quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Folclore, Superstição, Lendas e Histórias (Aves do Brasil: Beija-Flor)


Coacyaba - O primeiro beija-flor

Os índios do Amazonas acreditam que as almas dos mortos transformam-se em borboletas. É por esse motivo que elas voam de flor em flor, alimentando-se e fortalecendo-se com o mais puro néctar, para suportarem a longa viagem até o céu.

Coaciaba, uma bondosa índia, ficara víuva muito cedo, passando a viver exclusivamente para fazer feliz a sua filhinha Guanambi. Todos os dias passeava com a menina pelas campinas de flores, entre pássaros e borboletas. Dessa forma pretendia aliviar a falta que o esposo lhe fazia. Mesmo assim, angustiada, acabou por falecer.

Guanambi ficou só e seu único consolo era visitar o túmulo da mãe, implorando que esta também a levasse para o céu. De tanta tristeza e solidão, a criança foi enfraquecendo cada vez mais e também morreu. Entretanto sua alma não se tornou borboleta, ficando aprisionada dentro de uma flor próximo à sepultura da mãe, para assim permanecer do seu lado.

Enquanto isso, Coaciaba, em forma de borboleta, voava entre as flores, colhendo o seu néctar. Ao aproximar-se da flor onde estava Guanambi, ouviu um choro triste, que logo reconheceu. Mas, como frágil borboleta, não teria forças para libertar a filhinha. Pediu então ao deus Tupã que fizesse dela um pássaro veloz e ágil, que pudesse levar a filha para o céu. Tupã atendeu ao seu pedido, transformando-a num beija-flor, podendo assim, realizar o seu desejo.

Desde então, quando morre uma criança índia órfã de mãe, sua alma permanece guardada dentro de uma flor, esperando que a mãe, em forma de beija-flor, venha buscá-la, para juntas voarem para o céu, onde estarão eternamente.
O beija-flor

Um casal que tinha uma filha muito linda, trazia-a escondida, com medo que algum rapaz a roubasse.

Certa vez, uma escrava que foi à fonte buscar água, viu um beija-flor cantando bonito assim:

Esperança, esperança
Hum-hum
Tá… tá… tá-lê-lê
Sentada no cazumba
Helena Pereira,
Hum-hum

A negra deixou-se ficar, encantada. Como demorasse, a mãe da moça mandou outra negra, que também lá ficou. Depois outra e mais outra. Afinal, todos os escravos que foram, ficaram presos pelo encanto do pássaro. Por fim, a própria mãe da moça foi e ficou. Restava a moça, que não vendo ninguém voltar, foi à fonte, mas o beija-flor, logo que a viu, voou para ela, agarrou-a e despareceram juntos.

Fontes:
ANDRADE E SILVA, Waldemar de. Lendas e mitos dos índios brasileiros. São Paulo, FTD, 1997. Disponível em Jangada Brasil.

Machado de Assis (Um Homem Célebre)


— AH! o SENHOR é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: — Desculpe meu modo, mas. .. é mesmo o senhor?

Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, Rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.

— Diga, minha senhora.
— É que nos toque agora aquela sua polca Não Bula Comigo, Nhonhô.

Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda, tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.

Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que, alegando dor de cabeça, pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.

Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou, depois que dobrou a esquina da Rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarineta. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na Rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa, viu vir dois homens: um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.

Em casa, respirou. Casa velha. escada velha. um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear.

— Não quero nada, bradou o Pestana: faça-me café e vá dormir.

Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d'alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doudo por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, cousa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.

Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns, gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.

Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça, depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.

Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia, pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia: ele corria ao piano para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão: a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os dedos correrem, à ventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart: mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça: mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.

Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.

— Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha. porque as distrações do senhor eram freqüentes.
— A bengala.
— Mas parece que hoje chove.
— Chove, repetiu Pestana maquinalmente.
— Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.

Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:

— Espera aí.

Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma cousa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.

Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar: mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.

— Vai fazer grande efeito.

Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um título poético, escolheu este: Pingos de Sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, ou por alusão a algum sucesso do dia, — ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A Lei de 28 de Setembro, ou Candongas Não Fazem Festa.

— Mas que quer dizer Candongas Não Fazem Festa? perguntou o autor.
— Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca, mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.

Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora Dona, Guarde o Seu Balaio.

— E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a Rua do Aterrado.

Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma cousa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil...

— As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se.

Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar.

— Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia.
— Vai casar com uma viúva.
— Velha?
— Vinte e sete anos.
— Bonita?
— Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na última festa de S. Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica.

Os escrivães não deviam ter espírito, — mau espírito, quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo, artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas.

Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias.

Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; cousa difícil porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos.

— Acaba, disse Maria, não é Chopin?

Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de S. Cristóvão.

— Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas. . . Viva a polca!

Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doudo. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a vocação. . . Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.

Poucos dias depois, — uma clara e fresca manhã de maio de 1876, — eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado.

Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama... Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas-da-colônia e de Labarraque , saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.

Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Requiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer cousa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.

Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação, e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Requiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta. não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Requiem não estava concluído. Redobrou de esforços, esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco... A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.

Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos, foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Requiem.

"Para quê?" dizia ele a si mesmo.

Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.

— Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?
— Nada.
— Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato: vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.

Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato.

— Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do Imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder, vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à Eleição Direta! Não é política; é um bom título de ocasião.

Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de cousas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.

Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo, acerca de suas composições a diferença é que eram menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio.

Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarineta de teatro , referiu-lhe o estado do Pestana , de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era, o editor obedeceu.

— Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.
— Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.

Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarineta foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.

— Adeus.
— Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.

Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.

Fontes:
ASSIS, Machado de. Várias Histórias. Ed. Martin Claret
Imagem = www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/homem.gif

Machado de Assis (Análise dos Contos de “Várias Histórias”: 4. Um Homem Célebre)


Análise realizada pelo Prof. Bartolomeu Amâncio da Silva. Bacharel em Letras, pela USP, professor de literatura da rede Objetivo (colégios e cursos pré-vestibular).
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Tipicamente machadiano, Um Homem Célebre, conto publicado, primeiramente, no periódico "A Estação", em 1883, e, posteriormente, no livro Várias Histórias, em 1896, aborda o tema da incompatibilidade entre os ideais e a realidade, constituindo, uma quase parábola, a parábola da existência humana.

Nele, Machado de Assis mais uma vez não se atém somente ao aspecto historicista do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX, invadido que foi pela música, ouvida nas ruas, advinda das casas, onde havia saraus, ou mesmo assobiada por transeuntes que passeavam nelas.

É a história da frustração de um compositor de polcas cujo maior desejo era criar obras clássicas. Conto repleto de humor, mostra a cruel ironia do destino, que persegue o pobre Pestana com as composições efêmeras de gosto popular, imediatamente "consagradas pelo assobio". Morre "bem com os homens e mal consigo mesmo".

A temática básica desse conto é a oposição entre vocação e ambição. Sua personagem principal, Pestana, é um famoso compositor de polcas, um estilo bastante popular de música, conhecido e louvado por todos que o cercam, mas ele vive um dilema pessoal: odeia suas composições e toda a popularidade que elas lhe proporcionam. Seu grande sonho é produzir música erudita no nível dos grandes mestres, como Chopin, Mozart, Haydn, é “compor uma peça erudita de alta qualidade, uma sonata, uma missa, como as que admira em Beethoven ou Mozart”. A busca pela perfeição estética marca a trajetória do famoso músico, que vê todas as alternativas lhe serem negadas no decorrer da vida: “Aspira ao ato completo, à obra total”. No entanto, eram as polcas, sempre as polcas, que lhe vinham à cabeça durante os momentos de composição:

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventurá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão, a idéia esvaía-se (...) Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano (...) De repente (...) Compunha só teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene. Em pouco tempo estava a polca feita. (ASSIS, 1997, p. 23)

O protagonista do conto é apresentado tal como se encontra intimamente: ”vexado e aborrecido”. Já no início da obra, depara-se com um Pestana incomodado e descontente com a popularidade que existe em torno de suas composições. Quando solicitado para que tocasse uma de suas polcas na comemoração do aniversário da viúva Camargo, percebe a sintonia entre sua música e os convidados, apesar de tê-la publicado apenas vinte dias antes. Frente ao ocorrido, qualquer compositor se sentiria realizado. Pestana, entretanto, abandona o recinto alegando estar com dor de cabeça e fica mais angustiado ainda quando ouve, nas ruas, uma de suas polcas sendo assobiadas. Segundo J. C. Garbuglio, existe uma distinção muito grande entre o pretendido e o alcançado na vida do compositor: nem mesmo as aclamações por parte da população facilitam e diminuem a dificuldade que há no caminho para se ir do anseio à realização, que é o “local” em que se encontra o músico no conto Um Homem Célebre.

Diante de tal situação, Pestana sente-se diminuído em suas produções, pois não quer compor apenas para as massas, quer ser portador de um modelo que simbolize e represente algo mais elaborado e elevado, que o transporte para além do seu momento, e não, simplesmente, o consagre na plenitude de sua existência. Essa plenitude efêmera representa pouco para o compositor. Sua ambição é a eternidade.

O desencontro é o que permeia a vida do protagonista Pestana. Esse problema é fundamental na formulação e interpretação do homem machadiano. ‘Malentendido original’, ou portador de tal atribuição, ele ganha estatuto centralizador da vida social e individual e se transforma em guia e desgoverno da criatura, para fazer do homem vítima e joguete de sua tessitura.

O início desse desencontro está na busca da satisfação pessoal, no desejo humano de realizar algo e nas interferências e dificuldades que aparecem diante dessa vontade, frustrando sua realização: há um impasse entre o anseio pessoal e a expressão do que se consegue ou se tenta conseguir. Pesta, o célebre compositor de polcas, vive triste e macambúzio; tem o poder criador e o domínio da língua, mas quer algo mais. Suas polcas não o conduzem ao encontro da satisfação plena, pois, para ele, representam algo inferior, que está apenas ligado ao sucesso. Pestana quer compor música erudita, uma forma superior de arte, que o leve à imortalidade. Sem os clássicos, há falta de glória; há, portanto, uma vida diretamente ligada à tristeza. “Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?” (ASSIS, 1997, p. 23)

Esses desencontros são contradições: contradição entre o parecer e o ser, entre a máscara e o desejo, entre o que é público e a vida interior. E o protagonista de Um Homem Célebre vive, mesmo, envolto em contradições: é um famoso compositor de polcas, mas quer compor música erudita, assim como os “santos” que cultua: Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Shumann etc; deseja a glória com a produção de algo superior, mas sobrevive das suas polcas; é uma celebridade entre seus compatriotas, mas vive frustrado perante a sua falta de capacidade para a tão desejada glória e imortalidade.

Tamanha é a obstinação do músico para alcançar sua ambição, que chega até a se casar com uma cantora lírica tísica, Maria, crendo que, convivendo com ela, finalmente teria a fatídica inspiração. Mas sua vocação mais uma vez é colocada em segundo plano quando se casa:

O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventura de petimetres. Agora sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas. (ASSIS, 1997, p. 25)

Contudo, ainda que sob o efeito de tal estratégia, mais uma vez sua investida ao tão sonhado mundo erudito cai por terra, pois, nem após a morte de sua esposa, quando se propõe a compor um Réquiem para executar no seu primeiro aniversário de morte, consegue realizar seu intento. Talvez, Pestana não pudesse (ou simplesmente não quisesse) desistir; o que se sabe, apenas, é que as lágrimas caídas de seus olhos durante o ocorrido se confundiam entre a dor do marido e a infertilidade do compositor.

E é assim que o personagem principal do conto se encontra durante toda a narrativa: confuso, frustrado e triste. Seu dilema entre ser brasileiro e produzir de acordo com as condições sociais internas ou usar uma imagem já fabricada (e consagrada) pela arte européia coloca-o diante de uma glória efêmera, não idealizada por ele, distanciando-o do reconhecimento eterno que, segundo o músico, só seria alcançado se compusesse seguindo os padrões dos compositores clássicos por ele admirados.

E, em meio a toda essa desilusão, aparece ainda o editor, importante peça do conto, que traz consigo uma carga muito pesada, que é transposta para Pestana: é ele quem decide os títulos das polcas, serve-se do produto totalmente, e controla o sistema, indicando sobre o que e quando o músico deve compor. Suas escolhas rendem-se às convenções: seu objetivo é a venda fácil, por isso age de forma a regular o mercado, levando Pestana a produzir discorrendo sobre os temas que ele, o editor, acredita serem de interesse da população.

Nesse sentido, a realização inatingível das composições idealizadas por Pestana dá lugar, como eixo central do conto, à postura do editor, figura que detém o poder sobre as produções.

Em Um Homem Célebre, Machado adota um viés que nos leva para uma sucessão de fatos que expõem alguns problemas: os da arte, os do artista e os da sociedade em que este e aquela estão inseridos. Mais que um problema situado entre a realização e o desejo, Pestana enfrenta uma delicada relação entre produção, público e valorização.

Para não chegar a essa condição marginal, nosso protagonista vive em meio a sua ambição, a sua vocação, a seu editor e a seus compatriotas, rendendo-se, em seus últimos momentos, a uma força maior que o atormenta durante toda sua existência: produzir aquilo que parece ser sua vocação e, ainda, de acordo com as determinações de seu editor. Assim, o narrador de Machado, nessa que pode ser considerada uma das mais complexas obras do autor, encerra a apresentação da vida de Pestana, fazendo questão de deixar clara a situação na qual o compositor deixa o mundo: “bem com os homens e mal consigo mesmo” (ASSIS, 1997, p. 27), destacando o fim do longo percurso percorrido entre o que o compositor era e o que (inutilmente) destinou toda sua vida a ser.

O drama de Pestana mostra-nos a impotência espiritual de um homem que, do mais profundo do seu ser, clama pela redenção, que não é alcançada. O sucesso irrealizável de glória culmina com o fracasso íntimo do compositor que, diante dos entraves sociais explicitados no conto, na pessoa do editor, vê sua música sendo levada para o que é comum, para o que é das massas. A polca é simples, e simplicidade é justamente o que Pestana não quer. Sua vocação é algo que o incomoda e que o frustra, pois sua ambição sempre falou mais alto e o tocou mais profundamente. Polca é o que é popular e representa o sucesso; um sucesso transitório para o artista, que resulta em uma vida de tristeza e totalmente desprovida de glória, de uma glória que, segundo o protagonista, só seria alcançada com a sua inserção no mundo dos clássicos, da música erudita.

Há uma crítica que ainda é atual: o mercado está mais interessado em obras de qualidade fácil, que satisfazem de forma imediata e rasteira o gosto do público. Sintomático disso é o fato de o editor já ter títulos prontos para obras que ainda nem existem, aproveitando-se de fatos do momento, da moda. Além disso, há um conflito interessante entre o efêmero (polca) e o eterno (música erudita), que pode ser também visto como entre o baixo e o sublime.

Foco narrativo

Ao analisar a obra, pode-se facilmente observar que é narrada com uma visão por trás, na qual o narrador, que não toma parte na história, possui um conhecimento amplo e irrestrito sobre todos os fatos, descrevendo não só o que é visível, como também os pensamentos das personagens e fatos que irão acontecer posteriormente ao que é apresentado na narrativa. Como exemplo da caracterização desse narrador, pode-se separar o seguinte trecho do texto:

...pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, Rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos setenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. (ASSIS, 1988, p. 63)

No entanto, apesar de se notar que, ao longo do conto, predomina a expressão de um narrador onisciente, pode-se observar também que, em determinados momentos, esse narrador oculta o seu conhecimento, simulando uma exposição restrita, que apresenta apenas o que é visível. Para isso, joga com o foco da narração, passando a apresentar e descrever fatos e demais personagens através das palavras e pensamentos de uma personagem específica. Cabe esclarecer, no entanto, que, apesar de parecer não ser mais o narrador que conta, tal recurso, na verdade, é apenas um artifício com o qual o narrador onisciente aparenta uma focalização interna, ou uma “visão com”, com objetivo de aproximar um pouco mais a história de quem a lê. Em Um Homem Célebre, Sinhazinha Mota é a personagem mais utilizada pelo narrador para essa “falsa” mudança de foco, valendo-se do seu olhar e das suas palavras para descrever Pestana e sua futura esposa em diversos trechos.

- Ah! o senhor é que é o Pestana? Perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor? (ASSIS, 1988, p. 63)

- Casar com quem? Perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia. - Vai casar com uma viúva. - Velha? - Vinte e sete anos. - Bonita? - Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela porque a ouviu cantar na última festa de São Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica. (ASSIS, 1988, p.72)

Mesmo oculto, o narrador onisciente ainda está ali, valendo-se das personagens para exercer o ato de narrar. O resultado primeiro dessa técnica é o dinamismo que a leitura do conto adquire. E, nesse sentido, o uso do discurso indireto livre mostra-se a forma mais eficaz de aproximação, inserindo, diretamente nas palavras do narrador, frases ou pensamentos de alguma personagem, como acontece no exemplo a seguir, no qual o sujeito que narra introduz, no meio do seu discurso, pensamentos da Sinhazinha Mota: “Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor”. (ASSIS, 1988, p. 67)

Quando se observam as formas de apresentação e tratamento, pode-se perceber que o narrador se vale tanto de cenas quanto de sumários em seu processo narrativo, por vezes mostrando o que está acontecendo, por vezes contando de maneira bastante acelerada, resumindo e ocultando diversos acontecimentos: “Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo” (Assis, 1988, p. 64). “Releu e estudou o Requiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar” (ASSIS, 1988, p.75).

Ação / Temporalidade

Os dados temporais, que são diversos ao longo de todo o texto, permitem identificar claramente quando se passam as ações: durante o Segundo Império brasileiro, entre os anos de 1871 e 1885, mais precisamente, entre a publicação da primeira polca de Pestana e o falecimento da personagem. Além disso, é possível também caracterizar a narrativa como posterior, ou seja, feita depois de os fatos terem ocorrido, como se percebe pelo uso dos tempos verbais no pretérito: “Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele” (ASSIS, 1988, p. 63).

No entanto, a quebra da ordem cronológica na narrativa é uma das características mais marcantes do estilo machadiano, recurso que pode ser percebido facilmente em diversas obras do autor, entre elas, o conto analisado aqui. Nele, os fatos não são narrados na sua seqüência lógica. Em vez de iniciar a narrativa apresentando o “início da carreira” de compositor de Pestana, com a publicação da sua primeira polca, o narrador abre o conto já na época em que o músico experimenta um grande sucesso, com várias músicas publicadas e muito bem aceitas pelo gosto popular. Primeiro é apresentado o protagonista, sua intrigante rejeição diante do sucesso popular e a angústia que vive por não conseguir compor nenhuma peça musical à altura dos grandes compositores clássicos: “Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo”. (ASSIS, 1988, p. 64)

A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais? (ASSIS, 1988, p. 67)

Apenas depois de introduzir a perturbação, o problema a ser resolvido, é que o narrador revela o passado do protagonista, os acontecimentos anteriores que desencadearam e elucidam a situação apresentada no início do conto, apresentação essa feita através de uma analepse: “Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um título poético, escolheu este: Pingos de Sol”. (ASSIS, 1988, p. 69)

A anacronia identificada nesse trecho tem um alcance determinado, retrocedendo de um fato acontecido em 1875 para um evento ocorrido em 1871. Apesar de concentrar sua narração na publicação da primeira polca de Pestana, a amplitude dessa figura de anacronia abrange quatro anos, chegando, através de um sumário, ao ano de 1875: “e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante”. (ASSIS, 1988, p. 70)

Mas a analepse não é o único recurso de alteração de ordem temporal de que se vale o narrador de Um Homem Célebre. Além dessa figura de anacronia, a obra também apresenta uma prolepse, de alcance curto, aproximadamente dois meses, e com uma amplitude também restrita, limitada ao fato da morte da “boa e patusca viúva” apresentada pelo narrador: “Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos setenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876”. (ASSIS, 1988, p. 63)

Como foi dito anteriormente, além da ordem de apresentação dos acontecimentos, outro ponto de contraste entre o tempo da história e o tempo do discurso diz respeito à duração, ao ritmo da narrativa. A própria palavra “ritmo” deixa clara a associação existente entre a condução temporal na narrativa e o tempo musical, uma proximidade que faz com que, nesta obra de Machado, mais do que um simples recurso narrativo, o tratamento temporal ganhe significação, permitindo que o discurso, o modo de narrar, esteja extremamente ligado ao tema. O narrador desenvolve o ritmo do texto de uma maneira “musical”, conduzindo lentamente a narração de um período de alguns dias em contraponto com a narração sumária de fatos transcorridos no intervalo de quase dez anos. Percebe-se uma diferenciação no tratamento temporal, nitidamente marcada no conto, visto que o narrador concentra o uso de alongamentos e pausas descritivas na primeira parte do texto. É interessante observar, no uso desses recursos, a sobreposição do tempo psicológico em relação ao tempo real.

Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana (ASSIS, 1988, p. 65-66)

Por outro lado, a partir da metade do texto, nota-se uma quantidade significativamente maior de sumários e elipses. Podendo parecer irrelevantes à primeira vista, as diversas marcações temporais que o narrador distribui pelo texto exercem um papel fundamental para esse jogo de aceleração e retardamento do discurso. É apenas através delas que se pode perceber os saltos de tempo que, por exemplo, fazem passar quatro horas em uma única frase, ou mesmo meses entre um parágrafo e outro: “Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir” (ASSIS, 1988, p. 68), “Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar” (ASSIS, 1988, p. 75) e “Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor” (ASSIS, 1988, p. 76).

Se, por um lado, percebem-se momentos de aceleração e retardamento na narrativa, é possível notar também que, em diversos trechos, o narrador se vale do recurso da cena para tentar aproximar ao máximo o tempo da história ao da narração, seja através da descrição direta de ações das personagens, seja através da apresentação de diálogos: “Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata” (ASSIS, 1988, p. 66).

- Lá se vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito? - Nada. - Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato: vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, pode renovar. (ASSIS, 1988, p. 76)

Além da ordem dos acontecimentos e da duração do tempo na narrativa, a freqüência também é um artifício bastante empregado nesta obra de Machado de Assis, em especial para demonstrar o processo, geralmente angustiante, pelo qual passava o protagonista todas as vezes que compunha suas polcas.

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os dedos correrem, à ventura, a ver se as fantasias brotavam deles. (ASSIS, 1988, p. 67-68)

Neste conto observa-se igualmente a importância que o tratamento temporal assume. Observa-se a semelhança que se estabelece entre a reiterada narração das tentativas de Pestana em compor peças clássicas e as repetições de motivos musicais ou leitmotivs. Ressalta-se a forma como Machado conduz, paralelamente à trama principal, ações secundárias que se contrapõem àquela, funcionando como linhas melódicas que têm a função de interromper a condução do motivo central da peça musical. São exemplos dessas rupturas as ações de Sinhazinha Mota e do editor musical de Pestana, apresentadas ao longo do texto para quebrar o ritmo do discurso narrativo.

Por fim, é interessante apontar que, além de estar relacionado intimamente com o tema da obra, no que se refere à forma como é conduzido, o tempo, especificamente o histórico, também desempenha um papel importante na narrativa. Nela, o sucesso das polcas de Pestana está, na visão de seu editor, intimamente relacionado à menção que fazem dos acontecimentos do momento. Sendo assim, para cair no gosto popular, os títulos não precisariam ter qualquer relação com as peças, mas sim fazer referência a algum fato político.

- Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta o Imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à Eleição Direta! Não é Política; é um bom título de ocasião. (ASSIS, 1988, p. 76)

A ressonância da espacialidade

Para compor o espaço onde se desenrolam as ações de Um Homem Célebre, o narrador se vale tanto de elementos que podem ser apontados como motivos associados, indispensáveis para a história em si, quanto de objetos que podem ser vistos como motivos livres, que têm influência sobre a forma como é contada e percebida a história. Entre estes últimos, que podem ser chamados também de caracterizadores, o texto apresenta seus dois tipos: heterólogo e homólogo. Como motivo heterólogo, ou seja, aquele que contradiz uma determinada situação ou traço da personagem, pode-se apontar a apresentação da casa de Pestana, um lugar cujas características fogem da imagem corriqueira de um compositor de sucesso, como Pestana: “Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear” (ASSIS, 1988, p. 65).

É interessante observar, no entanto, que, na medida em que esses motivos caracterizadores se mostram heterólogos quanto à imagem que via de regra se constrói de um compositor de sucesso, ao serem analisados como caracterizadores da figura singular de Pestana e, nesse caso, defrontados com outras características de sua personalidade, passam a ser homólogos da caracterização da personagem.

Por outro lado, como exemplo de motivos caracterizadores homólogos, pode-se tomar a descrição do trajeto feito por Pestana quando se dirige aos trilhos do trem para suicidar-se. A caracterização do ambiente pelo qual ele passa, que apresenta um “velho matadouro”, não tem qualquer relevância para a história, mas é fundamental para o discurso, uma vez que reforça o estado de espírito da personagem naquele momento: “E ele ia andando, alucinado, mortificado [...] Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve a idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse” (ASSIS, 1988, p. 74).

Ainda entre os motivos livres, pode-se apontar os objetos presentes no ambiente no qual a personagem compõe suas peças musicais. Entre os elementos desse espaço, carregados de grande significação, destacam-se os quadros de diversos compositores clássicos pendurados na parede. Mais do que simples elementos decorativos, essas imagens reforçam a caracterização da angústia vivida pelo protagonista ao tentar, sempre em vão, compor algo à altura dos gênios retratados, figuras que o cobram e o inspiram ao mesmo tempo. Sem exercer uma influência direta sobre a seqüência das ações da personagem, elas ajudam a criar a imagem de homem ao mesmo tempo pressionado pelo desejo de ser alguém comparável aos gênios emoldurados na parede e frustrado pelo fato de não conseguir criar uma peça do nível das obras de tais compositores.

Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven. (ASSIS, 1988, p. 66)

E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada ente Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. (ASSIS, 1988, p. 71)

Quanto aos motivos associados, composicionais no que se refere à sua função narrativa, pode-se citar o piano da sala de música, ao mesmo tempo instrumento indispensável para Pestana concretizar seu sonho de compor uma peça clássica e objeto sem o qual o protagonista não alcançaria a glória, ou tormento, de ser um reconhecido compositor de polcas populares.

Por fim, cabe apontar também o interessante uso, por parte do narrador, do recurso da motivação falsa, personalizado, no conto, na figura da Sinhazinha Mota. Sua presença, introduzida já nas primeiras linhas do texto, leva a supor uma participação mais intensa no desenrolar dos fatos, talvez até um envolvimento direto com o próprio protagonista, expectativas, no entanto, que são frustradas ao final da narrativa.

A ambientação é muito mais do que a caracterização dos lugares onde se dão as ações. Ela desempenha um papel de significação dos mais importantes no processo narrativo, seja descrevendo ambientes cuja caracterização desempenha uma função primordial no discurso, confirmando ou contrariando a expectativa de um determinado evento, ação e característica da personagem, seja trazendo elementos cuja presença age diretamente sobre suas ações, ou, ainda, aproximando o leitor daquilo que está sendo narrado, valendo-se, para isso, do jogo das diferentes maneiras de apresentar o espaço. Através da análise de Um Homem Célebre foi possível identificar todos esses elementos que envolvem o processo de ambientação narrativa. E, por mérito das habilidades do narrador machadiano, pode-se levantar todos os efeitos que fazem da espacialidade uma peça tão importante na construção de uma grande obra literária.

Considerações Finais

Ao se estudar, em Um Homem Célebre, a focalização, o tempo e o espaço, três importantes componentes do discurso narrativo, muito mais do que identificar os elementos desses processos, pode-se levantar sua importância na narrativa, ou seja, o efeito que as escolhas feitas pelo narrador, sobre esse três aspectos, surtiram no leitor.

Em primeiro lugar, tratando da focalização onisciente do narrador, percebe-se claramente que, em conseqüência dessa visão, o leitor mantém-se a uma distância dos fatos narrados. No entanto, se, por um lado, a leitura é marcada por esse afastamento, por outro, o narrador, habilmente, introduz uma dinâmica ao texto através do uso de discursos diretos e, muitas vezes, disfarçando o seu olhar sob a ótica de algumas das personagens.

A forma como é tratada a questão da temporalidade também traz conseqüências para a leitura da obra. A principal delas, como foi já apresentado, diz respeito à forte relação que se estabelece entre a condução do tempo da narrativa e o próprio tema desta. Mas, além disso, percebe-se também que as escolhas feitas pelo narrador quanto às ordens temporais trazem efeitos sobre aquele que lê, induzindo-o a um envolvimento maior com os fatos narrados. As alterações seqüenciais acabam por instigar o leitor a tentar decifrar, por exemplo, por que o sucesso de suas polcas perturba tanto o protagonista.

Além disso, percebe-se, afinal, que também o espaço desempenha um importante papel nessa aproximação da narrativa. Ao mudar, em alguns trechos, a forma de apresentação do ambiente de franca para reflexiva, o narrador diminui o distanciamento do leitor. De forma semelhante, buscando uma participação deste com a construção de sentidos, o narrador carrega os elementos espaciais de significações, significações essas que só são apreendidas e organizadas no contexto ao longo da leitura.

Analisando esses três aspectos da construção de uma narrativa, percebe-se que, seja na aproximação do foco, seja no ritmo temporal ou na significação dos elementos espaciais, em cada uma dessas escolhas, mais do que uma preocupação com o discurso, Machado teve o objetivo de fazer desse discurso um eco do tema proposto. Debruçando-se sobre o conto, nota-se com clareza o desejo do autor de transformar em música a história de um frustrado compositor de polcas. Perfeccionista como era, Machado soube usar todos os recursos narrativos para encontrar a forma perfeita e criar uma obra-prima. É o sonho angustiante da personagem, realizado com maestria por seu criador.

Machado de Assis, neste conto, traçou a marca do tempo, mas levou o leitor, por outro lado, para muito além da História social, problematizando-a através da divisão do personagem Pestana entre a música popular e a erudita. Com isso não se está considerando no conto somente a interioridade do personagem, mas também a exterioridade, na História que se apresenta com a máscara da tranqüilidade, apenas aparente. Dessa maneira são os “eus” do personagem que revelam o tempo tecido de várias tensões. Sob o presente passa um “mar em fúria” que expõe a complexidade do tempo carregado de outros tempos. Assim temos o juízo de valor da crítica consagrada que eleva as obras canônicas ao altar da fama e do sucesso, modelos do passado que devem ser seguidos e imitados pelos que almejam se tornarem célebres estrelas da arte. Obras sagradas que imprensam Pestana, sempre desejoso de escrever “uma que fosse daquelas páginas imortais”. Por esta razão, o músico persegue noite e dia, dia e noite, com trabalho incessante, a composição de um Noturno ou de um Réquiem, tornando-se duplamente frustrado pelas impossibilidades de realizar tais criações. Pestana fica, dessa maneira, por fatores determinados pela Crítica, atrelado a um ideal que lhe vem do exterior, que lhe dita o que sejam “obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas” (ASSIS, 1998, p. 373) e o que sejam as “aventuras de petimetres” (ASSIS, 1998, p.373).

Fontes:
Adriana Giarola Ferraz Figueiredo, Mestre - UEL
Rafael Guimarães, bacharel em Comunicação Social - UFRGS, aluno do curso de Especialização em Literatura Brasileira - Unisinos
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Continua… análise do conto “A Desejada das Gentes”
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Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/v/varias_historias

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.107)


Uma Trova Nacional

Falta grave que dói fundo
e é por tantos repetida:
Trazer uma vida ao mundo
e não cuidar dessa vida!
(PEDRO ORNELLAS/SP)

Uma Trova Potiguar

As flores que me ofereces
perfumando os nossos dias,
são meu rosário de preces,
meu buquê de fantasias.
(GONZAGA DA SILVA/RN)

Uma Trova Premiada

2009 > Bandeirantes/PR
Tema > DEVANEIO > Vencedora

Devaneio é uma promessa
que a vida, às vezes, nos faz,
mas que o destino, sem pressa,
cobrando caro, desfaz!
(RODOLPHO ABUBUD/RJ)

Simplesmente Poesia

– Olympio Coutinho/MG –
IDEAIS

Na imensa solidão desta saudade,
em que me debruço e penso tristemente,
conforta-me saber que, estando ausente,
em ti, meu grande amor, estou presente.
Não importa nosso amor ser impossível
e que juntos não possamos ficar mais,
muito mais belo é o bem inatingível
e é mais lindo sonhar com os ideais.

Uma Trova de Ademar

Quando você foi embora
vi nascer dentro do mim,
um sentimento que chora
numa penúria sem fim!
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Nada fala neste Mundo
tanto bem de nossas vidas,
como o silêncio profundo
de duas bocas unidas...
(LUIZ OTÁVIO/RJ)

Estrofe do Dia

Pular de árvore na areia,
Fazer furna de ameixa,
Ao receber uma queixa
Não fazer nem cara feia;
Respeitar quem nos rodeia,
Procurar ser cidadão,
Tomar benção a um ancião
Eram ordens dos meus pais;
Tudo isso e muito mais
Eu aprendi no sertão.
(DAMIÃO METAMORFOSE/RN)

Soneto do Dia

– Thereza Costa Val/MG –
DOCE ENVOLVIMENTO

Faz tanto tempo que da vez primeira
com ela me encontrei... e me envolvi!
Daí por diante, foi minha parceira
e sempre mais com ela convivi.

Tornou-se, em meu viver, a companheira
e só com ela a vida eu entendi.
Muita emoção sincera e verdadeira,
por entendê-la, afirmo que senti.

Quando os meus dias tornam-se enfadonhos,
ou quando sofro mágoas e incertezas,
com seu alento as penas me alivia.

Ela me abriu os olhos para os sonhos,
fez-me sentir ternuras e belezas,
a minha amada... a eterna POESIA!

Fonte:
Ademar Macedo

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Folclore, Superstição, Lendas e Histórias (Aves do Brasil: Acauã)


Introdução

Dos enfeites dos trajes indígenas às lendas sobre a origem do mundo, as aves estão presentes em todos os aspectos do folclore e etnografia. O uirapuru é a ave que causou a loucura de um jovem índio, por ter escolhido outra jovem como companheira, porém é considerado um talismã que traz boa sorte. Os tangarás são os filhos de Chico Santos que de tão apaixonados pelas danças e fandangos, não respeitaram os dias da Semana Santa, e foram condenados pelo Criador a dançar pela eternidade. O beija-flor é a mãe que busca a alma da filhinha morta, guardada dentro de uma flor. O japim é o pássaro mimético, e por esse motivo ganhou a antipatia das outras aves e o consequënte isolamento. O imaginário popular é rico em histórias para explicar a cor de suas plumagens, seus hábitos, suas características, suas personalidades diversas, seu canto, ora melodioso e encantador, repleto de bons presságios, ora agourento e enlouquecedor.

Acauã

Em 1862, eu passava por Serpa, vindo de Manaus. Essa cidade do Alto Amazonas, situada na margem esquerda do rio colossal, foi fundada mais ou menos nos meados do século XVIII. Na época em que lá estive a cidade conservava ainda seu nome português de Serpa; hoje retomou seu nome indígena: é chamada Itaquatiara, isto é, pedra pintada. Esse nome lhe foi dado por causa de um grupo de rochedos existentes nas suas proximidades, sobre os quais estão escritos hieróglifos, atribuídos aos primitivos habitantes da região. Todos os navios que sobem o Amazonas com destino a Manaus, mesmo os vapores vindos da Europa, fazem escala hoje, em Itaquatiara, destinada a se transformar em centro comercial de primeira ordem, graças à sua situação privilegiada: a cidade, com efeito, está situada em frente à embocadura do rio Negro.

Em 1862, um pequeno vaso de guerra para ali havia transportado o sábio e venrável bispo do Pará, monsenhor Macedo, apóstolo bem-amado dessas regiões, que ele procura dotar, atualmente, com uma basílica flutuante da qual toda a imprensa européia se ocupou há algum tempo. Eu fazia parte da comitiva do ilustre prelado.

Durante sua visita pastoral, chamaram-lhe a atenção para os feitos de um pajé, que estava, no momento, preparando-se para realizar uma cura.

Fui vê-lo e tenho ainda na memória, como se tivesse ocorrido ontem, a cena que presenciei.

Em local um pouco distante da aldeia erguia-se uma casa de aspecto pobre, mais propriamente uma choupana. As paredes e o teto eram feitos de folhas de palmeira, da mesma forma que a porta. A casa dividia-se em duas contruções independentes: na frente uma choupana com duas peças, , tendo uma varanda com beiral; atrás, uma cabana inteiramente aberta, que servia de cozinha.

De fora ouviam-se gritos espaçados, repetidos a intervalos regulares: Acauã! Acauã! As três sílabas destacavam-se lentamente: A-cau-ã!

Espiei pela porta levantando as folhas de palmeira entrançadas: o único mobiliário era, na peça principal, três redes grosseiras de tucum, algumas esteiras sobre o solo negro, de terra batida, e cerca de meia dúzia de banquinhos côncavos, bancos típicos do país, aos quais se dá o nome de bancos dos uaupés, e que imitam a forma de um jabuti deitado sobre a carapaça. Possuo, em Paris, numerosos desses banquinhos.

Duas das redes estavam ocupadas por jovens índias. Eram elas que gritavam: Acauã! Eram elas, as pobrezinhas, que tinham visto o Acauã!

O Acauã (Falcão Cachinans) é um pássaro do tamanho de uma galinha comum. Os índios afirmam que ele se alimenta exclusivamente de serpentes. Quando vê uma, lança o seu grito sonoro e prolongado: Acauã! (É daí que lhe vem o seu nome). Logo surge outro Acauã, respondendo ao seu chamado. Os dois lançam-se sobre a serpente: um ataca de um lado; o outro do outro lado. A serpente ergue-se sobre a cauda para mordê-los. Tempo perdido! Os acauãs servem-se de suas asas como de um escudo para aparar os botes da serpente. A luta prolonga-se por muito tempo. Ao fim, a serpente tomba esgotada, por maior que seja, e os acauãs a devoram.

Mas não fica aí o papel do acauã. Seu grito prolongado aterroriza a imaginação dos tapuias. Infeliz daquele que o ouve! Pouco a pouco enlanguece e definha. Vêm depois terríveis convulsões. A vítima cai por terra, rasgando com as unhas o próprio peito repetindo, de tempos em tempos, a palavra fatídica: Acauã! Acauã!

O mais estranho, no entanto, é que a doença passa de uma mulher à outra. Basta que uma tapuia tenha ouvido o acauã para contagiar todas as suas vizinhas.

Eu tinha diante dos olhos um exemplo do inexplicável contágio.

Uma das jovens fora atingida pelo mal misterioso. Logo depois, sua irmã começou a sofrer do mesmo mal, e conta-se que, na vizinhança, outras índias, vindas para visitá-las, começaram a apresentar sintomas do mal.

Eu continuava a olhar as duas redes. As índias agitavam-se dentro delas, como se arrepios percorressem seus corpos e, de quando em quando, uma delas lançava agudo grito: Acauã! Acauã!

A escuridão era completa. Nem um só lampião: a aldeia não os possuia. Quando saíam à noite, as pessoas transportavam tochas feitas de gravetos.

De repente, percebi uma sombra que se aproximava. Escondi-me. A sombra estava mais próxima. Deu a volta à casa entoando um canto lúgubre e monótono, com voz rouca e de falsete. Eu não podia entender as palavras, mas este canto parecia embalar as duas doentes, cujos gritos tornavam-se menos estridentes.

Era o pajé!

Ele penetrou na choupana entoando, com voz mais acalentadora, o mesmo canto. As jovens não se levantaram; pareciam mesmo não se terem apercebido da presença de um estranho, não terem ouvido o seu canto.

O pajé dirigiu-se, sucessivamente, às duas redes. Já não cantava. Mumurava alguma oração misteriosa, enquanto fumava um enorme charuto, cuja fumaça lhe servia para incensar as duas tapuias, uma de cada vez.

Elas, também, já não gritavam: de quando em quando um tremor agitava os seus membros, e, como em agonia, elas murmuravam: Acauã! Acauã!

Muitos anos se passaram desde então. O acauã continua a causar danos entre as jovens índias. Todos os dias ouve-se falar de qualquer tapuia atingida pelo mal terrível e, por vezes, o contágio se estende a toda uma aldeiazinha: frescas jovens são tranformadaas em horríveis megeras, macilentas, olhos fundos, presa de convulsões, repetindo o grito: Acauã! Acauã!

Fonte:
F. J. de Santana Néri. 'Folk-lore Brésilien'. Paris, Librairie Académique Didier, 1889, p. 168-173, In MELO, Anísio. Histórias e lendas da amazônia. Disponível em Jangada Brasil.

Machado de Assis (Uns Braços)


INÁCIO ESTREMECEU, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco.

— Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco!

— Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos. Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos.. . Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura!

D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges espeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens.

Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870.

Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado.

Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.

Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.

Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira, comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes. Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil cousas que não interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não o descompunha e ele podia devanear à larga.

Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dous, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegra as imaginações católicas, mas com o austero S. Pedro era demais. A única defesa do moço Inácio é que ele não via nem um nem outro; passava os olhos por ali como por nada. Via só os braços de D. Severina, — ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com eles impressos na memória.

— Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador.

Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma cousa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o Borges, andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde jantava e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada.

"Deixe estar, — pensou ele um dia — fujo daqui e não volto mais."

Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de fora toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços.

Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma cousa Rejeitou a idéia logo, uma criança! Mas há idéias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim.

— Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa.

— Não tenho nada.

— Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos . . .

E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que não, que era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde o Natal; por que não iriam lá uma daquelas noites? Borges redargüia que andava cansado, trabalhava como um negro, não estava para visitas de parola, e descompôs a comadre, descompôs o compadre, descompôs o afilhado, que não ia ao colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez anos, já sabia ler, escrever e contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito fim: — vadio, e o covado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo.

D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais. A noite caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da rua, que acabavam de acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa fronteira. Borges, cansado do dia, pois era realmente um trabalhador de primeira ordem, foi fechando os olhos e pegando no sono, e deixou-a só na sala, às escuras, consigo e com a descoberta que acaba de fazer.

Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral que ela só conheceu pelos efeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não havia mais que suposição, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a idéia de estar enganada. Daí a pouco, (capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das cousas.

Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D. Severina compreendeu que não havia recear nenhum desacato, e concluiu que o melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e outro à pobre criança. Já se persuadia bem que ele era criança, e assentou de o tratar tão secamente como até ali, ou ainda mais. E assim fez; Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.

— Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias.

Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavam-lhe um parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida que levava, e essa oração intercalada trazia uma idéia original e profunda, inventada pelo céu unicamente para ele. Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca mais; eis aqui como e porquê.

D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, cousa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria.

A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lha não trouxesse à memória. Ao entrar no corredor da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande, quando dava com ela no topo da escada, olhando através das grades de pau da cancela, como tendo acudido a ver quem era.

Um domingo, — nunca ele esqueceu esse domingo, — estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d'água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal.

Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. Era ela mesma, eram os seus mesmos braços.

É certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sair da parede, dado que houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca; levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois caminhou até à porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra vez cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser até que estivesse muito mal.

Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com ele na rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude.

D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou. Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com ela. Desde madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante dos olhos como uma tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou, olhou dous, três, cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à adolescência de Inácio uma expressão mais acentuada, quase feminina, quase pueril. "Uma criança!" disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco. E esta idéia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos.

"Uma criança!"

E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito que acordado, e uma dessas idéias corrigia ou corrompia a outra. De repente estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta do engomado; foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor que a abalara tanto, não o fez sequer mudar de posição. E ela continuou a vê-lo dormir, — dormir e talvez sonhar.

Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas cálidas, principalmente novas, — ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca.

Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na idéia de que era uma criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o. Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deu-lhe um calefrio.

Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só acordou para jantar. Sentou-se à mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina calada e severa e o solicitador tão ríspido como nos outros dias, nem a rispidez de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não reparou que D. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços; reparou depois, na segunda-feira, e na terça-feira, também, e até sábado, que foi o dia em que Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez zangado, porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída:

— Quando precisar de mim para alguma cousa, procure-me.

— Sim, senhor. A Sra. D. Severina. . .

— Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois despedir-se dela.

Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente. . . Tanto pensou que acabou supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera, não era outra cousa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria os braços tão bonitos... Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana:

E foi um sonho! um simples sonho!

Fontes:
ASSIS, Machado de. Várias Histórias. Ed. Martin Claret
Imagem = www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/bracos.gif

Machado de Assis (Análise dos Contos de “Várias Histórias”: 3. Uns Braços)


Análise realizada pelo Prof. Bartolomeu Amâncio da Silva. Bacharel em Letras, pela USP, professor de literatura da rede Objetivo (colégios e cursos pré-vestibular).
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Inserido no volume que constitui as Várias Histórias, o conto Uns braços foi recebido pela crítica contemporânea a Machado de Assis muito elogiosamente.

Machado não emprega nunca tintas fortes e cruas; jamais lança mão de notas extremas nem chega às vias de fato, o que podemos comprovar com a leitura de Uns braços, onde dona Severina beija o rapaz, e este permanece dormindo; não acorda para surpreendê-la, seja positiva ou negativamente. Potencialmente, resta sempre uma dúvida, uma incerteza, uma sensação de desconforto provocada pela não resolução das questões no texto machadiano.

É a história de Inácio, jovem de 15 anos que vai trabalhar como ajudante do ríspido solicitador (funcionário do Judiciário, algo entre procurador e advogado) Borges, morando na casa deste. É lá que acaba se encantando com os braços de D. Severina, companheira do seu patrão. Deve-se lembrar que na época em que se passa a história, 1870, não era comum uma mulher exibir tal parte do corpo. Mas, antes que se pense que ela era despudorada, deve-se lembrar que só o fazia por passar por certas dificuldades que tornava o seu vestuário falto de peças mais adequadas. Ainda assim, os breves momentos em que via a mulher e principalmente os braços dela eram, para Inácio, o grande alívio diante de um cotidiano tão massacrante. Até que um dia D. Severina percebe o interesse que desperta no moço. Demora a aceitar, pois considera-o apenas uma criança. Mas, quando vê o homem já na forma do menino, entra num sentimento conflitante, misto de vaidade e pudor. Por isso oscila entre tratar mal o rapaz e mostrar preocupação com o seu bem-estar. Até que num domingo ocorre a cena mais importante da história. D. Severina encontra Inácio dormindo na rede. Dá-lhe um leve beijo na boca. A senhora não sabe que naquele exato instante o garoto sonhava com o beijo dela e ele não sabe que era beijado realmente enquanto estava mergulhado na fantasia do seu sono. Pouco tempo depois, Borges dispensa o garoto de forma admiravelmente amistosa. O menino não vê mais D. Severina, guardando a sensação daquela tarde como algo que não ia ser superado em nenhum relacionamento de sua existência.

Note que nesse conto Machado mostra o dom que possui para narrativas memorialistas. Veja também o seu início abrupto, sendo o leitor jogado de chofre no meio da história (técnica chamada de in media res). Repare, por fim, que a temática da descoberta do amor só vai perder em delicadeza e brilho para outro conto do autor, “Missa do Galo”, que infelizmente não faz parte dessa coletânea.

Segundo Roberto Acízelo de Souza, a posição subalterna ocupada pelas mulheres na sociedade brasileira oitocentista constitui noção que integra o saber do senso comum, mesmo porque se trata de um estado de coisas que se conservou no essencial até pelo menos os anos 50 do século XX.

A personagem feminina do conto ocupa papel semelhante ao descrito acima. Porém, dona Severina, na tentativa de recusa a esta clausura, não se conforma com esta posição, permitindo que, através de ações ambíguas e movimentos contraditórios que comentaremos posteriormente, revele-se a vontade de ser desejada por um outro homem e, por sua vez, a de desejá-lo também. Trata-se de um quadro de adultério pintado com suaves tintas por Machado de Assis, cuidadoso que é na estruturação de suas histórias, nunca ferindo as vistas dos leitores.

A contradição e a ambigüidade em Machado de Assis estão presentes, inicialmente, nos recursos lingüisticos e estilísticos adotados, ou seja, na forma que utiliza para expressar seu conteúdo. Então, de saída, percebemos a linguagem por ele usada possibilitando e incentivando movimentos contraditórios e ambivalentes dentro de sua narrativa.

O conto contêm vazios, que constituem a condição básica para o processo de comunicação. Isso porque eles se encontram intimamente relacionados à provocação do texto, para que o leitor reflita sobre os conflitos não solucionados. Tais vazios, variam de acordo com as interpretações dos leitores, ou, em outros termos, variam segundo as respostas que formulamos diante da experiência estética.

Em Uns Braços tem-se o personagem de Inácio, que está hospedado na casa do solicitador Borges, para quem trabalha de agente. Isso ocorre por ordens de seu pai, a quem a idéia de que Inácio se tornasse procurador parecia muito lucrativa. O menino apaixona-se por D. Severina, esposa de Borges.

Logo no início do conto tem-se os primeiros sinais dessa paixão, já que o mocinho é repreendido por Borges por andar tão distraído, confundindo papéis e errando casas. Logo em seguida, o narrador faz a seguinte observação acerca de Inácio: “Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada”. Essa frase já aponta para o próprio final do conto, e poderia mesmo ser repetida, em se tratando de um adiantamento de expectativas, já que é exatamente o que ocorre: Inácio sonha com Severina, adivinha que está por perto, indaga-se, e acaba não sabendo de nada, nem do interesse correspondido, nem da fusão do sonho com a realidade. Imediatamente após, temos certeza do interesse de Inácio pela senhora, já que o narrador confessa:

Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.

Durante as refeições, Inácio procura ao máximo prolongar sua permanência na mesa para poder continuar na presença de D. Severina:

Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa.

Severina, por sua vez, trazia sempre os braços nus à mesa, podendo-se tratar de uma provocação, ainda que inconsciente, mesmo se já gastara todos os vestidos de manga comprida que possuía. Ao apontar a diferença de idade entre Severina e Inácio, Machado é elegante e delicado; prefere a sugestão em vez da obviedade. Primeiro anuncia a idade do menino: “Tinha quinze anos feitos e bem feitos”, para mais a frente deixar-nos à par da idade da senhora: “Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos”. Assim como no conto “Missa do galo”, a sexualidade de um rapaz bem novo é despertada por uma mulher mais velha e casada. O leitor em sociedade, ou leitor real, como pensou Iser, sofre efeitos históricos produzidos pelo texto através da descrição de costumes e de padrões sociais, tudo isso experimentado pelo leitor durante o processo de recepção textual.

O sentimento de Inácio era “confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma coisa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor”. Nesta passagem, Machado descreve exatamente o sentimento da paixão, que é por si só algo contraditório, dúbio e perturbador. Trata-se, aqui, do despertar sexual do rapaz que implica diversas impossibilidades: Severina não só é mais velha como casada, e ambos estão inseridos na sociedade oitocentista, impregnada de valores morais e sociais muito rígidos.

Machado também trata a questão do tempo como uma abstração, tal como faz em outras obras suas, como nas "Memórias Póstumas", mais especificamente no capítulo “O delírio”. Sim, o tempo é uma abstração, e não importa o que passou, mas o que vem. O tempo também pode curar tudo e fazer com que mudemos de idéia, mesmo as que parecem fixas, definitivas e trágicas, como no conto “Noite de Almirante”, quando Deolindo promete suicidar-se e não o faz. Em Uns braços, Inácio promete um dia fugir daquela casa, e também não consegue fazê-lo:

- Deixe estar, - pensou ele um dia - fujo daqui e não volto mais.
Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos.

Inácio, porém, não é o único a ter comportamentos contraditórios. Severina, principal figura do conto, adota uma postura essencialmente ambígua, contraditória e misteriosa, como muitas personagens femininas criadas por Machado de Assis, diga-se de passagem. Os personagens de Machado de Assis são geralmente caracteres indecisos, hesitantes, atormentados pela moléstia da dúvida; incoerentes? contraditórios? de acordo; mas verdadeiros por isso mesmo.

Na seguinte passagem do conto tem-se um exemplo deste tipo de comportamento por parte da mulher machadiana:

D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa. Rejeitou a idéia logo, uma criança! [...] Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi rejeitada, antes afagada e beijada.

Primeiro, a personagem rejeita a idéia de que o rapaz estivesse mesmo demonstrando interesse, certamente num azo de obediência aos padrões sociais da época, para logo depois descartar essa rejeição, afinal, ela não podia ser amada ou desejada? D. Severina começa a procurar justificativas para a atitude do rapaz, por querer, justamente, se sentir mais viva, e consequentemente, menos submissa.

Magalhães de Azeredo faz uma observação muito pertinente em se tratando das figuras femininas de Machado de Assis, e que se aplica muito bem a D. Severina, cujo nome já aponta para certa perversidade e conseqüente sedução, ou, conforme o próprio nome, severidade mesmo:

As mulheres, evocadas por Machado de Assis - para quem o eterno feminino é um vasto elemento moral -, têm de ordinário uma soberania de beleza, de sedução, de resistência ou mesmo de virtude, que lhe confere a vitória na luta com o sexo rival. Perversa, em rigor, não vejo nenhuma; perturbadoras há muitas, e de penosa decifração.

D. Severina, visivelmente perturbada com a presença de Inácio em sua casa, passa também a devanear e a assumir um comportamento semelhante ao do rapaz. Na passagem seguinte, a atitude do solicitador pode ser uma simples repressão, mas pode ser também que estivesse desconfiando de algum interesse por parte de sua mulher e de seu escrevente. Trata-se de um vazio que o texto cria e que o leitor deve resolver sozinho, porque a narrativa machadiana não se compromete em resolver os conflitos que ela mesma cria:

- Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa.
- Não tenho nada.
- Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos...

A sujeição feminina encontra-se também manifesta na passagem em que Severina teme acariciar seu próprio marido por medo de irritá-lo ainda mais: “fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais”. Porém, como quem se indigna com essa submissão, Severina tem atitudes mais que ousadas para uma senhora casada inserida na sociedade brasileira oitocentista. Como achasse por bem observar o rapaz Inácio antes de tomar uma atitude inapropriada e precipitada, aceitou estrategicamente que tudo fora apenas ilusão, e “percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo.”

Machado, através de seu texto, consegue transportar o leitor de qualquer época para dentro do seu conto, fazendo com que haja uma real comunicação entre texto e leitor, que, por sua vez, consegue se inserir de tal modo na própria narrativa que passa a vivenciar as mesmas experiências dos personagens, como se de fato estivesse fazendo parte daquele contexto, daquele exato momento histórico em que se insurge a narrativa.

Numa atitude tipicamente confusa, Severina conclui que se tratava de uma criança e que não havia o que temer. A partir disso, assume um comportamento essencialmente perturbador, indeciso e incoerente.

Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.

Por fim, na conclusão do conto, tem-se a fusão do sonho com a realidade. Inácio está dormindo em sua rede, e sonha com Severina encarando-lhe de frente, pegando-lhe nas mãos, cruzando-as nos braços, e dando-lhe um beijo na boca. Este exato momento do sonho coincide com a realidade, pois que Severina de fato beija a boca do rapaz para de imediato sair do quarto, assustada, confusa e arrependida com sua atitude. E não somente por vergonha, mas como forma de punir a si mesma por tamanha ousadia, Severina passa a cobrir os braços à mesa, mas também como punição ao próprio rapaz, a quem ela atribui uma parcela de culpa. A princípio Inácio não percebe que o famoso par de braços não mais está à vista, tão embriago pela sensação do beijo. Ao final, o rapaz deve ir embora da casa do comendador, mas não consegue se despedir de Severina, que inventa uma forte dor de cabeça. O mocinho jamais saberia que não foi um mero sonho, muito embora nunca tenha achado sensação igual à daquele domingo.

Machado de Assis incita o leitor a criar um significado próprio para a obra, de acordo com sua leitura pessoal, levando sempre em consideração as questões extrateóricas, realmente manifestas, ou seja, seu campo pragmático. As perspectivas textuais orientam as linhas de leitura, e não podemos atribuir a elas uma escala hierárquica de valor. Uma perspectiva sozinha não produz o significado do texto, pois tal significado é o resultado da convergência das diferentes perspectivas que se cruzam num específico ponto de encontro (meeting point), e que só é determinável pelo ponto de vista do leitor. O significado do texto não está dentro dele, nem fora; é um efeito a ser experimentado, não mais um objeto que se define. É, portanto, resultado da compreensão do leitor.
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Continua… análise do conto “Um Homem Célebre”
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Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/v/varias_historias