sábado, 7 de abril de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 529)


Uma Trova de Ademar

A folha que cai no outono,
sem mágoas e sem lamentos,
dorme, e desperta do sono
dançando a valsa dos ventos.
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


Vendo uma panela ao lume
é bom sinal que há fervura,
e tendo a rima no cume
dá uma trova segura.
–ROSA SILVA/AZ.PRT–

Uma Trova Potiguar


Já se passou tanto tempo,
mas, pra mim, nada passou...
Sinto o teu cheiro com o vento
que o ingrato tempo levou.
–MARA MELINNI/RN–

Uma Trova Premiada


2009 - Niterói/RJ
Tema - PRÊMIO - Venc.


Meu prêmio dentro da vida
foi fazer, na minha história,
de toda ilusão perdida
sempre mais uma vitória!...
–LARISSA LORETTI/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram


A consciência, tirana
que não perdoa ninguém,
é a corte mais desumana
das cortes que o mundo tem.
–ELTON CARVALHO/RJ–

Simplesmente Poesia

I n t r o s p e c ç ã o
–JOÃO ALFREDO/RN–


Quero Viver
a paz íntima dos meus versos.
Sorrir,
como se libertasse o pássaro preso.
Sussurrar frases
num acalanto ao espírito,
embora o sopro morno das palavras
se fragmentem no espaço.

Estrofe do Dia

Sertão, meu lindo universo
onde há ternura e magia,
ganha as cores mais formosas
quando o sol reflete o dia
e a gota d'água de orvalho
desce em forma de poesia!
–EVA YANNI GARCIA/RN–

Soneto do Dia

Alegria no Infinito
–LUIZ ANTONIO CARDOSO/SP–


"A Lucilene Murdiga"

No colo de seu pai, soprando a vela,
no bolo de fubá (feito de amor)...
podia faltar tudo na panela,
mas tudo tinha ao braço protetor!

E gesto assim, tão nobre, nos revela,
em simples atitudes, um valor:
a vida, mesmo sendo a mais singela,
pode ser recheada de dulçor.

Hoje o professor mora no infinito...
e venho aqui falar – e nem hesito:
orgulha-se da filha que deixou...

pois vê uma mulher com coração
tão belo, com imensa proporção...
olha o belo jardim que cultivou!

Altino Caixeta de Castro/MG (Poesias Avulsas)


A ANTIMEMÓRIA

O capim de cinábrio cresce nos
pântanos de metal. Os cavalos comem
os candelabros de prata do poeta
Bueno de Rivera. O galo de Aghone
em Lautrèamont parte com o bico em
dois galos de Pirapora, crista de
azinhavre. Um poeta aprende copta
para captar um poema. A morte passa
a limpo os últimos palimpsestos.

PORQUE VIM

Não vim para cantar.
Se cheguei tarde
não vim para cantar.
Cheguei tarde porque deixei na estrada sem lua
a minha boca torturada sem rumo e sem canção.

Não vim para dizer.
Se cheguei tarde
não vim para dizer.
Cheguei tarde porque tudo está falado.

Não vim para chorar.
Porque a lágrima ficou estúpida
na pálpebra doirada.

Também não vim para sorrir.
Porque o sorriso ficou nos beiços dos carneirinhos
que minha mãe me deu nos currais de meu pai.

Também não vim para sofrer.
Inútil indagar porque cheguei.
Eu vim, apenas, para ser chegado.

SONETO DO ESTRANHO

Para Borges, Foucault, Drummond e outro

A geometria de Euclides me ampara,
mas a de Einstein é que me põe perplexo:
me exibo em versos côncavos-convexos,
minha rosa de rima é curva e clara.

A cicatriz da mágoa tem reflexos
ou se propõe na angústia que não pára.
A flor do lodo, flor do asfalto enfara
se a lésbica mulher mudar de sexo.

O que não muda é o homem (ser estranho)
o ser recente excelso de um rebanho
que ainda em hordas ríspidas resiste.

A minha rosa é côncava-convexa,
agora o que não sei nesta conversa
é o que Einstein e Euclides tem com isto.

Da COROA DE SONETOS PARA UMA CABRA

XIII

As luzes de meu ser e de meu nada,
Truísmo e tropo que não quero e topo,
A própria cabra é sombra no meu corpo,
Coisa que berra e bale misturada.

Coisa assim, penso e existo, como um sopro
Ardendo-me na pele suspirada
Conhece-te a ti mesmo, camarada,
Sem fim, sem meio e fim, sem meio escopo.

Ninguém sabia do a priori dela,
Só se sabia da braveza bela,
Do jeito de ser livre, e era tudo.

Por isso agora piso neste estrume,
Levo pra casa o lúrido volume
Feito de couro para meu estudo.

ROSA DE ISOPOR

Verifico
(em suma):
a indústria do Lirismo
é de consumo
conspícuo.

Do poema Fabricado
sem aporias
Isoporema
emana
a Fragrância
Flor.

A experiência
do aprendizado poético
(em alto nível)
Mestrado de Mímese
é uma experiência para o Consumidor:
Experiência Lyrica
de uma Rosa

LUANA

A Mário Garcia de Paiva, autor de Luana

a lua na janela de Luana
bate tranqüila, não me assusta, pois
Luana é a lua apenas da alvorada
ou é a alvorada a lua de nós dois?

estou cheio de estrelas lualãs,
“belimbelezas” de quem ama ou brilha.
das seis da tarde às sete das manhãs
um galo verde inaugura Brasília.

Luana canta? arranha o céu seu canto.
sírius, lá em cima, gane ganas de gente.
joãozinho enche de aurora a morte má.

ivanildo candango, paulo some
apenas eu, me resto, (amor ou fome)
lua-luando no paranoá.

EXALTAÇÃO DA FORMA

“Ainda é o canto que canta na garganta
A única recompensa pra quem canta”.
GONZAGA


Na palinódia de meu sonho acesa,
trago o esplendor da forma que retrato.
Se ainda canto e em prélios me debato,
é para erguer-me ao culto da beleza.

Praxíteles da forma, eu me arrebato
entre visões sonoras, com certeza.
Que veja o metro de seu verso exato
na cadência da língua portuguesa.

Acastelado assim, não se abacina
meu poetar e a musa me ilumina
o campo para a luta e para o ataque.

Fídias do verso, a estátua que cinzelo
suporta o peso deste amor ao Belo,
que fez um dia a glória de Bilac.

Fonte:
Antonio Miranda

Altino Caixeta de Castro (1916-1995)


Nasceu em Patos de Minas (MG), no dia 04 de agosto de 1916, e ali faleceu em 28 de junho de 1995. Conhecido, literariamente, como Leão de Formosa. Mudou-se para Brasília em 1970. Diplomado em Farmácia e em Bioquímica. Pertenceu a Academia Mineira de Letras.

Filho de Leão Theotonio de Castro e Júlia Fernandes Caixeta. Casado com Alfa Amorim de Castro em 30 de maio de 1952 com quem teve os filhos Ronaldo, Rosangela e Rossele.

As primeiras letras na Fazenda Campo da Onça. Curso ginasial no “Ginásio D. Lustosa”, em Patrocínio. Diplomou-se Farmacêutico Bioquímico pela Escola de Odontologia e Farmácia da Universidade de Minas Gerais. Tendo sido o Orador da turma. Redator de “O Ideal”, jornalzinho do ginásio onde publicou os seus primeiros poemas parnasianos simbolistas, já com a marca de seu lirismo persistente.

Em Patos de Minas colocou em varias fases seus versos no “Jornal dos Municípios”, depois na “Folha Diocesana” e no “Correio de Patos”. Poemas publicados na “Antologia Luso-Brasileira” de Wagner Ribeiro. Aluno de Gramática Histórica do acadêmico e poeta Dr. Cândido Martins de Oliveira. Latim com Padre Lambert. Português com José Fonte-Bôa, camonista. Exerceu o comercio de drogas, mas, à feição do farmacêutico Carlos Drummond de Andrade, ficou sempre mais drogado pela leitura. De formação acadêmica, antiacadêmico.

Sem livros publicados, entrou para uma Academia e para um Grêmio de Trovadores, sem convicção. Sempre se orgulhou de seu ineditismo, com convicção. Daí, a sua temática da vigília da escritura. Bem mais tarde seria enredado pela poética de vanguarda onde o Poema Práxis se lhe afigura de melhor acesso. Conviveu bem com todos os “processos” de penetrar o “pathos” do poema.

Publicou 03 (três) livros e possui 02 (dois) novos livros para serem publicados, além de dezenas de novos livros inéditos, entre criticas, poemas, prosas poéticas e sonetos. Foi farmacêutico bioquímico formado pela UFMG.

Buscou no nome de seu pai e no nome da cidade onde nasceu para criar seu pseudônimo Leão de Formosa.

Iniciou seu trabalho artístico aos 13 anos de idade, quando então começou a escrever seus versos. Seus primeiros poemas parnasianos foram publicados no Jornal Ideal. Pertenceu a Academia Municipalista de Letras e a Academia Mineira de Letras.

Seus livros publicados foram Cidadela da Rosa Com Fissão da Flor (Antologia Poética) editado em 1980 pela Horizonte Editora Ltda- Brasília. Diário da Rosa Errância e Prosoemas- 1989 e em 2004 após sua morte foi lançado pela Editora o 7 Letras; o livro Sementes de Sol, o qual o autor deixou totalmente acabado em vida numa edição especial a Impressa Oficial de Minas Gerais.

Editou um Suplemento Literário em 18 de maio de 1991, dedicado ao Poeta Altino Caixeta de Castro “O Leão de Formosa”. O Galo de Pirapora, era sem sombra de duvida, o poema que Leão de Formosa mais gostava.

Poeta em todas as escolas, a todo momento estava inspirado para redigir suas obras.

Não era pretensioso e nem vaidoso, para com suas obras, e a prova disto, que só publicou a sua obra quando estava totalmente pronto, ou seja, já era um poeta maduro.

Andou por todos correntes literárias, não tendo como classifica-lo, em que literária ele poderia se destacar, pois em todas elas poderíamos dizer que ele foi um destaque.

Se sentia e dizia ser o poeta mais inédito do Brasil, pois apesar de possuir inúmeras obras, poucas se encontram publicadas.

A família do poeta Leão de Formosa possui um vasto material e pretende coloca-lo em um acervo cultural para maior visitação pública e conhecer este que foi um dos maiores poetas do Brasil.

O Teatro Municipal de Patos de Minas, recebeu a denominação de AltinoCaixeta de Castro “Leão de Formosa”, como forma de reconhecimento pelos relevantes serviços prestados a cultura.

Faleceu em 28 de junho de 1996 em Patos de Minas.

Bibliografia:
Cidadela da Rosa: com fissão da flor, Horizonte Editora, Brasília, 1980;
Diário da Rosa errância prosoemas, 1989;
Sementes de Sol, editora 7Letras, 2004.

Fonte:
http://www.paragonbrasil.com.br/conteudo.php?item=578

Altino Caixeta de Castro (entrevistado por Maria Esther Maciel)


A história de um poeta é também a de suas perplexidades. E se uso a palavra perplexidades é por pensar nos vários sentidos que ela deflagra, como espanto, assombro, emaranhamento das certezas, dúvida, enredamento, irresolução e sinuosidade de caminhos, todos eles configurando-se como elementos também intrínsecos ao processo de criação poética. Borges externou essa consciência da perplexidade em uma breve conferência que fez sobre “o enigma da poesia”, ao dizer que diante de cada página em branco que encontrava tinha de redescobrir a literatura para si mesmo. Drummond vislumbrou na clareza e na claridade o mesmo enigma. Já Pessoa converteu sua perplexidade em um processo intrincado de ficcionalização do eu e do próprio ato de criação, correspondendo, assim, aos sentidos da palavra latina “perplexio, onis” (perplexão), que apontam, curiosamente, para “fingimento, dissimulação, refolho, dobra.

O poeta mineiro Altino Caixeta de Castro (Patos de Minas, 1916-1996), autor de Cidadela da rosa – confissão da flor (1980), Diário da Rosa Errância e Prosoemas (1989) e Sementes de sol (2004), ao também explorar as inquietudes do poeta perplexo diante de tudo, optou pela palavra espanto, construindo a partir dela toda uma poética. Não por acaso designou o poeta de “pastor do espanto” e forjou a partir dessa imagem sua própria persona poética. Mas não se ateve apenas à dimensão filosófica, existencial, da idéia de espanto – à qual associou todo um referencial ontológico de feição heideggeriana, mas redimensionou-a pela força da imaginação e nela imprimiu um traço lúdico, advindo do sentido de “maravilhamento” que a própria palavra espanto contém. Espantar-se é também maravilhar-se diante de algo. E esse algo para o “pastor” Altino Caixeta é a linguagem e todas as suas potencialidades de jogo. E o que é o maravilhar-se senão o deixar-se seduzir? Na poesia altiniana a sedução do poeta pelas palavras é explícita e se faz ver não apenas na forma como brinca com elas e delas se faz brinquedo, como também no processo de erotização do fazer poético. Uma espécie de libido scribendi perpassa o ato de criação do poeta, seduzido que sempre esteve pela força corporal, tátil, sonora, visual da escritura. Isso se dá a ver de maneira explícita no poema “A palavra ousada”, do livro Cidadela da rosa – com fissão da flor, onde se lê:

que coisa mais misteriosa é a palavra,
principalmente, o substantivo movido
pelo verbo. eu posso dizer: eu moro
nos subúrbios soberbos de uberaba. eu
moro nos subúrbios soberbos de teu
umbigo. eu moro nos subúrbios soberbos
de teus ombros. eu moro nos subúrbios
soberbos dos teus lábios. entretanto,
eu não moro, mas eu ouso dizer: que
coisa mais misteriosa é minha prosa
movida pelo moinho de vento soberbo de
teu verbo.


Altino sabe que as palavras podem deflagrar realidades imprevistas, fingir um mundo que não existe senão apenas dentro delas ou partir delas. Como Pessoa, sua perplexidade se “irresolve” na consciência de que é possível tanto sentir com a imaginação quanto escrever pelos sentidos o que a razão não entende. Mas seu pastoreio é menos o ato de conduzir e/ou vigiar a linguagem – como fazem os pastores de cabras e ovelhas – do que o ato de pastorejá-la, uma vez que o verbo “pastorejar”, relacionado ao pastorear, aponta sobretudo para a ação de fazer a corte, cortejar.

A entrevista que se segue, gravada no início de 1990, na casa do poeta em Patos de Minas, traz em viva voz esse espanto – transfigurado em “maravilhamento” – de Altino Caixeta de Castro diante da poesia. Nela, ele fala de sua descoberta do verso, do pastoreio das cabras e das palavras, da rosa como metáfora do poema, da beleza, da mulher, do artesanato da forma e do “transe” necessário ao fazer da escritura. Com humor e erudição, cita poetas, filósofos e críticos de vários tempos e tradições, declama versos seus e alheios, brinca e se deslumbra com suas próprias perplexidades de poeta. [M.E.M.]

MEM – Como se deu para você a descoberta da poesia?

ACC – Minha história de poeta é muito triste, pois descobri a poesia no pessimismo existencial de Augusto de Anjos. Quando eu era criança, de cabeça raspada e pés descalços, vivendo na fazenda Campo da Onça, decorei, pela primeira vez, um poema que vi em um almanaque. Era aquele soneto de Augusto dos Anjos, que diz assim: “…o homem que é triste/Para todos os séculos existe/ E nunca mais seu pesar se apaga!” Eu tinha entre 7 e 9 anos de idade. Ou melhor, não tinha idade. Creio que daí venham certos ressaibos – filosóficos, talvez – da poesia de Augusto dos Anjos em minha poesia.

MEM – Mas você continua sendo um poeta sem idade, por trazer todos os tempos possíveis (e impossíveis) em sua poesia…

ACC – Uma vez fiz para uma menina um verso de circunstância – isso, antes que o Manuel Bandeira colocasse em voga a idéia do poeta de circunstância – que dizia assim: “Eu não preciso do tempo / porque sou eterno / Necessito apenas / dos mínimos espaços / que demoram / entre mim e seus braços”. Meu destempos, meus dez tempos são minha eternidade provisória.

MEM – Sem dúvida, o signo mais recorrente em sua poesia é a palavra rosa. Como você explicaria esse signo?

ACC – Como dizia Gertrude Stein, uma rosa é uma rosa é uma rosa. É bastante interessante esse poema, porque nele a poetisa toca uma questão da semiologia moderna. Ela antecipa o livro O sistema dos objetos, de Jean Baudrillard. Ela, sem querer, fez uma semiologia do objeto rosa. Aliás, a rosa é o arquétipo da coisa, como diz o Borges. Borges, na verdade, buscou essa imagem em Crátilo, personagem de Platão. Tanto é que tenho um poema em que rimo “rosa” com “coisa”. Uma semi-rima sutilíssima, nunca usada nem pela Cecília Meireles ou pelo Guilherme de Almeida, que era um mestre das semi-rimas.

MEM – A rosa seria, em sua obra, uma metáfora do poema e uma metonímia da prosa?

ACC – Pode ser. Mas quando a rosa me chegou, eu não pensei nisso. Só muitos anos depois é que soube dessa parolagem. Minha mãe plantava rosas em torno de nossa casa. E minha poética é muito ligada à minha mãe. Acho que por causa dela fiquei muito impregnado pelo sentido da rosa. A vida inteira. Mais tarde descobri que a rosa era um símbolo difícil, mesmo para a poética. Descobri, mais teimei no símbolo.

A rosa tem também uma dimensão filosófica, de feição heideggeriana, em seus poemas, apontando para a imagem da “morada do ser”. E mesmo mística, se pensarmos na idéia da mandala que se faz presente no livro Cidadela da Rosa: com fissão da flor.

Isso me lembra um poema que está no livro O diário da rosa errância: “Mandá-la para Vênus./ Mandá-la para Eros./ Mandá-la para Deus./Mandala do mistério.” Mas é verdade, a minha rosa é metafísica. Mas a imagem da “morada” eu debito a Gaston Bachelard, que escreveu aquele livro lindo, A poética do espaço. Coloquei muitas moradas em minha poética, metaforizei várias vezes a morada dentro de meus poemas. E a rosa ficou sendo a morada essencial. Já Heidegger foi o filósofo-poeta que mais influenciou minha concepção da poesia moderna. Para ele, o “poeta é o pastor do ser” e a poesia é “a realização do ser pela palavra”. Isso me chamou muito a atenção. Tanto é que meu primeiro livro ia se chamar Pastor de sonhos – isso, trinta ou quarenta anos atrás.

MEM – E por que você optou pela imagem do “pastor do espanto” para definir o trabalho do poeta?

ACC – É o mesmo pastoreio. Na minha poesia, como eu disse, minha mãe é sempre a presença essencial. Coisa que os críticos em geral não percebem. Aliás, em se tratando de crítica, prefiro aquela que é feita pelos poetas-críticos. Como Eliot e Pound. Eles são melhores do que os outros, pois conseguem surpreender muito mais a poesia dos poetas. Mas como eu estava dizendo, minha mãe tinha, na fazenda, um rebanho de carneiros que eram dela. E meu pastoralismo passou por minha mãe antes de chegar aos meus poemas e antes que eu descobrisse Heidegger e seu pastoreio do ser. Tenho uma “Coroa de sonetos para uma cabra”, ou seja, catorze sonetos sobre a cabra, que não era cabra na verdade, mas uma metáfora. Não sei se você sabe, mas nasci de 7 meses e minha mãe não tinha leite, ainda não estava ainda preparada “galacticamente” (risos). E assim tive que ser amamentado por uma bela cabrita – uma mulher morena-escura, quase negra. Sequei o leite da cabrita. (risos) Aí minha mãe arranjou uma cabra de verdade para mim. Mamei, literalmente, nessa cabra, aos 2 ou 3 anos de idade. Tudo isso ficou impregnado na minha lembrança, no meu sensorialismo: os carneiros de minha mãe, que ela mandava tosquiar para tecer a lã, a cabrita morena que me amamentou quando nasci e a cabra de verdade que veio depois.

MEM – Realmente, as imagens relacionadas a essas reminiscências sensoriais estão muito presentes na sua poética. As cabras, os carneiros, os pastos, o leite, os seios, a boca, o beijo, o ato de mamar são recorrências explícitas. Algo da ordem da oralidade, no sentido psicanalítico do termo, não? Se bem que a oralidade, do ponto de vista lingüístico, também é uma das linhas de força de sua poética.

ACC – Isso está no meu poema “Soneto em limbos”: Mamar na luz que vem das nebulosas,/Dar pojo no mistério das estrelas,/Depois lamber os úberes redondos/ Da ovelha fulva ou ser lambido em limbos. Aí eu já estava “adulterizado” e usei as leituras que eu tinha da psicanálise de Freud. Aliás, não sei se você já reparou, mas esse é um soneto branco, sem rimas. Só tem ressonâncias internas. Como fazem os ingleses. Os poetas ingleses quase não rimam nas pontas. E não rimar nas pontas torna, muitas vezes, o poema mais bonito, pela força das aliterações e sonoridades internas. E por falar em psicanálise, costumo citar com freqüência um fragmento de Lacan – “o inconsciente é o discurso do Outro” – que, de certa forma, influenciou o primeiro poema do Cidadela da Rosa, intitulado “Discurso”. Os críticos costumam elogiar esse poema. Affonso Romano de Sant’Anna, por exemplo, que é um bom poeta e escreveu um livro sobre Drummond, ficou surpreso porque eu dediquei o “Discurso” a Michel Foucault, Roland Barthes e Julia Kristeva. Um caipira do interior de Minas escrevendo uma dedicatória pedante aos grandes nomes da filosofia contemporânea! – ele deve ter pensado. Na verdade, escrevi esse poema em um espaço em branco de um livro de Foucault. Os críticos gostaram, ficaram impressionados.

MEM – O que você pensa sobre esses críticos e filósofos franceses?

ACC – Já li muito da literatura francesa. Sobretudo Sartre, Baudelaire e Camus. Acho inclusive que o pessimismo artificial que tenho, que não é o de Augusto dos Anjos, ao contrário do que pensam, foi muito influenciado pela filosofia de Sartre, mais do que pela obra de Camus. Tenho um poema no livro A cidadela da rosa, mais ou menos inspirado no pessimismo sartreano. Aliás, nessa minha sonetilha houve um erro tipográfico e o verso ficou melhor. Mas não foi o erro de Malherbe. Você sabe qual foi o erro de Malherbe? Minha filha chama-se Roselle. Malherbe, poeta francês do século XVI, escreveu mais ou menos isto: “rosa, ela viveu o que vivem as rosas… o espaço de uma manhã”. Mas o tipógrafo errou na grafia. Ao invés de “Et Rose, elle”, colocou “Et Rosaelle. Ficou mais bonito. Esse foi o nome que dei à minha filha, Roselle. No dia de batizar minha filha, consultei o Grand Larousse e vi que “roselle” era um pássaro canoro existente na França. E minha filha gosta muito do nome. Mas voltando à sua pergunta, fiquei muito deslumbrado com a escritura de Barthes, quando li pela primeira vez o livro Fragmentos de um discurso amoroso. Muito do Diário da rosa errância está ali. Bebi no prazer do texto. Barthes era um poeta, um grande poeta da escritura. Você sabia que ele morreu atropelado porque atravessava a rua distraído, lendo o Cidadela da rosa? (risos). Já o Foucault não era poeta, mas escrevia muito bem. Li As palavras e as coisas umas três vezes quando morava em Brasília.

MEM – Você tem uma habilidade impressionante para lidar com as palavras. Ou melhor, uma volúpia pelas palavras e suas múltiplas possibilidades sonoras, visuais e semânticas…

ACC – Eu tenho e sempre tive uma volúpia pela palavra. Geralmente, ela me seduz primeiro pela sonoridade. O som de uma palavra sempre me leva a outras palavras que me levam a outras pela força dos ecos, das paronomásias, das assonâncias, das ressonâncias. E muitas vezes ou mais de uma vez, uma palavra me desviou da métrica. No meu livro deve ter no máximo uns cinco versos alexandrinos, porque eu sempre me dediquei mais aos decassílabos. E meus decassílabos são – perdoe a modéstia – muito bem feitos, com cesura e tudo mais. Só tenho um verso decassílabo feito para minha mãe que não pude corrigir. É um endecassílabo: Única mulher que quero ver no céu. Tudo por causa da palavra única. Eu poderia ter colocado “Prima mulher”, mas não encaixava. E eu queria mesmo era “única”, não apenas porque era o vocábulo que dizia mais precisamente o que eu queria dizer, mas pela beleza do proparoxítono.

MEM – Você é um poeta que ama a beleza e que faz dela o tema privilegiado de vários poemas. O que é o belo para você?

ACC – O que sempre me encanta na vida e na poesia é a mulher. Nela está a beleza que me sensibiliza. A beleza que me estremece. Veja o “Soneto do Belo”, que dediquei a um amigo meu que é cirurgião plástico em Belo Horizonte e a quem chamei de “o esteta da plástica impossível”, pois ele tenta construir artificialmente a beleza que já existe na mulher. O poema diz assim: Da essência da beleza me alimento, / De seu mistério sempre me estremeço, / como poeta, às vezes, reconheço / que a beleza é maior que o pensamento. Nesse soneto eu roubei um pouquinho de Schiller. Penso que a paródia é grosseira, mas paráfrase é aceitável, é boa. E todos os poetas parafraseiam. Os poetas não criam, nós imitamos no inventado. Quem cria é Deus, que tira do nada.

MEM – É exatamente isso que atravessa aquele seu poema “Por que vim”, no qual você afirma: “Não vim para dizer. Se cheguei tarde / não vim para dizer./ Cheguei tarde porque tudo está falado.” A consciência de que cabe ao poeta inventar no inventado.

ACC – É, e você replicou esse poema em um poema muito bonito que dedicou a mim em seu livro Dos haveres do corpo. Mas eu nunca estive de acordo com você, poetisa. Aliás, prefiro chamar as mulheres de poetisas. Acho machismo chamar uma mulher de poeta….

MEM – Hoje eu talvez não fizesse mais aquela réplica, por entender melhor agora o seu poema… Mas continuemos nossa conversa: você já incursionou alguma vez no romance? O exercício da narrativa o atrai?

ACC – Nunca gostei de romance. Gosto de fazer o anti-romance. Quando eu morava em Brasília escrevi umas 70 páginas de um anti-romance que intitulei Cibernéias, uma parafernália da prosa, tudo empolado. Eu empolo a linguagem, as personagens, as minhas referências culturais, tudo. Um texto completamente barroco. Outro dia eu li o romance O nome da rosa, de Umberto Eco. Também uma parafernália, só que uma parafernália semiótica. Fiquei interessado no livro por causa da minha temática da rosa e por já conhecer Umberto Eco como crítico. E foi uma surpresa ver que ele é também um grande romancista. Tanto o é que as primeiras páginas de O nome da rosa – e isso foi observado no mundo inteiro – não agradam aos leitores de romance. Isso acontece com Os sertões de Euclides da Cunha. Umas quinze páginas que são uma beleza e uma prova de fogo para o leitor. No caso do livro do Umberto Eco, as primeiras páginas são melhores que o romance inteiro, porque nelas o romance ainda não começou (risos).

MEM – Voltando à poesia, qual é a sua concepção do fazer poético? Para você, a criação poética é um trabalho de transpiração, de inspiração, de respiração ou de transe? Ou é tudo isso ao mesmo tempo?

ACC – Acho que poesia é fazer. A própria etimologia da palavra diz isso. Mas o fazer poético tem também essa coisa grande, misteriosa, que é o transe. Que está lá no Fedro de Platão: o daimon. O poeta é um “daimoniado”. Um diabo no meio do redemoinho, como diz o Guimarães Rosa. Aliás, o Guimarães Rosa é também um grande poeta. O Grande Sertão Veredas, para mim, não é só um romance. É também um poema épico magnífico. Nele o daimon não está separado do fazer, do artesanato. Penso que todo poeta deve superar o artesão. Mas o artesanato é sempre importante. João Cabral, por exemplo, o poeta da “Educação pela pedra”, lavra o poema. Eu o comparo a Francis Ponge. Ele lavra o poema-objeto. Ele vai além da semiótica de Peirce. E ele consegue ultrapassar o artesão, mesmo que não admita isso. O poeta que não supera o artesão não é poeta. Existe aquela história do sujeito que estava lavrando tanto a pedra para construir uma estátua, usando com tanto vigor o camartelo e o cinzel, que a pedra virou pó. O poeta que acredita no artesanato puro e continua enxugando o poema corre o risco de transformar em pó a poesia. Alguns poetas de hoje, que fazem o culto do poema enxuto, concreto, têm, a meu ver, um quê de parnasianos. Por outro lado, acho que eles têm o lado lúdico do trocadilho, do desmembramento do vocábulo, que me agrada muito. Mas a filosofia deles está um pouco para aquilo que o Bilac coloca naquele soneto, que diz: “Quero que a estrofe cristalina, /Dobrada ao jeito/ Do ourives, saia da oficina/ Sem um defeito.” São versos de uma grande modernidade, não acha? Um culto da forma, tal como se vê hoje. Mas antes dele, Álvares de Azevedo, poeta romântico que morreu muito moço, já escrevera: “Se a estátua não saiu como pretendo/Quebro-a mas nunca seu metal emendo.” Mentira dele, pois ele emendava sim. Mas foi um grande poeta.

MEM – E a idéia de que o silêncio seria o espaço por excelência da poesia?

ACC – É, essa idéia é boa. É o que chamei de “zero absurdo”. Mas você não pode eliminar o som da poesia, a letra, a forma. O silêncio faz parte das palavras.

MEM – Qual é, para você, o papel da crítica de poesia?

ACC – Sempre fui desconfiado dos críticos. Tanto, que eu não quis para meu livro uma apresentação. E poderia ter pedido um prefácio ao Oswaldino Marques, aquele poeta que mora em Brasília e que escreveu um estudo sobre a poesia de Cassiano Ricardo. Mas preferi escrever o meu próprio exórdio, o “Topos exordial do inédito”. Prefiro eu mesmo fazer minha autocrítica. Como eu já disse, em se tratando de crítica, prefiro a crítica feita pelos poetas. Foi o T.S. Eliot que deu o grande golpe na crítica acadêmica com o seu New Criticism.

MEM – Você acredita, como Octavio Paz, que a poesia moderna está sob o signo da “paixão crítica”?

ACC – Um poeta invejável, o Octavio Paz. Eu o conheci pessoalmente, fazendo uma conferência sobre poesia em Brasília. Mas sabe o que aconteceu comigo? Não tolerei a conferência dele, pois ele só falava coisas que eu já sabia. (risos) Saí no meio. Isso aconteceu também com uma conferência do Hernâni Cidade, sobre Fernando Pessoa. Ele começou a falar da vida particular do Pessoa. Eu, que estava esperando uma conferência sobre os aspectos filosóficos de Pessoa, sobretudo o seu existencialismo, preferi ir embora. Mas acho que o que realmente marca a poesia moderna é a estranheza, não a crítica. O poeta moderno é um estranho na e à sociedade. Octavio Paz tratou disso melhor do que ninguém.

MEM – Vamos falar um pouco sobre o Diário da rosa errância e prosoemas? O que o levou a escrever um livro de prosa poética?

ACC – Nada me levou ao livro. Foi tudo circunstancial. Eu nem sabia que tinha escrito esse livro, sinceramente. Acho que eu o escrevi em uma semana, em Belo Horizonte, em 1985. Do jeito que eu sempre gostei de escrever: nas páginas brancas de um livro. No caso, um livro de Roland Barthes. Depois passei a limpo. Minha mulher, Alfa, e Roselle, minha filha jornalista, que adoram adular os meus neurônios, me estimularam a publicar o livro. Resolvi entregar também para minha filha a série de 200 prosoemas intitulada “A minha deslumbrada”, para ela selecionar alguns. Ela selecionou 93. E engraçado você ter dito, um dia, que esses textos tinham algo do surrealismo. Eu já tinha, naturalmente, lido André Breton nessa época. Mas meu surrealismo no livro foi inconsciente. O que me inspirou mesmo – e aqui me refiro aos Prosoemas, que estão no final do livro – foi o trabalho dos pintores italianos, em especial de Fra Angelico, Leonardo da Vinci e Michelangelo. El Greco também me influenciou. Já no Diário da rosa errância, retomo a temática da rosa. Mas fiz aí uma coisa que nunca tinha feito antes: escrevi textos em prosa com frases curtas, concisas, nas quais a palavra vai puxando a palavra. Lembro que minha filha me falou: pai, esse livro está muito erótico! E respondi que não tinha importância, porque meu erotismo não tem “pornéia” (risos).

MEM – Mas a sua poesia é essencialmente erótica, mesmo em Cidadela da Rosa. É uma poesia que, além de ter uma volúpia pela palavra e de explorar as múltiplas possibilidades sensoriais, corporais da linguagem, aborda, com freqüência, uma temática voltada para o amor, o corpo, a mulher.

ACC – Pois é. Tenho um soneto em versos alexandrinos, chamado “Perpétua”. Todo simbolista. E o que me levou a escrever o poema foi exatamente a palavra “Perpétua”, que me seduziu. Sou um seduzido pelas palavras. São elas que me erotizam no poema.

MEM – Como você vê a poesia contemporânea no Brasil?

ACC – Não vejo nada. Além de João Cabral, não existe nenhum grande poeta no Brasil hoje.

MEM – Você poderia falar um pouco sobre sua formação? É realmente impressionante a sua erudição, a sua história de leituras nos mais variados campos do saber.

ACC – Sou um autodidata no campo das Letras. Cursei Farmácia e Bioquímica, mas não fiz nenhum curso na área de Humanidades. No meu tempo, tudo era mais limitado. Não havia as escolas de Filosofia que existem hoje. Talvez eu devesse ter escolhido o Direito, que é mais próximo da Literatura. Mas eu sempre li de tudo. Só não li muitos romances. Apenas alguns clássicos. Li muita Geografia, Filosofia, Química, História, Biologia. Os livros de ciências são tão importantes para a poesia quanto os de literatura. Goethe, por exemplo, era um cientista. Ele escreveu uma tese sobre as cores e pôs muito da sabedoria científica dentro dos seus versos. Eu não quero me comparar a Goethe, pois é impossível fazer uma comparação dessas, mas eu coloquei muito de minha sabedoria esparsa, vinda do campo das ciências, dentro de meus poemas. Sem querer, sem saber. Inconscientemente. Aquele poema mesmo, o “Discurso”, que está na Cidadela, foi escrito dentro do livro Arqueologia do Saber, do Michel Foucault. A arqueologia me atrai até hoje.

MEM – Mas você é um arqueólogo das palavras, que sabe “escavar o palimpsesto do que te resta”…

ACC – Pode ser. Mas para meter a pá no entulho do sexo para desenterrar ninhos… (risos)

MEM – Você é também um poeta que ama as mulheres, que elege musas para seus poemas. O que tem a dizer sobre isso?

ACC – Vinícius de Moraes dizia: As feias que me perdoem, mas a beleza é fundamental. Mas não é bem assim. Às vezes basta que uma mulher tenha um belo nome. Ou uma pinta no nariz. Ou olhos de cabrita assustada, no espanto de ser. Ou mágoas de Flor-Bela. A mulher é necessária ao poeta. Ela é – vou usar aqui um neologismo – uma “ademarragem” para o poema. Mas a química, a filosofia, a física, a arte também são. A mulher não é a única musa do poeta. Uma vez fiz uns versos inspirados na poesia surrealista de Murilo Mendes, que dizem mais ou menos assim: os carneiros esgrimam o enigma dos chifres / as mulheres esgrimam o enigma das lágrimas. Aliás, tenho em um caderno várias frases surrealistas que fui anotando aos poucos. Uma delas é: A tua simpatia (de pathos) passeia primaveras em meu rosto. A outra: Atingido de azul, trapaceio com as palavras a claridade de um anjo. E tem uma outra, que fiz para uma menina de 17 anos, que me mostrou uns poemas que havia escrito: Anjo isósceles, com inspiração para agarrar o azul. Foi daí que tirei para o meu futuro livro o título Inspiração para agarrar o azul. Um livro que talvez eu nunca escreva, mas que já existe.
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Maria Esther Maciel (Brasil, 1963). Poeta, ensaísta. Autora de livros como A lição do fogo (1998), A memória das coisas (2004) e O livro de Zenóbia (2004). Entrevista originalmente publicada na revista Alpha (Patos de Minas, UNIPAM, 2002).

Fonte:
in
Altino Caixeta de Castro: do espanto da palavra e outras perplexidades
Agulha Revista de Cultura Nº 46 - Fortaleza/São paulo - julho de 2005
Entrevista obtida em Do Próprio Bolso

Hans Christian Andersen (A Menina dos Fósforos)


Era véspera de Ano Bom. Fazia um frio intenso; já estava escurecendo e caía neve. Mas a despeito de todo o frio, e da neve, e da noite, que caía rapidamente, uma criança, uma menina, descalça e de cabeça descoberta, vagava pelas ruas. É certo que estava calçada quando saiu de casa; mas as chinelas eram muito grandes, pois que a mãe as usara, e escaparam-lhe dos pezinhos gelados, quando atravessava correndo uma rua, para fugir de dois carros que vinham a toda a brida. Não pôde achar um dos chinelos e o outro apanhou-o um rapazinho, que saiu correndo e declarando que aquilo ia servir de berço aos seus filhos, quando os tivesse. Continuou, pois, a menina a andar, agora com os pés nus e gelados. Levava no avental velhinho uma porção de pacotes de fósforos e tinha na mão uma caixinha: não conseguira vender uma só em todo o dia, e ninguém lhe dera esmola - nem um só vintém.

Assim, morta de fome e frio, ia se arrastando penosamente, vencida pelo cansaço e o desânimo - a estátua viva da miséria.

Os flocos de neve caíam pesados, sobre os lindos cachos louros que lhe emolduravam graciosamente o rosto; mas a menina nem dava por isso. Via, pelas janelas das casas, as luzes que brilhavam lá dentro; vagava na rua um cheiro bom de pato assado - era a véspera do Ano Bom - isso sim, não o esquecia ela.

Achou um canto, formado pela saliência de uma casa, e acocorou-se ali, com os pés encolhidos para abrigá-los ao calor do corpo; mas cada vez sentia mais frio. Não se animava a voltar para casa, porque não tinha vendido uma única caixinha de fósforos, e não ganhara um vintém; era certo que levaria algumas lambadas. Além disso, lá fazia tanto frio como na rua, pois só havia o abrigo do telhado, e por ele entrava uivando o vento, apesar dos trapos e das palhas que lhe tinham vedado as enormes frestas.

Tinha as maozinhas tão geladas... estavam duras de frio. Quem sabe se acendendo um daqueles fósforos pequeninos, sentiria algum calor? Se se animasse a tirar um ao menos da caixinha, e riscá-lo na parece para acendê-lo... Ritch!... Como estalou, e faiscou, antes de pegar fogo!

Deu uma chama quente, bem clara, e parecia mesmo uma vela, quando ela o abrigou com a mão. E era uma vela esquisita, aquela! Pareceu-lhe logo que estava sentada diante de uma grande estufa, de pés e maçanetas de bronze polido. Ardia nela um fogo magnífico, que espalhava suave calor. E a meninazinha ia estendendo os pés enregelados para aquecê-los e... crac! Apagou-se o clarão! Sumiu-se a estufa, tão quentinha, e ali ficou ela, no seu canto gelado, com um fósforo apagado na mão. Só via agora a parede escura e fria.

Riscou outro. Onde batia a sua luz, a parede tornava-se transparente como a gaze, e ela via tudo lá dentro da sala. Estava posta a mesa, e sobre a toalha alvíssima via-se, fumegando entre toda aquela porcelana tão fina, um belo pato assado, recheado de maçãs e ameixas. Mas o melhor de tudo foi que o pato saltou do prato e, com a faca ainda cravada nas costas, foi indo pelo soalho direto à menina que estava com tanta fome, e...

Mas - que foi aquilo? No mesmo instante acabou-se o fósforo, e ela tornou a ver somente a parede nua e fria, na noite escura. Riscou outro fósforo, e àquela luz resplandecente, viu-se sentada debaixo de uma linda árvore de Natal. Oh! Era muito maior, e mais ricamente decorada do que aquela que vira, naquele Natal, ao espiar pela porta de vidro da casa do negociante rico. Entre os galhos brilhavam milhares de velinhas; e estampas coloridas, como as que via nas vitrinas das lojas, olhavam para ela. A criança estendeu os braços, diante de tantos esplendores, e então, então... apagou-se o fósforo. Todas as luzinhas de natal foram subindo, subindo, mais alto, cada vez mais alto, e de repente ela viu que eram estrelas, que cintilavam no céu. Mas uma caiu lá de cima, deixando uma esteira de poeira luminosa no caminho.

- Morreu alguém - disse a criança.

Porque sua avó, a única pessoa que a amara no mundo, e que estava morta, lhe dizia sempre que quando uma estrela desce, é que uma alma subiu para o céu.

Agora ela acedeu outro fósforo; e desta vez foi a avó que lhe apareceu, a sua boa vovó, sorridente e luminosa, no esplendor da luz.

- Vovó! - gritou a pobre menina - Leva-me contigo... Já sei que quando o fósforo se apagar, tu vais desaparecer, como se sumiram a estufa quente, e o rico pato assado, e a linda árvore de Natal!

E a coitadinha pôs-se a riscar na parede todos os fósforos da caixa, para que a avó não se desvanecesse. E eles ardiam com tamanho brilho, que parecia dia, e nunca ela vira a vovó tão alta, nem tão bela! E ela tomou a neta nos braços, e voaram ambas, em um halo de luz e de alegria, mais altoo, e mais alto, e mais longe... longe da terra, para um lugar lá em cima onde não há mais frio, nem fome, nem sede, nem dor, nem medo, porque elas estavam agora com Deus.

A luz fria da madrugada achou a menina sentada no canto, entre as casas, com as faces coradas e um sorriso de beatitude. Morta. Morta de frio, na última noite do ano velho.

A luz do Ano Bom iluminou o pequenino corpo, ainda sentado no canto, com a mão cheia de fósforos queimados.

- Sem dúvida ela quis aquecer-se - diziam.

Mas... ninguém soube das lindas visões, que visões maravilhosas lhe povoaram os últimos momentos, nem em que halo tinha entrado com a avó nas glórias do Ano Novo.

Fonte:
Hans Christian Andersen e Irmãos Grimm. Contos infantis. Seleção e tradução: Jô Andrada . http://victorian.fortunecity.com/postmodern/135

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 528)


Uma Trova de Ademar

Espero ser perdoado
por Deus, o reto Juiz,
pois estou sendo julgado
por coisas que nunca fiz.
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


Num ritmo de eternidade
e encanto que se renova,
há comboios de saudade
nos quatro trilhos da trova.
–ROZA DE OLIVEIRA/PR–

Uma Trova Potiguar


Que ironia tem a rima
na ponte que o rio cobre:
O carro do rico em cima,
em baixo a casa do pobre!!!
–LUIZ DUTRA/RN–

Uma Trova Premiada


1986 - São Paulo/SP
Tema - SORRISO - M/E


O tesouro do meu sonho,
que guardo no coração,
vem do sorriso que ponho
na face triste do irmão.
–JOSUÉ VARGAS FERREIRA/SP–

...E Suas Trovas Ficaram


A minha vida eu resumo
em dois versinhos banais:
é como um barco sem rumo
na fúria dos temporais.
–HILDEMAR DE ARAÚJO/BA–

Simplesmente Poesia

Missão
–CLEVANE PESSOA/MG–


(...)
As belezas da flora,
verdes em mil tons
magia de luz solar (ou lunar?),
nuvens barcas a navegar
num céu anilíssimo.
E o lilás curativo,
que cure o Planeta Terra,
neste Dia da Poesia
coadjuvante emissária
de todas as suas maravilhas,
competente estagiária,
onde a humanidade, estacionária
temporária,
precisa repensar a Paz,
fazer os devidos melhoramentos
e consertar os desgastes e destruições
que a mão dos habitantes
causou...

Estrofe do Dia

Não saberei resistir
destruo a vida em pedaços
se da curva dos meus braços
por acaso ela fugir;
e para substituir
essa que me acende a chama,
eu não encontro outra dama
no céu, na terra ou na lua;
não há quem substitua
a mulher que a gente ama.
–GERALDO AMÂNCIO/CE–

Soneto do Dia

Um Beijo por Acidente
–KERLE DE MAGALHÃES/PE–


Nunca esqueço daquele teu olhar
que no dia seguinte envergonhado.
No momento, não soube te falar...
Pois, também me sentia tão culpado.

Eu confesso, não soube controlar
em beijar os teus lábios encarnados
de perigos que deixam a conjugar
nosso estado de dois embriagados.

Eu sei que tu és mulher casada
e apesar de beijá-la embriagada,
eu não ligo pra língua desse povo.

Nossa culpa no beijo não é nada.
Se ficares me olhando envergonhada
quando vamos poder beber de novo?

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Hermoclydes S. Franco (Vinte Séculos Atrás)


Vinte séculos atrás,
Passou pela terra Alguém
Que tinha no olhar a Paz
E no coração o Bem!

Que pelo Verbo Divino
Aos povos viera pregar
O Evangelho que o destino
O incumbira de espalhar.

A mensagem que trazia,
Fundamentada no amor,
Inundou a Samaria
De encantamento e esplendor.

Assim, também, a Judéia
E Nazaré pequenina,
Testemunhas da odisséia,
Desde a Estrela Peregrina,

Até ao drama do Calvário,
Naquela tarde sem luz,
Que se tornou o sacrário
Do flagelo de Jesus!...

Vinte séculos atrás,
Passou pela Terra Alguém
Que tinha, no olhar, a Paz
E, no coração, o Bem!...

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Rubem Penz (Revisor de Plantão)


Há uma regra não escrita, mas que parece ter validade mundial ontem, hoje e sempre: quando o leitor esbarra em um erro ortográfico ou de gramática, o livro inteiro desce um degrau no conceito. Milhares de palavras íntegras e orações perfeitas são maculadas por um deslize. Ou, o que é pior: as ideias expostas, a história contada, as teses defendidas sofrem um abalo sísmico. Quando a compreensão é atingida pelo erro, vá lá, estamos diante de muitos graus na Escala Richter. Porém, na maioria acachapante dos casos, a falha passa despercebida por muita gente, e em nada afeta o conteúdo. O que minimiza o fato, mas não destrói a questão de que haverá desmerecimento.

Por isso sempre fui e sempre serei um fã incondicional dos revisores. Eles estão ali para garantir a saúde do texto oferecendo uma segunda opinião. Os brilhantes, e não são muitos, leem palavras, frases e parágrafos permanecendo vigilantes ao sentido. Manuseiam as vírgulas com a delicadeza de um ourives; notam os acentos como um maestro a escutar cada detalhe da orquestra; caçam falhas de digitação como a tricotadeira que não perde um só ponto. São atentos como o analista, seguros de que o discurso poderá trair o desejo do escritor (para o bem ou para o mal). Então, apontando a falha no ato, darão ao autor a rara oportunidade de pensar melhor antes de o livro ser impresso.

Sei que não é fácil receber o original de volta da revisão. É triste ver que poucas páginas escapam virgens – o que exige muita humildade no momento de aceitar e recusar as modificações sugeridas. A primeira reação é um enorme "não é possível, eu redijo bem, o revisor quer escrever por mim". Depois, aos poucos, domamos a fera e baixamos a crista, reconhecendo que a vaidade sempre foi péssima conselheira. Quando redator publicitário, eu implorava por revisão considerando o próprio autor o menos qualificado para o trabalho. Numa agência consegui que a coordenadora de produção lesse os textos, e muita dor de cabeça foi evitada. Desconfie dos que odeiam revisores: se achar infalível é a primeira de muitas outras falhas. E a maior delas.

Pena que na vida não tenhamos essa figura tão útil a marcar em vermelho nossas palavras e atitudes. Para muitos, revisor de plantão seria luxo. Para outros, porém, necessidade. O problema é que o revisor acabaria mal visto ou mal interpretado justamente por quem mais precisa.

– Olha lá que linda! Vou chegar nela e dizer "Que tal darmos as mãos para mim dançar contigo"?
– O certo seria "eu dançar contigo".
– Eu dançar com você? Jamais!
– Você não entendeu: é "eu" com ela.
– Nada disso! Vi primeiro. Além do mais, sou o autor da cantada. Você, no máximo, revisa.
– Tá bom, tá bom. Vou sugerir outra forma, já que você não alcançou: que tal "dançarmos juntos".
– Ih, olha aí o cara! Só pode estar de brincadeira. Homenagem atroz, só comigo e duas mulheres, compreendeu?
– Ménage à trois. É francês.
– Só podia ser mesmo: coisa de fresco. Levo outro homem para cama e, quando vejo, a vaca torce o rabo.
– É a porca quem torce o rabo. A vaca vai para o brejo.
– Bem isso. Olha lá: outro cara pegou a menina na frente de eu.
– Na minha frente.
– Que seja, então, na frente de nós dois. Ei, espera, aonde você vai?
– "Mim" precisa de um uísque...

Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/

Rubem Penz (1964)


Rubem Penz, porto-alegrense nascido em 1964, é escritor, publicitário, baterista, compositor e percussionista.

Graduado em Educação Física pela ESEF/UFRGS (1985), foi redator em agências de publicidade e empresário no ramo de telecomunicações.

É baterista do quarteto jazzístico Grupo Versão Brasileira desde 1987, com o qual gravou o álbum Passatempo no ano de 2000. Teve suas primeiras composições gravadas no álbum Donaflor, de Anne-Florence Schneider (Suíça) em 2010.

Atualmente desenvolve seu trabalho musical ao lado do violonista Maurício Marques e do cantor Dudu Sperb, com os quais excursionou no Circuito ARTESESC da música em 2010.

Mantém desde 2003 a rotina semanal de crônicas que pode ser acompanhada no blog Rufar dos Tambores.

Passou a contribuir com artigos esporádicos no jornal Zero Hora em 2005 e, desde 2007, assina colunas nos jornais Comunidade News (que circula nos EUA), Diário de Viamão e Diário da Fronteira (Uruguaiana).

Foi cronista da Revista Bem me Quer desde o segundo número em circulação. Publicou O Y da questão e outras crônicas (2007, Ed. Literalis) – livro finalista do Prêmio Açorianos de Literatura e para Livro do Ano (crônica) pela Associação Gaúcha de Escritores (AGEs). Ao lado de Valesca de Assis, assina a coorganização de Ponto de Partilha I (2008, Ed. Kalligraphos).

Cursou a Oficina de Criação Literária da PUC, Módulos 1 e 2, da qual resultou o livro Pedra, papel e tesoura, contos de oficina 38 (2008, Ed. Bestiário).

É o organizador do livro Santa Sede, crônicas de botequim safra 2010 (2010, Ed. Literalis) e Santa Sede, crônicas de botequim safra 2011 (2011, E. Fábrica de Leitura).

Em 2011 publicou o livro Inter Pares – Faraco de Azevedo Advogados 60 anos (2011, Ed. Literalis), obra premiada na categoria “Livro Texto” no 7º Prêmio Gaúcho de Excelência Gráfica, bronze na categoria “Capa de Livro ou Caderno do Prêmio Colunistas Design Rio Grande do Sul 2011 e prata na categoria “Design Gráfico e Promocional” do 37º Salão De Propaganda ARP.

Ministra oficinas e palestras no Circuito ARTESESC de Literatura desde 2008, individualmente e acompanhando o poeta Marlon de Almeida e o compositor Sérgio Napp.

Ministra oficinas de crônicas regularmente em Porto Alegre, atua como palestrante para a Profit - Divisão Cultural e é free lancer em criação publicitária.

Sites:
www.rubempenz.com.br
www.rufardostambores.blogspot.com

Fonte:
http://www.rubempenz.com.br/biografia.html

Trovas 218/219 - Francisco José Pessoa (CE)


Fonte:
Trovas enviadas pelo autor

Mia Couto (A Viagem da Cozinheira Lagrimosa)


Antunes Correia e Correia, sargento colonial em tempo de guerra. Se o nome era redundante, o homem estava reduzido a metades. Pisara um chão traiçoeiro e subira pelas alturas para esse lugares onde se deixa a alma e se trazem eternidades. Correia não deixou nem trouxe, incompetente até para morrer. A mina que explodira era pessoal. Mas ele, tão gordo, tão abastado de volume, necessitava de duas explosões.

- Estou morto por metade. Fui visitado apenas por meia-morte.-

Perdera a vida só num olho, um lado da cara todo desfacelado. O olho dele era faz-conta um peixe morto no aquário do seu rosto. Mas o sargento era tão apático, tão sem movimento, que não se sabia se de vidro era todo ele ou apenas o olho. Falava com impulso de apenas meia-boca. Evitava conversas, tão doloroso que era ouvir-se. Não apertava a mão a ninguém para não sentir nesse aperto o vazio de si mesmo. Deixou de sair, cismado em visitar no obscuro da casa a antecâmara do túmulo. O Correia perdera interesses na vida: ser ou não ser tanto lhe desfazia. As mulheres passavam e ele nada. E ladainhava: "- estou morto por metade- ".

Agora, reformado, sozinho, mutilado de guerra e incapacitado de paz, Antunes Correia e Correia tomava conta de suas lembranças. E se admirava do fôlego da memória. Mesmo sem o outro hemisfério não havia momento que lhe escapasse nessa caçada ao passado. - _Das duas uma: ou minha vida foi muito enorme ou ela fugiu-me toda para o lado direito da cabeça- . Para as recordações virem à tona ele inclinava o pescoço.

- Assim escorregavam directamente do coração- , dizia ele.

Felizminha era a empregada do sargento. Trabalhava para ele desde a sua chegada ao bairro militar. Nos vapores da cozinha a negra Felizminha arregaçava os olhos. Enxugava a lágrima, sempre tarde. Já a gota tombara na panela. Era certo e havido: a lágrima se adicionando nas comidas. Tanto que a cozinheira nem usava tempero nem sal. O sargento provava a comida e se perguntava porquê tão delicados sabores.

- É comida temperada a tristeza- .

Era a invariável resposta de Felizminha. A empregada suspirava: - ai, se pudesse ser outra, uma alguém- . Poupava alegrias, poucas que eram.

- Quero guardar contentamento para gastar depois, quando for mais velhinha- .

Metida a sombra, fumo, vapores. Nem sua alma ela enxergava nada, embaciada que estava por dentro. A mão tiritacteava no balcão. O recinto era escuro, ali se encerravam voláteis penumbras. A cozinha é onde se fabrica a inteira casa.

Certa noite, o patrão entrou na cozinha, arrastando seu peso. Esbarrou com a penumbra.

- Você não quer mais iluminação na porcaria desta cozinha?

- Não, eu gosto assim.-

O sargento olha para ela. A gorda Felizminha remexe a sopa, relambe a colher, acerta o sal na lágrima. O destino não lhe encomendou mais: apenas esse encontro de duas meias vidas. Correia e Correia sabe quanto deve à mulher que o serve. Logo após o acidente, ninguém entendia as suas pastosas falas. Carecia-se era de serviço de mãe para amparar aquele branco mal-amanhado, aquele resto de gente. O sargento garatunfava uns sons e ela entendia o que queria. Aos poucos o português aperfeiçoou a fala, mais apessoado. Agora ele olha para ela como se estivesse ainda em convalescença. O roçar da capulana dela amansa velhos fantasmas, a voz dela sossega os medonhos infernos saídos da boca do fogo. Milagre é haver gente em tempo de cólera e guerra.

- Você está magra, anda a apertar as carnes?

- Magra?-

Pudesse ser! A tartaruga: alguém a viu magrinha? Só os olhos lhe engordavam, barrigando de bondades. A gorda Felizminha gemia tanto ao se abaixar que parecia que a terra estava mais longe que o pé.

- Me esclareça uma coisa, Felizminha: porquê essa choração todos os dias?

- Eu só choro para dar mais sabor aos meus cozinhados.

- Ainda eu tenho razões para tristezas, mas você...

- Eu de onde vim tenho lembrança é de coqueiros, aquele marejar das folhas faz conta a gente está sempre rente ao mar. É só isso, patrão- .

A negra gorda falou enquanto rodava a tampa do rapé, ferrugentia. O patrão meteu a mão no bolso e retirou uma caixa nova. Mas ela recusou aceitar.

- Gosto de coisa velha, dessa que apodrece.

- Mas você, minha velha, sempre triste. Quer aumento no dinheiro?

- Dinheiro, meu patrão, é como lamina... corta dos dois lados. Quando contamos as notas se rasga a nossa alma. A gente paga o quê com o dinheiro? A vida nos está cobrando não o papel mas a nós, próprios. A nota quando sai já a nossa vida foi. O senhor se encosta nas lembranças. Eu me amparo na tristeza para descansar- .

A gorda cozinheira surpreendeu o patrão. Lhe atirou, a queimar-lhe a roupa:

- Tenho ideia para o senhor salvar o resto do seu tempo.

- Já só tenho metade de vida, Felizminha.

- A vida não tem metades. É sempre inteira- ...

Ela desenvolveu-se: o português que convidasse uma senhora, dessas para lhe acompanhar. O sargento ainda tinha idade combinando bem com corpo. Até há essas da vida, baratinhas, mulheres muito descartáveis.

- Mas essas são pretas e eu com pretas...

- Arranje uma branca, também há ai dessas de comprar. Estou-lhe a insistir, patrão. O senhor entrou na vida por caminho de mulher. Chame outra mulher para entrar de novo- .

Correia e Correia semi-sorriu, pensativo.

Um dia o militar saiu e andou a tarde toda fora. Chegou a casa, eufórico, se encaminhou para a cozinha. E declarou com pomposidade:

- Felizminha: esta noite ponha mais um prato- .

A alma de Felizminha se enfeitou. Esmerou na arrumação da sala, colocou uma cadeira do lado direito do sargento para que ele pudesse apreciar por inteiro a visitante. Na cozinha apurou a lágrima destinada a condimentar o repasto.

Aconteceu, porém, que não veio ninguém. O lugar na mesa permaneceu vazio. Essa e todas as outras vezes. _única mudança no cenário: o assento que competia à ausente visita passava da direita para a esquerda, esse lado em que não havia mundo para o sargento Correia.

Felizminha duvidava: essas que o patrão convidava existiam, verídicas e autênticas?

Até que, uma noite, o sargento chamou a cozinheira. Pediu-lhe que tomasse o lugar das falhadas visitadoras. Felizminha hesitou. Depois, vagarosa, deu um jeito para caber na cadeira.

- Decidi me ir embora- .

Felizminha não disse nada. Esperou o que restava para ser dito.

- E quero que você venha comigo.

- Eu, patrão? Eu não saio da minha sombra.

- Vens e vês o mundo.

- Mas ir lá fazer o quê, nessa terra...

- Ninguém te vai fazer mal, eu prometo- .

Daí em diante, ela se preparou para a viagem. Animada com a ideia de ver outros lugares? Aterrada com a ideia de habitar terra estranha, lugar de brancos? Nem rosto nem palavra da cozinheira revelavam a substancia de sua alma. O sargento provava a refeição e não encontrava mudança. Sempre o mesmo sal, sempre a mesma delicadeza de sabor. No dia acertado, o militar acotovelou a penumbra da cozinha:

- Venha, faça as malas- .

Saíram de casa e Felizminha cabisbaixou-se ante o olhar da vizinhança. Então o sargento, perante o público, deu-lhe a mão. Nem se entrecabiam bem de tão gordinhas, os dedos escondendo-se como sapinhos envergonhados.

- Vamos- , disse ele.

Ela olhou os céus, receosa por, daí a um pouco, subir em avião celestial, atravessar mundos e oceanos. Entrou na velha carrinha, mas para seu espanto Correia não tomou a direção do aeroporto. Seguiu por vielas, curvas e areias. Depois, parou num beco e perguntou:

- Para que lado fica essa terra dos coqueiros?-

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 527)


Uma Trova de Ademar

Descobri no envelhecer
que a musa que me enaltece
não deixa o verso morrer,
pois musa nunca envelhece!
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


Ouvindo tuas propostas,
com muito amor, de mãos juntas
eu, que fui buscar respostas,
voltei cheio de perguntas!...
–RODOLPHO ABUDD/RJ–

Uma Trova Potiguar


Sempre sozinha, aos farrapos,
mas de rosário na mão.
A fé tecida entre os trapos
remendava a solidão!
–PROF. GARCIA/RN–

Uma Trova Premiada


2011 - UBT-Natal/RN
Tema - SORTE - 3º Lugar


Superando a sorte ingrata,
rindo da queda sofrida,
sou um teimoso acrobata,
na corda bamba da vida!...
–JOSÉ TAVARES DE LIMA/MG–

...E Suas Trovas Ficaram


Passei a crer nos amigos
e em bondade ainda creio,
depois que vi dois mendigos
dividindo um pão ao meio.
–COLBERT RANGEL COELHO/MG–

Simplesmente Poesia

Dorme
–FERNANDO PESSOA/PORTUGAL–


Dorme enquanto eu velo..
Deixa-me sonhar...
Nada em mim é risonho.
Quero-te para sonho,
Não para te amar.

A tua carne calma
É fria em meu querer.
Os meus desejos são cansaços.
Nem quero ter nos braços
Meu sonho do teu ser.

Dorme, dorme. dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tão atento
Que o sonho é encantamento
E eu sonho sem sentir.

Estrofe do Dia

Deus pintou o cenário mais bonito
nos neurônios que tem na minha mente.
Com o brilho das luzes da poesia
me ensinou a fazer verso e repente;
me deu todas as dicas sobre a rima
e depois de fazer esta obra-prima
deu ao mundo um poeta de presente.
–ADEMAR MACEDO/RN–

Soneto do Dia

MEU SER EVAPOREI NA LIDA INSANA.
–BOCAGE/PORTUGAL–


Meu ser evaporei na lida insana
do tropel das paixões que me arrastava;
ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
em mim quase imortal a essência humana!

De que inúmeros sóis a mente ufana
existência falaz me não dourava!
Mais eis sucumbe a natureza escrava
ao mal, que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos,
esta alma, que sedenta em si não coube,
no abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus! ó Deus! quando a morte a luz me roube,
ganhe um momento o que perderam anos.
Saiba morrer o que viver não soube.

Artur de Azevedo (A Melhor Amiga)


I

A mais ingênua e virtuosa das esposas, D. Ritinha Torres, adquiriu há tempos a dolorosa certeza de que o marido a enganava, namorando escandalosamente uma senhora, vizinha deles, que exercia, ou fingia exercer a profissão de modista.

Havia muitas manhãs que Venâncio Torres - assim se chamava o pérfido - acordava muito cedo, tomava o seu banho frio, saboreava sua xícara de café, acendia o seu cigarro e ia ler a Gazeta de Noticias debruçado a uma das janelas da sala de visitas.

Como D. Ritinha estranhasse o fato, porque havia já quatro anos que estava casada com Venâncio, e sempre o conhecera pouco madrugador, uma bela manhã levantou-se da cama, envolveu-se numa colcha, e foi, pé ante pé, sem ser pressentida, dar com ele a namorar a vizinha, que o namorava também.

A pobre senhora não disse nada: voltou para o quarto, deitou-se de novo, e à hora do costume simulou que só então despertava.

Tivera até aquela data o marido na conta de um irrepreensível modelo de todas as virtudes conjugais; todavia, soube aparar o golpe: não deu a perceber o seu desgosto, não articulou uma queixa, não deixou escapar um suspiro.

Mas às dez horas, quando Venâncio Torres, perfeitamente almoçado, tomou o caminho da repartição, ela vestiu-se, saiu também, e foi bater à porta da sua melhor amiga, D. Ubaldina de MeIo, que se mostrou admiradíssima.

- Que é isto? Tu aqui a estas horas! Temos novidade?

- Temos... temos uma grande novidade; meu marido engana-me

E deixando-se cair numa cadeira, D. Ritinha prorrompeu em soluços.

- Engana-te? perguntou a outra, que empalidecera de súbito.

- E adivinha com quem?... Com aquela modista... aquela sujeita que mora defronte de nossa casa!...

- Oh, Ritinha! isso é lá possível!...

- Não me disseram: vi; vi com estes olhos que a terra há de comer! Um namoro desbragado, escandaloso, de janela para janela!

- Olha que as aparências enganam...

- E os homens ainda mais que as aparências.

O pranto recrudescia.

- E eu que tinha tanta confian... an... ça naquele ingra... a ..to!

- Que queres tu que te faça? perguntou D. Ubaldina, quando a amiga lhe pareceu mais serenada.

- Vim consultar-te... peço-te que me aconselhes... que me digas o que devo fazer... Não tenho cabeça para tomar uma resolução qualquer!

- Disseste-lhe alguma coisa?

- A quem?

- A teu marido.

- Não; não lhe disse nada, absolutamente nada. Contive-me quanto pude. Não quis decidir coisa alguma antes de te falar, antes de ouvir a minha melhor amiga.

D. Ubaldina sentou-se ao lado dela, agradeceu com um beijo prolongado e sonoro essa prova decisiva de confiança e amizade, e, tomando-lhe carinhosamente as mãos, assim falou:

- Ritinha, o casamento é uma cruz que é mister saber carregar. Teu marido engana-te... se é que te engana...

- Engana-me!..

- Pois bem, engana-te, sim, mas... com quem? Reflete um pouco, e vê que esse ridículo namoro de janela, que o obriga a madrugar, sair dos seus hábitos, é uma fantasia passageira, um divertimento efêmero que não vale a pena tomar a serio.

- Achas então que...

- Filha, não há no mundo marido algum que seja absolutamente fiel. Faze como eu, que fecho os olhos às bilontrices do Melo, e digo como dizia a outra: - Enquanto andar lá fora, passeie o coração à vontade, contanto que mo restitua quando se recolher ao lar doméstico.

- Filosofia no caso!

- Vejo que não sente por teu marido o mesmo que sinto pelo meu...

A filósofa conservou-se calada alguns segundos, e, dando em D. Ritinha outro beijo, ainda mais prolongado e sonoro que o primeiro, prosseguiu assim:

- Se fizeres cenas de ciúmes a teu marido, apenas conseguirás que ele se afeiçoe deveras à tal modista; o que por enquanto não passa, felizmente, de um namoro sem conseqüências, poderá um dia transformar-se em paixão desordenada e furiosa!

- Mas...

- Não há mais nem meio! Cala-te, resigna-te, devora em silêncio tuas lágrimas, e observa. Se daqui a oito ou dez dias durar ainda esse pequeno escândalo, vem de novo ter comigo, e juntas combinaremos então o que deverás fazer.

- Aceito de bom grado os conselhos, minha amiga, mas não sei se terei forças para sofrear a minha indignação e os meus ciúmes.

- Faze o possível por sofreares. Lembra-te que és mãe. Quando um casal não vive na mais perfeita harmonia, a educação dos filhos torna-se extremamente difícil.

Alentada por esses conselhos amistosos e sensatos, D. Ritinha Torres despediu-se da sua melhor amiga, e foi para casa muito disposta a carregar com resignação a cruz do casamento.

II

Logo que ficou sozinha, D. Ubaldina que até então a custo se contivera, teve também uma longa crise de lágrimas.

Mas, serenada que foi essa violenta exacerbação dos nervos, a moça correu ao telefone, e pediu que a comunicasse com a repartição onde Venâncio Torres era empregado.

- Alô! Alô!

- Quem fala?

- O Sr. Venâncio está?

- Está. Vou chamá-lo.

Minutos depois D. Ubaldina telefonava ao marido de D. Ritinha que precisava falar-lhe com toda urgência.

Ele correu imediatamente à casa dela, onde foi recebido com uma explosão de lágrimas e imprecações.

- Que é isto?! que é isto?! perguntou atônito.

- Sei tudo! bradou ela. Tua mulher esteve aqui e contou-me o teu namoro com a modista de defronte!

Venâncio ficou aterrado.

- A idiota veio perguntar-me, a mim, que sou tua amante, o que devia fazer! Eu disse-lhe que fechasse os olhos, que se resignasse.

E agarrando-o com impetuosidade:

- Ah! mas eu é que me não resigno, sabes? Eu não sou tua mulher, sabes? Eu amo-te, sabes?

- Isso é uma invenção tola. Eu não namoro modistas.

- Olha, Venâncio, se continuares, tudo saberei, porque incumbi a tua própria mulher de me pôr ao fato de tudo quanto se passar! Se persistires em namorar essa costureira, darei um escândalo descomunal, nunca visto... - Afianço-te que te arrependerás amargamente! Tu ainda não me conheces!..

Venâncio tinha lábias: desfez-se em desculpas e explicou, o melhor que pôde, as suas madrugadas.

D. Ubaldina, que ardia em desejo de perdoar, aceitou a explicação. Entretanto, ameaçava-o sempre:

- Olha que se me constar que... Não te digo mais nada!...

Pouco antes da hora em que devia chegar o dono da casa com o seu coração intacto, Venâncio, que descia a escada, parou, e retrocedeu três ou quatro degraus para dizer a D. Ubaldina:

- Queres saber de uma coisa? Essa história da modista é bem boa: serve perfeitamente para desviar qualquer suspeita que minha mulher possa ter da sua melhor amiga.

E desceu.

III

Oito dias depois, D. Ubaldina de Melo recebia um bilhete concebido nos seguintes termos:

"Minha boa amiga. - Parece que tudo acabou, felizmente. Depois que estive contigo, nunca mais Venâncio madrugou nem foi à janela. Queira Deus que isto dure! Como sou feliz! - Tua do coração, Ritinha Torres."

Fonte:
Portal São Francisco

Wagner Marques Lopes (O Lar em Trovas) Parte 2


UM LAR E SEU OÁSIS

Oásis com água pura...
Uma tenda que alivia:
todo lar em que a ternura
faz consórcio com a harmonia.

LIVRES PARA CONVERSAR

Liberdade para o lar!
Televisão não é cela.
Livres para Conversar
também é boa novela.

CORAÇÕES AQUECIDOS

O mais singelo fogão
deixa uma casa aquecida.
No lar, o bom coração
aquece vida... E mais vida.

LAR, ALMA DA CASA

A casa: quatro colunas.
O lar: templo, coração -
onde, com fé, tu reúnas
o amor, a paz e o perdão.

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor

J. G. de Araújo Jorge (A Cantiga Do Só) 4. A Festa Triste


Não, o Natal não é uma festa alegre,
é uma festa triste.

De repente
as crianças (logo as crianças!)
separam o mundo em duas metades
desiguais:
- de um lado, a abastança, indiferente ou piedosa;
do outro, a necessidade, a mendigar seus restos
como há milênios faz...

As crianças (logo as crianças!)
Algumas com presentes, brinquedos, esperanças,
e as puras alegrias que o bom Velhinho
lhes traz do céu;
outras, sem terem nada, e mesmo tendo pais,
são "órfãos do Natal",
não tem Papai Noel...

Não. Neste mundo como está,
(neste mundo profano
que a um olhar mais humano
não resiste),
o Natal pode ser uma festa,
(quem contesta?)
mas é uma festa triste...

Fonte:
JORGE, J.G. de Araújo. Cantiga do Só. 2. ed. 1968.

Augusto dos Anjos (Eu e Outras Poesias)


A obra Eu, único livro de Augusto dos Anjos, foi editada pela primeira vez em 1912. Outras Poesias acrescentaram-se às edições posteriores. Na primeira edição, a capa branca exibia o título com grandes e vermelhas maiúsculas impressas no centro. No alto, as letras pretas com o nome do autor e, em baixo, cidade, Rio de Janeiro, e data, 1912. Falecido o poeta em 1914, Órris Soares reuniu à coletânea original (Eu) a produção recente de Augusto dos Anjos, incluindo mesmo um poema inacabado, A Meretriz. A Imprensa Oficial do Estado da Paraíba editou, em 1920, Eu e Outras Poesias, prefaciado pelo organizador. Augusto dos Anjos assombrou a elite letrada do país com seus versos que não eram parnasianos, nem antecipavam o modernismo. Eram apenas seus. E tamanha era a putrefação que seus versos representavam que, ainda hoje, ele é inclassificável em uma escola, e admirado como um poeta original. Considerado pelo público e pela critica, habituados á elegância parnasiana, um livro de mau gosto, malcriado, alguns dos poemas de Eu são vistos como os mais estranhos de toda a nossa literatura, por vários motivos. Dentre eles, ressaltamos o vocabulário pouco comum, repleto de palavras com forte carga cientificista; a multiplicidade de influências literárias que recebe, tornando difícil, se não impossível, sua classificação estilística e principalmente o desespero radical com que tematiza o fim de todas as ilusões românticas, a fatalidade da morte como apodrecimento inexorável do corpo, a visão do cosmos em seu processo irreversível de demolição de valores e sonhos humanos.

"Eu, filho do carbono e do amoníaco
Monstro de escuridão e rutilância
Sofro, desde a epigênese da infância
A influência má dos signos do zodíaco."

"(...)
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija"

A obra surgida em momento de transição, pouco antes da virada modernista de 1922, é bem representativa do espírito sincrético que prevalecia na época, parnasianismo por alguns aspectos e simbolista por outros. A métrica rígida, a cadência musical, as aliterações e rimas preciosas dos versos fundiram-se ao esdrúxulo vocabulário extraído da área científica para fazer do Eu um livro que sobrevive, antes de tudo, pelo rigor da forma.

Em outras palavras, considerando a produção literária desse poeta, pode-se dizer que traduz sua objetividade pessimista em relação ao homem e ao cosmos, por meio de um vocabulário técnico-científico-poético.

Transformado em catecismo pelos pessimistas e em bíblia dos azarados e malditos, o livro Eu é de uma instigante popularidade, resistente a todos os modismo, impermeável às retaliações da crítica e aos vermes do tempo. Foi o poeta mais original de nossa literatura.

As leitura precoces de Darwin, Haeckel, Lamarck e outros, feitas na biblioteca de seu pai, fundamentaram a postura existencial do poeta; a adesão ao Evolucionismo de Darwin e Spencer e a angústia funda, leta, ante a fatalidade que arrasta toda a carne para a decomposição. Fundem-se a visão cósmica e o desespero radical, produzindo uma poesia violenta e nova na língua portuguesa. Temos, portanto, em Eu e outras poesias, além da linguagem científica e extravagante, a temática do vazio da coisas (o nada) e a morte (finitude da vida) em seus estágios mais degradados: a putrefação, a decomposição da matéria. Simultaneamente, reflete em seus versos a profunda melancolia, a descrença e o pessimismo frente ao ser e à sociedade, elaborando, assim, uma poesia de negação: nega as falsas ideologias, a corrupção, os amores fúteis e as paixões transitórias:

"Melancolia! Estende-me a tua asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que eu fugi de casa!"

O asco ao prazer é expresso de maneira contundente; a relação entre os sexos é apenas "a matilha espantada dos instintos" ou "parodiando saraus cínicos, / bilhões de centrossomos apolínicos / na câmara promíscua do vitellus." Reduzindo o amor humano à cega e torpe luta da células, cujo fim é senão criar um projeto de cadáver, o poeta aspira à imortalidade gélida, mas luminosa, de outros mundos onde não lateje a vida-instinto, a vida-carne, a vida-corrupção.

Augusto dos Anjos vale-se muitas vezes de técnicas expressionistas na montagem de seus textos. O Expressionismo, corrente estética Modernismo, representou uma reação contra o Impressionismo, contra o gosto pela nuance, contra o refinamento e sutileza na captação do momento.

A imagem é intencionalmente deformada e agrupada de maneira desconcertante, através da transfiguração da realidade. Em lugar da delicadeza e da suavidade, a imagem é deformada, por meio de um desenho violento, que acentua e barbariza a forma, aproximando-se, às vezes, do grotesco e da caricatura.

Daí o “mau gosto”, o “apoético" que, em Augusto dos Anjos, são convertidos em poesia. O jargão científico e o termo técnico, tradicionalmente prosaicos, não devem ser abstraídos de um contexto que os exige e os justifica. Fazia-se mister uma simbiose de termos que definissem toda a estrutura da vida (vocabulário físico, químico e biológico) e termos que exprimem o asco e o horror ante a existência.

Apoiando-se em hipérboles e paradoxos, e na exploração de efeitos sonoros, Augusto dos Anjos funde a inflexão simbolista e a retórica científica, criando uma dicção singular, que projeta a hipersensibilidade e a visão trágica e mórbida da existência.

Fonte:
Passeiweb.

Augusto dos Anjos (Livro de Poesias)


CONTRASTES

A antítese do novo e do absoleto,
O Amor e a Paz, o Ódio e a Carnificina,
O que o homem ama e o que o homem abomina,
Tudo convém para o homem ser completo!

O ângulo obtuso, pois, e o ângulo reto,
Uma feição humana e outra divina
São como a eximenina e a endimenina
Que servem ambas para o mesmo feto!

Eu sei tudo isto mais do que o Eclesiastes!
Por justaposição destes contrastes,
Junta-se um hemisfério a outro hemisfério,

Às alegrias juntam-se as tristezas,
E o carpinteiro que fabrica as mesas
Faz também os caixões do cemitério!…

DEBAIXO DO TAMARINDO

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilissimos trabalhos!

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flora Brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios
De minha vida e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!

DECADÊNCIA

Iguais ás linhas perpendiculares
Caíram, como cruéis e hórridas hastas,
Nas suas 33 vértebras gastas
Quase todas as pedras tumulares!

A frialdade dos círculos polares,
Em sucessivas atuações nefastas,
Penetrara-lhe os próprios neuroplastas,
Estragara-lhe os centros medulares!

Como quem quebra o objeto mais querido
E começa a apanhar piedosamente
Todas as microscópicas partículas,

Ele hoje vê que, após tudo perdido,
Só lhe restam agora o ultimo dente
E a armação funerária das clavículas!

IDEALISMO

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
- Alavanca desviada do seu fulcro -

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

IDEALIZAÇÃO

Rugia nos meus centros cerebrais
A multidão dos séculos futuros
- Homens que a herança de ímpetos impuros
Tomara etnicamente irracionais!

Não sei que livro, em letras garrafais,
Meus olhos liam! No húmus dos monturos,
Realizavam-se os partos mais obscuros,
Dentre as genealogias animais!

Como quem esmigalha protozoários
Meti todos os dedos mercenários
Na consciência daquela multidão...

E, em vez de achar a luz que os Céus inflama,
Somente achei moléculas de lama
E a mosca alegre da putrefação!

O LÁZARO DA PÁTRIA

Filho podre de antigos Goitacases,
Em qualquer parte onde a cabeça ponha,
Deixa circunferências de peçonha,
Marcas oriundas de úlceras e antrazes.

Todos os cinocéfalos vorazes
Cheiram seu corpo. À noite, quando sonha,
Sente no tórax a pressão medonha
Do bruto embate férreo das tenazes.

Mostra aos montes e aos rígidos rochedos
A hedionda elefantíase dos dedos...
Há um cansaço no Cosmos... Anoitece.

Riem as meretrizes no Cassino,
E o Lázaro caminha em seu destino
Para um fim que ele mesmo desconhece!

O MARTÍRIO

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!

Tarda-lhe a Idéia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
E como o paralítico que, á mingua
Da própria voz e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem á boca uma palavra!

PSICOLOGIA

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e á vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Fonte:
ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. Editora Martin Claret, 2001.

Celso Sisto (As Voltas que uma História Dá)


Braguinha (João de Barro). Festa no céu.
Ilustrações de Tatiana Paiva.
Rio de Janeiro, Rocco Pequenos Leitores, 2010.
32p.

Quem conta um conto aumenta um ponto, já diz o ditado popular. E um conto muito contado, em suas andanças pelo mundo, vai recebendo coisas de cada lugar por onde passa e vai perdendo outras tantas. É a dinâmica das histórias que estão vivas!

Essa festa no céu é assim: o mestre sapo ensinava tabuada aos sapinhos da lagoa, quando a Araponga anuncia o convite de São Pedro para a festa no céu, na noite de São João. A festa era só para bicho que voa. A Saracura fica de gozação e Mestre Sapo promete ir de qualquer jeito. Ouve o Doutor Urubu cantando e decide ir dentro do violão do pássaro. Na manhã da festa ele se esconde e vai. No meio do caminho o Urubu o descobre, mas leva-o ainda assim. Na festa nenhum pássaro quer dançar com o Mestre Sapo. Ele adormece num balanço do jardim e na hora de ir embora, como o Urubu já tinha saído, enfia-se no trombone do Macuco. Daí pra frente, a graça toda está em descobrir como essa história vai terminar.

A história é muito conhecida, e tem raízes nas fábulas do século V antes de Cristo. O mérito de Braguinha, autor dessa versão, é misturar no corpo da história composições suas e cantigas populares. Abrasileirar a história, situando-a no sertão e ampliar o universo dos seres alados para incorporar mosquitos, besouros, borboletas, aproveitando, inclusive o clima das festas juninas, com canjica e quentão.
O texto é todo rimado, a maior parte em estrofes de quatro versos. Tem proximidade com o repente, o cordel, a poesia popular típica de feira nordestina, principalmente.
As inovações são saborosas: o sapo é descoberto na ida e não na volta; não volta na viola do Urubu, mas no trombone do Macuco; é descoberto quando os músicos da orquestra resolvem tocar um dobrado em pleno caminho de volta; é cuspido longe e não jogado por maldade ou vingança.

Não há interferência divina e o conto serve para explicar porque ainda hoje o sapo é achatado, feio, meio disforme, com olhos esbugalhados e boca grande. E a história termina com a lição para o leitor, o que é praxe nesse tipo de história.
As ilustrações do livro são uma maravilha. A ilustradora faz uso de recortes, colagens, tecidos, papéis com texturas, amassados, fios, pontos, bordados, rendas. Um desfile de cores que enchem os olhos. Uma criação cheia de ângulos e movimentos.
Talvez os “politicamente-corretos” reclamem de discriminação, já que os pássaros não quiseram dançar com o sapo. Ou da relatividade do conceito de beleza, quando o narrador afirma que o sapo ficou feio e disforme. Mas o autor conta assim e assim será, tá? O autor é soberano!

Braguinha, velho conhecido dos adultos, gravou primeiro essa história na coleção Disquinho, da gravadora Continental, nos anos 60, antes dela virar livro. E foi sempre um compositor festejado, famoso principalmente por suas marchas de carnaval.

Pois esse carnaval, em forma de livro também é pra deixar qualquer leitor contente! Pule e brinque! É festa na literatura!

Fonte:
Artistas Gauchos
http://www.artistasgauchos.com.br/