentando aquele mar já encapelado pela crescente ameaça de próximos aguaceiros, procurando vencer a nado a distância até a praia; lutando contra as águas da maré cheia e os açoites do vento cada vez mais constantes e violentos.

As nuvens se espessavam, se escureciam cada vez mais; ameaçava chover dentro em breve. O jangadeiro não dava mais sinal de vida, os feixes de folhas secas de bananeira tinham-se esgotado; e a maré subia, subia sempre. A água cobria agora todas as pedras; estávamos com os pés inteiramente dentro d’água, e em muitos, lugares, também as pernas mergulhadas mais de um palmo. O equilíbrio sobre as pedras tornava-se cada vez mais difícil. Sobre elas, as águas passavam com um movimento vivo e oscilante, numa dança de avanços e recuos, de giros e rodopios, confirmando que a maré continuava subindo.

Já estávamos preparados, na escuridão, para lançarmo-nos ao mar e nadarmos, levando os nossos companheiros em direção à praia, quando uma voz longínqua, quase apagada, falou da noite do mar, como uma revelação misteriosa; como uma voz vinda do além, uma voz distante, vinda do outro lado do mundo, vinda da morte de alguém.

E a voz dizia, ao mesmo tempo que a água subia:

– Achei a jangada! Achei a jangada!

Parecia a voz do jangadeiro, ou a voz de além-túmulo. Estacamos, paramos, a escutar, não acreditando na realidade daquela voz, que parecia uma ressonância, dentro de nós mesmos, da outra que já tínhamos ouvido, pronunciando as mesmas palavras; ou como o canto ilusório de uma sereia:

– Achei a jangada!

Era de fato a jangada que se aproximava: ouvíamos ainda distante, dentro do clamor das ondas, o seu resvalar sobre a superfície do mar. Com um grito de júbilo, todos nós o esperamos no escuro, uma vez que não havia mais um facho para acender: o que o jangadeiro levara consigo, tinha se apagado.

Tirei a minha camisa que estava ainda seca; enrolei-a em torno de um pau que ainda restava, tirei fósforos e com dificuldade consegui inflamá-la, aliás quase depois de gastar todos os fósforos; empenhei-me vivamente nesse trabalho, único meio de indicarmos onde nós estávamos. O pano afinal pegou fogo e se tornou o último archote; dirigida por essa luz, a jangada encontrada chegou enfim até nós; à sua aproximação, atiramo-nos os quatro de bruços sobre os seus paus flutuantes.

Abandonamos tudo: os cestos com lagostins e todos os aparelhos de pesca; o jangadeiro, sem mais nada, impeliu a jangada em direção à praia, com a maré já alta. O céu continuava enfarruscado. De súbito, sobre nós, começou a cair uma chuva intensa e pesada: uma chuva cantante, completa, amargurada.

Fonte:
http://www.joaquimcardozo.com/

Joaquim Cardozo (1897 – 1978)


Joaquim Moreira Maria Cardozo, nasceu no Recife (bairro do Zumbi), a 26 de agosto de 1897.

No campo da dramaturgia escreveu, inovando o gênero bumba-meu-boi: Coronel de Macambira, De uma noite de festa e Marechal, boi de carro . Escreveu ainda os dramas O Capataz de Salema , e Antônio Conselheiro , além do pastoril Os anjos e os demônios de Deus.

Com Oscar Niemeyer e Lúcio Costa participou da construção da cidade de Brasília, respondendo pelos cálculos estruturais. Dentre os edifícios calculados por Joaquim Cardozo, em Brasília, destacam-se o Palácio da Alvorada, o Congresso Nacional e a Catedral.

Como engenheiro calculista, sensível à beleza das formas da arquitetura moderna, Joaquim Cardozo, à época em que foi, no Recife, professor das escolas de Engenharia e Belas Artes (década de 30) escreveu também sobre questões pertinentes à engenharia e à arquitetura. Esses escritos foram publicados em periódicos como Módulo, Arquitetura e Revista do SPHAN..

No final de 1939, paraninfando uma turma de engenheiros, criticou, no seu discurso, o mau uso e as distorções que o poder público fazia no tocante à utilização da engenharia. Ficou mal visto pelo governo do estado e essa situação, intolerável para ele, motivou sua transferência para o Rio de Janeiro.

Lá fez diversas amizades, dentre as quais Oscar Niemeyer e Rodrigo M. F. de Andrade. Pouco tempo depois de sua transferência para o sul do país foi convidado pelo arquiteto que projetou o Conjunto de Pampulha, em Belo Horizonte, para fazer os cálculos dos edifícios (Igreja, Cassino, Casa do Baile). Mais tarde, como funcionário da Novacap, passou a integrar a equipe de Niemeyer nos cálculos da cidade de Brasília.

Desde criança, Cardozo interessava-se pelas manifestações da cultura popular. Ele próprio relata que muitas vezes ficava até altas horas da noite vendo o bumba-meu-boi. Não é difícil concluir que tal interesse representou o solo onde fincou raízes. Onde se formou a personalidade artística responsável por uma obra literária em que o povo, com suas crenças, mitos, lendas, estaria sempre presente. O mesmo interesse levou-o, mais tarde, a pesquisar as origens do bumba, remontando aos autos pastoris da idade média. De uma noite de festa é um texto popular e ao mesmo tempo erudito, em que ao saber popular – como por exemplo a utilização de plantas medicinais – misturam-se outros saberes, como a física.

Ainda no Recife, nos meados da década de 30, Cardozo integrou a equipe que fazia a Revista do Norte, junto com José Maria de Albuquerque Melo. Nessa época freqüentava a Esquina Lafayette, onde se reuniam artistas e intelectuais como Luiz Jardim, Ascenso Ferreira, Benedito Monteiro, Otávio Moraes e outros, que ali se encontravam para conversar sobre assuntos de interesse geral, incluindo evidentemente poesia e as novas tendências artísticas.

Pessoas que conviveram mais de perto com o poeta comentam que, devido à sua timidez e senso crítico, Cardozo falava de tudo, mas a sua poesia era quase toda guardada “de cor”. Sua maneira preferida de dar a conhecê-la era dizendo-a em voz alta, nas reuniões com os amigos. Tanto é que foram alguns deles que tomaram a iniciativa de publicar em livro os seus poemas. Dessa iniciativa veio à luz o primeiro livro de Joaquim Cardozo, Poemas, editado em 1947, quando o poeta estava com 50 anos de idade.

Na poesia do Signo Estrelado, o Nordeste aparece transfigurado em imagens e ritmos entrelaçados; ao colorido, aos cheiros, aos sabores, às formas, à fauna nordestina, transfundidos por uma finíssima sensibilidade aberta às dimensões universais da arte. O livro é uma demonstração da altura em que o sentimento lírico de identificação com a terra se transcende numa dimensão introspectiva, como em A várzea tem cajazeiras, lembrando o Fernando Pessoa das sondagens do próprio eu:

(...)
A várzea tem cajazeiras...
Cada cajazeira um ninho
Que entre o verde e o azul oscila;
Mocambo de passarinho...
(...)

Nessa várzea sou planície,
vaga dimensão dormente,
tendida no chão conforme
sou de mim sombra somente.

Rumos de céus desvelados
onde chego e me afugento?
- já me escuto como em sonho
de tão longe que me ausento!

Em redes de ramos verdes
me estendo como um caminho,
me espreguiço dessa várzea,
e me embalo desse ninho.

O poder de transfiguração dos motivos temáticos refina-se em várias outras composições, como “Imagens do Nordeste”, na qual uma vela de jangada pode ser uma flâmula, uma lâmina (notem as correspondências sonoras), ou uma mariposa.

Joaquim Cardozo foi também crítico de artes plásticas e exerceu, durante algum tempo de - 1955 a 1958 – essa atividade, escrevendo artigos na revista Para Todos, dirigida por Jorge Amado. Muitos artistas de renome tiveram suas exposições comentadas por ele, numa linguagem que não era apenas fruto de um saber técnico, mas da convivência amorosa com as mais diversas expressões da criação artística.

Joaquim Cardozo faleceu aos 81 anos, em Olinda, em 4 de novembro de 1978.

Seu nome conquistou um lugar ímpar entre os poetas modernos brasileiros, além da participação que teve como um dos pioneiros em introduzir no Brasil as formas ousadas da arquitetura moderna.

Sinopse cronológica da vida e da obra de Joaquim Cardozo:

1897 - Nasce em 26 de agosto, no bairro do Zumbi, em Recife, Joaquim Moreira Cardozo. Filho de José Antônio Cardoso e Elvira Moreira Cardoso.
1910 - Muda-se com a família para Jaboatão (PE).
1914 - Começa a trabalhar como caricaturista no Diário de Pernambuco.
1915 - Inicia os estudos na Escola de Engenharia de Pernambuco.
1919 - Interrompe o curso de engenharia para servir no exército.
1920/24 - Realiza trabalhos de levantamento topográfico no município do Recife e no estado da Paraíba. Frequenta a Esquina Lafayette, onde se reuniam intelectuais de diversas tendências, entre os quais o grupo ligado à Revista do Norte, dirigida então por José Maria de Albuquerque Melo.
1924/25 - Dirige e colabora com a Revista do Norte.
1927 - Reinicia os estudos na Escola de Engenharia.
1930 - Cola grau como engenheiro civil.
1931 - Trabalha na Secretaria de Viação e Obras Públicas.
1935 - Leva para a Exposição comemorativa da Revolução Farroupilha, em Porto Alegre, a primeira mostra da arquitetura brasileira moderna. Giro pelo Uruguai e pela Argentina.
1936 - Reassume as cadeiras nas Escolas de Engenharia e de Belas Artes.
1938 - Permanência de três meses na Europa, aonde vai para realizar o desejo de visitar museus e lugares artísticos.
1939 - Paraninfo da turma de engenharia de 1939. Discurso considerado subversivo e atrito com o governo de Pernambuco. Mudança para o Rio.
1940 - Começa a trabalhar no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) com Rodrigo de Andrade, Lúcio Costa e Burle-Marx.
1941 - Conhece o arquiteto Oscar Niemeyer e começa a fazer os cálculos dos projetos. do arquiteto. Dentre esses, os mais famosos seriam as obras que integram o Conjunto Pampulha, em Minas, e os da cidade de Brasília (Palácio da Alvorada, Catedral, Itamarati, Congresso Nacional e outros).
1946 - Incluído por Manuel Bandeira na "Antologia de Poetas Bissextos". A Revista do Norte, nos 50 anos do poeta, dedica-lhe o número de outubro.
1952 - Escreve o primeiro poema do livro Trivium "Prelúdio e Elegia para uma Despedida" editado pela Hipocanpo, em tiragem limitada.
1955/58 - Colabora com a revista "Para Todos", dirigida por Jorge Amado e a revista Módulo, de arquitetura.
1956 - Convidado por Oscar Niemeyer para fazer os cálculos estruturais dos mais importantes edifícios de Brasilia, entre eles a Catedral.
1960 - Editado o livro "Signo Estrelado",pela Livros de Portugal.
1963 - Editada a peça "O Coronel de Macanbira", pela Civilização Brasileira.
1967 - Sob a direção de Amir Haddad é encenado "O Coronel de Macanbira".
1968 – Participa, junto com Audálio Alves e outros poetas do Recife, do movimento poético denominado "Espectralismo".
1973 - Paraninfo da Escola Politécnica do Recife.
1974 - Homenageado pelo I..A..B. da Guanabara, em 17 de dezembro.
1975 - Edição de "O Interior da Matéria", com ilustrações de Burle-Marx.
1981 - Editado o livro póstumo "Um Livro Aceso e Nove Canções Sombrias".

Fonte:
Maria da Paz Ribeiro Dantas. Apresentando Joaquim Maria Moreira Cardozo.
http://www.joaquimcardozo.com/paginas/joaquim/biografia8.htm

Antonio Candido (Letras e Idéias no Período Colonial) Parte 3


Essa visão transfiguradora se incorporou para sempre à literatura e aos estudos, constituindo um dos elementos centrais da nossa educação e do nosso ponto de vista sobre as coisas. Em meados do século XVIII veio juntar-se a ela uma concepção até certo ponto nova que representa, nas idéias em geral, a influência das correntes ilustradas do tempo; a literatura do Classicismo de inspiração francesa e do Arcadismo italiano. Sem anular as tendências anteriores, as correntes então dominantes no gosto e na inteligência apresentam caracteres diversos. Poderíamos esquematizá-las dizendo:

1) que a confiança na razão procurou, senão substituir, ao menos alargar a visão religiosa;

2) que o ponto de vista exclusivamente moral se completou — sobretudo nas interpretações sociais — pela fé no princípio do progresso;

3) que, em lugar da transfiguração da natureza dos sentimentos, acentuou-se a fidelidade ao real. Em suma, formou se uma camada mais ou menos neoclássica, rompida a cada passo pelos afloramentos do forte sedimento barroco.

Aproximadamente com tais características, ocorreu no Brasil uma pequena Época das Luzes, que se encaminhou para a independência política e as teorias da emancipação intelectual, tema básico do nosso Romantismo após 1830. Historicamente, ela se liga no pombalismo, muito propício ao Brasil e aos brasileiros, e exemplo do ideal setecentista de bom governo, desabusado e reformador. Para uma colônia habituada à tirania e carência de liberdade, pouco pesaria o despotismo de Pombal; em compensação, avultaram a sua simpatia pessoal pelos colonos, que utilizou e protegeu em grande número, assim como os planos e medidas para o nosso desenvolvimento. Algo moderno parecia acontecer; e os escritores do Brasil se destacam no ciclo do pombalismo literário, com o Uraguai, de Basílio da Gama, justificando a luta contra os jesuítas; O desertor, de Silva Alvarenga, celebrando a reforma da Universidade; O reino da estupidez, de Francisco de Melo Franco, atacando a reação do tempo de D. Maria I. Isto, sem contar uma série de poemas ilustrados de Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto, formulando a teoria do bom governo, apelando para as grandes obras públicas, louvando o governante capaz: Pombal, Gomes Freire de Andrada, Luís Diogo Lobo da Silva.

Daí resultou incremento do nativismo, voltado, agora, não apenas para a transfiguração do país, mas para a investigação sistemática da sua realidade e para os problemas de transformação do seu estatuto político. As condições econômicas eram outras, impondo-se a libertação dos monopólios metropolitanos — sobretudo o do comércio — num país que sofrerá o baque do ouro decadente e necessitava maior desafogo para manter a sua população. As revoluções norte-americana e francesa, o exemplo das instituições inglesas, o nascente liberalismo oriundo de certas tendências ilustradas completariam o impacto do pombalismo, formando um ambiente receptivo para as idéias e medidas de modernização político-econômica e cultural, logo esboçadas aqui com a presença da Corte, a partir de 1808. No Brasil joanino conjugaram-se as tendências e as circunstâncias, tornando inevitável a autonomia política.

Estas considerações visam sugerir que, no período em questão, houve entrosamento acentuado entre a vida intelectual e as preocupações político-sociais. As diretrizes respectivas — conforme as entreviam os nossos homens de então nos modelos franceses e ingleses — se harmonizavam pela confiança na força da razão, considerada tanto como instrumento de ordenação do mundo, quanto como modelo de uma certa arte clássica, abstrata e universal. A isto se juntavam:

1) o culto da natureza, que favoreceu a busca da naturalidade de expressão e sinceridade de emoção, contrabalançando a sua eventual secura;

2) o desejo de investigar o mundo, conhecer a lei da sua ordem, que a razão apreendia;

3) finalmente, a aspiração à verdade, como descoberta intelectual, como fidelidade consciente ao natural, como sentimento de justiça na sociedade.

No caso brasileiro, estes pendores se manifestaram frequentemente pelo desejo de mostrar que também nós tínhamos capacidade para criar uma expressão racional da natureza, generalizando o nosso particular mediante as disciplinas intelectuais aprendidas com a Europa. E que havia uma verdade relativa às coisas locais, desde a descrição nativista das suas características, até a busca das normas justas, que deveriam pautar o nosso comportamento como povo.

A passagem a esta nova maneira de ver é clara na diferença entre dois grêmios, que se sucederam na segunda metade do século XVIII. A Academia dos Renascidos, fundada na Bahia em 1759 por um grupo de legistas, clérigos e latifundiários, abordava temas literários e históricos, — de uma história lendária e próxima à epopéia, ou de uma crônica mais ou menos ingênua de acontecimentos. Dela resultaram os Desagravos do Brasil, de Loreto Couto, a História militar, de José Mirales, as Memórias para a história da capitania de São Vicente, de frei Gaspar da Madre de Deus. A Academia assinala um instante capital na formação da nossa literatura, ao congregar homens de letras de várias partes da colônia, num primeiro lampejo de integração nacional.

A Academia Científica, fundada no Rio em 1771 por médicos, e reformada sob o nome de Sociedade Literária em 1786, para durar intermitentemente até 1795, propagou a cultura do anil e da cochonilha, introduziu processos industriais, promoveu estudos sobre as condições do Rio e acabou criticando a situação da colônia, com base em Raynal e inspirações também em Rousseau e Mably.

Nos escritores deste período encontramos os que representam uma passagem, ou mistura, de Barroco e Arcadismo; os que manifestam diferentes aspectos de um nativismo que vai deixando de ser apenas extático para ser também racional; os que procuram superar a contorção do estilo culto por uma expressão adequada à natureza e à verdade; os que passam da transfiguração da terra para as perspectivas do seu progresso.

Muito interessantes como sintoma são os Diálogos político-morais (1758), de Feliciano Joaquim de Sousa Nunes, ou antes a sua introdução, onde vem claramente expresso o tema do ressentimento dos intelectuais brasileiros, que desejavam ser reconhecidos a par dos metropolitanos e se apegavam, como defesa, à teoria de que o critério da avaliação deveria ser o mérito, não as circunstâncias de naturalidade ou posição social.

Esta atitude ocorre também em Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), escritor de transição entre o cultismo e as novas tendências, representando de algum modo o início de uma atividade literária regular e de alta qualidade no seu país. Contemporâneo dos fundadores da Arcádia Lusitana (1756), que empreendeu a campanha neo-clássica em Portugal, reajustou conforme os seus preceitos a forte vocação barroca, encontrando a solução numa espécie do Neoquinhentismo — parecendo um novo Diogo Bernardes pela síntese da simplicidade clássica e certo maneirismo infuso. Há muita beleza nas suas éclogas, apesar da eventual prolixidade; mas nos sonetos está o melhor do seu estro, como forma e elaboração dos dados humanos.

Apegado à terra natal, é visível nele a impregnação em profundidade dos seus aspectos típicos, naturais e sociais: rocha, ouro, mineração, angústia fiscal. Neste sentido, empreendeu cantar numa epopéia a vitória das normas civis sobre o caos da zona pioneira de aventureiros, narrando a história da capitania de Minas. O resultado foi mau, não chegando a publicar o referido poema — VILA RICA — embora o tivesse aprontado antes de 1780.

Seu amigo Inácio José de Alvarenga Peixoto (1744-1793) deixou obra pequena, próxima da sua pela forma e as preocupações políticas, e igualmente embebida na realidade mineira. Com Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), companheiro de ambos em Ouro Preto, o Arcadismo encontrou no Brasil a mais alta expressão. Na sua obra há um aspecto de erotismo frívolo, expresso principalmente nas poesias de metro curto, anacreônticas em grande parte, celebrando a namorada, depois noiva, sob o nome pastoral de Marília. Mas ela vale sobretudo pelas de metro longo, voltadas para a expressão lírica da sua própria personalidade. Nelas, com admirável simplicidade e nobreza, traça um roteiro das suas preocupações, da sua visão do mundo e, depois de preso, do seu otimismo estóico. A ele se tem atribuído cada vez mais a autoria das famosas Cartas chilenas, sátira violenta contra um governador de Minas, verberando desmandos administrativos e revelando costumes do tempo, em verso enérgico e expressivo.

Estes três poetas se envolveram na Inconfidência Mineira, mas parece que apenas Alvarenga Peixoto desempenhou nela papel militante. De qualquer modo, foram duramente castigados e representam no Brasil o primeiro e até hoje maior holocausto da inteligência às idéias do progresso social.

Igualmente progressistas e muito estritamente pombalinos (como ficou dito) foram dois outros contemporâneos, que formam um par separado: José Basílio da Gama (1741-1795) e Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814).

O Uraguai (1769), do primeiro (porventura a mais bela realização poética do nosso Setecentos), classificado em geral como epopéia, é na verdade um curto poema narrativo de assunto bélico, visando ostensivamente atacar os jesuítas e defender a intervenção pombalina nas suas missões do Sul. Visivelmente atrapalhado por um material polêmico que não teria tempo, ou disposição de elaborar, o poeta relegou-o para as notas o mais que pôde. No corpo do poema resultou a simpatia pelo índio, esmagado entre interesses opostos; e a fantasia criadora elaborou um admirável universo plástico, descrevendo a natureza e os feitos com um decassílabo solto de rara beleza e expressividade, nutrido de modelos italianos. Graças a isto, o Uraguai se tornou um dos momentos-chave da nossa literatura, descrevendo o encontro de culturas (européia e ameríndia), que Inspiraria o Romantismo indianista, para depois se desdobrar, como preocupação com o novo encontro entre a cultura urbanizada e a rústica, até Os sertões, de Euclides da Cunha, o romance social e a sociologia. No tempo de Basílio, tratava-se de optar, neste processo, entre a tradicional orientação catequética e a nova direção estatal, colocando-se ele francamente ao lado desta.

Na mesma linha se pôs seu amigo Silva Alvarenga, que veio para o Rio depois de formado, enquanto ele permanecia em Portugal. Silva Alvarenga, no poema herói-cômico O desertor (1774), apoia a reforma da Universidade, atacando os velhos métodos escolásticos; e, pela vida afora, mesmo após a reação que sucedeu à queda de Pombal, continuou fiel à sua obra e às tendências ilustradas, em poemas didáticos e, sobretudo, pela já referida atuação na Sociedade Literária, de que foi mentor e lhe valeu quase quatro anos de prisão. O seu papel foi muito importante no Rio dos últimos decênios do século XVIII, pois influiu, como professor, na geração de que sairiam alguns próceres da Independência, — o que faz do velho árcade um elo entre as primeiras aspirações ilustradas brasileiras e a sua consequência político-social.

Como poeta, entretanto, é sobretudo o autor de Glaura (1799), que contém uma série de rondós e outra de madrigais. Os primeiros são uma forma poética inventada por ele com base numa estrofe de Metastasio e constituindo, apesar da monotonia, melodioso encanto em que perpassam imagens admiravelmente escolhidas para denotar o velho tema da esperança e decepção amorosa. Os madrigais, mais austeros como forma, mostram a capacidade clássica de exprimir os sentimentos em breve suma equilibrada. Dentre os árcades, é o mais fácil e musical dos poetas, já que Domingos Caldas Barbosa (1740-1800) é antes um modinheiro cujas letras têm pouca força sem a partitura.

Para encerrar este grupo de homens superiormente dotados, falta mencionar frei José de Santa Rita Durão (1722-1784), que fica à parte pela decidida oposição à ideologia pombalina e fidelidade à tradição camoniana. A sua cultura escolástica e o afastamento dos meios literários, mais a influência de cronistas e poetas que se ocuparam do Brasil no modo barroco (Vasconcelos, Rocha Pita, Jaboatão, Itaparica), fazem dele, sob muitos aspectos, prolongamento da visão religiosa e transfiguradora atrás mencionada, levando-o a avaliar a colonização do ângulo estritamente catequético. Mas a época e o talento fizeram-no buscar, superando a falsa e afetada epopéia pós-camoniana, um veio quinhentista mais puro, para celebrar a história da sua pátria no Caramuru (1781). Resultou um poema passadista como ideologia e fatura, mas fluente e legível, com belos trechos descritivos e narrativos, devido à imaginação reprodutiva e à capacidade de metrificar as melhores sugestões das fontes que utilizou. Ele representa uma posição intermediária importante, por ter atualizado a linha nativista de celebração da terra, abrindo caminho para a sua florescência no século XIX.

Costumava-se abranger estes poetas sob o nome coletivo de Escola Mineira. Na verdade, formam, como vimos, três segmentos distintos no movimento arcádico, e a designação só se justificaria caso tomada como sinônimo do grupo brasileiro dentro do Arcadismo português, dada a circunstância de todos eles terem ou nascido em Minas, ou lá passado as partes decisivas da vida.

Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Olavo Bilac (Plutão)


Negro, com os olhos em brasa,
Bom, fiel e brincalhão,
Era a alegria da casa
O corajoso Plutão.

Fortíssimo, ágil no salto,
Era o terror dos caminhos,
e duas vezes mais alto
Do que seu dono Carlinhos.

Jamais à casa chegara
Nem a sombra de um ladrão;
Pois fazia medo a cara
Do destemido Plutão.

Dormia durante o dia,
Mas, quando a noite chegava,
Junto à porta se estendia,
Montando guarda ficava.

Porém Carlinhos, rolando
Com ele ás tontas no chão,
Nunca saía chorando
Mordido pelo Plutão...

Plutão velava-lhe o sono,
Seguia-o quando acordado
O seu pequenino dono
Era todo o seu cuidado.

Um dia caiu doente
Carlinhos... Junto ao colchão
Vivia constantemente
Triste e abatido, o Plutão.

Vieram muitos doutores,
Em vão. Toda a casa aflita,
Era uma casa de dores,
Era uma casa maldita.

Morreu Carlinhos... A um canto,
Gania e ladrava o cão;
E tinha os olhos em pranto,
Como um homem, o Plutão.

Depois, seguiu o menino,
Segui-o calado e sério;
Quis ter o mesmo destino:
Não saiu do cemitério.

Foram um dia à procura
dele. E, esticado no chão,
Junto de uma sepultura,
Acharam morto o Plutão.

Fontes:
Bilac, Olavo. Poesias Infantis. RJ: Francisco Alves. 1929.
Imagem = http://pt.dreamstime.com

terça-feira, 27 de julho de 2010

José Feldman (Uma Vez Conheci um Anjo)


Uma vez conheci um anjo.
Não tinha asas e nem auréola,
mas tinha um olhar de anjo.

Uma vez conheci um anjo.
Era meiga, sincera,
e falava coisas tão bonitas
que sentia meu coração derreter.

Uma vez conheci um anjo.
sorria como só os anjos sabem sorrir,
e fazia biquinhos tão encantadores
que a vida parecia se tornar mais leve.

Uma vez conheci um anjo.
Ela viu algo dentro de mim,
que ninguém conseguia ver.
Viu beleza e amor.

Uma vez conheci um anjo.
E nos abraçamos,
nos beijamos,
cantamos juntos
e olhamos a lua
com olhar de apaixonados.

Uma vez conheci um anjo.
Juntamos nossas coisas,
e fomos morar juntos,
em um mundo angelical.

Uma vez conheci um anjo.
Tivemos gatos e cachorros,
presente dos céus para nós.
Mas estavamos juntos,
e nos amavamos.

Alguns morreram
outros apareceram em nossas vidas
e enfrentamos a vida juntos
Mas nos amavamos,
e tudo era benção dos céus.

Uma vez conheci um anjo.
A situação se apertou
e fomos para o Paraná.
Caminhavamos pelos parques,
riamos com novos amigos,
batalhando eramos felizes.

Uma vez conheci um anjo.
Voltamos ao seu lugar de origem.
Mas ríamos, cantavamos,
nos amavamos,
nos divertiamos,
mas estavamos ficando velhos.

Uma vez conheci um anjo.
Kika morreu.
Lad morreu.
Gwyddion morreu.
Baby morreu.
Bibo morreu.
Floquinho morreu.
Fluffy morreu.
Eramos felizes e nos amavamos,
e riamos, e bebiamos e nos beijavamos.

Uma vez conheci um anjo,
e agora sei o que é sofrer
por querer um anjo.
O preço foi muito alto
Meu anjo morreu.

Uma vez conheci um anjo.
Hoje sei que são trevas,
Como a noite é escura,
fria e triste.
O que é solidão.

Uma vez conheci um anjo...
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Imagem por Alexa, retirada da internet

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Ialmar Pio Schneider (Baú de Trovas)


Abacateiros que crescem
num vaso à minha sacada,
dá-lhes água que merecem
ostentar sua ramada!

A beleza do jardim
está contida na flor;
e a graça que não tem fim
encontro no teu amor...

Ainda sonho contigo
de noite na minha cama;
és a musa que persigo
com a paixão de quem ama !

Amo a trova em devaneio
porque quero teu carinho:
é por ela que em ti creio
e te espero em meu caminho.

A noite sucede ao dia
e assim se passam os anos
eu vivo sem alegria
e morro de desenganos...

A noite já vem chegando
para trazer-me a saudade,
pois o tempo foi levando
toda a minha mocidade...

As trovas que a gente escreve,
mesmo que sejam banais:
é um pouco da vida breve
que não volta nunca mais...

Como uma musa eu te quis
e depois como mulher,
oh, como fui infeliz
por amar quem não me quer !

Conheci-a linda outrora
no esplendor da juventude,
mas o tempo leva embora
toda vaidade que ilude.

Das flores todas que planto
em meu modesto jardim,
aquela de mais encanto
vem ser você, meu Jasmim!

Da vida não tenho medo,
da morte ainda não sei
qual há de ser o segredo
que nela desvendarei...

Dentro do peito escondido,
no silêncio da saudade,
chora o coração ferido
pelo punhal da maldade.

Desce a noite devagar:
é o começo do verão...
As aves vão descansar
na calma da solidão.

Deve a trova ser singela
para sabê-la de cor;
quanto mais simples mais bela,
quanto mais terna melhor...

Do amor, fez sua doutrina,
o filho de Deus: Jesus.
E no alto de uma colina
morreu pregado na cruz...

Entre amar e ser amado
eu não sei o que é melhor;
porém, viver desprezado,
é, sem dúvida, o pior.

Eras uma linda fada
num jardim cheio de flores;
assim foste minha amada
na canção dos meus amores.

És a mulher do meu sonho,
digo sonhando outra vez,
este delírio tristonho
é a própria vida que o fez.

Eu só fiz de minha vida
uma história mal escrita;
cavalgando a toda brida,
mas sem fugir da desdita.

Eu vou relendo meus versos,
trovas atuais e antigas,
que rolam hoje dispersos,
formando minhas cantigas.

Fiz de teu corpo uma glória:
me inspiraste uma canção...
Quem vai contar nossa história
de saudade e solidão ?!

Hoje a vejo com saudade
sem o viço da beleza,
pois perdeu a mocidade
na guerra c’o a natureza.

Lembro-me às vezes de ti,
nas horas de solidão,
com amor e frenesi
e uma dor no coração...

Mais do que a própria vida
vives em mim, noite e dia,
e mesmo a esperança perdida
ainda em ti esperaria.

Meu coração tem amores
que me perturbam e quanto !
pois até parecem dores
nascidas do desencanto.

Meus olhos guardam ainda
o momento em que te vi...
Oh! meu Deus, eras tão linda
que nunca mais te esqueci!

Morrer cantando, quem dera,
para você, para o povo,
e ao florir a primavera
nascer cantando de novo!

Neste sábado risonho,
embora esteja sozinho,
procuro deixar que o sonho
encontre, enfim, seu caminho...

No jardim da minha vida,
quantas flores cultivei;
Mas em cada despedida
muitas delas arranquei...

O exemplo mais convincente
de minha triste existência,
foi só... quando inteligente,
paguei o mal com paciência...

Ouve os versos que componho
ao te lembrar, ó querida!
A vida parece um sonho,
um sonho parece a vida...

Ouvi dizer que meus versos
não são os teus preferidos;
não creias nesses perversos
que nos querem desunidos.

Pelo sabor dos teus beijos
me apaixonei, certo dia;
hoje vivo nos desejos
que me traz a nostalgia!

Penso em ti de vez em quando
e se não posso te amar,
quero somente, sonhando
teus olhares recordar.

Pudesse um dia chorar
como nos tempos da infância;
é que o passado no lar
escondeu-se na distância.

Quando chegaste trazias
um mundo imenso no olhar,
ao partires deixarias
só tristeza em teu lugar.

Quando estás à beira-mar,
caminhando sobre a areia,
eu me ponho a meditar
que sejas uma sereia.

Quando lembro do passado
sempre fico convencido
que hoje vivo condenado
por ter o tempo perdido.

Quando te vejo formosa,
passeando pelo jardim,
eu penso que és uma rosa
desabrochando pra mim.

Quando te vi, de repente,
meu desejo foi te amar;
tens um quê tão envolvente,
que tanto me faz sonhar...

Quanta dor num verso apenas
quem sofre pode dizer;
eu mesmo sei de centenas
que assim dizem a sofrer.

Quase sempre estou sozinho,
pensando no que virá
por este árduo caminho
minha vida seguirá!...

Quisera trovas suaves
para um mundo mais feliz
e conversar com as aves
qual São Francisco de Assis !

Quisera um buquê de rosas,
cujo aroma se desfaz
pelas horas dolorosas
deste silêncio mordaz.

Quis viver sempre contigo:
assim era meu desejo.
Agora só por castigo
eu fujo quando te vejo.

Se a Humanidade soubesse
tudo o que a poesia encerra,
certamente não houvesse
tanta desgraça na Terra...

Se te querer foi pecado,
sou um grande pecador;
e por isto, condenado
pelo Tribunal do Amor !

Sigo triste solitário
por este mundo a cantar,
não sei fazer o contrário,
desaprendi de chorar.

Sou amigo das mulheres,
elas só me fazem bem;
sê assim se tu puderes
e serás feliz também...

Tanto te amei... foi em vão;
eu te perco de hora em hora,
mas um dia brotarão
lágrimas de quem não chora.

Tem trovas que a gente diz,
tem outras que a gente lê,
e pra mim a mais feliz
é a que fala de você !

Tenho amigos trovadores
e trovadoras amigas;
às mulheres meus amores
e a todos minhas cantigas...

Tenho amor e penso nela
toda noite, todo dia,
cada vez está mais bela
no meu céu de fantasia...

Tens razão quando tu dizes
que o poeta é um sonhador;
neste mundo de infelizes
só assim suporta a dor.

Um verso pobre, uma trova,
merecem sempre acolhida,
pois o sonho se renova
a cada instante da vida.

Velha lira abandonada
dos tempos da mocidade,
hoje cantas magoada,
não de dor, mas de saudade !

Vive então com muita fé,
inda que a dor te consome...
Diz o ditado: “O que é
d’homem o bicho não come”.

Vivemos na contingência
de alimentar a crendice,
que o caminho da existência
vai nos levar à velhice.

Vou fazer-lhe uma proposta;
pense bem no que lhe digo:
se disser que não me gosta,
quero ser só seu amigo !

Fonte:
Colaboração de Ialmar Pio Schneider

Ialmar Pio Schneider (1942)



Nasceu no município de Sertão, RS, em 26/8/1942.

Residiu por mais de 20 anos em Canoas, e atualmente reside em Porto Alegre.

Poeta, advogado, cronista e bancário aposentado,

Entidades a que pertence:
Casa do Poeta Rio-Grandense,
União Brasileira de Trovadores - Sede de Porto Alegre,
Grêmio Literário Castro Alves,
Agei - Associação Gaúcha dos Escritores Independentes,
Casa do Poeta de Canoas,
entre outras.

Antonio Cândido (Letra e Idéias no Período Colonial) Parte 2



Procurando sintetizar estas condições, poderíamos dizer que as manifestações literárias, ou de tipo literário, se realizaram no Brasil até a segunda metade do século XVIII, sob o signo da religião e da transfiguração.

Aquela foi a grande diretriz ideológica, justificando a conquista, a catequese, a defesa contra o estrangeiro, a própria cultura intelectual. Era idéia e princípio político, era forma de vida e padrão administrativo; não espanta que fosse, igualmente, princípio estético e filosófico. À sua luz se abriga toda a obra de José de Anchieta (1533-1597), desde as admiráveis cartas-relatórios, descrevendo o quadro natural e social em que se travavam as lutas da fé, até os autos didáticos, os cantos piedosos em que as suas verdades eram postas ao alcance do catecúmeno. As crônicas do jesuíta português Simão de Vasconcelos obedecem a um princípio declaradamente religioso, de informar e edificar; mas o mesmo acontece, no fundo, à História do franciscano brasileiro Vicente do Salvador (156?-163?), sob aparência de piedade menos imediata. E até a crônica do militar português Francisco de Brito Freire, tão política, pinta no fundo os progressos da fé, encarnados no guerreiro e administrador que luta contra o protestante flamengo — o que também verificamos no Valeroso Lucideno, de frei Manuel Calado.

Se sairmos dessa literatura histórica, deparamos com a oratória sagrada, seara do maior luso-brasileiro do século, o jesuíta Antônio Vieira (1608-1697). Já aqui a religião-doutrina se mistura indissoluvelmente à religião-símbolo. Estamos em pleno espaço Barroco, e a dialética intelectual esposa as formas, as metáforas, toda a marcha em arabesco da expressão culta. Estamos, além disso, no gênero ideal para o tempo e o meio, em que o falado se ajusta às condições de atraso da colônia, desprovida de prelos, de gazetas, quase de leitores. Nunca o verbal foi tão importante e tão adequado, sendo ao mesmo tempo a via requerida pela propaganda ideológica e o recurso cabível nas condições locais. E nunca outro homem encarnou tão bem este conjunto de circunstâncias, que então cercavam a vida do espírito no Brasil — pois era ao mesmo tempo missionário, político, doutrinador e incomparável artífice da palavra, penetrando com a religião como ponta de lança pelo campo do profano. Seu contemporâneo Gregório de Matos (1633-1696) foi o profano a entrar pela religião adentro com o clamor do pecado, da intemperança, do sarcasmo, nela buscando guia e lenitivo. Ao orador junta-se este poeta repentista e recitador para configurar ao seu modo, e também sob o signo do Barroco, a oralidade característica do tempo, que permaneceu tendência-limite no meio baiano até os nossos dias. Apesar de conhecido sobretudo pelas poesias burlescas, talvez seja nas religiosas que Gregório alcance a expressão mais alta, manifestando a obsessão com a morte, tão própria da sua época, e nele muito pungente, porque vem misturada à exuberância carnal e ao humorismo satírico, desbragados e saudáveis. Nascido na Bahia, amadureceu no Reino e só voltou à pátria na quadra dos quarenta; lá e aqui não parece ter cuidado em imprimir as obras, que se malbarataram nas cópias volantes e no curso deformador da reprodução oral, propiciando a confusão e a deformação que ainda hoje as cercam.

Em torno dessas duas grandes figuras circulam outras, também da Bahia — clérigos e homens de prol, cultores do discurso e da glosa. Mas um apenas dentre eles parece ter-se considerado realmente homem de letras, tendo sido o primeiro brasileiro nato a publicar um livro: Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711). Já aqui não estamos na região elevada em que o estilo culto exprime uma visão da lima e do mundo, emprestando-lhe o seu caprichoso vigor expressivo, listamos, antes, no âmbito do Barroco vazio e malabarístico, contra o qual se erguerão os árcades, e que passou à posteridade como índice pejorativo da época. Botelho de Oliveira é, deste ponto de vista, mais representativo que os outros da média da nossa literatura culta, as mais das vezes apenas alambicada. E nos serve para Introduzir o segundo tema dominante, que se definiu justamente graças ao espírito Barroco.

O espanto ante as novidades da terra levou facilmente à hipérbole. As modas literárias e artísticas, dominantes desde os fins do século XVI, somaram-lhe a agudeza e a busca deliberada da expressão complicada e rica. Em consequência, estendeu-se sobre o Brasil, por quase dois séculos, um manto rutilante que transfigurou a realidade — ampliando, suprimindo, torcendo, requintando. Sobre o traço objetivo e descarnado de certos cronistas atentos ao real — Gabriel Soares, Antonil — brotou uma folhagem até certo ponto redentora, que emprestou à terra bruta estatura de lenda e contornos de maravilha. Lembremos apenas o caso do mundo vegetal, primeiro descrito, depois retocado, finalmente alçado a metáfora. Se em Gabriel Soares de Sousa (1587) o abacaxi é fruta, nas Notícias curiosas e necessárias das cousas do Brasil (1668), de Simão de Vasconcelos, é fruta real, coroada e soberana; e nas Frutas do Brasil (1702), de frei Antônio do Rosário, a alegoria se eleva ao simbolismo moral, pois a regia polpa é doce às línguas sadias, mas mortifica as machucadas — isto é, galardoa a virtude e castiga o pecado. Por isto, o arguto franciscano constrói à sua roda um complicado edifício alegórico, nela encarnando os diferentes elementos do rosário. Nesta fruta, americana entre todas, compendiou-se a transfiguração da realidade pelo Barroco e a visão religiosa. Em Botelho de Oliveira, Rocha Pita, Itaparica, Durão, São Carlos, Porto-Alegre, ela e outras do seu séquito conduzem, até o cerne do século XIX, a própria idéia de mudança da sensibilidade européia nas condições do Novo Mundo.

A historiografia barroca estendeu o processo a toda a realidade, natural e humana, e os esforços de pesquisa documentária promovidos pelas Academias (dos Esquecidos, 1724-1726; dos Renascidos, 1759-1760) só deixam de ser listas neutras de bispos e governadores quando os seus dados se organizam num sistema nativista de interpretação religiosa e de metáfora transfiguradora. É o caso, sobretudo, da História da América portuguesa, de Sebastião da Rocha Pita (1660-1738), onde o Brasil se desdobra como um portento de glórias nos três reinos da natureza, enquadrando a glória do homem, — que converte o gentio, expulsa o herege e recebe como salário as dádivas vegetais e minerais, a cana e o ouro.

Não suprimindo, mas envolvendo e completando o conhecimento objetivo da realidade, a visão ideológica e estética da colônia se fixa de preferência na apoteose da realidade e no destino do europeu, do pecador resgatado pela conquista e premiado com os bens da terra, quando não redimido pela morte justa. Isto mostra como o verbo literário foi aqui — ajudado e enformado pela mão do Barroco — sobretudo instrumento de doutrina e composição transfiguradora. Alegoria do mundo e dos fatos; drama interior da carne e do espírito; concepção teológica da existência. Rocha Pita, Gregório de Matos, Antônio Vieira encarnam as vigas mestras do ajustamento do verbo ocidental à paisagem moral e natural do Brasil.

Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.