sexta-feira, 16 de julho de 2010

Carolina Maria de Jesus (Quarto de Despejo)

Introdução

Quarto de Despejo (diário de uma favelada), de Carolina Maria de Jesus, embora tenha despertado a atenção de vários autores norte-americanos., é uma obra que ainda está a merecer uma análise mais aprofundada por parte da crítica nacional. É importante ressaltar que foram vendidos em torno de um milhão de exemplares em cerca de quatorze países. É uma das obras brasileiras mais vendidas, tendo sido traduzida em mais de treze línguas.

Ao ser publicado em São Paulo, em agosto de 1960, o livro obteve imediato sucesso, com a venda de trinta mil exemplares, surpreendendo a própria editora, que recebeu pedidos de todo o país.

Estranhamente, porém, apesar do sucesso obtido com Quarto de Despejo, os outros livros de Carolina (Casa de alvenaria, Diário de Bitita, Pedaços da fome e Provérbios) nenhuma repercussão tiveram ao mundo literário nem despertaram o interesse do público brasileiro.


É necessário registrar alguns detalhes da vida da autora para que se possa compreender a importância de seus escritos e explicar como uma pessoa da sua condição social possuía tantas informações sobre a vida política e social da época e uma sensibilidade rara para entender o mundo.

Carolina Maria de Jesus saiu de Sacramento, pequena cidade do Triângulo Mineiro, em 1947, fugindo da pobreza da zona rural.

Perambulou pelo interior do Estado até chegar a São Paulo, onde trabalhou como doméstica em casa de pessoas importantes, como a família Zerbini. Não se adaptando ao trabalho doméstico, Carolina mudou-se para a hoje extinta favela do Canindé, nos arredores da cidade, passando a trabalhar como catadora de papel. Naquela época era um trabalho até certo ponto “rentável” devido à precariedade dos serviços de coleta de lixo.

Negra, jovem, bonita, inteligente, mãe solteira, independente, Carolina despertava a inveja das vizinhas e a cobiça dos homens.

Alfabetizada até o 2º ano primário, desenvolveu e cultivou o gosto pela leitura e o hábito de escrever. Tudo indica que deve ter tido acesso a algumas obras dos grandes autores brasileiros nas casas em que trabalhou, o que lhe manteve acesso o desejo de ser “artista” e explica a menção a poetas como Casimiro de Abreu e Castro Alves. Tais informações não teria uma menina que houvesse estudado até o 2º ano primário em uma escola do interior.

Carolina dividia seu tempo entre as tarefas de catar papéis, cuidar dos afazeres domésticos (que, na verdade eram poucos, pois quase nada havia a cozinhar, lavar ou arrumar no pequeno barraco) e a escrever o seu diário, onde registrava os fatos corriqueiros de uma favela.

A publicação de Quarto de Despejo se deve ao jornalista Audálio Dantas, que entendeu a importância do diário da favela do Canindé.

Incumbido de fazer uma reportagem sobre a inauguração de um parque infantil naquela favela, Dantas ouviu uma mulher gritar “Vou colocar vocês no meu livro”. Curioso em saber de que “livro” se tratava, o jornalista foi levado pela própria Carolina ao seu barraco. Mostrou-lhe então alguns cadernos recolhidos no lixo, nos quais registrava o dia-a-dia da favela, a fome, as dificuldades para conseguir alimento, as brigas, as mortes, enfim, o cotidiano de uma sociedade miserável, à margem da humanidade.

Audálio Dantas, após muitas dificuldades, conseguiu que a livraria Francisco Alves publicasse a obra. Inicialmente, pretendia lançar três mil exemplares, mas conseguiu aditar trinta mil, em pouco tempo esgotados.

As dificuldades por que passava Carolina eram tantas que, no dia do lançamento do livro, teve de sair a catar papel para conseguir dinheiro que lhe permitisse comprar comida para os filhos.

Paradoxalmente, o mundo que a homenagearia e a escolheria como “escritora”, recusava-se a ver a miséria em que vivia aquela mulher. Reconhecida de início como uma revelação – uma mulher negra, pobre, favelada, semi-alfabetizada, mãe solteira -, Carolina teve um brilho efêmero. O sucesso da obra se explicaria pelo fato de ter sido lançado num momento em que estavam em voga a contracultura e a bossa nova. Mas começava uma nova era, em que predominaria, de início, uma “censura branca” a certas manifestações artísticas que poderia torna-se incômoda para o poder estabelecido.

Há que se considerar o momento político por que passava o Brasil naqueles anos, o que pode ter influenciado negativamente na divulgação de uma obra que revelava um lado “poder” e miserável da vida, que a classe dominante preferia ignorar. Carolina passou a representar um papel importante na sua comunidade, tinha consciência política excepcional para uma pessoa de sua condição social, o que poderia ser uma “ameaça” ao modelo político que começava a se desenhar naquele momento. Os favelados já lhe diziam: “Carolina, já que você gosta de escrever, instiga o povo para adotar outro regime”. Esse fato talvez explique a recusa dos editores em publicar seu último livro, Provérbios, que foi por ela mesma financiado.

Carolina Maria de Jesus chegou a ser mundialmente conhecida com a publicação de seu primeiro livro. No entanto, após o fracasso de suas últimas obras, voltou a viver na pobreza, falecendo em 1977, ignorada por todos.

José Carlos Sebe Bom Meihy, estudioso da obra de Carolina, informa que, com a ajuda dos filhos da autora, localizou “uma caixa com trinta e sete cadernos, contendo cinco mil cento e doze páginas”, em que constavam poemas, contos, quatro romances e três peças de teatro, em meio a receitas de bolos, contabilidade doméstica e lições escolares dos filhos.

Finalmente, cumpre ressaltar a intervenção de Audálio Dantas na escrita de Carolina. O jornalista informa que fez algumas correções no texto, colocou algumas vírgulas, retirou outras, suprimiu alguns trechos, por repetidos, mas manteve a grafia original, limitando-se ao ordenar a narrativa de forma coerente. Esses dados são essenciais ao se estudar a linguagem usada pela autora. De qualquer forma, tudo indica que o jornalista não substituiu palavras ou expressões empregadas por Carolina, as quais são fundamentais para a compreensão do estilo da autora.

Síntese da obra

Quarto de desejo é um relato de fatos verídicos vivenciados ou presenciados pela autora, que faz questão de registra-los quase que diariamente.

Em seu diário, Carolina Maria de Jesus descreve a favela do Canindé, as pessoas e o tipo de vida que levam. Relata as brigas constantes entre marido, mulher e vizinhos, a fome, as dificuldades para se obter comida, as doenças a que estão sujeitos os moradores da favela, seus hábitos e costumes, as mortes, o suicídio, a presença constante da miséria de uma sociedade marginalizada e esquecida pelos governantes.

15 de julho de 1955. Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela.

Assim tem início o diário de Carolina, que terminará em 1º de janeiro de 1960:

1.º de janeiro de 1960
Levantei as 5 horas e fui carregar água.

Ao longo desses anos, a autora registra a vida na favela, a sua luta diária contra a fome, o esforço para criar com dignidade os filhos José Carlos, João e Vera Eunice.

A fome é uma constante ao longo da obra:

Como é horrível ver um filho comer e perguntar: “Tem mais?” Esta palavra “tem mais” fica oscilando do cérebro de uma mãe que olha a panela e não tem mais.

E a pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia:

- Mamãe eu quero pão! Mamãe, eu estou com fome!
Eu estou triste porque não tenho nada para comer.

Quando consegue algum alimento, a narradora reflete sobre sua condição de pessoa expulsa do mundo humano:

Quando eu levava feijão pensava: hoje eu estou parecendo gente bem – vou cozinhar feijão. Parece até um sonho!

A miséria que presencia é tão chocante que Carolina acha que alguém poderia não acreditar no que conta:

... Há de existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as misérias são reais.

Com grande senso crítico, a autora destaca as visitas do padre à favela:

De manhã o padre veio dizer missa. Ontem ele veio com o carro capela e disse aos favelados que eles precisam ter filhos. Penso: porque há de ser o pobre quem há de ter filhos – se filhos de pobre tem que ser operário? (...) Para o senhor vigário, os filhos de pobre criam só com pão. Não vestem e não calçam.

O contraste entre a favela e a cidade é percebido com acuidade e senso crítico por Carolina:

Quando eu vou na cidade tenho a impressão de que estou no paraíso. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas ulceras. As favelas.

Fatos corriqueiros como brigas entre marido e mulher, entre as mulheres e os bêbados, a presença da Rádio Patrulha, mortes por intoxicação com alimentos putrefatos são narrados com detalhes por Carolina:

Eu já estou tão habituada a ver brigas que já não impressiono.
Despertei com um bate-fundo perto da janela. Era a Ida e a Amália. A briga começou lá na Leila. Elas não respeitam nem a extinta. O Joaquim interviu pedindo para respeitar o corpo. Elas foram brigar na rua.

Ao olhar atento da narradora nada escapa:

... Nas favelas, as jovens de 15 anos permanecem até a gora que elas querem. Mescla-se com as meretrizes, contam suas aventuras [...] Há os que trabalham. E há os que levam a vida a torto e a direito.
As pessoas de mais idade trabalham, os jovens é que renegam o trabalho. Tem as mães, que catam frutas e legumes nas feiras. Tem as igrejas que dá pão.

Carolina demonstra ser uma pessoa exatamente atualizada em relação ao que se passa na vida política do país, o que se comprova pelas constantes referências aos políticos em destaque na época, como Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Adhemar de Barros e Juscelino Kubitschek.

A exploração da boa-fé do povo pelos políticos na época de eleições, as visitas dos candidatos à favela, os pequenos agrados e as promessas não cumpridas são registradas pela narradora de forma crítica e consciente.

... Quando um político diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na política para melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso voto prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olho o povo com os olhos semicerrados. Com um orgulho que fere a nossa sensibilidade.

Destacam-se também na obra referências a autores da literatura brasileira, como Castro Alves e Casimiro de Abreu, a personalidades conhecidas nacional ou internacionalmente, como Assis Chateaubriand, Elisabeth Taylor, o Príncipe do Japão, a revista estrangeira Reader´s Digest, que lhe devolveu os originais de um livro (“A pior bofetada para quem escreve é a devolução de sua obra.”)

Sempre em atrito com os vizinhos por causa dos filhos, Carolina diz:

- Os meus filhos estão defendendo-me. Vocês são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me fornece os argumentos.

No entanto, não foi só isso que Carolina relatou. Além de registrar o cotidiano da favela, mostrou-se grande conhecedora dos problemas da vida de toda uma sociedade.

Estrutura da Obra

Quarto de Despejo não é apenas a autobiografia de uma favelada catadora de papéis. É também um documento sobre a vida de uma favela. Registrado sob a forma de diário, é uma seqüência de fatos ordenados cronologicamente, situados no tempo por meio de datas. Nesse sentido, faz lembrar o Diário de uma jovem, escrito pela menina judia Anne Frank. Alguns acontecimentos são relatados mais de uma vez, talvez porque a autora faça questão de repeti-los ou porque se esqueceu de que já os havia mencionado.

Trata-se de uma narrativa linear, entremeada por reflexões da narradora que demonstram profunda sensibilidade e senso crítico.

Quarto de Despejo não se enquadra em um gênero literário fixo, podendo-se aproxima-lo, quando muito, da linha memorialista. São relatos de fatos verídicos, reprodução de diálogos e considerações sobre a vida dos favelados.

1) Ambiente: A autora descreve o ambiente físico – a favela e seus barracos – por meio de detalhes, sem preocupação de fornecer uma visão geral. Os pronomes aparecem ao longo do texto, na medida em que aqueles aspectos são relevantes para a compreensão do fato que narra ou para mostrar a miséria que reina naquela comunidade. O fornecimento precário de energia elétrica, a inexistência de água encanada e de rede de esgotos, embora pagassem por esses serviços, a falta de banheiros, a sujeira, a imundice, a presença de ratos e pulgas nos barracos são sempre mencionados por Carolina.

O fio não dava para ligar a luz. Precisava emenda-lo. Sou leiga na eletricidade.
... Já faz seis meses que eu não pago a água. 25 cruzeiros por mês. E por falar em água, o que eu não gosto e tenho pavor é de ir buscar água.
Eu mandei o senhor Dario entrar. Mas fiquei com vergonha. O vaso noturno estava cheio.

Em diversas passagens, Carolina deixa clara a imagem que tem da favela:

... Cheguei na favela: eu não acho jeito de dizer que cheguei em casa. Casa é casa. Barracão é barracão. O barraco tanto no interior como no exterior estava sujo.
... Eu classifico São Paulo assim: o Palácio é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam o lixo.

Essas descrições são, às vezes, marcadas por certo humor, como no episódio em que conta como a chuva alagou a favela:

As pessoas de espírito jocoso dizem que a favela é a cidade náutica. Outros dizem que é a Veneza Paulista.

A favela e suas misérias constituem assim o pano de fundo do registro de uma classe social marginalizada e até hoje ignorada pelas autoridades.

2) Contexto histórico: Os fatos narrados por Carolina abrangem um período de transição na história do Brasil. Iniciando-se em 1955 e terminando em janeiro de 1960, o diário registra fatos de relevância social e política na cidade de São Paulo. Vivia-se um momento de estabilidade social e de certa euforia no contexto político, com o início da construção de Brasília, que seria inaugurada em 21 de abril de 1960. Todo o país se voltava para o “grande acontecimento” que era a construção de uma nova capital idealizada por um Presidente da República bastante popular entre as classes mais baixas. No entanto, os problemas sociais, a fome, a falta de moradia, de saneamento básico permanecem ignorados pelas autoridades políticas, tão envolvidas com o novo projeto presidencial.

Jânio Quadros e Adhemar de Barros são figuras constantemente mencionadas por Carolina. Carlos Lacerda, conhecido por sua língua afiada e como grande orador, futuro governador do Estado da Guanabara e deputado federal nessa época, aparece no diário de Carolina, muitas vezes de forma irônica.

Há ainda referências a fatos da época, como a presença dos artistas da companhia cinematográfica Vera Cruz, que participaram da filmagem de um documentário sobre a vida de um famoso favelado, o Promessinha.

São mencionados por Carolina jornais, como o Diário da Noite, e revistas de grande circulação, como O Cruzeiro, que apresentou uma reportagem sobre a autora sob o título “Retrato da favela no Diário da Carolina”.

Quase todos os acontecimentos que, de certa forma, despertavam o interesse de Carolina são descritos no diário, sejam os que ocorrem na favela, sejam as notícias que lê nos jornais.

3) Foco narrativo: A obra apresenta uma narrativa em primeira pessoa, como é natural no diário. Os fatos são apresentados sob a óptica da narradora que, ao mesmo tempo que o narra, tece considerações sobre a vida, a situação dos pobres e dos favelados, a atitude dos políticos, a exploração dos comerciantes e dos atacadistas, o desperdício de alimentos.

É uma visão unilateral, pessoal e, de certa forma, subjetiva, na medida em que a própria narradora é também protagonista. Pode-se dizer, portanto, que, ao lado do tempo exterior representado pelo registro cronológico dos acontecimentos, há um tempo interior representado pelos momentos de reflexão da narradora.

Ao traçar um panorama dos hábitos e costumes do seu meio social, Carolina expressa a sua visão por meio da observação dos fatos e das atitudes das pessoas que conhece, destacando-se, ela mesma, como um elemento principal sobre o pano de fundo, que é a favela.

4) Personagens: Quarto de Despejo é uma autobiografia. Não se poderia, portanto, falar em “personagens” na acepção atribuída a esse termo pela crítica literária aos protagonistas de uma obra de ficção. Melhor seria denominar as pessoas que aparecem no diário de “pessoas” mesmo ou “figuras”. Não são elas criação da imaginação da narradora, mas sim pessoas que realmente existiram. Carolina Maria de Jesus “retrata” a si mesma e as pessoas que com ela conviveram.

Trata-se, pois, de um relato construído em torno da própria Carolina – autora-narradora. A ela juntam-se as outras figuras que fazem parte do seu cotidiano, como os filhos, os inúmeros vizinhos e conhecidos, os amigos e os amantes. Há ainda referência aos nordestinos, em número cada vez maior na favela. São tantas as pessoas a quem se refere que seria impossível menciona-las. Há que se destacar, porém, o senhor Manoel, amigo e, depois, seu amante, o cigano, Orlando Lopes, o cobrador da luz, senhor Pinheiro, presidente do Centro Espírita, e o repórter Audálio Dantas.

Carolina é uma pessoa inteligente, curiosa, com grande senso crítico da realidade. Vivendo em um meio promíscuo, em que as brigas e o alcoolismo são uma constante, Carolina procura manter-se afastada dos vícios para que possa cuidar bem de seus filhos. São aspectos marcantes da sua personalidade o gosto pela leitura e a preocupação com a educação dos filhos. Suas opiniões sobre as condições em que vivem os favelados, os catadores de lixo, as atitudes dos políticos e da Igreja são sempre pertinentes e extremamente atuais.

É importante assinalar a postura um tanto ambígua da narradora em relação aos negros. Há momentos em que ela deixa transparecer preconceito contra os de sua raça, ao dizer que os negros não eram dados ao trabalho. Além disso, ela só se relaciona afetivamente com os brancos. Em certo momento, ela diz:

Despertei pensando no cigano, que é pior do que o negro.

Já em outra passagem, Carolina diz:

...adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho o cabelo negro mais educado do que o cabelo de branco.

É interessante notar que Carolina sempre associa a cor negra a tudo que é ruim para ela:

Olhava para o meu barraco envelhecido. As tabuas negras e podres. Pensei: está igual a minha vida.
A minha (vida), até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.
Comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Porque negra é a nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia.

Entre as muitas considerações ou reflexões de Carolina, vale a pena ressaltar algumas:

Eu não consegui armazenar para viver, resolvi armazenar paciência.
Eu fiz uma reforma em mim. Quero tratar as pessoas que eu conheço com mais atenção.
O meu sorriso, as minhas palavras ternas e suaves, eu reservo para as crianças.
Não se vê mais os corvos voando as margens do rio perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos.
Pelo que observo, Deus é o rei dos sábios. Ele pois os homens e os animais no mundo. Mas os animais quem lhes alimenta é a Natureza porque se os animais fossem alimentados igual os homens, havia de sofrer muito. Eu penso isto, porque quando eu não tenho nada para comer, eu invejo os animais.
A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém.
“Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com estas desorganizações.
Temos só um jeito de nascer e muitos de morrer.
Carolina é uma pessoa que sabe de tudo, que se interessa por tudo:
Ele é o homem mais bem remunerado da favela. Trabalha para o Conde Francisco Matarazzo.
Hoje eu estou lendo. E li o crime do Deputado de Recife. Nei Maranhão.
Eis o que estava escrito no jornal do dia 26 de junho de 1958:

Zuza, pai de santo, em cana.

Ao se referir às touradas de Madri, à fábula da rã e da vaca, de La Fontaine, ao cavalo de Tróia, entre outros assuntos da cultura universal, a narradora demonstra um conhecimento invulgar para uma pessoa de sua condição social.

Aspectos marcantes na obra

Embora a autora, com sua excepcional percepção da vida, aborde muitos temas importantes e atuais, há alguns aspectos que predominam na obra: a fome e a miséria – o “Quarto de Despejo” – e a consciência político-social. Em torno desses temas, Carolina tece comentários sobre tudo de que tem notícia, sobre as informações que obtém por meio de jornais e revistas que, na maioria das vezes, lê nas bancas.

1) A fome: É, por assim dizer, o leit-motiv da obra. Quase tudo gira em torno da fome, do sofrimento da mãe ao ver os filhos pedindo alimento, das mortes devido à ingestão de alimentos putrefatos situação dramática que ainda se vê nos dias de hoje.

E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome.
Vi os homens jogar sacos de arroz dentro do rio. Bacalhau, queijo, doces. Fiquei com inveja dos peixes que não trabalharam e passam bem.
Estou tão indisposta que se eu pudesse deitar um pouco! Mas eu não tenho nada para os meninos comer.
...Saí triste porque não tinha nada em casa para comer. [...] Parece que o meu pensamento repetia:
-Comida!Comida!Comida! [...] E estou sem dente. Magra. Pudera! O medo de morrer de fome!
Quando eu encontro algo no lixo que eu posso comer, eu como. Eu não tenho coragem de suicidar-me. E não posso morrer de fome.
...Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos.
...Quando cheguei em casa estava com tanta fome. Surgiu um gato miando. Olhei e pensei: eu nunca comi gato, mas se estivesse numa panela ensopado com cebola, tomate, juro que comia. Porque a fome é a pior coisa do mundo.
Eu disse para os filhos que hoje nós não vamos comer. Eles ficaram tristes.
Quando o Nilton começou a passar fome, foi com a mãe.
Pensei: a fome também serve de juiz.
A pior coisa do mundo é a fome. É o único registro do dia 26 de agosto de 1959
.

2) O “quarto de despejo”: Os homens, como seres humanos, têm necessidade de separar e classificar as coisas de acordo com sua função – as limpas das sujas e as úteis das inúteis. Na sociedade descrita por Carolina, há um grupo que trabalha exclusivamente com as coisas sujas e inúteis, com o lixo ( numa época em que não se pensava em reciclagem), de tal forma que com elas se identificam.

Assim Carolina reconhece-se como “lixo”, como um ser que está no Quarto de Despejo para ser jogado fora.

Enquanto estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num Quarto de Despejo.
Sou rebotalho. Estou no Quarto de Despejo, e o que está no Quarto de Despejo ou queima-se ou joga-se no lixo.
Depois pensei: eu não saio do Quarto de Despejo, o que posso saber o que se passa na sala de visita?
Mas ele deve aprender que a favela é o Quarto de Despejo de São Paulo. E que eu sou uma despejada.
Favela, sucursal do inferno, ou o próprio inferno.

3) Consciência política e social: A consciência da situação política do país e do papel que deveria ser exercido pelos políticos transparece em vários trechos. Carolina está a par do que acontecia não só em São Paulo como em outros Estados. Muitas dessas referências são eivadas de crítica e de fina ironia.

Eu quando estou com fome quero matar o Jânio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Jucelino.

Mas o povo está interessado nas eleições, que é o cavalo de tróia que aparece de quatro em quatro anos.
Ao meu lado estava a mulher do nortista que dormia com a mulher do Chó. Estava nervosa e falava tanto. Parece que tem a língua elétrica. Parecia o Carlos Lacerda quando falava do Getúlio.
As intrigas delas é igual a de Carlos Lacerda que irrita os nervos.
Uma senhora disse que foi pena! A bala que pegou o major podia acertar no Carlos Lacerda.
Você já viu um cão quando quer segurar a cauda com a boca e fica rodando sem pega-la?
É igual o governo do Jucelino.
Os políticos só aparecem aqui nas épocas eleitoraes. O senhor Cantídio Sampaio quando era vereador em 1953 passava os domingos aqui na favela. [...] Mas na Câmara dos Deputados não criou um projeto para beneficiar o favelado. Não nos visitou mais.
As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos.
... A notícia do jornal deixou-me nervosa. Passei o dia xingando os políticos, porque eu também quando não tenho nada para dar aos meus filhos fico quase louca.
Ele só dá os pedaços de bolacha. E elas saem contentes como se fossem a Rainha Elisabethe da Inglaterra quando recebeu os treze milhões em jóias que o presidente Kubstchek lhe enviou como presente de aniversário.
Os exploradores do povo, os mais fortes, os que podem determinar os preços dos alimentos, respaldados por um sistema capitalista predador, não escapam à crítica de Carolina:
... Os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão mais feroz é o racional. É o terrestre. É o atacadista.
O tratamento dado às crianças nos abrigos de Menores – as FEBENS da época – já era um problema de que muitos tinham conhecimento. Carolina questiona a maneira como esses menores são tratados.
Percebi que no Juizado as crianças degrada a moral. Os Juízes não tem capacidade para formar o caráter das crianças. O que é que lhes falta? Interesse pelos infelizes ou verba do Estado?
Ao conhecer prostitutas que haviam sido criadas no abrigo de Menores, Carolina exclama: Pobres órfãs do Juiz!
Ao se referir a Moisés, que protegia os judeus, a narradora ressente-se da falta de um líder negro que defendesse a sua raça:
Já nós os pretos não tivemos um profeta para orar por nós.
Os norte-americanos não escapam da crítica de Carolina:
Fico pensando: os norte-americanos são considerados os mais civilizados do mundo e ainda não convenceram que preterir o preto é o mesmo que preterir o sol.

Estilo/Linguagem

1) Carolina Maria de Jesus possui um estilo próprio característico, fluente. Interesse e curiosidade desperta a linguagem usada pela autora. É uma pessoa semi-alfabetizada, que comete erros gramaticais elementares em contraste com um vocabulário erudito, conseguindo assim exprimir seus pensamentos com a maior facilidade.

Talvez seja uma das únicas obras brasileiras que retratam fielmente não só a maneira de falar das pessoas incultas como a de escrever. Note-se também que a autora não usa palavras de baixo calão, a não ser em um outro caso, e, assim mesmo, para reproduzir a fala de outras pessoas. Apesar de conviver com o “lixo” da cidade, Carolina mantém uma linguagem “pura”. Os erros gramaticais não comprometem a compreensão de sua mensagem.

Eu chinguei o Chico de ordinário, cachorro...
Os pasteis é um acontecimento aqui em casa.
Outros trazia água do Serviço, nos garrafões.

2) Sua linguagem é pontilhada pelo lirismo, pelas metáforas, pelas comparações inusitadas. Alguns exemplos ilustram essa linguagem que se poderia encontrar nos grandes autores:

Parece que esse cigano quer hospedar-se no meu coração.
Por isso que eu digo que a favela é o Gabinete do Diabo.
A cidade é um morcego que chupa o nosso sangue.
As brisas suaves perpassam conduzindo o perfume das flores.
A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encera.
Parece que a minha vida estava suja e agora estão lavando.
A voz de pobre não tem poesia.
A língua das mulheres é um navio. Fica incendiando.
Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade.
O dia está triste igual a minha alma.

3) Aspecto que se destaca no estilo de Carolina Maria de Jesus é o fato curioso de uma semi-alfabetizada usar termos cultos, pouco conhecidos e raramente utilizados a não ser na linguagem escrita, e emprega-los adequadamente. Assim, encontram-se, entre outras:

- mulheres atrabiliarias
- história do infausto Miguel Colona
- a noite está tepida
- sinfonia matinal
- sou rebotalho
- um homem que não é nipônico
- os maus elementos que mesclam-se com eles
- é pungente a condição dos pracinhas.
- Ablui as crianças
- Aleitei-as (as crianças)
- A vida ia ficar insípida
- Melancia deturpada

Em certos momentos, a autora entrega expressões não propriamente eruditas mas pouco usadas na linguagem coloquial:

Deixei o leito as 5 e meia.
Despertei as 2 da madrugada.
Essas frases, aliás, são repetidas ao longo de todo o diário, talvez para mostrar a monotonia, o trabalho repetido todos os dias, assim como “Levantei e fui catar papel”

Conclusão

Quarto de Despejo é mais do que o retrato de uma favela. É a denúncia das condições de vida de uma comunidade marginalizada, por alguém que dispunha de poderosa arma e que soube utiliza-la como nenhum outro: a palavra. E dessa arma Carolina Maria de Jesus fez o uso devido. Relatou, descreveu, mostrou o sofrimento, as agruras da fome, preocupada não com apuro formal da linguagem , mas com o conteúdo de sua mensagem. O sonho de escrever um livro com “os argumentos” que os favelados lhe forneciam realizou-se.

Carolina Maria de Jesus seria uma grande personalidade do mundo literário, na opinião dos poucos autores que se dedicaram ao estudo de suas obras. O trecho seguinte, citado no estudo “Carolina Maria de Jesus: Emblema do Silêncio”, de José Carlos Sebe Bom Meihy, demonstra bem o grau da consciência política dessa autora semi-alfabetizada:

“O Brasil é um jovem de um metro e noventa de altura com a pretensão de homem feito, só que está muito doente, com o coração fraco e desanimado. Foi tratado com o cruzeiro e o tratamento não foi producente. Continuou anêmico.Então, decidiram chamar um médico dos Estados Unidos que lhe aplicou uma injeções de dólares. O Brasil teve apenas uma melhora temporária. Mas, o Brasil queria é se curar, queria ficar forte. Resolveu consultar um médico da Inglaterra que deu-lhe umas pílulas de fibras esterlinas e não surtiu o efeito desejado. O Brasil já está perdendo a esperança de readquirir a sua potência orgânica. Mas ele não desanimou e procurou um médico alemão que lhe deu umas gotas de marcos. Sua esperança se renovou: vou estabelecer-me e entrar numa competição. Mas as suas esperanças foram se derrapando quando aconselharam a procurar um médico russo. Ele não aceitou, ficando com receio de tomar o remédio rublo que é, porém, semelhante a uma atadura que lhe tolhe todos os movimentos. Preferiu, então, continuar fraco a ser predominado e os seus compatriotas não poderem brincar nem os três dias dedicados ao Rei Momo. Mas o Brasil já está pensando em fazer um transplante: retirar o coração militar e colocar um coração civil”.

Fonte:
professor Teotônio Marques Filho in Vestibular 2001, UFM, Estudo das Obras, Gráfica e Editora O LUTADOR, Belo Horizonte.

Lima Barreto (O Caçador Doméstico)


Simões era descendente de uma famosa família dos Feitais, do estado do Rio, de que o 13 de maio arrebatou mais de mil escravos.

Uma verdadeira fortuna, porque escravo, naquelas épocas, apesar da agitação abolicionista, era mercadoria valorizada. Valia bem um conto de réis a cabeça, portanto os tais de Feitais perderam cerca ou mais de mil contos.

De resto, era mercadoria que não precisava muitos cuidados. Antes da lei do Ventre Livre, a sua multiplicação ficava aos cuidados dos senhores e depois… também.

Esses Feitais eram célebres pelo sadio tratamento de gado de engorda que davam aos seus escravos e também pela sua teimosia escravagista.

Se não eram requintadamente cruéis para com os seus cativos, tinham, em oposição, um horror extraordinário à carta de alforria.

Não davam uma, fosse por que pretexto fosse.

Conta-se até que o velho Feital, tendo um escravo mais claro que mostrava aptidões para os estudos, dera-lhe professores e o matriculara na Faculdade de Medicina.

Quando o rapaz ia terminar o curso, retirara-o dela, trouxera-o para a fazenda, da qual o fizera médico, mas nunca lhe dera carta de liberdade, embora o tratasse como homem livre e o fizesse tratar assim por todos.

Simões vinha dessa gente que empobrecera de uma hora para a outra.

Muito tapado, não soubera aproveitar as relações de família, para formar-se em qualquer cousa e arranjar boas sinecuras, entre as quais a de deputado, para a qual estava a calhar, pois de família do partido escravagista-conservador, tinha o mais lindo estofo para ser um republicano do mais puro quilate brasileiro.

Fez-se burocrata; e, logo que os vencimentos deram para a cousa, casou com uma Magalhães Borromeu, de Santa Maria Madalena, cuja família também se havia arruinado com a Abolição.

Na repartição, o Simões não se fez de trouxa. Aproveitou as relações e amizades de família, para promoções, preterindo toda a gente.

Quando chegou, aí, por chefe de seção, lembrou-se que descendia de gente de lavoura e mudou-se para os subúrbios, onde teria alguma idéia da roça, onde nascera.

Os restos de matas que há por aquelas paragens deram-lhe lembranças saudosas da sua mocidade nas fazendas de seus tios. Lembrou-se que caçava; lembrou-se da sua matilha para caititus e pacas; e deu em criar cachorros que adestrava para a caça, como se tivesse de fazer alguma.

No lugar em que morava, só havia uma espécie de caça rasteira: eram preás porém nos capinzais; mas, Simões, que era da nobre família dos Feitais de Pati e adjacências, não podia entregar-se a torneio tão vagabundo.

Como havia de empregar a sua gloriosa matilha?

À sua perversidade inata acudiu-lhe logo um alvitre: caçar os frangos e outros galináceos da vizinhança que, fortuitamente, lhe iam ter no quintal.

Era ver um frango de qualquer vizinho, imediatamente estumava a cachorrada que estraçalhava em três tempos o bicharoco.

Os vizinhos, acostumados com os pacatos moradores antigos, estranharam a maldade de semelhante imbecil que se fazia mudo às reclamações da pobre gente que lhe morava em torno.

Cansados com as proezas do caçador doméstico de frangos e patos, resolveram pôr termo a elas.

Trataram de mal-assombrar a casa. Contrataram um moleque jeitoso que se metia no forro da casa, à noite, e lá arrastava correntes.

Simões lembrou-se dos escravos dos seus parentes Feitais e teve remorsos. Um dia assustou-se tanto que correu espavorido para o quintal, alta noite, em trajes menores, com o falar transtornado. Os seus molossos não o conheceram e o puseram no estado em que punham os incautos frangos da vizinhança: estraçalharam-no.

Tal foi o fim de um dos últimos rebentos dos poderosos Feitais de Barra Mansa.

Fonte:
Covil do Orc

Antonio Cândido (O Escritor e o Público) - Parte II


Quando consideramos a literatura no Brasil, vemos que a sua orientação dependeu em parte dos públicos disponíveis nas várias fases, a começar pelos catecúmenos, estímulo dos autos de Anchieta, a eles ajustados e sobre eles atuando como lição de vida e concepção do mundo. Vemos em seguida que durante cerca de dois séculos, pouco mais ou menos, os públicos normais da literatura foram aqui os auditórios — de igreja, academia, comemoração. O escritor não existia enquanto papel social definido; vicejava como atividade marginal de outras, mais requeridas pela sociedade pouco diferenciada: sacerdote, jurista, administrador. Querendo fugir daí e afirmar-se, só encontrava os círculos populares de cantigas e anedotas, a que se dirigiu o grande irregular sem ressonância nem influência, que foi Gregório de Matos na sua fase brasileira.

A cerimônia religiosa, a comemoração pública foram ocasião para se formarem os públicos mais duradouros em nossa literatura colonial, dominada pelo sermão e pelo recitativo. As fugazes Academias constituem caso sugestivo, representando, do ponto de vista em que nos colocamos, esforço de criação artificial de um público por parte dos próprios escritores (escritores parciais, como vimos), que eram ao mesmo tempo grupo criador, transmissor e receptor; grupo multifuncional de ressonância limitada e dúbia caracterização, onde a literatura acabava por abafar a si mesma, esterilizando-se por falta de um ponto de apoio.

É preciso chegarmos ao fim do século XVIII e à fase que precede a Independência para podermos avaliar como se esboçam os elementos característicos do público e da posição social do escritor, definindo-se os valores de comunicação entre ambos. Como não se pretende aqui uma descrição completa, apenas estes elementos serão destacados, tentando-se avaliar qual foi a sua influência e persistência na evolução posterior.

Destaquemos desse contexto a função de Silva Alvarenga, provavelmente o primeiro escritor brasileiro que procurou harmonizar a criação com a militância intelectual, graças ao senso quase didático do seu papel. Em torno dele formou-se um grupo, o da Sociedade Literária, que se prolongou pelos dos alunos por ele formados como Mestre de Retórica e Poética, entre os quais alguns próceres da Independência. Assim, não apenas difundiu certa concepção da tarefa do homem de letras como agente positivo na vida civil, mas animou um movimento que teve continuidade, suscitando pequenos públicos fechados que se ampliariam, pela ação cívica e intelectual, até as reivindicações da autonomia política e, inseparável dela, da autonomia literária.

Digamos pois que, a exemplo do melodioso Alcino Palmireno, o escritor começou a adquirir consciência de si mesmo, no Brasil, como cidadão, homem da polis, a quem incumbe difundir as luzes e trabalhar pela pátria. Assim tocamos no principal elemento com que se integram aqui, a princípio, a sua consciência grupai e o seu conceito social: o nativismo, logo tornado em nacionalismo, manifestado nos escritos e em toda a sorte de associações político-culturais que reuniram sábios, poetas, oradores e, ao contrário das velhas Academias, os encaminharam para a ação sobre a sociedade, abrindo-se para o exterior por meio da paixão libertária, mesmo quando fechadas sobre si mesmas pelo esoterismo maçônico. Esta literatura militante chegou ao grande público como sermão, artigo, panfleto, ode cívica; e o grande público aprendeu a esperar dos intelectuais palavras de ordem ou incentivo, com referência aos problemas da jovem nação que surgia.

Esta união da literatura à política permitiu o primeiro contacto vivo do escritor com os leitores e auditores potenciais; e nada exprime melhor a ardente fé nas luzes do que os cursos organizados na prisão pelos revolucionários de 1817, em proveito dos que esperavam a condenação, talvez a morte, e onde Muniz Tavares ensinava lógica; frei Caneca, português; Basílio Torreão, geografia e história; Antônio Carlos, inglês… Futuros revoltosos de 1824, como Tristão de Alencar Araripe, aí se aperfeiçoaram e ganharam novas razões para lutar.

Ao nativismo e às associações é preciso acrescentar a presença dos religiosos, frades e padres, preeminentes nos dois casos, que vieram trazer o prestígio de uma instituição básica da Monarquia, a Igreja, pondo-a ao serviço das novas idéias e conferindo respeitabilidade à atividade intelectual ilustrada. Um sacerdote, Sousa Caldas, escreveu no último decênio do século XVIII um dos mais vigorosos libelos nativistas e ilustrados, o poema d'As AVES; e as cinco restantes dentre as suas perdidas CARTAS defendem a liberdade de pensamento em face do poder civil e religioso, com um modernismo e um vigor que permitem considerar o extravio das outras como das maiores perdas para a nossa literatura e a evolução do nosso pensamento.

De tudo se conclui que no primeiro quartel do século XIX esboçaram-se no Brasil condições para definir tanto o público quanto o papel social do escritor em conexão estreita com o nacionalismo.

Decorre que os escritores, conscientes pela primeira vez da sua realidade como grupo graças ao papel desempenhado no processo da Independência e ao reconhecimento da sua liderança no setor espiritual, vão procurar, como tarefa patriótica, definir conscientemente uma literatura mais ajustada às aspirações da jovem pátria, favorecendo entre criador e público relações vivas e adequadas à nova fase.

A posição do escritor e a receptividade do público serão decisivamente influenciadas pelo fato da literatura brasileira ser então encarada como algo a criar-se voluntariamente para exprimir a sensibilidade nacional, manifestando-se como ato de brasilidade. Os jovens românticos da Niterói são em primeiro lugar patriotas que desejam complementar a Independência no plano estético; e como os moldes românticos previam tanto o sentimento de segregação quanto o de missão — que o compensa — o escritor pôde apresentar-se ao leitor como militante inspirado da idéia nacional.

Vemos, então, que nativismo e civismo foram grandes pretextos, funcionando como justificativa da atividade criadora; como critério de dignidade do escritor; como recurso para atrair o leitor e, finalmente, como valores a transmitir. Se as edições dos livros eram parcas, e lentamente esgotadas, a revista, o jornal, a tribuna, o recitativo, a cópia volante, conduziam as suas idéias ao público de homens livres, dispostos a vibrar na grande emoção do tempo.

Tão importante é esta circunstância para a criação e difusão da literatura, que outras tendências literárias buscavam nela razão de ser, como foi o caso das que se designam pelo nome genérico de sentimentalismo. Assim, a melancolia, a nostalgia, o amor da terra foram tidos como próprios do brasileiro; foram considerados nacionais a seu modo, de valor quase cívico, e frequentemente inseparáveis do patriotismo.

Verifica-se, pois, que escritor e público definiram-se aqui em torno de duas características decisivas para a configuração geral da literatura: Retórica e nativismo, fundidos no movimento romântico depois de um desenvolvimento anterior. A ação dos pregadores, dos conferencistas de academia, dos glosadores de mote, dos oradores nas comemorações, dos recitadores de toda hora correspondia a uma sociedade de iletrados, analfabetos ou pouco afeitos à leitura ("(…) as peças oratórias eram escritas para ser recitadas, mas eram-no com verdadeiro entusiasmo. O povo, que nada lia, era ávido por ouvir os oradores mais famosos (…) Não havia divertimentos públicos, como hoje; o teatro era nulo; as festas de igreja eram concorridíssimas." (Sílvio Romero, História da literatura brasileira, 2a ed., vol. I, Garnier, Rio de Janeiro, 1902-1903, p. 270). Deste modo, formou-se, dispensando o intermédio da página impressa, um público de auditores, muito maior do que se dependesse dela e favorecendo, ou mesmo requerendo, no escritor, certas características de facilidade e ênfase, certo ritmo oratório que passou a timbre de boa literatura e prejudicou entre nós a formação dum estilo realmente escrito para ser lido. A grande maioria dos nossos escritores, em prosa e verso, fala de pena em punho e prefigura um leitor que ouve o som da sua voz brotar a cada passo por entre as linhas.

Esta tendência recebeu incremento do nacionalismo, propenso a assumir o tom verbal e mesmo verboso, que desperta a emoção. Formado sob a sua égide, o escritor brasileiro guardou sempre algo daquela vocação patriótico-sentimental, com que justificou a princípio a sua posição na sociedade do país autonomista, e logo depois independente; o público, do seu lado, sempre tendeu a exigi-la como critério de aceitação e reconhecimento do escritor. Ainda hoje, a cor local, a exibição afetiva, o pitoresco descritivo e a eloquência são requisitos mais ou menos prementes, mostrando que o homem de letras foi aceito como cidadão, disposto a falar aos grupos; e como amante da terra, pronto a celebrá-la com arroubo, para edificação de quantos, mesmo sem o ler, estavam dispostos a ouvi-lo. Condições todas, como se vê, favorecendo o desenvolvimento, a penetração coletiva de uma literatura sem leitores, como foi e é em parte a nossa.

Sob este ponto de vista, exemplo interessante é o Indianismo, que constitui elaboração ideológica do grupo intelectual em resposta a solicitações do momento histórico e, desenvolvendo-se na direção referida, satisfez às expectativas gerais do público disponível; mas graças ao seu dinamismo como sistema simbólico, atuou ativamente sobre ele, criando o seu público próprio. Não se pode aceitar a opinião de Capistrano de Abreu, para quem ele possui raízes populares, dando forma a certas tendências que, no seio do povo, opunham ao português, o índio, em sentido nativista. A sua raiz é erudita. Mergulha imediatamente no exemplo de Chateaubriand, com uma vitalidade compreensível pela influência mediata de Basílio da Gama e Santa Rita Durão — eles próprios desenvolvendo uma linha de aproveitamento ideológico do índio como protótipo da virtude natural, que remonta aos humanistas do século XVI. Os românticos fundiram a tradição humanista na expressão patriótica e forneceram deste modo à sociedade do novo Brasil um temário nacionalista e sentimental, adequado às suas necessidades de auto-valorização. De tal forma que ele transbordou imediatamente dos livros e operou independentemente deles — na canção, no discurso, na citação, na anedota, nas artes plásticas, na onomástica, propiciando a formação de um público incalculável e constituindo possivelmente o maior complexo de influência literária junto ao público, que já houve entre nós.

Mencionemos agora outra consequência importante da literatura se haver incorporado ao civismo da Independência e ter-se ajustado a públicos mais amplos do que os habilitados para a leitura compreensiva: a sua aceitação pelas instituições governamentais, com a decorrente dependência em relação às ideologias dominantes. Neste sentido, avultam três fatores: o frequente amparo oficial de D. Pedro II, o Instituto Histórico e as Faculdades de Direito (Olinda-Recife e São Paulo). A sua função consistiu, de um lado, em acolher a atividade literária como função digna; de outro, a podar as suas demasias, pela padronização imposta ao comportamento do escritor, na medida em que era funcionário, pensionado, agraciado, apoiado de qualquer modo. Houve, neste sentido, um mecenato por meio da prebenda e do favor imperial, que vinculavam as letras ( os literatos à administração e à política, e que se legitima na medida em que o Estado reconhecia, desta forma (confirmando-o junto ao público), o papel cívico e construtivo que o escritor atribuía a si próprio como justificativa da sua atividade.

À medida, porém, que o século correu, foi-se vendo outro aspecto desta realidade, que a completa e é em parte devida às próprias Faculdades jurídicas: a reação ante essa ordem excessiva por parte do boêmio e do estudante, que muitas vezes eram o escritor antes da idade burocrática. Este elemento renovador e dinamizador acabou por ser parcialmente racionalizado pelas ideologias dominantes, esboçando-se nos costumes certa simpatia complacente pelo jovem irregular, que antes de ser homem grave quebrava um pouco a monotonia do nosso Império encartolado, mas nem por isso perdia o benefício do seu apoio futuro. Conta-se que Guimarães Passos, moço e miserável, sem ter o que almoçar, planejou com um companheiro de boêmia roubar a carne servida às feras que o Imperador mantinha na Quinta da Boa Vista. Tentando retirá-la de uma jaula, foi afugentado pelos rugidos do animal e veio, em carreira desabalada, parar nas janelas da biblioteca. O bibliotecário, com senso de humor, interessou-se pelo caso, e o talentoso gatuno acabou nomeado arquivista do Palácio…

A anedota simboliza admiravelmente a atitude paternal do Governo, numa sociedade em que o escritor esperava acomodar-se nas carreiras paralelas e respeitáveis, que lhe permitiriam viver com aprovação pública, redimindo ou compensando a originalidade e a rebeldia. Por isso mesmo, talvez tenha sido uma felicidade a morte de tantos escritores de talento antes da servidão burocrática.

Não estranha, pois, que se tenha desenvolvido na nossa literatura oitocentista um certo conformismo de forma e fundo, apesar das exceções já referidas. Ele se liga ao caráter, não raro assumido pelo escritor, de apêndice da vida social, pronto para submeter sua criação a uma tonalidade média, enquadrando a expressão nas bitolas de gosto. Muitos dos nossos maiores escritores — inclusive Gonçalves Dias e Machado de Assis — foram homens ajustados à superestrutura administrativa. A condição de escritor funcionou muitas vezes como justificativa de prebenda ou de sinecura; e para o público, como reconhecimento do direito a ambas, — num Estado patrimonialista como era o nosso. Ainda depois da Revolução de 1930, certa reforma severa no então recente Ministério da Educação, obrigando os inspetores de ensino a desempenhar efetivamente os cargos, esbarrou em três eminentes escritores e os deixou à margem da exigência, reconhecendo desta forma o direito secular do homem de letras, cuja atividade específica justificava o desleixo das que lhe eram dadas por acréscimo. O Estado e os grupos dirigentes não funcionavam, porém, apenas como patronos, mas como sucedâneo do público; público vicariante, poderíamos dizer. Com efeito, na ausência de públicos amplos e conscientes, o apoio ou pelo menos o reconhecimento oficial valeram por estímulo, apreciação e retribuição da obra, colocando-se ante o autor como ponto de referência.

Note-se, também, que prosseguiu por todo o século XIX, e até o início do século XX, a tradição de auditório (ou que melhor nome tenha), graças não apenas à grande voga do discurso em todos os setores da nossa vida, mas, ainda, ao recitativo e à musicalização dos poemas. Foram estas as maneiras principais de veicular a poesia — tanto a dos poetas oficiais, como Magalhães ou Porto Alegre, quanto a dos irregulares como Laurindo Rabelo ou Aureliano Lessa. Se as edições eram escassas, a serenata, o sarau e a reunião multiplicavam a circulação do verso, recitado ou cantado. Desta maneira, românticos e pós-românticos penetraram melhor na sociedade, graças a públicos receptivos de auditores. E não esqueçamos que, para o homem médio e do povo, em nosso século a encarnação suprema da inteligência e da literatura foi um orador, Rui Barbosa, que quase ninguém lê fora de algumas páginas de antologia.

Como traço importante, devido ao desenvolvimento social do Segundo Reinado, mencionemos o papel das revistas e jornais familiares, que habituaram os autores a escrever para um público de mulheres, ou para os serões onde se lia em voz alta. Daí um amaneiramento bastante acentuado que pegou em muito estilo; um tom de crônica, de fácil humorismo, de pieguice, que está em Macedo, Alencar e até Machado de Assis. Poucas literaturas terão sofrido, tanto quanto a nossa, em seus melhores níveis, esta influencia caseira e dengosa, que leva o escritor a prefigurar um público feminino e a ele se ajustar.

Se for válida esta análise esquemática, devemos concluir que as condições que presidiram, no Brasil, à definição tanto do público quanto do escritor deviam ter favorecido entre ambos uma comunicação fácil e ampla. Mas ficou também visto que o escritor não pôde contar, da parte do público, com uma remuneração que este não era capaz de fornecer, obrigando o Estado a interpor-se entre ambos, como fonte de outras formas de retribuição.

Daí uma situação peculiar no tocante às relações entre o escritor e o grande público — que agora vamos encarar como conjunto eventual de leitores. É que no Brasil, embora exista tradicionalmente uma literatura muito acessível, na grande maioria, verifica-se ausência de comunicação entre o escritor e a massa. O paradoxo é apenas aparente, podendo talvez explicar-se por meio do critério seguido no presente estudo.

Com efeito, o escritor se habituou a produzir para públicos simpáticos, mas restritos, e a contar com a aprovação dos grupos dirigentes, igualmente reduzidos. Ora, esta circunstância, ligada à esmagadora maioria de iletrados que ainda hoje caracteriza o país, nunca lhe permitiu diálogo efetivo com a massa, ou com um público de leitores suficientemente vasto para substituir o apoio e o estímulo de pequenas elites. Ao mesmo tempo, a pobreza cultural destas nunca permitiu a formação de uma literatura complexa, de qualidade rara, salvo as devidas exceções. Elite literária, no Brasil, significou até bem pouco tempo, não refinamento de gosto, mas apenas capacidade de interessar-se pelas letras.

Correspondendo aos públicos disponíveis de leitores, — pequenos e singelos — a nossa literatura foi geralmente acessível como poucas, pois até o Modernismo não houve aqui escritor realmente difícil, a não ser a dificuldade fácil do rebuscamento verbal que, justamente porque se deixa vencer logo, tanto agrada aos falsos requintados. De onde se vê que o afastamento entre o escritor e a massa veio da falta de públicos quantitativamente apreciáveis, não da qualidade pouco acessível das obras.

Daí o êxito (dentro das limitações apontadas) de tanto escritor de talento, apesar de muita demagogia romântica em contrário. Nenhum exemplo mais significativo que o de Euclides da Cunha, difícil, afrontando os poderes, fustigando o Exército — e no entanto aceito triunfalmente pelo Exército, pelos poderes, pelos leitores.

Mas, ainda aqui, devemos voltar ao chavão inicial que nos vem guiando, e lembrar que a constituição do patriotismo como pretexto, e a consequente adoção pelo escritor do papel didático de quem contribui para a coletividade, devem ter favorecido a legibilidade das obras. Tornar-se legível pelo conformismo aos padrões correntes; exprimir os anseios de todos; dar testemunho sobre o país; exprimir ou reproduzir a sua realidade, — é tendência que verificamos em Magalhães, Alencar, Domingos Olímpio, Bilac, Mário de Andrade, Jorge Amado. Mesmo quando o grande público permanece indiferente, e ele só conta com os pequenos grupos, o escritor brasileiro permanece fácil na maioria dos casos. Como aconteceu na Rússia e na América Espanhola (isto é, nações visando à ocidentalização rápida), ele sempre reivindicou entre nós tarefas mais largas do que as comumente atribuídas à sua função específica.

Estas considerações mostram por que quase não há no Brasil literatura verdadeiramente requintada no sentido favorável da palavra, inacessível aos públicos disponíveis. A literatura considerada de elite na tradição ocidental, sendo hermética em relação ao leitor de cultura mediana, exprime quase sempre a autoconsciência extrema de um grupo, reagindo à opinião cristalizada da maioria, que se tornou pesada e sufocadora. Entre nós, nunca tendo havido consolidação da opinião literária, o grupo literário nunca se especializou a ponto de diferenciar-se demasiadamente do teor comum de vida e de opinião. Quase sempre produziu literatura como a produziriam leigos inteligentes, pois quase sempre a sua atividade se elaborou à margem de outras, com as quais a sociedade o retribuía. Papel social reconhecido ao escritor, mas pouca remuneração para o seu exercício específico; público receptivo, mas restrito e pouco refinado. Consequência: literatura acessível mas pouco difundida; consciência grupai do artista, mas pouco refinamento artesanal.

Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Apollo Taborda França (Trovas da Amizade)


AMÁLIA MAX, sublime,
Tem amor à causa nossa...
E na trova bem exprime,
O valor de Ponta Grossa!

(para Argentina de Mello e Silva)
ARGENTINA, poetisa,
Na trova grande demais...
Muito suave, qual a brisa,
Acalenta os seus florais!

Professor ATHOS VELLOZO,
Requintado estilista...
Vive sempre em áureo gozo,
No seu mundo de jurista!

AURORA CURY se empenha
No mister de bem compor...
Seus versos, uma resenha,
De jardim cheio de flor!

AZOR CRUZ, de naipe régio,
Também, médico-escritor...
Sua vida, florilégio,
Alça vôos de condor!

(para Eleonora Brasil Pompeu)
ELEONORA é na trova,
O tino, facilidade...
Assim certo, ela prova
Ser “Poetisa da Cidade”!

(para Emílio de Mattos Sounis)
SOUNIS médico e poeta,
De envolvente inspiração...
Sua trova, bem seleta,
Sempre fala ao coração!

O FRANCISCO FILIPAK
É um mestre de nomeada...
No idioma um destaque,
No soneto uma florada!

HARLEY CLOVIS STOCCHERO
Já surgiu para brilhar....
Põe nos versos bom tempero,
Num estilo peculiar!

É HELENA KOLODY
Notável na poesia...
A grandeza está aí,
No seu verso que extasia!

HILDA KOLLER é de Castro,
Um rincão do Paraná...
Na poesia, rico lastro,
Que se iguale, lá não há!

(para Ladislau Romanowski)
ROMANOWSKI, um artista
De charme bem popular...
Mostra-se puro humanista
E escritor muito exemplar.

(para Lia Sachs Iankilewich)
LIA SACHS, poetisa,
Vai “Dissecando a Agonia”...
Seu cantar é suave brisa,
Exuberante eufonia!

LOURDES STROZZI, que musa,
Ela própria a inspiração...
Sua trova é conclusa,
Nota dez, com distinção!

MOYSÉS PACIORNIK pensa,
Escreve, fluentemente...
Fala suave, jeito leve,
Mas, seu estro uma torrente!

(para Nair Cravo Westphalen)
NAIR CRAVO, que poeta,
Em “soneto” foi premiada...
Tem espírito de asceta
E muita luz na jornada!

O NELSON que é SALDANHA
E se aureola D`OLIVEIRA...
É de inspiração tamanha,
Que na trova faz carreira!

WOCZIKOSKI, nosso ORLANDO,
Tem vigor, alacridade...
Trovador que, burilando,
Se engrandece na “saudade”!

TÚLIO VARGAS vai na História,
Onde encontra seus motivos...
Garimpeiro da memória,
Tão valiosos seus arquivos!

É UBIRATAN LUSTOSA
Radialista consagrado...
Se realiza bem na prosa,
“Nosso Encontro” vem premiado!

(ao Vasco José Taborda)
O VASCO, nobre poeta,
Líder da fraternidade...
Tem a luz de grande esteta,
Onde vai prega amizade!

A ZÉLIA SIMEÁO POPLADE
Mostrou cedo a vocação...
Tem seu verso majestade,
Suavidade e erudição!

Fonte:
FRANÇA, Apollo Taborda. 100 Trovas da Amizade. Curitiba: Formigueiro, 1985.

Rubem Alves (Cozinha)


Qual é o lugar mais importante da sua casa? Eu acho que essa é uma boa pergunta para início de uma sessão de psicanálise. Porque quando a gente revela qual é o lugar mais importante da casa, a gente revela também o lugar preferido da alma. Nas Minas Gerais onde nasci o lugar mais importante era a cozinha. Não era o mais chique e nem o mais arrumado. Lugar chique e arrumado era a sala de visitas, com bibelôs, retratos ovais nas paredes, espelhos e tapetes no chão. Na sala de visitas as crianças se comportavam bem, era só sorrisos e todos usavam máscaras. Na cozinha era diferente: a gente era a gente mesmo, fogo, fome e alegria.

"Seria tão bom, como já foi...", diz a Adélia. A alma mineira vive de saudade. Tenho saudade do que já foi, as velhas cozinhas de Minas, com seus fogões de lenha, cascas de laranja secas, penduradas, para acender o fogo, bule de café sobre a chapa, lenha crepitando no fogo, o cheiro bom da fumaça, rostos vermelhos. Minha alma tem saudades dessas cozinhas antigas...

Fogo de fogão de lenha é diferente de todos os demais fogos. Veja o fogo de uma vela acesa sobre uma mesa. É fogo fácil. Basta encostar um fósforo aceso no pavio da vela para que ela se acenda. Não é preciso nem arte nem ciência. Até uma criança sabe. Só precisa um cuidado: deixar fechadas as janelas para que um vento súbito não apague a chama. O fogo do fogão é outra coisa. Bachelard notou a diferença: "A vela queima só. Não precisa de auxílio.

A chama solitária tem uma personalidade onírica diferente da do fogo na lareira. O homem, diante de um fogo prolixo pode ajudar a lenha a queimar, coloca uma acha suplementar no tempo devido. O homem que sabe se aquecer mantém uma atitude de Prometeu. Daí seu orgulho de atiçador perfeito..." Fogo de lareira é igual ao fogo do fogão de lenha. Antigamente não havia lareiras em nossas casas. O que havia era o fogo do fogão de lenha que era, a um tempo, fogo de lareira e fogo de cozinhar.

As pessoas da cidade, que só conhecem a chama dos fogões a gás, ignoram a arte que está por detrás de um fogão de lenha aceso. Se os paus grossos, os paus finos e os gravetos não forem colocados de forma certa, o fogo não pega. Isso exige ciência. E depois de aceso o fogo é preciso estar atento. É preciso colocar a acha suplementar, do tamanho certo, no lugar certo. Quem acende o fogo do fogão de lenha tem de ser também um atiçador.

O fogão de lenha nos faz voltar "às residências de outrora, as residências abandonadas mas que são, em nossos devaneios, fielmente habitadas" (Bachelard). Exupèry, no tempo em que os pilotos só podiam se orientar pelos fogos dos céus e os fogos da terra, conta de sua emoção solitária no céu escuro, ao vislumbrar, no meio da escuridão da terra, pequenas luzes: em algum lugar o fogo estava aceso e pessoas se aqueciam ao seu redor.

Já se disse que o homem surgiu quando a primeira canção foi cantada. Mas eu imagino que a primeira canção foi cantada ao redor do fogo, todos juntos se aquecendo do frio e se protegendo contra as feras. Antes da canção, o fogo. Um fogo aceso é um sacramento de comunhão solitária. Solitária porque a chama que crepita no fogão desperta sonhos que são só nossos. Mas os sonhos solitários se tornam comunhão quando se aquece e come.

Nas casas de Minas a cozinha ficava no fim da casa. Ficava no fim não por ser menos importante mas para ser protegida da presença de intrusos. Cozinha era intimidade. E também para ficar mais próxima do outro lugar de sonhos, a horta-jardim. Pois os jardins ficavam atrás. Lá estavam os manacás, o jasmim do imperador, as jabuticabeiras, laranjeiras e hortaliças. Era fácil sair da cozinha para colher xuxús, quiabo, abobrinhas, salsa, cebolinha, tomatinhos vermelhos, hortelã e, nas noites frias, folhas de laranjeira para fazer chá.

Ah! Como a arquitetura seria diferente se os arquitetos conhecessem também os mistérios da alma! Se Niemeyer tivesse feito terapia, Brasília seria outra. Brasília é arquitetura de arquitetos sem alma. Se eu fosse arquiteto minhas casas seriam planejadas em torno da cozinha. Das coisas boas que encontrei nos Estados Unidos nos tempos em que lá vivi estava o jeito de fazer as casas: a sala de estar, a sala de jantar, os livros, a escrivaninha, o aparelho de som, o jardim, todos integrados num enorme espaço integrado na cozinha. Todos podiam participar do ritual de cozinhar, enquanto ouviam música e conversavam. O ato de cozinhar, assim, era parte da convivência de família e amigos, e não apenas o ato de comer. Eu acho que nosso costume de fazer cozinhas isoladas do resto da casa é uma reminiscência dos tempos em que elas eram lugar de cozinheiras negras escravas, enquanto as sinhás e sinhazinhas se dedicavam, em lugares mais limpos, a atividades próprias de dondocas como o ponto de cruz, o frivolité, o crivo, a pintura e a música. Se alguém me dissesse, arquiteto, que o seu desejo era uma cozinha funcional e prática, eu imediatamente compreenderia que nossos sonhos não combinavam, delicadamente me despediria e lhes passaria o cartão de visitas de um arquiteto sem memórias de cozinhas de Minas.

As cozinhas de fogão de lenha não resistiram ao fascínio do progresso. As donas de casa, em Minas, por medo de serem consideradas pobres, dotaram suas casas de modernas cozinhas funcionais, onde o limpíssimo e apagado fogão à gás tomou o lugar do velho fogão de lenha. As cozinhas, agora, são extensões da sala de visitas. Mas isto é só para enganar. A alma delas continua a morar nas cozinhas velhas, agora transferidas para o quintal, onde a vida é como sempre foi. Lá é tão bom, porque é como já foi.

Eu gostaria de ser muitas coisas que não tive tempo e competência para ser. A vida é curta e as artes são muitas. Gostaria de ser pianista, jardineiro, artista de ferro e vidro - talvez monge. E gostaria de ter sido um cozinheiro. Babette. Tita. Meu pai adorava cozinhar. Eu me lembro dele preparando os peixes, cuidadosamente puxando a linha que percorre o corpo dos papa-terras, curimbas, para que não ficassem com gosto de terra. E me lembro do seu rosto iluminado ao trazer para a mesa o peixe assado no forno.

Faz tempo, num espaço meu, eu gostava de reunir casais amigos uma vez por mês para cozinhar. Não os convidava para jantar. Convidava para cozinhar. A festa começava cedo, lá pelas seis da tarde. E todos se punham a trabalhar, descascando cebola, cortando tomates, preparando as carnes. Dizia Guimarães Rosa: "a coisa não está nem na partida e nem na chegada, mas na travessia." Comer é a chegada. Passa rápido. Mas a travessia é longa. Era na travessia que estava o nosso maior prazer. A gente ia cozinhando, bebericando, beliscando petiscos, rindo, conversando. Ao final, lá pelas onze, a gente comia. Naqueles tempos o que já tinha sido voltava a ser. A gente era feliz.

Sinto-me feliz cozinhando. Não sou cozinheiro. Preparo pratos simples. Gosto de inventar. O que mais gosto de fazer são as sopas. Vaca atolada, sopa de fubá, sopa de abóbora com maracujá, sopa de beringela, sopa da mandioquinha com manga, sopa de coentro... Você já ouviu falar em sopa de coentro? É sopa de portugueses pobres, deliciosa, com muito azeite e pão torrado. A sopa desce quente e, chegando no estômago, confirma...A culinária leva a gente bem próximo das feiticeiras. Como a Babette (A festa de Babette) e a Tita (Como água para chocolate)...

Fonte:
Correio Popular, Caderno C, 19/03/2000. Disponível em http://www.rubemalves.com.br/cozinha.htm

Antonio Cândido (O Escritor e o Público) - Parte I



Frequentemente tendemos a considerar a obra literária como algo incondicionado, que existe em si e por si, agindo sobre nós graças a uma força própria que dispensa explicações. Esta idéia elementar repousa na hipótese de uma virtude criadora do escritor, misteriosamente pessoal; e mesmo quando desfeita pela análise, permanece um pouco em todos nós, leitores, na medida em que significa repugnância do afeto às tentativas de definir os seus fatores, isto é, traçar de algum modo os seus limites.

Por isso, quando investigamos tais fatores e tentamos distingui-los, percebemos, na medida em que é possível, que os mais plenamente significativos são os internos, que costeiam as zonas indefiníveis da criação, além das quais, intacto e inabordável, persiste o mistério. Há todavia os externos, como aqueles de que se ocupará este artigo; secundários, não há dúvida, como explicação; dependendo de um ponto de vista mais sociológico do que estético; mas necessários, senão à sondagem profunda das obras e dos criadores, pelo menos à compreensão das correntes, períodos, constantes estéticas. Um autor alemão chega a dizer, neste sentido, que mesmo considerando-se a priori metafísico o valor artístico, só de modo sociológico é possível elucidá-lo nas suas formas concretas particulares — pois nas sociedades civilizadas a criação é eminentemente relação entre grupos criadores e grupos receptores de vários tipos. Isto quer dizer que o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade (que o delimita e especifica entre todos), mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores. A matéria e a forma da sua obra dependerão em parte da tensão entre as veleidades profundas e a consonância ao meio, caracterizando um diálogo mais ou menos vivo entre criador e público.

Mas o panorama é dinâmico, complicando-se pela ação que a obra realizada exerce tanto sobre o público, no momento da criação e na posteridade, quanto sobre o autor, a cuja realidade se incorpora em acréscimo, e cuja fisionomia espiritual se define através dela. Em contraposição à atitude tradicional e unilateral, que considerava de preferência a ação do meio sobre o artista, vem-se esboçando na estética e na sociologia da arte uma atenção mais viva para este dinamismo da obra, que esculpe na sociedade as suas esferas de influência, cria o seu público, modificando o comportamento dos 84 grupos e definindo relações entre os homens.

A literatura é pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo.

Qual a influência entre eles; como se condicionam mutuamente; que relações humanas pressupõem ou motivam? São questões que o crítico propõe ao sociólogo, ou responde ele próprio colocando-se no ângulo deste. Procuremos falar como ambos, partindo da hipótese que, sob tal ponto de vista, a produção da obra literária deve ser inicialmente encarada com referência à posição social do escritor e à formação do público.
Aquela depende, em primeiro lugar, da consciência grupal, isto é, a noção desenvolvida pelos escritores de constituírem segmento especial da sociedade. Ela se manifesta de maneira diversa conforme o momento histórico (exprimindo-se, por exemplo, como vocação, consciência artesanal, senso de missão, inspiração, dever social etc), permitindo-lhes definir um papel específico, diferente dos demais, e servindo-lhes de identificação enquanto membros de um agrupamento delimitado.

O fato deste grupo configurar-se nitidamente ou permanecer virtual depende em boa parte do segundo fator: as condições de existência que os seus membros, enquanto tais, encontram na sociedade. Decorre ou não daí a profissionalização, que, embrionária noutras épocas, é tendência no mundo moderno, mas não fator essencial para estruturar um grupo de escritores. Com efeito, há diversas formas de remunerar o trabalho de criação literária nas diferentes sociedades e épocas: mecenato, incorporação ao corpo de servidores, atribuição de cargos, geralmente prebendas etc.

Finalmente, a posição do escritor depende do conceito social que os grupos elaboram em relação a ele, e não corresponde necessariamente ao seu próprio. Este fator exprime o reconhecimento coletivo da sua atividade, que deste modo se justifica socialmente. Deve-se notar, a propósito, que, embora certos escritores tenham individualmente alcançado o pináculo da consideração em todas as épocas da civilização ocidental, o certo é que, como grupo e função, apenas nos tempos modernos ela lhe foi dispensada pela sociedade.

Tais fatores aparecem na realidade unidos e combinados, dependendo uns dos outros e determinando-se uns aos outros conforme a situação analisada. Deste modo é que se deve considerá-los, relacionando-os, além disso, ao segundo grupo de fatores, que integram o conceito de público.

Se a obra é mediadora entre o autor e o público, este é mediador entre o autor e a obra, na medida em que o autor só adquire plena consciência da obra quando ela lhe é mostrada através da reação de terceiros. Isto quer dizer que o público é condição para o autor conhecer a si próprio, pois esta revelação da obra é a sua revelação. Sem o público, não haveria ponto de referência para o autor, cujo esforço se perderia caso não lhe correspondesse uma resposta, que é definição dele próprio. Quando se diz que escrever é imprescindível ao verdadeiro escritor, quer isto dizer que ele é psiquicamente organizado de tal modo que a reação do outro, necessária para a autoconsciência, é por ele motivada através da criação. Escrever é propiciar a manifestação alheia, em que a nossa imagem se revela a nós mesmos.

Por isso, todo escritor depende do público. E quando afirma desprezá-lo, bastando-lhe o colóquio com os sonhos e a satisfação dada pelo próprio ato criador, está, na verdade, rejeitando determinado tipo de leitor insatisfatório, reservando-se para o leitor ideal em que a obra encontrará verdadeira ressonância. Tanto assim que a ausência ou presença da reação do público, a sua intensidade e qualidade podem decidir a orientação de uma obra e o destino de um artista. Mesmo porque nem sempre há contacto tangível do escritor com os leitores, e estes nem sempre se ordenam em grupos definidos, podendo permanecer no estado amorfo, isolados uns dos outros, por vezes em estado potencial. Para Von Wiese (a quem devemos a melhor caracterização sociológica deste fenômeno tão mal estudado desde os primórdios da sociologia contemporânea), o público nunca é um grupo social, sendo sempre uma coleção inorgânica de indivíduos, cujo denominador comum é o interesse por um fato. É a "massa abstrata", ou "virtual", da sua terminologia. Entretanto, dentro dela podem diferenciar-se agrupamentos menores, mais coesos, às vezes com tendência a organizar-se, como são os círculos de leitores e amadores entre os quais se recrutam quase sempre as elites, que pesarão mais diretamente na orientação do autor.

De qualquer modo, um público se configura pela existência e natureza dos meios de comunicação, pela formação de uma opinião literária e a diferenciação de setores mais restritos que tendem à liderança do gosto — as elites. O primeiro fator envolve o grau de ilustração, os hábitos intelectuais, os instrumentos de divulgação (livro, jornal, auditórios etc); o segundo e o terceiro se definem automaticamente, e aliás acabam de ser sugeridos.

Para correlacionar (agora em termos práticos) o problema do escritor e do público no quadro da presente análise, lembremos que o reconhecimento da posição do escritor (a aceitação das suas idéias ou da sua técnica, a remuneração do seu trabalho) depende da aceitação da sua obra, por parte do público. Escritor e obra constituem, pois, um par solidário, funcionalmente vinculado ao público; e no caso deste conhecer determinado livro apenas depois da morte do autor, a relação se faz em termos de posteridade. De modo geral, todavia, a existência de uma obra levará sempre, mais cedo ou mais tarde, a uma reação, mínima que seja; e o autor a sentirá no seu trabalho, inclusive quando ela lhe pesa pela ausência.

Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

Vicente Riva Palacio (As Mulas de sua Excelência)


Na grande extensão da Nova Espanha, pode-se afiançar que não existia parelha de mulas como as que puxavam a carruagem de Sua Excelência, o Senhor Vice-Rei. E note-se que eram tão da­dos os conquistadores do México, naquele tempo, à criação de mulas, e tão habituados a usá-las como cavalgaduras, que os reis de Espanha, temendo que tal inclinação fosse causa do abandono da criação de cavalos e do exercício militar, determinaram fossem obrigados os principais habitantes da terra a ter cavalos próprios e disponíveis para o combate. Porém as mulas do vice-rei eram a inveja de todos os ricos e o desespero dos fazendeiros da capital da colônia.

Altas, de peito largo como o potro mais possante; com as quatro pernas finas e nervosas como as de uma rena; cabeça descarna­da, e as móbeis orelhas e os negros olhos como os de um veado. Tinham a cor tirante ao castanho, embora com alguns reflexos dourados; trotavam com tamanha rapidez, que mal poderia acompanhá-las um cavalo a galope.

Ademais, eram de tanta nobreza e tão boas de rédea que, no dizer do cocheiro de Sua Excelência, poderiam ser guiadas, se não com duas teias de aranha, pelo menos com dois leves cordéis de seda.

Todos os dias o vice-rei se levantava mal nascia o sol; esperava o coche ao pé da escada do palácio, descia vagarosamente; contemplava orgulhoso a sua incomparável parelha; entrava na carruagem; persignava-se com devoção; e lá se iam as mulas, tirando chispas das poucas pedras que encontravam no caminho.

Depois de largo passeio pelos arredores da cidade, parava o vice-­rei, pouco antes das oito da manhã, em frente à catedral, que a esse tempo, e com grande atividade, se estava construindo.

Ia muito adiantada a obra, e nela trabalhavam numerosas turmas, que, em geral, se dividiam por nacionalidades — uma de espanhóis, outra de índios, outras de mestiços e outras de negros —, com o fim de evitar choques, muito comuns, infelizmente, entre operários de raças diversas.

Havia, entre aquelas turmas, duas que se distinguiam pela prontidão e esmero no desempenho das mais delicadas tarefas que lhes confiavam; e o curioso é que uma delas se compunha de espanhóis e a outra de índios.

Era capataz da espanhola um vigoroso asturiano, aí dos seus quarenta anos de idade, chamado Pedro Noriega. O homem de pior caráter, mas de melhor coração, que se poderia encontrar nessa época entre os colonos.

Luís de Rivera dirigia como capataz a turma dos índios, por­que tinha mais aparência de índio que de espanhol, apesar de mestiço do primeiro cruzamento, e falava com muita facilidade a língua dos castelhanos e o idioma nauatle ou mexicano.

Tampouco era Luís de Rivera uma índole angelical; turbulento e brigão, já por mais de uma vez dera que fazer aos aguazis.

Por desgraça, tiveram as duas turmas de trabalhar muito per­to uma da outra, e, quando Pedro Noriega se agastava com os seus, o que se dava muitas vezes por dia, gritava-lhes com voz de trovão:

— Que espanhóis mais brutos! Parecem índios!

Mal, porém, havia terminado aquela frase, e Rivera, viesse ou não viesse ao caso, gritava para os seus:

— Que índios mais estúpidos! Parecem espanhóis!

Como é fácil imaginar, as conseqüências disso tinham de ser fatais. Os diretores da obra não trataram de separar aquelas turmas, e, amiudando-se os insultos, uma tarde Noriega e Rivera foram, não às mãos, e sim às armas, porque cada um deles já vinha preparado para o que desse e viesse; e coube a parte pior ao mestiço, que ali caiu morto, de uma punhalada.

O caso degenerou em tumulto, e para acalmá-lo foi necessário se recorresse à justiça e viesse tropa de palácio.

Apartaram os contendores, apanharam o cadáver de Luís de Rivera, e de braços atados saiu dali o asturiano, entre os aguazis, para o cárcere da cidade.

Como o vice-rei estava muito indignado, como os senhores do tribunal ardiam em desejo de dar um exemplo e ao mesmo tem­po de agradar ao vice-rei, e como existia um edito real dispondo que os crimes de espanhóis contra filhos da terra fossem castiga­dos com severidade maior, antes de quinze dias estava o processo concluído e Noriega condenado à forca.

Baldados foram todos os esforços para se obter o indulto; nem as ternuras da vice-rainha, nem os memoriais das damas, nem o prestígio do Senhor Arcebispo, nada: firme e resoluto, o vice-rei a tudo se negava, dando como razão a necessidade de um singu­laríssimo e notável escarmento.

A família de Noriega, que se reduzia à mulher e a uma vistosa moça de dezoito anos, todos os dias, desolada, andava, como vul­garmente se diz, de Herodes para Pilatos, e passava largas horas ao pé da escada do palácio, tentando incessantemente abrandar com o seu pranto o empedernido coração de Sua Excelência.

Muitas vezes esperavam junto ao coche em que o vice-rei ia montar, e contavam suas aflições, que a desgraça sempre conta, ao cocheiro do vice-rei, um andaluz moço e solteiro.

Como era natural, àquele jovem andaluz enterneciam tanto as lágrimas da mãe como os negros olhos da filha. No entanto, não ousava ele falar ao vice-rei, compreendendo que o que tantas personagens não haviam conseguido, ele não deveria sequer tentar.

Nada obstante, ainda na véspera do dia marcado para a execução dizia às mulheres, entre convicto e pesaroso: "Deus ainda pode obrar um milagre! Deus ainda pode obrar um milagre!"

E as pobres mulheres viam um raio de esperança; pois, nos grandes infortúnios, os que não acreditam nos milagres sonham sempre com o inesperado.

Chegou por fim a manhã terrível da execução. Coberto de escapulários o peito, os olhos vendados, arrimando-se no braço dos sacerdotes, que aos brados o exortavam naquele transe fatal, causando pavor até aos próprios espectadores, saiu Noriega do cárcere acompanhado de imensa multidão, que marchava lenta e silenciosa, enquanto o pregoeiro gritava em cada esquina: “Esta é a justiça que se manda fazer com este homem, por homicídio cometido na pessoa de Luís de Rivera. Seja enforcado. Quem assim faz, que assim pague".

Naquela manhã subiu o vice-rei à carruagem preocupado, e sem se deter, como de hábito, a examinar a sua parelha de mulas; tal­vez se debatesse na incerteza sobre se aquilo era um ato de energia ou de crueldade.

O cocheiro, que já sabia o caminho que tinha de seguir, mo­veu de leve as rédeas da mula, e os animais partiram a trote. Cerca de um quarto de hora passou imóvel o vice-rei no fundo do coche, entregue às suas meditações; porém de súbito sentiu violenta sacudidela, e a rapidez da marcha aumentou de maneira notável. A princípio deu pouca atenção ao caso, mas a cada momento era mais rápida a carreira.

Sua Excelência pôs a cabeça de fora de uma das janelinhas e perguntou ao cocheiro:

— Que é isso?

— Senhor, estes animais se espantaram e não querem obedecer.

E o coche atravessava ruas, vielas e praças, e dobrava esqui­nas, sem nunca se chocar de encontro às paredes, mas como se não levasse rumo certo e fosse caminhando à toa.

Era o vice-rei homem animoso, e resolveu esperar o resultado daquilo, tratando de colocar-se em um dos ângulos da carruagem e cerrar os olhos.

De repente as mulas estacaram. Tornou o vice-rei a pôr a cabeça fora da janelinha, e viu-se rodeado de uma multidão de homens, mulheres e crianças que gritavam alegremente:

— Indultado! Indultado!

O coche do vice-rei acabava de encontrar-se com a comitiva que acompanhava Noriega ao patíbulo; era de lei que, se o monarca na metrópole ou os vice-reis nas colônias encontrassem um homem que ia ser executado, isto implicava o indulto. Noriega, com esse encontro feliz, ficou indultado.

Tornou o vice-rei ao palácio, não sem experimentar certo contentamento por haver salvado a vida de um homem sem prejuízo de sua energia.

Reconduziram ao cárcere o indultado Noriega.

Não se sabe se o cocheiro acreditava em milagre. O que se pôde averiguar, isto sim, foi que três meses depois ele se casou com a filha de Noriega, e que Sua Excelência lhe fez um grande presente de núpcias.

Acrescenta a tradição haver sido aquele acontecimento que deu motivo ao real edito que ordenava não saíssem do palácio os vice-­reis em dia de execução judicial.

Ora vejam lá de que são capazes as mulas!

Fonte:
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai. Mar de histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, vol. 7.

Vicente Riva Palácio (1832– 1896)



Vicente Florencio Carlos Riva Palácio Guerreiro (Cidade de México; 16 de outubro de 1832 - Madri, Espanha; 22 de novembro de 1896). Político, militar, jurista e escritor mexicano.

Nasce na Cidade de México o 16 de outubro de 1832, sendo filho de Dores Guerreiro e Mariano Riva Palácio, o advogado defensor de Maximiliano I durante sua captura em Querétaro. Neto direto do General Vicente Guerreiro. Estuda direito no Colégio de San Gregorio e forma-se em 1854. Deputado nacional em duas ocasiões, 1856 e 1861.

A seus quinze anos, em plena invasão norte-americana, faz parte de uma guerrilha contra os invasores.

Mais adiante, sendo liberal durante o século XIX, participa nos jornais A Orquestra e A Chinaca, opostos à perspectiva conservadora. Trabalha durante 1855 como escrivão, em 1856 como secretário da prefeitura da cidade de México e entre 1856 e 1857 como deputado suplente ao Congresso Constituinte (mesmo congresso que formula a Constituição do 57).

Durante a Segunda Intervenção Francesa em México arma uma guerrilha por sua própria conta com o fim de se unir à luta com o General Ignacio Zaragoza. Toma parte em várias ações militares, entre elas, a batalha de Barranca Seca e a queda de Povoa. Em 1863 segue a Juárez a San Luis Potosí e é nomeado governador do Estado de México, se reagrupa e reúne tropas para realizar as tomadas de Tulillo e Zitácuaro. Em 1865 é nomeado governador de Michoacán.

Após a morte do general José María Arteaga se lhe confere o comando de general em chefe do Exército Republicano do Centro e ao termo da campanha republicana em Michoacán, entrega as tropas a seu comando ao Genera. Nicolás Régules. Consegue organizar uma nova brigada, com a que toma e sitia a cidade de Toluca e com a que depois participa no lugar de Querétaro.

Simultaneamente de sua atuação militar edita os jornais O Monarca (1863) e O Pito Real. Compõe os versos do hino burlesco Adeus, mamãe Carlota (uma paráfrase de Adeus, oh pátria minha, de Ignacio Rodriguez Galván).

Com a vitória juarista, renuncia ao comando de todas suas tropas e ao governo do estado de Michoacán. Pede anistia para os intervencionistas e, na esfera política, fica derrotado por José María Iglesias na candidatura para a vice-presidencia. Atua como magistrado da Suprema Corte de Justiça entre 1868 e 1870.

Em 1874 publica os jornais satíricos O ahuizote, O Constitucional e O Radical, nos quais critica o trabalho do governo de Sebastián Lerdo de Tejada.

Apoia Porfirio Díaz no plano de Tuxtepec e é recompensado com o ministério de Fomento em dois primeiros períodos de governo de Díaz e com Juan N. Méndez. Resgata as ruínas de Palenque, estabelece o Observatório Astronomico Nacional e termina de construir o Passeio da Reforma.

Em 1883 é detido pelo governo e levado à prisão de Santiago por ir contra o governo de Manuel González, presidente de México. Na prisão escreve grande parte do segundo tomo de sua obra "México através dos séculos".

Em 1885, depois da publicação de seu livro Os Zeros, dá-se a perda de seu prestígio pessoal e desaparecem as aspirações presidenciais que tinha, fica desterrado "honoravelmente" por Porfirio Díaz e nomeia-se-lhe ministro de México em Espanha e Portugal.

Morre em Madri em 22 de novembro de 1896 e repatríam seus restos em 1936.

Carreira literária

Jornalista de sucesso com uma assinalada e pessoal atitude crítica e satírica; marcada em periódicos como A Orquestra e O Ahuizote. Riva Palácio participa como um ativo literato mexicano nos tempos entre guerras.

O gênero que mais o sorri sempre em popularidade é a novela. Realiza a maioria de sua obra novelesca entre 1868 e 1870. Teve à sua disposição a maioria dos arquivos da Santa Inquisição, o que lhe brinda uma grandíssima quantidade de informação que plasma em suas novelas. Só uma de suas novelas, (Calvario e Tambor), é de toque militar, o resto delas se localizam na época colonial.

Junto com Juan A. Mateos co-escrevee zarzuelas e sketches teatrais satirizando a política mexicana. Em 1870, junto com Juan A. Mateos, Rafael Martinez da Torre e Manuel Payno publica O livro vermelho, um breviario da violência dentro da história nacional.

Junto com Juan de Deus Peza narra lendas em verso sobre Tradições e lendas mexicanas (1917) e criam para a imaginaria poetisa romântica Rosa Espino para publicar Flores da alma (1875).

Dirige a obra México através dos séculos, trabalho enciclopédico, encarregando-se ele mesmo do segundo tomo, dedicado a Colônia.

Em sua obra Os Zeros critica e polemiza a classe política mexicana, o que o identifica como uma personagem virulento para o regime porfirista.

O conto "A Máquina de Coser" inclui-se no livro Contos do Geral (que aparece postumamente em Madri no ano de sua morte), uma coleção de vinte e seis relatos que apresentam características comuns: brevidade no título, a ação e a descrição das personagens.

Obras

Teatro
O tirano doméstico (1861)
Uma tormenta e um íris (1861)
O incêndio do portal (1861)
A lei do um por cento (1861)
Borrascas de um sobretudo (1861)
Ódio hereditario (1861)
As liras irmãs (1861)
A politicomanía (1862)
A filha do cantero (1862)
Temporário e eterno (1862)
Martín o demente (1862)
A Catarata de Niagara (1862)
Nadar e na orla afogar (1862)
Um drama anônimo (1862)
A polícia caseira (1862)

Novelas
Freira , casada, virgem e mártir (1868, reeditada em 1986)
Martín Garatuza (1868)
Calvario e Tabor (1868)
As duas emparelhadas (1869)
Os piratas do golfo (1869)
A volta dos mortos (1870)
Memórias de um impostor, dom Guillén Lombardo , rei de México (Origem do Zorro e ancestral de Diego Da Vega) (1872)
Um segredo que mata (1917)

Ensaio
História da administração de dom Sebastián Lerdo de Tejada (1875)
História da guerra de intervenção em Michoacán (1896)
México através dos séculos, tomo 2 História da dominação espanhola em México desde 1521 a 1808 (1884-1889)
Os Zeros, Galería de Contemporâneos (1882)

Contos
Contos de um louco (1874)
Contos do geral (1896)

Poesia
Flores da alma (1875, sob o pseudônimo de Rosa Espino
Meus versos (1893)
Páginas em verso (1885)

Fonte:
http://pt.wikilingue.com/es/Vicente_Riva_Pal%C3%A1cio

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Trova 162 - Therezinha Dieguez Brisolla (São Paulo/SP)

Apollo Taborda França (As Quatro Raças)


Modelando à sua imagem,
Deus soprou, todo carinho...
No acalanto dessa aragem,
Surgem RAÇAS no cadinho.

Fez do barro o grande elo,
Constituindo a humanidade...
Homem branco, amarelo,
Preto, vermelho: acuidade.

Deu início à povoação
Desta terra, ao confim....
Juntou Eva com Adão,
Nas delícias de um jardim.

E cresceu tudo em beleza,
Colorido e muito amor...
Completou-se a natureza,
Aplaudindo o Criador!

HOMEM BRANCO

Talhado pra dominar,
Surge o BRANCO, criativo...
Assumiu bem seu leu lugar,
Disse: - Sou substantivo!

Ninguém sabe a certa origem,
Muito hábil, audacioso....
Num assomo de vertigem,
Se deslumbra em áureo gozo.

Elegante, aventureiro,
Estendeu-se mundo afora...
Fez da Europa o paradeiro,
Onde se plantou na aurora.

Tem estirpe requintada,
Vencedor da incerteza...
Faz do Cosmo a nova estrada,
Consagra sua grandeza!

HOMEM AMARELO

O AMARELO das estepes,
Da Mongólia milenar...
Envolvido em suaves crepes,
É de casta singular.

Homem reto, aprimorado,
De índole contemplativa...
Tem costume delicado,
Que surpreende e que cativa.

Oriental, tem olho oblíquo,
Traz as gamas do mistério...
É humilde, mas conspícuo
E domina um hemisfério.

Ritualista, espiritual,
Não se entrega na voragem...
É poder no mundo atual,
Sua mística a coragem!

HOMEM NEGRO

Homem NEGRO vem, desfila,
Em perene vibração...
E se amolda qual argila,
Na busca de afirmação.

Sempre grande no esporte,
Sonha com áureo troféu...
Hoje no mundo, suporte,
Já não é o grande réu.

Amoroso e sensível,
Só lhe trai a tez escura...
Faz-se nobre no possível,
Se aprofunda na cultura.

Pelo dom se fez artista,
É humano a não poder...
Se consagra “africanista”,
No atavismo do seu ser!

HOMEM VERMELHO

AMERÍNDIO destemido,
Povoador de vastidões...
Tem as nuances de um brasido,
Como a lava dos vulcões.

Viveu bem no solo pátrio,
Terras ricas de esplendor...
Sucumbiu depois seu átrio,
Sanha do conquistador.

Já livrou-se do extermínio,
Do fuzil e da chibata...
Recupera o seu domínio,
Seu direito está em Ata.

Sobranceiro, dia-a-dia,
Busca os louros da vitória...
Temperou a rebeldia,
Liberdade dá-lhe a glória!

Fonte:
FRANÇA, Apollo Taborda. O nosso mundo colorido. Curitiba: O Formigueiro, 1986.

Bernardo Sá Barreto Pimentel Trancoso (Voar)


Antes que Thor, Mercúrio e mais distantes
Deuses do povo grego, antigamente -
Que nem Dédalo e Ícaro -, em rasantes,
Voassem, triunfantes, entre a gente.

Antes que Santos desse vôos brilhantes,
E dois irmãos roubassem-lhe a patente
Do primeiro avião... Antes, bem antes,
Voava um coração, de tão contente.

Entre imaginações ele subia;
Em passos, saltos, vôos, em quedas rasas,
Voando sobre o céu de tantas casas

Que, vindo o super-homem, logo via:
Seu dom do vôo nem era primazia;
O amor já conferia aos homens asas.

Fonte:
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/trancoso.htm