domingo, 6 de maio de 2012

Wagner Marques Lopes / MG (O Martim-pescador do Rio Xerém)


O nosso Martim vivia
nas barrancas do Xerém.
Pescava o dia inteirinho,
a cuidar de sua cria,
que o esperava lá no ninho.

Eram tempos de fartura,
com peixes de qualidade.
Ele acordava com o dia...
Quando o sol ganhava altura,
um cesto bom ele enchia.

De certa feita, porém,
após fazer uns mergulhos,
Martim notou algo estranho
nas correntes do Xerém.
“-Que água turva que apanho!...”.

Mergulhava e nada via...
Nem mesmo sombra de peixe!...
Tudo era escuro demais!
Foi assim, dia após dia...
“- Peixe que é bom, nunca mais!”.

O rio bem poluído!...
A mortandade dos peixes!
Martim ficou bem tristonho...
Tudo estaria perdido?
Chegara ao fim um bom sonho?

O Martim- pescador do Rio Xerém
Eram peixões e peixinhos
descendo o rio, boiando...
E Martim falou com brio:
“- Que vale o choro?!... Sozinho,
não mudo a água do rio!...

Seguindo o rio, a montante,
Martim-pescador descobre
a razão de seu sofrer:
uma usina, a todo instante,
faz descargas a valer.

Dela saem poluentes
que tombam num ribeirão...
E conclui, com desconforto:
“- Contaminam afluentes...
O Xerém tem peixe morto!”

Ante um crime tão patente,
decide ir à usina.
Mostra o samburá vazio,
ao falar com o presidente:
“- Não há mais peixe no rio!...”.

Adeus à poluição!
A usina instalou os filtros.
E Martim, com seu menino,
volta a pescar de montão
num Xerém bem cristalino!

Fonte:
Ambiente Brasil

Bernardo Trancoso / ES (Diário de um Sonetista)


Tem horas que a gente fica com uma vontade louca de escrever e, mesmo sabendo que para escrever é preciso muito mais do que uma simples vontade, abre a gaveta às pressas à procura de lápis e papel. Há quem já arranque a folha do caderno antes que surjam as primeiras palavras. Há quem arrisque rabiscar o que lhe vem à mente, sem preocupação com a coerência, com a gramática, ou com o destino aonde aquilo tudo vai levar. Embora saiba o propósito deste texto, que é o de introduzir no meu sítio um lugar para a minha prosa, na intenção de que isto possa um dia ajudar alguém a começar as suas andanças pela literatura, neste exato instante eu pertenço a esta categoria de escritores compulsivos: não sei sobre o que vou escrever.

Só que minha vontade louca resolve, ao invés de enveredar pelos caminhos complicados da importância de escrever, que é tão ou mais valiosa do que a de ler, percorrer as trilhas seguras e sensatas do prazer que dá ao escritor o texto completo, bem feito. Não estou falando, outra vez, das concordâncias verbais e dos reguladores lingüísticos impostos pela gramática. Em matéria de palavras escritas, sou um pecador como qualquer outro: cometo minhas confusões com verbos, substantivos e vírgulas. Não sei mais distinguir a diferença entre uma oração subordinada causal e outra, concessiva. Agente da passiva, então, nem se fala. O editor de texto que estou usando é o meu corretor básico, o restante é o que lembro das aulas da Dona Edna e dos demais professores que tive... Enfim, perdoe-me pelos erros de português, aquela história... Mas, por favor, me deixe terminar este texto. Ou, como o autor do último livro que li dizia, não me perdoe, os erros são propositais.

Leio muito, eu. Adoro o prazer de um bom livro. Eles me fazem navegar por universos ainda inexplorados e que na maioria das vezes acabam ensinando algo. Recentemente, li um muito interessante sobre um jovem indiano que atravessa o Pacífico com uma hiena, um tigre de bengala e um orangotango... Quem tiver a oportunidade, o livro em português chama-se "A vida de Pi". Não vou falar mais nada dele, pois livro é igual xampu: para a cabeça de uns, serve; para a de outros, não. Se você não gostar, não me culpe. Nem culpe o autor, pois ele não pode, sob nenhuma hipótese, ser retirado do pedestal onde se colocou ao romper a barreira da imortalidade e escrever um livro. Algumas dicas para ler sempre: troque regularmente de autor e de assunto, para não enjoar; se não gostar de um livro e demorar em terminá-lo, tente voltar a ele no máximo três vezes e depois desista (levei um ano para ler um livro do Salman Rushdie... arrependo-me até hoje); com todo respeito aos tradutores, se puder leia um livro no idioma em que foi escrito e, finalmente, não procure grandes livros apenas em grandes autores – é muito bom ser surpreendido por um autor pouco conhecido no meio.

Veja só o leitor como já saí do tema inicial deste texto e enfurnei-me por outros caminhos. É assim com a poesia, é assim com a vida da gente onde nem tudo sai do jeito que esperamos, por que não haveria de ser assim com um artigo de abertura de uma página sobre o prazer de escrever? A magia da escrita está na liberdade que ela proporciona. Quando lemos algo, o fim já está escrito, ainda que não o conheçamos. No ato de escrever, o poder criador passa a ser do autor. Porém, com este poder advém, de certo modo, uma responsabilidade para responder pelas suas palavras. Salman Rushdie – convém citá-lo novamente – que o diga... Por isso é que escrever é arte; ler não é arte. Voltemos, então, ao tema principal.

"Como se escreve menos hoje em dia, como se escreve tanto hoje em dia". Li isso buscando na Internet um artigo sobre isso mesmo, e parei por aí. Escrevemos demais. Na frente de um computador, conversamos no aplicativo de mensagens instantâneas, enviamos e-mail, digitamos o endereço de uma página da Internet... A vida de muitas pessoas – a minha, inclusive, e cada vez mais a sua – gira hoje em torno de um quadrado de quinze polegadas com resolução de 800 por 600. Digito muito o dia inteiro mas, ao final, não escrevi nada. E o que isso representa? Menos livros, menos poesias, mais conteúdo para satisfazer necessidades momentâneas e egoístas e, portanto, inútil em um contexto mais amplo. Há os que alertam sobre o fim das relações entre as pessoas com o advento do Messenger e, mais recentemente, do iPod. Neste artigo, que já está ficando comprido, não entrarei no mérito deste tipo de discussão. Para mim a música é e sempre foi uma representação artística que abre a cabeça, inspirando outras artes. Basta fazer um teste para ver quantas músicas você conhece de memória. Música é poesia. Portanto, sem saber já estamos cheios de poesia dentro de nós. Agora, expressar esta poesia, acrescentando nela o elemento diferenciador de que somos feitos, que é a nossa personalidade, são outros quinhentos. E isso é o que me preocupa. Sinto que, em proporção com o século passado, estamos cada vez mais carecendo de escritores. E não estou falando apenas de dissertações, mas também de poemas e – para caber neste espaço – sonetos. Como eu gostaria de encher o meu sítio de sonetistas novos...

Não posso esquecer dos blogs, ou diários virtuais que muitos mantêm em um sítio na rede mundial de computadores. São geralmente compostos de textos curtos, relatos de acontecimentos esparsos que, sem dúvida, no mínimo ajudam a praticar o português. Afinal, ninguém gosta de entrar em um blog e encontrar a palavra "menas", popularizada não se sabe como nem por quem, mas que é cada vez mais comum na linguagem falada e dói ao ouvido daqueles que são um pouco mais cultos. Por isso, seus donos devem ter cuidado com o que publicam. Sim, os blogs são uma tendência louvável (isso aqui é uma espécie de blog), mas sinto que ainda falta um passo na evolução, ou melhor, na recuperação do prazer da escrita na era digital.

E é aqui que este artigo termina, meu amigo, sem definir solução alguma para o problema da perda de escritores. Espero, com o tempo e com outros textos como este, dar a minha contribuição para o tema. Estou até com um livro na gaveta que pretendo publicar em um futuro não muito distante. Novos sonetos meus, que já fluíram com mais vigor, ajudar-me-ão a manter o apego pelo conjunto lápis e papel. Mas o propósito, mesmo, é repassar o lápis. E quem sabe, um dia, no meio deste amontoado de palavras e de versos, passe por aqui um sujeito tímido e sonhador, com uma mente frenética ocultada por um olhar distante, e quem sabe ele resolva que nasceu para ser escritor, e quem sabe a partir de suas palavras eu encontre inspiração para mais um artigo, que inspire outro escritor num círculo vicioso e não menos romântico... Ah, aí neste momento, já não terá sido em vão... Já estou até ouvindo a minha mãe dizer: "deixa de sonhar, menino!".

São Paulo, 20 de março de 2005.
Bernardo Trancoso


p.s.: Relendo o primeiro parágrafo, no afã de revisar o que foi feito, empolguei-me por conseguir adequar o texto à sua proposta inicial de escrever compulsivamente. Todavia, nos demais parágrafos, senti pesar sobre mim a responsabilidade de deixar algo de inspirador e interessante para os leitores, e o que vi foi mais uma crítica do que um incentivo ao ato de escrever. Fiquei até meio triste com o texto... Será que eu também terei perdido o prazer de escrever e vou me juntar ao grupo dos que passeiam pela vida sem deixar uma mensagem escrita, como um testamento de sua alma, para as gerações vindouras? Ou tudo isso é saudade do estimado autor Fernando Sabino?

Fonte:
http://www.sonetos.com.br/vep1.php

José Galas / PI (Caderno de Poemas)


ENGENHO DE LETRAS

Cansado de letras cansadas
letras de ofício
quase tão mortas
quanto o fim do dia.

É mais o que engendram
do que o engenho delas
que atrofia.

É como porfia de partilha:
uns a querem morta
outros nua.
De nada adianta copular
com a forma.
O que sobrevive
é de pura teimosia.

E pensar que o tempo passa
entre o dedal e a linha
quase num suspiro.

CABEÇA DE POETA

Não um troféu se safári, ornamento.
Um bicho vivo arrastando a carcaça
para não morrer em lugar comum:

O instinto transmutado
longe das doces palavras.

DIÁSPORA

Aqueles aos quais me apeguei
estão distantes agora
Uns morreram por terra
outros correram por fora
De sorte que nada resta
afora gibão e espora
Eu mesmo me plantei aqui
entre o mar, o sertão e a espera.

Se perguntares a quem combato
Digo-te: a mim mesmo
bicho do mato.

ARRANJOS FLORAIS

não queira no galho
colher a rosa viva
nem no livro agasalhar
a pétala caída

CRIADOR DE GATOS

deixe-me dormir
amanhã tenho tempo de sobra:
frito ovo arrumo a casa faço carinho no gato
ah!? não tenho gato!?
tanto faz
com tempo sou capaz de inventar
um.

UMA JANELA AO LADO DA CAMA

nenhuma aurora
nem pomar
meus olhos dão para alqueires
de luzes,
os automóveis passam desligados
e estou cansado desse sabor...

O HOMEM E O TEMPO

O homem pára,
fuma seu cachimbo.

Que matéria ousaria perturbá-lo?
O tempo não é feito de têmporas
nem o homem de tâmaras.
Cada um a seu feitio
engendram-se.

O homem fuma,
o tempo esfuma-se
e não passa.

CARAMUJO

às vezes me encontro caramujo
o mar vem, rola...
o caminho percorrido a água apaga
a onda passa
o mar me devolve.

ANTROPOFLOR

A flor é diferente
na boca de cada poeta
Pode ser palavra só
sem aroma, adorável
palavra beija-flor
um conto
A flor na boca de cada poeta
é a flor
que ele come.

Fonte:
Antonio Miranda.

Carlos Heitor Cony (As Ligações Perigosas do Jornalismo e da Poesia)


No século passado, quando nasci e me iniciei no ofício que até hoje exerço, um dos meus espantos foi descobrir que, nas Redações de antigamente, todos, do redator-chefe ao contínuo que levava os originais para a composição, todos, sem exceção, faziam poesias, sendo o soneto o estuário preferencial para o estro geral.

Eu levava então da poesia, se não um amor entranhado, um respeito religioso, uma admiração distante e sagrada. Não conhecia até então nenhum poeta em carne e osso e, no fundo, no fundo, achava que os poetas não tinham carne nem osso. Ora, direis ouvir estrelas, vai-se a primeira pomba despertada, querida ao pé do leito derradeiro, a lua banha a solitária estrada, auriverde pendão da minha terra - todos os versos que conhecia eram desossados, feitos de éter e nuvem, nada tinham a ver com os homens que conhecia e mesmo com aqueles que não conhecia.

Até que, no final de uma tarde de distante ano, subi as escadas, combalidas e decadentes, do meu primeiro jornal, um jornal que vivia de seu passado enquanto eu queria começar a viver o meu futuro.

O secretário, que depois do dono era a autoridade máxima da Redação, chamava-se Mâncio, se não estou enganado, Mâncio Teixeira, era paraense ou maranhense. Apresentei-me e apresentei meu pequeno texto, a Central do Brasil decidira cancelar uns trens por medida de economia ou coisa equivalente.

Mal me aproximei, percebi que Mâncio apressadamente escondia a lauda que estava escrevendo, metendo-a numa pilha de matérias que ele teria de ler para encaminhar às oficinas. Meio sem jeito, como se fosse surpreendido fazendo má ação, ele leu o meu texto, corrigiu uma concordância, mas elogiou a matéria. Pediu que ficasse mais um pouco por ali, talvez precisasse de mim para fechar a primeira página.

Aproveitei uma ida dele ao banheiro e dei uma espiada na pilha de matérias, para saber como sairia a edição do dia seguinte. E encontrei a folha que ele escondera afobadamente: era uma poesia, mais precisamente, um soneto. Estava no segundo terceto e continha o uivo desesperado de uma dor de corno recente e sangrada.

Não tive tempo de ler o soneto, mas fiquei pasmo. Então um secretário de Redação, com a obrigação de fechar um jornal com cotações da Bolsa, crimes na Baixada Fluminense, crise na bancada do governo, o Flamengo mudando de técnico, o prefeito prometendo acabar com as enchentes do Catumbi -e ele suava para encaixar rimas e decassílabos, dando conta da devastação em que vivia após a certeza de que era traído.

Durou pouco meu pasmo. Cedo descobri que uns pelos outros, todos faziam seus versos, uns de forma escondida, outros abertamente, pois faziam questão de passá-los de mesa em mesa, cobrando uma opinião, mas esperando um elogio.

Frequentei outras Redações, mais nobres, com gente mais ilustre. Mas nunca esqueci o Mâncio, que morreria pouco depois, de infarto fulminante, ao subir as combalidas e decadentes escadas de sua Redação. Não era paraense nem maranhense, como eu supunha, mas de Parnaíba, no Piauí, segundo vim a saber no necrológio que alguns jornais publicaram. Era viúvo e não deixou filhos. Mas publicara na mocidade um livro de poesias, com o profético título de "Versos Inúteis".

Para compensar a inutilidade dos versos do Mâncio, encontrei pelas Redações poetas de fulgurante presença nas letras nacionais. No "Correio da Manhã", durante anos, fui colega de Carlos Drummond de Andrade, era meu vizinho no Posto 6, dava-lhe carona no meu carro, nunca o surpreendi fazendo um poema ou falando de poesia.

Nem todos tinham a sua glória e serventia. Eu preferia ler poemas que eram feitos envergonhadamente nas folgas do trabalho. Um repórter que trabalhava na editoria de esporte, cobrindo o turfe, fez um soneto intitulado "O Mosteiro de Tijolos de Feltro". O setorista credenciado no Ministério da Marinha brindou-me certa vez com um enorme poema sobre Tamandaré. Pouco depois, ele ganharia a medalha do Mérito Naval por conta de seus versos.

Quando publiquei, eu mesmo, o primeiro romance, passei a ser considerado persona grata dos editores, pelo menos do meu editor, que era o Ênio Silveira, da Civilização Brasileira.

Certo fim de noite, quando a Redação começava a ficar vazia, fui chamado ao gabinete do diretor responsável pelo jornal, um personagem imponente, de olheiras dramáticas e voz cavernosa, que já se candidatara cinco vezes à Academia e cinco vezes tivera apenas um voto de um acadêmico que era positivista como ele.

Nunca me chamara, eu até suspeitava que ele nem soubesse da minha existência. Levantou-se quando entrei em sua sala, ofereceu-me um café e pediu que lesse um soneto que acabara de fazer.

Evidente que elogiei o soneto, mas exagerei um pouco. Como castigo, ele abriu uma gaveta e dela tirou um calhamaço de versos. Que lesse com atenção e, se achasse mérito naquela produção poética, a encaminhasse ao meu editor. E, para me subornar, disse que somente eu poderia escrever-lhe o prefácio.

LEMBRANÇAS

Aos 20 anos, eu sabia latim, mas não sabia tomar um bonde. Ônibus então era mais complicado; afinal, bonde andava sobre trilhos, ônibus andava onde queria, cumprindo itinerários complicadíssimos. Deixara o seminário com odes de Horácio na cabeça, era capaz de recitar trechos inteiros do "Pro Milone" de Cícero. Mas, nas coisas práticas e necessárias, era uma lástima.

Sabendo que o filho não dera para padre, o pai achou que eu devia ser jornalista, função naquela época destinada àqueles que não davam certo em nenhuma outra. O sujeito ia trabalhar num jornal como alternativa desesperada, após quebrar a cara em outros ofícios que exigiam mais sabedoria e disciplina.

As redações estavam cheias de médicos, advogados, professores, políticos de diversas origens e finalidades, alguns até que davam certo na função principal, mas enchiam o tempo com um bico mal-remunerado, que não exigia habilitação específica, nem mesmo a de escrever razoavelmente.

Era comum a existência daqueles tipos que Lima Barreto descreveu em suas "Recordações do Escrivão Isaías Caminha". O cidadão era considerado entre os médicos por ser bom jornalista e respeitado entre os jornalistas por ser um bom médico.

Foi assim que, naquela tarde, após negociações embrulhadíssimas entre o pai e um secretário de jornal, subi as combalidas escadas da "Gazeta de Notícias", jornal que já tivera sua glória, endereço famoso na rua do Ouvidor, de cujas sacadas José do Patrocínio levantara as massas a favor da Abolição.

Um tópico da "Gazeta" derrubava ministros, falia bancos, consagrava um ator, provocava uma revolução. Durante a campanha de Canudos, houve um dia em que morreu mais gente sob as sacadas do jornal do que no arraial do Conselheiro.

O jornal vivia de seu passado, e eu queria viver um futuro que, aliás, nunca tive. Não podíamos dar certo. Apresentei-me ao tal secretário, que se chamava Mâncio – jamais conheci outro Mâncio, de maneira que não lhe guardei o nome todo, por isso o Mâncio me bastava porque o julgava único e suficiente.

Era um paraense que passava o dia corrigindo as besteiras que os outros escreviam. Nas horas vagas, fazia versos – função mais do que desculpável naquele tempo. Todos, de alguma forma, faziam versos mais ou menos por obrigação existencial. Era uma forma de superar a mediocridade da vida que se levava.

Mâncio tinha na página um pequeno espaço destinado a um soneto diário que ele próprio escrevia sob o título genérico de "Perfí...dias", assim mesmo, eram perfis de adversários ou desafetos do dono do jornal. Estava exausto, já esculhambara metade dos políticos, banqueiros e pessoas gradas do Rio de então. E, como o dono do jornal variava de adversários e desafetos conforme as circunstâncias, a outra metade não perdia por esperar.

Ele me olhou penalizado, tão jovem, sabendo latim (o pai fazia questão de proclamar essa minha única e problemática qualidade) e ali à sua frente, aguardando uma missão que fosse útil a mim e necessária à nação. Como não lhe passasse pela cabeça que eu não soubesse fazer sonetos, pediu-me que fizesse o "Perfí...dias" do dia seguinte. E deu-me o tema: Carlos Lacerda, que naqueles dias fazia campanha contra o prefeito que isentara o jornal de não sei quantas multas e emolumentos vários.

Apesar da pouca idade, eu já fizera muita coisa reprovável nos meus 20 anos, mas nunca me atrevera a fazer um soneto. Os maiores criminosos, capazes de violar sepulturas, violentar freiras e degolar criancinhas, conservam sempre um limite moral. Por exemplo, não comem carne nas sextas-feiras da Quaresma.

Recebida a missão, procurei um lugar para desovar os 14 versos dos quais dependeria o meu futuro. À frente do Mâncio havia uma mesa e cadeira empoeiradas e vazias, que me pareceram apropriadas para a função de fazer um soneto contra o Carlos Lacerda, que eu nem sabia ao certo quem era, nem o que fazia.

Houve um brado retumbante na redação. O próprio Mâncio levantou-se, vermelho de indignação: "O que é isso? Esta cadeira é do Olavo Bilac!". Levei um susto. Pelo que imaginava, Bilac havia morrido há anos, mas tive a sensação de que de repente ele iria surgir, vindo da rua ou do banheiro, para sentar ali, espanar a mesa e fazer um daqueles sonetos que lhe deram glória.

Pasmo, tendo iniciado tão mal minha carreira de jornalista e sem esperança de me recuperar às custas de um soneto imortal, lá fui eu para os fundos da redação, junto ao pessoal do turfe. Vencida a primeira dificuldade, logo tive outra: teria de encontrar uma rima para "Lacerda" e a única que eu sabia era impublicável nos jornais daquele tempo.

Mesmo assim, desovei os 14 versos que me garantiram, senão um futuro, ao menos um sanduíche de salame com caldo de cana, que o próprio Mâncio me pagou, numa pastelaria da rua Senhor dos Passos.

O SONETO

Era magro, feio, merecia o superlativo: era magérrimo e feiíssimo. Usava óculos, fumava de piteira, a voz rachada, andava mal vestido, mas tinha – milagre jamais explicado – um carrinho inglês que sempre estava de bateria arriada e precisava ser empurrado.

Trabalhava num vespertino, seu texto era barroco, cobria festividades cívicas e religiosas. Era – segundo o meu pai – uma boa alma, embora fosse ruim de corpo. Um dia, me levou para um canto da redação e recitou-me um soneto de sua lavra, os olhos faiscando de lascívia contrariada.

Esqueci o soneto minutos depois. Guardei por uns tempos o final, aquilo que os parnasianos chamavam de "chave de ouro". Transcrito em papel talvez não impressione.

Dito por ele, num canto empoeirado da redação, com sua voz rachada, a piteira nas mãos trêmulas, era uma apoteose da dor: "Passei bem junto a ela. E decerto ela nem soube que eu passei tão perto e nem suspeita que eu segui chorando!". O verso quebrado e a exclamação final faziam parte da poética e das redações daquele tempo.

Chamava-se Cardim. Domingos da Silva Cardim se não me engano. Casara-se com uma viúva tão feia e magra como ele, também boníssima alma. Não tinham filhos.

Por isso ou aquilo, Cardim apaixonava-se com freqüência e, quanto menos correspondido, mais apaixonado ficava. Deve ter feito outros sonetos, circulou pela redação um poema pornográfico e anônimo que desde o redator-chefe até o contínuo que ia buscar café na esquina atribuíram ao estro do Cardim.

Cardim morreu como um passarinho – naquele tempo era comum esse tipo de morte. O tempo passou, esqueci dele, mas nunca esqueci aquele final de lascívia contrariada. Outro dia, bestamente, depois de um dia inglório e triste, cara mais uma vez quebrada, me surpreendi recitando em causa própria: e ela nem soube que eu passei tão perto e nem suspeita que eu segui chorando!

Fonte:
http://www.sonetos.com.br/cony.php

Afonso Felix de Sousa / GO (As Engrenagens do Belo)

Afonso Félix de Sousa (GO)

dedicado a Rosário Fusco

I

Se a seta da beleza nos acerta
e em êxtase pairamos de repente,
Que mão ou que inefável nos desperta
da vida e sua lógica inclemente?

Cada manhã o mesmo sol nos cobre
e sempre o mesmo é o ar de que vivemos.
A alma se encolhe, cada vez mais pobre.
A boca, já nem sabe o que comemos.

Olhamos no jardim flores murchando
e no pomar nem nos importam frutos.
As horas morrem, nem sabemos quando.

Rendemos (e a que reis!) honra e tributos.
De súbito de nós nos ressurgimos:
O belo vem do sol do que já vimos.

II

O belo vem do sol do que já vimos,
em nós e sobre nós mantendo acesa
nossa alma a equilibrar-se em seus arrimos
de formas e quinhões da natureza.

Do núcleo desse sol descem imagens,
que expostas frente a nós e contrapostas
uma a outra desdobram-se em paisagens
de angras ou de vergéis, de céus, de encostas...

Imersos, a seguir esse cortejo
de imagens ora claras, ora em fumo,
no fim já nem sabemos a que ensejo

bebemos da emoção em febre o sumo.
E o belo vindo a nós como em sigilo,
Sentímo-lo, mas como transmiti-lo?

III

Sentímo-lo, mas como transmiti-lo,
esse frêmito, a alguém, se é regra termos
também ao ver e ouvir um nosso estilo
e projetarmos sombras de ilhas, de ermos?

Tanta coisa em comum: instintos, fala.
Vamos, um de outro, cada vez mais perto,
e ao nos calarmos, do silêncio exala
o hálito de quem prega no deserto.

Quão próximos um do outro, e quão distantes,
no abraçar, quão pouco o abraço abarca.
Tudo como se em grei de semelhantes

Cada um levasse à fronte a própria marca.
E mesmo o nosso ser, se o descobrimos,
Pisamos ora abismos, ora cimos.

IV

Pisamos ora abismos, ora cimos,
por mantermos nos pés pássaros tontos.
Um passo a mais - se não nos sucumbimos,
já o próximo hesita entre dois pontos.

Um pé pisando o sonho e o outro o provável,
do que há de vir adiante nos perdemos.
O mar convida com seu dorso instável
a singrá-lo, e ilusões são nossos remos.

Se subimos, aguardam-nos descidas
e o chão pode fugir aos nossos passos.
Descemos, o horizonte são subidas,

e no alto nos esmagam os espaços.
Mundo belo e falaz... Ao vê-lo e ouvi-lo,
o olhar, ora é inquieto, ora tranqüilo.

V

O olhar, ora é inquieto, ora tranqüilo,
que os olhos, nesse câmbio ou livre jogo,
sem nunca se deter nisto ou naquilo,
têm no seu centro essências de água e fogo.

Se eles fechamos, salta do invisível
e seus porões de adormecidas brasas,
um território a erguer-se ao plano, ao nível
daquele a que se vai com nossas asas.

E o invisível, no que será o centro
de nós, se mostra em formas, cenas, vultos
girando num caleidoscópio dentro

de nós, em planos claros, bem que ocultos.
Mas do que vemos e é por nós aceito,
pouco nos toca o inédito e o perfeito.

VI

Pouco nos toca o inédito e o perfeito
quando o que é novo é por si só o novo
sem ter com que ferir-nos a alma e o peito,
sem o pulsar de um túmulo ou de um ovo.

E o que é perfeito é como o fruto exausto
que cai da árvore mais do que maduro,
a si mesmo se dando em holocausto
por se bastar no seu esmero puro.

Mas nós, trazendo às costas nossa história
de erros a gerar erros; nós, expulsos
do Paraíso, nós somos a memória

de árduas jornadas, com grilhões nos pulsos.
E o perfeito não é da alma repasto,
se a perfeição se erige em templo gasto.

VII

Se a perfeição se erige em templo gasto
(gasto - que não se pense em tempo, danos -
gasto por nada mais dizer no vasto
domínio em que se erguera um dia, há anos),

acaba por cansar-nos... É que ilude
um céu de muito azul, onde encontramos
por instantes o gozo, a plenitude,
e em pouco mais, são outros os reclamos

do coração saciado. Que a nós venha
um outro céu de nuvens e tristezas,
e assim de nossas almas o céu tenha

as cismas e a linguagem a ele presas.
O antes não visto em nós não faz efeito,
se o inédito a si mesmo está sujeito.


VIII

Se o inédito a si mesmo está sujeito
e surge qual de planta sem raízes,
traz todos os sinais do que foi feito
e não do que se criou, nos seus matizes.

Terá do belo o tom, e até o canto
de música ritmada em sons forjados,
que ouvimos como a ouvir um contracanto
de pássaros sutis, mas ensinados.

Terá do belo a plástica, o contorno,
e nuanças de paisagens longe, belas,
a fazer-nos erguer um olhar morno

de quem olha miragens sem crer nelas.
Far-se-á do sonho lúbrico, mas casto,
além de ser a sua sombra e rasto.

IX

Além de ser a sua sombra e rasto,
tem de Narciso a converter-se em templo
de si mesmo, quem faz de espelho e pasto
o próprio ser e a si tem como exemplo.

O travo solitário, o de um eunuco,
sobre seu peito é vácuo, é tédio, é peso.
Da vida o que ele extrai é neutro suco
De acre ou nenhum sabor a que vai preso,

E seus passos, seus passos indo em torno
de si mesmo, ressoam no vazio.
Se ama, mesmo no amor o ardor é morno;

se abre-se em flor, é flor de hálito frio.
E a nós, de alma votada ao que é complexo,
pouco nos toca a rosa com seu nexo.

X

Pouco nos toca a rosa com seu nexo
se as pétalas não têm por alma gêmea
o viço das auroras e, em anexo,
as vibrações da pele de uma fêmea.

O que há por trás da rosa - a carnadura,
a seiva e os tons de arco-íris seqüestrados -
é que a mergulha em favos de doçura
e vida lhe insinua aos rendilhados.

Um corpo de mulher, se nele vemos
tantas formas captadas à beleza,
não baste o culto a esses dons supremos

de Deus-Consolação á natureza.
Nele busquemos mais que a aura vazia
de pétalas e cor em harmonia.

XI

De pétalas e cor em harmonia
forma-se a rosa, e nela o odor e a essência
são porções da peçonha em que se cria
já no contorno o breve da existência.

Um corpo de mulher, na área do busto
enroscam-se nos ombros, nas axilas
e entre os seios, serpentes que sem susto
seguimos, como ao charme das pupilas.

Que seus caminhos levem-nos ao ventre
e o silvo agudo ao deslizar no bosque
da redenção, ao fim do qual se adentre

o que em nós é serpente - e ali se enrosque.
Que ali se sagra o amor, mas desconexo
se não traz de outras rosas o reflexo.

XII

Se não traz de outras rosas o reflexo,
que pode a rosa dar de estrume ao homem?
Pensemos em Adão no Éden, perplexo
ante flores que os dias não consomem.

Rosa, rosa do sexo, as suas garras
de ventosas e céus de êxtase plenos,
movendo o homem prende-o nas amarras
de um barco que fundeou na onda de Vênus

- onda em que surge a súmula do belo
e onde ressoa o canto das sereias.
Dessas amarras parte o fio ou elo

de luz que vem buscar as nossas veias.
Rosa, rosa do amor, o amor esfria
se ela não se abre em rosas de outro dia.

XIII

Se ela não se abre em rosas de outro dia
seu existir efêmero é a morte
e nem ao neutro sol da geometria
o que a faz bela não terá suporte.

Falam-nos vozes, vozes do passado;
de quanto amamos queima-nos o fogo;
o coração no peito, aprisionado,
de baque a baque enfrenta a vida, ao jogo

em que se apraz, de impulso contra impulso.
A sermos nós, nós somos o que fomos,
embora pulse em nós um ser avulso

a dar ao nosso ser proibidos pomos.
Cegos podemos ver, surdos ouvimos,
se a tudo cobre o sol do que sentimos.

XIV

Se a tudo cobre o sol do que sentimos,
chegamos mesmo à zona mais sombria
que há em nós, e por nossa, compartimos
em formas, cores, música, poesia.

Cecília a sussurrar seu eu profundo,
Vinicius em seresta ao próprio enterro,
Drummond domando a máquina do mundo,
Darcy buscando em seus acertos o erro.

E assim nos vemos, deslumbrados, bobos,
frente a um Goeldi, Guinard, Santa, Pancetti
ou Portinari; ou quando Villa-Lobos

os sons imersos no seu ser repete.
Se a tudo cobre o sol e ao sol seguimos,
o belo está no belo que já vimos.

XV

O belo vem do sol do que já vimos.
Sentímo-lo, mas como transmiti-lo?
Pisamos ora abismos, ora cimos.
O olhar, ora é inquieto, ora tranqüilo.

Pouco nos toca o inédito e o perfeito,
se a perfeição se erige em templo gasto,
se o inédito a si mesmo está sujeito
além de ser a sua sombra e rasto.

Pouco nos toca a rosa com seu nexo
de pétalas e cor em harmonia,
se não traz de outras rosas o reflexo,

se ela não se abre em rosas de outro dia.
Se a tudo cobre o sol do que sentimos,
o belo está no belo que já vimos.

Fonte:
Coroas de Sonetos.

João Ubaldo Ribeiro (O Sorriso do Lagarto)


Sem perder uma essencial baianidade, como seu conterrâneo Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro tanto enverga o solene fardão da Academia, como espalha pelo mundo suas hsitórias de Itaparica, do Recôncavo e do povo brasileiro, sem preder a leveza e o humor, às vezes cáustico, do cronista que milita com assiduidade na grande imprensa do país.

A obra trata-se de um apanhado de situações-clichê (tem até aquela cena clássica, imortalizada pelo cinemão hollywoodiano e pelas novelas da televisão, da queda da escadaria provocando um aborto providencial) muito bem encadeadas e recheadas de diálogos primorosos.

O Sorriso do Lagarto é um romance escrito na terceira fase do Modernismo (Pós-Modernismo), publicado em 1989, e o autor se permite beber de várias fontes dentre elas: o naturalismo; a degradação do individuo; o cientificismo; o político que quando jovem era de esquerda, depois compromete-se com a direita e o golpe militar de 1964 e, finalmente volta-se para um partido liberal conquistando altos cargos; o homossexualismo; a engenharia genética; o consumo de drogas por parte da elite; a degradação da saúde; a igreja e os pobres; o comportamento sexual feminino.

Em O sorriso do lagarto, João Ubaldo Ribeiro sublimou em conflito metafísico entre o Bem e o Mal a sua hostilidade orgânica contra o estrangeiro em geral e, em particular, contra o capitalismo norteamericano:

O sorriso do lagarto é um livro que lida com a má administração do tempo que a humanidade passa na Terra. Acho que escrevi, sim, um romance sobre o mal, que fica transparente na atitude de uma grande parte da classe dominante brasileira - ela detesta nosso país, ela detesta o que nós somos e acoberta todas as violências: a mortalidade infantil, a violência nas cidades, a miséria. Quis escrever um livro sobre o aniversário (sic, por adversário) que existe em cada um de nós, sobre a figura de Satanás. (LEIA, dezembro de 1989)

Esta obra não é um romance regionalista. É visivelmente uma obra de olho no mundo moderno. Ao mesmo tempo em que se propõe a ser um romance universal e contemporâneo, é também uma exteriorização de desconfiança, uma denúncia e uma negação de certos valores caros à universalidade e contemporaneidade. O livro apresenta constante erotismo naturalista misturado a episódios de pescarias que se somam a reflexões sobre Deus, a evolução, a ciência, em uma narrativa ágil e cheia de surpresas.

O autor vale-se de outros narradores para enriquecer seu texto.O título do livro esboça-se no início do romance, quando dois meninos trazem um lagarto com dois rabos para João Pedroso. No sorriso maléfico do réptil, João Pedroso percebe o presságio do medo e do Mal. Ao longo da narrativa, confirma-se a suspeita de Pedroso: o Mal existe, o Inimigo existe e parece rir da humanidade. A partir do título, forma-se o tema básico do romance: a presença do Mal relacionada com o poder da ciência e da política. Quem poderá dizer aonde levará a manipulação de genes humanos por um cientista amoral? João Ubaldo foi o primeiro, na literatura brasileira, a tratar com profundidade, dessa perturbadora questão.

O Sorriso do Lagarto é o mais pessimista dos romances de João Ubaldo Ribeiro. O Mal vence. O Diabo ri por último. O romance gira em torno de um triângulo amoroso constituído por João Pedroso, um biólogo excêntrico, solteirão e alcoólatra, que abandonou a profissão para ser o proprietário de uma modesta peixaria em Itaparica, Bahia; por Ângelo Marcos, um político corrupto ligado à área da Saúde, que construiu sua vida pública e sua fortuna às custas de falcatruas; e por Ana Clara, esposa de Ângelo Marcos, que, com um casamento fracassado, mas do qual não abre mão para não perder a estabilidade financeira, procura preencher seu vazio interior fora da relação que a oprime. Há ainda uma outra trama, tão importante quanto a do triângulo e a ela imbricada, ligada a Lúcio Nemésio, um cientista que, associado a uma multinacional se dedica a experiências genéticas, criando entre outras aberrações, a mistura de humanos com chimpanzés.

A partir dos conflitos gerados pela cadeia de relações entre as quatro personagens, João Ubaldo Ribeiro constrói um romance absorvente, que dá continuidade à pesquisa sobre a identidade nacional, particularmente sobre a questão da dialética entre o dado local e o cosmopolita. Há todo um empenho, no romance, em não limitar a discussão dos problemas ao contexto nacional, ainda que isso seja valorizado, para abarcar as questões por uma visada universal, que não se intimida frente a variados aspectos de ordem filosófica.

É um livro sobre a corrupção e o novo colonialismo. A personagem Nemésio, que pertence à elite, detesta seu país. O livro é sem dúvida, umas grande alegoria sobre o “Mal”, e seu símbolo maior na narrativa é o lagarto que sorri indiferente ou zombeteiro frente à condição humana, na sua arrogância de espécie dominante. A alma humana é colocada em xeque, com suas zonas de sombra e suas covardias a serviço do Mal, e mesmo a própria noção de humanidade é posta na berlinda. “A partir de que ponto um ser vivo pode ser considerado como ser humano? E que diferenças separam um animal dotado de emoção de um homem?, são questões pertinentes colocadas pela obra.

Não se pode deixar de destacar que um grande mérito do romance é o desfecho sem concessões, na contramão do gênero, com tudo para exercer grande impacto sobre o espírito tanto de um leitor mais ingênuo, habituado aos tradicionais finais felizes dos best-sellers, quanto, por sua contundência, sobre o espírito de um leitor mais familiarizado com a visão desencantada da literatura moderna, particularmente a do pós-guerra.

O próprio autor diz a respeito da obra O Sorriso do Lagarto: "O título é uma metáfora, pois é claro que não há prova científica de que existem lagartos que sorriem. Um canadense, cientista, chegou a me procurar pensando que eu escrevia uma história sobre a evolução dos dinossauros. ( .. ) Mas O Sorriso do Lagarto não se refere necessariamente a uma vingança dos dinossauros e lagartos. E no romance o protagonista nem é o lagarto. O Sorriso do Lagarto é um livro que lida com a má administração do tempo que a humanidade passa na Terra. Acho que escrevi, sim, um romance sobre o mal, que fica transparente na atitude de uma grande parte da classe dominante brasileira - ela detesta nosso país, ela detesta o que nós somos e acoberta todas as violências: a mortalidade infantil, a violência nas cidades, a miséria. Quis escrever um livro sobre o adversárioque existe em cada um de nós, sobre a figura de Satanás".

ENREDO E PERSONAGENS

A obra traz uma belíssima descrição física e individualização das personagens.

Após um longo percurso que somente o álcool aqueceu-lhe a existência, João Pedroso, o protagonista e herói do romance, tem a sua sensibilidade despertada por uma aberração da natureza. Pode um lagarto com duas caudas passar despercebido? Existe uma explicação natural e simples para tal espécie de fenômeno? Sendo um biólogo, embora tenha renunciado à profissão para viver como um simples vendedor de peixe na Ilha, João Pedroso ainda não esqueceu que a explicação pressupõe a ocorrência de um novo fator na história genética do calango. Por que um lagarto sorriria? Seria fruto do alcoolismo crônico de João Pedroso? Acontece que embora beba todos os dias, ele se mantém nos limites da lucidez e prefere acreditar em seus olhos. Bêbado e afastado da biologia, Pedroso não caiu no ateísmo. Se de vez em quando brigava com Deus, é porque não perdeu de todo sua fé. E quem crê em Deus, deve crer no Diabo. Por que um lagarto sorriria de modo hostil e zombeteiro senão tivesse algo a ver com as hostes de Satã? Afinal, lagarto é dragão em miniatura. E dragão é uma tradicional representação do Diabo.

Para João Pedroso, biólogo, o fenômeno testemunhado só pode ser fruto de uma intervenção genética artificial; e como tal intervenção supõe um conhecimento muito avançado, não há porque imaginar que tenha sido obra de amador, brincadeira inconseqüente de algum aprendiz de geneticista? Do outro lado da racionalidade, a intuição do crente adverte para a dimensão demoníaca da experiência. Do contrário, por que o lagarto sorriria com aquele ar de superioridade? O desenvolvimento do relato irá confirmar os temores de João Pedroso. E Itaparica é apenas uma das provetas nas quais cientistas de várias partes do mundo realizam uma experiência sem precedentes no campo da genética. Suas conseqüências, avalia o protagonista, podem ser funestas.

O autor avança sem precipitações, valendo-se quase todo o tempo de outros narradores. Aproveita a lição que manda semear as famosas “pistas falsas” para desnortear o leitor, impedindo-o de descobrir, antes do tempo, o verdadeiro desfecho da história. Até o final do segundo capítulo, O Sorriso do Lagarto transmite a impressão de ser um romance de costumes. João Pedroso perambula pelas praias de Itaparica, pesca em companhia de turistas endinheirados, encara seu sorridente lagarto, belisca-se para ter a certeza de que não está de porre nem delira.

Muito longe dali, o Dr. Ângelo Marcos, Secretário de Saúde, faz um interminável toalete matinal, enquanto sua mente se divide entre a próxima falcatrua que irá praticar e o discurso que logo mais deverá pronunciar na inauguraçãode um hospital. Em outro ponto da cidade, Ana Clara, a mulher de Dr. Ângelo conversa sobre sexo e drogas com sua amiga Bebel, a rainha da futilidade.

A narrativa e os personagens crescem devagar. O Dr. Ângelo cresceu na política à sombra de um velho cacique, ultrapassou-o rapidamente na corrida aos dinheiros públicos, vive como um nababo, é cínico, traz na ponta da língua as justificativas das suas radicais guinadas partidárias. Mais tarde, ao ver-se diante da morte, pois fora acometido de um câncer, e um regresso ao passado farão dele um personagem complexo. Pode-se dizer o mesmo de Ana Clara, do médico-pesquisador Nemésio, do Padre Monteirinho. João Pedroso sabe que fazer biologia é o seu dom, e a razão básica de sua angústia é precisamente a consciência de que abandonou, traindo, assim, o destino que Deus lhe traçou ao alcançá-lo com sopro da vida.

Teologia é material forte na construção deste romance. Ângelo Marcos, depois de submeter-se a um tratamento de câncer, anda “morto de pena de si mesmo, mais dependente do que um filhote de gato, e volta e meia cai em depressões abissais.” João Pedroso se compara a Marmeladov, o bêbado e destrambelhado personagem da obra, Crime e Castigo, de Dostoievski. Ana Clara se transforma em Suzanna Fleischman. Tenta assumir a postura de Molly da obra Ulisses (James Joyce) e as fantasias eróticas da heroína Lady Chatterley (D. H. Lawrence). Com essa mutação, Ana Clara tenta denunciar a hipocrisia ao seu redor.

O romance O Sorriso do Lagarto, tem sexo, experimentos genéticos e cientistas malignos. Aborda, também, temas como Deus, o Homem, o Bem e o Mal, a consciência, o sentido da vida. Tudo costurado no estilo sensual de João Ubaldo. O escritor criou uma aura de malignidade e decadência que permeia toda a ação. Seus personagens, inclusive o vilão, o doutor Lúcio Nemésio, são dolorosamente reais, compreensíveis e humanos. A trama caminha de forma inexorável para um final surpreendente e melancólico. Em seu cerne, o romance conta que pescadores de Itaparica, João Pedroso (ex-biólogo, vendedor de peixes e sociólogo amador) e Padre Monteirinho descobrem, na Ilha, o envolvimento do médico-pesquisador, Lúcio Nemésio, com a Engenharia Genética: criação de monstros em laboratório. As cobaias humanas para as experiências eram mulheres negras que geravam bebês-aberrações (meninos-macacos que o ex-biólogo viu nas fotografias.) João Pedroso, o Padre Monteirinho e o curandeiro Bará personificam as forças do Bem que lutarão contra o Mal. O caso é denunciado, porém por falta de credibilidade e provas é abafado.

João Pedroso envolve-se sexualmente com Ana Clara, mulher de Ângelo Marcos. A mulher do médico engravida-se do amante, mas sofre aborto após uma queda na escada. João Pedroso acaba sendo assassinado, com duas balas calibre 45, disparadas por uma pistola com silenciador, que lhe atravessam o coração, pelo matador profissional, Boaventura, encomendado pelo marido traído.

Ao final da obra, tem-se um encontro entre o Padre Monteirinho e Lúcio Nemésio. Trava-se uma luta entre o Bem e o Mal:

- Não quero discutir questões de fé com o senhor, para mim isso tem importância, para o senhor não tem. Mas veja o problema moral contido nisso, o problema político. O poder político plasmando a Humanidade e a Natureza.

- Isso é inevitável. Quem chegou, chegou, quem não chegou, não chega mais. O poder hoje dispõe de tais instrumentos que se sedimentou definitivamente, jamais vai mudar realmente de mãos e a tendência é isso se acentuar. Isso é bom. Isso significa maiores possibilidades de controle racional. Não haverá revolução, nem alteração radical na estrutura do poder, nem entre nações, nem entre classes sociais, nesse sentido a História acabou. Sempre digo que democracia é um mito supersticioso, assim como a igualdade e outros chavões. Há muito tempo que a democracia não é mais praticada em lugar nenhum, a não ser microscopicamente, e temos que colocar essa situação a nosso favor, ou seja, aperfeiçoar o homem de todas as formas possíveis.

- Para mim, isso é extinguir a Humanidade, tal como a conhecemos. Para mim, é o homem se tornando inimigo do homem, deixando o adversário que traz dentro de si vencer, fazendo com que se volte contra si mesmo. É como se fosse a obra de Satanás.

- Sim, Satanás, ha-ha! Satanás quer dizer “inimigo”, não é? Neste caso, eu seria Satanás, ou pelo menos um satanás, pois creio que há controvérsia na própria Igreja sobre a existência de um ou vários satanases. Engraçado, desculpe-me por estar rindo, muito engraçado mesmo – Satanás. Pois, olhe, eu aceito, e acho tecnicamente certa sua inferência. Eu sou inimigo de Deus, sim, embora o considere um inimigo fictício, vocês me arranjaram esse inimigo fictício, que eu preciso combater. (...) Deus não existe e, se existe, é preciso tomar dele o poder, ele não tem sido competente, para um onipotente tem um desempenho muito pouco satisfatório. E então, diante do exposto, o senhor tem razão, de fato eu sou Satanás, o senhor tem razão, é mais do que lógico.

Vade retro, pensou Monteirinho (...) Aquilo tudo era terrível mesmo, e mais terrível ainda por se passar daquela forma irresistível, como Lúcio Nemésio dissera tão convincentemente. João Pedroso tentara resistir e fora eliminado. Sim, fora eliminado, agora tinha certeza, embora não pudesse provar, embora jamais pudesse dizer a ninguém. Tinha certeza, certeza absoluta de que João fora morto por obra de Ângelo Marcos, ao sedescobrir enganado – não sabia como, mas fora. E, assim, esse agente do Mal cumpriu sua missão, removeuum obstáculo. Tudo se encaixava, o Mal havia tido grande vitória. Dedicaria à vida, tinha dito João, dedicaria a vida a lutar contra aquilo. Mas apenas perdeu a vida, martirizou-se anonimamente.


PRINCIPAIS PERSONAGENS DA OBRA

João Pedroso – Protagonista da obra, ex-biólogo, peixeiro, amargurado. A partir do relacionamento com Ana Clara e da descoberta das mutações genéticas, muda de atitude, torna-se um homem resoluto. É morto a mando de Ângelo Marcos, pelo pistoleiro Boaventura.

Padre Monteirinho – (Olavo Bento) Amigo de João. É transferido de Itaparica após o seu envolvimentocom Bará e a denúncia das experiências científicas.

Dr. Lúcio Nemésio – Foi professor de Ângelo Marcos. Era amigo de João Pedroso, mas se rompe com este após revelar seu projeto científico, que tem apoio de estrangeiros e do próprio Ângelo Marcos (que desconhecia tais pesquisas). O sobrenome Nemésio deriva do grego nêmesis, significando “indignação, desrespeito, ira, tornar-se mau.” Na conversa final entre o Padre Monteirinho e o Dr. Lúcio, fica explícita a relação do médico com Satanás: “Riu novamente, uma gargalhada que lhe sacudiu todo o corpanzil e deixou Monteirinho achando que se tratava mesmo da voz das Trevas e do Inimigo. (...) Vade reto, pensou Monteirinho...”

Ângelo Marcos – Político consagrado e marido de Ana Clara. Depois que seu médico, Dr. Deraldo, comunicou-lhe que estava com câncer, Ângelo pensou em se matar. Mas se recupera e tem até chance de vir a ser governador da Bahia. Foi Secretário da Saúde. Embora afirme detestar homossexuais (como Cornélio, o cozinheiro) mantinha relacionamento sexual com o pistoleiro Boaventura. Mantinha, também, relações com outras mulheres. Era infiel. Como político, Ângelo foi da ARENA, partido da Ditadura Militar de 1964, passando depois para o MDB. Ao fazer um exame de consciência, o médico-político busca amenizar sua posição direitista, alegando ter ajudado amigos subversivos que estavam na mira da Operação Bandeirantes (movimento repressorda época da Ditadura Militar).

Bará da Misericórdia – Curandeiro. É acusado de manter práticas que atentam contra a medicina e a saúde pública. É obrigado a mudar de terreiro, mas não vai preso, pois João Pedroso presta-lhe ajuda. Bará relaciona-se com o Bem. Seu nome verdadeiro é Sebastião Boanerges da Conceição.

Ana Clara – Amante de João Pedroso. Apaixona-se por ele e, depois de seu desaparecimento torna-se esquizofrênica, deixando que a personalidade “Suzanna Fleischman” se apodere dela. É uma burguesa frívola e fútil, assim como sua amiga Bebel, esposa de Nando, traindo-lhe com seu ex-marido, Tavinho, dependente de droga (cocaína).

Boaventura – Pistoleiro que trabalhava para família de Ângelo Marcos. Tornou-se amante do político.

TEMPO E ESPAÇO

O tempo predominante na obra é cronológico (gira em torno de um ano), ainda que o tempo psicológico apareça nas muitas lembranças dos personagens, principalmente de Ângelo Marcos. É o tempo cronológico que dá mais ritmo e velocidade à narrativa. O romance inicia-se na época da soalheira, calor insuportável, mormaço e termina após uma chuva, com um céu azul.

A narrativa se passa, basicamente na Ilha de Itaparica, Bahia, que não é mostrada como um paraíso perfeito, já que existem muitos miseráveis e famintos, muita gente aleijada, como a família de Mãozinha e todo tipo de morte.

- Aqui na ilha, se morre de tudo, não tem essa conversa de que aqui não acontece certas mortes – disse Mero Doido, que desde as cinco horas estava fazendo um levantamento dos mortos ligados ao Mercado e das causas de suas mortes. – Você não diz uma doença, inclusive das mais modernas, que alguém aqui não tenha morrido. Até umas doenças que não são nem bem doenças aqui se morre, como Galo Cego, que teve uma espinha no nariz que foi virando câncer e comeu a cara dele toda e ele morreu fedendo e com a cara toda comida. Isso de uma espinha. Filu foi de hidropisi, Nandá foi derrame, Roque Feio foi diabete, Lazarão foi tifo, mosquete foi tuberculose, Unha Grande foi doença de Chagas e Zoinho dizem que foi de Aids. Até Aids já deu aqui, e Zoinho não era falso ao corpo, pelo contrário. Aqui dá tudo. E agora o neto mais velho de Quatinga morreu de tumor no cérego.

Há, também, referências a Salvador e São Paulo. Na cidade grande, há violência, como narra Tavinho a respeito do assalto em que sua namorada, Kátya, foi estuprada por ladrões. Itaparica é o local onde prevalece o ócio, o lazer, a diversão, os desregramentos sexuais, muita pescaria, praia, bebida. Por dentro daquela pedra (a ilha) busca-se o elo perdido entre o homem e o macaco, entre o Homem e Satanás.

FOCO NARRATIVO

O romance é escrito na terceira pessoa por um narrador onisciente que nos leva a ver o mundo sob a ótica de alguns personagens. Há momentos em que a narrativa apresenta-se sob o ponto de vista de um ou outro personagem e nos diálogos. Nesses instantes, o discurso passa de terceira para a primeira pessoa.

O autor utiliza-se bastante de intertextualidades no romance.

... respondera Deraldo com a mesma cara pétrea, e costumam causar queda de cabelo também, embora eu ache que você está cometendo uns certos exageros poéticos, você sempre foi meio puxado a Castro Alves. (Referindo-se a Ângelo Marcos)

..Não, tipo Lady Chatterley – como era mesmo o nome do peru do amante dela? John Thomas, claro que sim, ela tinha até umas três ou quatro anotações que falavam no John Tomas. (Ana Clara comparada à personagem do famoso romance de mesmo nome, do escritor D. H. Lawrence.)

...Meu ideal de vida é Marmeladov, de vez em quando eu pego Crime e Castigo só para ler as partes emque ele aparece! (João Pedroso se comparando ao personagem de Dostoievski)

...Abraão também teve amante, para não falar em Salomão. E o comportamento de David com Urias foi de uma escrotidão inominável, mau caratismo absoluto. É como eu lhe disse e lhe digo sempre: também já li o Livrão, você não me engabela. (João Pedroso se defendendo com o Padre)

...Creio até que sacrifício como o mencionado nem mesmo é estranho à tradição cristã – embora nisso não reivindique legitimidade, nem pretenda mais que dar um exemplo e espicaçar uma lembrança –, pois, senão me trai a memória que os anos já empanam, são abundantes as referências ao assunto na Escrituras e – corrija-me o Reverendo se laboro em erro – recordo que o começo do Levítico estabelece regras para os sacrifícios ditadas por Deus, que até menciona especialmente carneiros. (Bará, o feiticeiro justificando suas práticas religiosas)


A linguagem da obra é contemporânea (variada) em estilo que vai do erudito – cientificismo; linguagem formal (a linguagem de Bará é muito distante da linguagem popular) ao coloquial (gírias; estrangeirismos; termos chulos; deformações lingüísticas, provérbios...).

Fonte:
Prof. Ozório Duarte de Lacerda - Mega Concursos | Revista Iberomania (publicado no Jornal da Poesia), in Passeiweb

III Congresso Internacional Câmara Brasileira do Livro do Livro Digital


A 3ª edição do evento mais uma vez traz o compromisso da CBL com o desenvolvimento do negócio do livro e atendimento às mais variadas necessidades do mercado.

O modelo de negócio, aspectos tecnológicos, comportamento do consumidor e direitos autorais tem sido discutidos sob uma nova ótica. E mais, a entrada de novos competidores, novas tecnologias, formatos, equipamentos e uma demanda latente por mais conteúdo, obriga decisões que não podem mais ser adiadas.

O 3º Congresso Internacional CBL do Livro Digital tem como tema A nova cadeia produtiva de conteúdo do autor ao leitor, e acontecerá nos dias 10 e 11 de maio de 2012, no Centro Fecomercio de Eventos em São Paulo/SP, mesmo local do ano passado. (Centro Fecomercio de Eventos | Rua Dr. Plínio Barreto, 285 - São Paulo SP Brasil)

Assim, para falar sobre os novos rumos desse efervescente mercado o 3º Congresso Internacional CBL do Livro Digital organizado pela Câmara Brasileira do Livro traz os seguintes temas para discussão:

Perspectiva para o Livro: hoje e amanhã
O Autor: peça chave para um mundo de leitores
O Direito Autoral aplicado ao Livro Digital
O Editor em um cenário de desafios
Proteção de Conteúdo e a questão dos Metadados
Inovando suas publicações com aplicativos
As implicações do padrão EPUB
O poder das Plataformas de Distribuição
A Livraria como modelo de negócio
O Livro Digital na sala de aula
Biblioteca Digital: o case da Bibliothèque Interuniversitaire de Santé Paris
A força das Mídias Digitais na Divulgação do Livro
Finalmente, o leitor: a experiência de leitura de várias gerações


10 de Maio – Quinta-Feira

8.00 - 9.00

Cadastramento dos Participantes e Welcome Coffee

9.00 - 9.15
Bem-vindos ao 3º Congresso Internacional CBL do Livro Digital
Karine Pansa - Presidente da Câmara Brasileira do Livro

9.15 - 10.15
Palestra de Abertura
Perspectiva para o Livro: hoje e amanhã
Young CHI - Presidente da International Publishers Association

10.15 - 11.15
O Autor: peça chave para um mundo de leitores
Roger Chartier - Historiador

11.15 - 12.15
O Direito Autoral aplicado ao Livro Digital
Lynette Owen - Diretora da Pearson Education
Jens Bammel - Secretário Geral da International Publishers Association

12.15 - 14.30 - Almoço

14.30 - 15.30

Política e desenvolvimento econômico do Livro Digital na Europa
Henrique Mota - Diretor da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros

15.30 - 16.30
Vendas globais de Livros e a importância dos Metadados
Jonathan Nowell - Presidente da Nielsen Book

16.30 - 17.00 - Coffee-Break

17.00 - 18.00
Inovando suas publicações com Aplicativos
Renato Gosling - Diretor da Fingeritps
Roberto Bahiense - Diretor do Grupo Gol
Fábio Hayashi - Presidente da Deal Group

18.00 - 18.45
A Evolução das Livrarias "pontocom"
Pedro Huerta - Diretor de Conteúdo Kindle para América Latina

13.00 - 16.00
Apresentação dos Trabalhos Científicos
Sala B

11 de Maio – Sexta-Feira

8.00 - 8.40
Welcome Coffee


8.40 - 9.00
Apresentação do Trabalho Científico Vencedor

9.00 - 10.00
E-books para além de impressão digital: o futuro terá uma diversidade de mídias, interligadas e interativas
Bill McCoy - Diretor da Internacional Digital Publishing Forum
Eduardo Melo - Diretor da Simplíssimo

10.00 - 11.00
A força das Mídias Digitais na divulgação do Livro
Washington Olivetto - Presidente da WMcCAnn

11.00 - 12.00
O Editor num cenário de desafios
Robert Galitz - Editor da Dölling & Galitz Verlag

12.00 - 13.30 - Almoço

13.30 - 15.00

O Livro Digital na Sala de Aula
Regina Scarpa - Coordenadora da Fundação Victor Civita
Jens Bammel - Secretário da International Publishers Association
Coordenador: Emerson Walter dos Santos - Diretor da Associação Brasileira de Livros Escolares

15.00 - 16.00
Biblioteca Digital
Claire Nguyen - Diretora da Biblioteca Interuniversitária de Santé - Paris
Sueli Ferreira - Diretor(a) Técnica do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP

16.00 - 16.30 - Coffee-Break

16.30 - 17.30

O poder das Plataformas de Distribuição
Ronald Schild - Presidente da Libreka
Paul Petani - Diretor da Ingram Content Group
Newton Neto - Executivo do Google

17.30 - 18.30
Finalmente, o Leitor: a experiência de leituras de várias gerações
Kelly Gallagher - Vice-Presidente da RR Bowker

18.30 - 19.00
Encerramento:

Quem somos e para onde vamos
Karine Pansa - Presidente da Câmara Brasileira do Livro

* Programação sujeita a Alterações

Fonte:
http://www.congressodolivrodigital.com.br/site/programacao
Câmara Brasileira do Livro

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 546)


Uma Trova de Ademar

Mesmo na dor, pus de pé,
com esperanças sem fim,
a Fortaleza de Fé
que existe dentro de mim...
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


Felicidade não cabe
no coração de quem diz
que é feliz, porque não sabe
o quanto é que é ser feliz!
–FRANCISCO JOSÉ PESSOA/CE–

Uma Trova Potiguar


O mundo se transformou,
ficou moderno demais,
porém não modernizou
as suas armas de paz.
–TARCÍSIO FERNANDES/RN–

Uma Trova Premiada

2002 - Niterói/RJ
Tema: ALTIVEZ - M/H


Que tu sejas, nos teus brios,
quando buscares a glória,
altivo nos desafios
mas humilde na vitória!
–SELMA PATTI SPINELLI/SP–

...E Suas Trovas Ficaram


Da insônia que me desgasta,
a causa é simples demais :
– o próprio sono se afasta
de quem já não sonha mais ...
–WALDIR NEVES/RJ–

Uma Poesia


MOTE :

Quer matar um poeta, mate o sonho,
Que o poeta sem sonho se liquida.


GLOSA :

Quer fazer este mundo mais tristonho
tire o charme romântico das flores,
quer banir a beleza apague as cores
quer matar um poeta, mate o sonho;
entretanto se quer Jesus risonho
faça um gesto de amor, abrace a vida,
veja o mundo na tela colorida
da visão inspirada de um profeta;
mas, não toque no sonho do poeta
que o poeta sem sonho se liquida.
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Soneto do Dia

SOL
–JOSÉ OUVERNEY/SP–


Desmaia a tarde e a sorrateira brisa,
varanda a dentro, lépida e frugal,
a beliscar meu peito sem camisa
vai desenhando um gesto sensual.

Em lenta despedida o sol desliza,
jorrando sangue sobre o bambual,
e a lua acende a lâmpada, indecisa,
tremeluzindo sobre o meu quintal.

Um pouco mais de espera e surge a noite
a casa, de repente, tão vazia,
desperta a minha lúdica ansiedade;

e o beliscar da brisa vira açoite,
notadamente quando a nostalgia
bate no peito...e acorda esta saudade!...

sábado, 5 de maio de 2012

A. A, de Assis (Estados do Brasil em Trovas) Piauí

Rosa Amanda Strausz (Mamãe Trouxe um Lobo para Casa!)


Acredite quem quiser. Mas foi isso mesmo o que aconteceu. Mamãe trouxe um lobo para casa.

O lobo chegou num belo dia de sol. Eu tinha acabado de chegar da escola. Como faço todo dia, joguei a mochila no sofá e chamei:

- Mamãe!

Mas em vez de escutar a voz tranqüila de minha mãe, ouvi um grunhido baixinho. Assim:

- Humpff, humpfff.

Gritei de novo, e desta vez bem alto:

- Manhêêê!!!!!!

Só aí ela apareceu.

- Mãe, tem um monstro aqui em casa. Ele fez humpff para mim.

- Que bobagem, filho. Monstros não existem.

- Mas este existe e fez humpf para mim - repeti, com os olhos arregalados.

Neste momento, vi o lobo. Estava deitado debaixo da mesa da cozinha, comendo um bife e lambendo os beiços.

- Olhe ali - berrei para mamãe, apontando para o lobo.

De um salto, escalei a cadeira e subi em cima da pia. Mas minha mãe nem ligou:

- Ah, este é o Levi. Ele não é um monstro, é só um lobo - ela explicou, como se fosse a coisa mais natural do mundo. E, para completar meu espanto, disse: - Ele chegou hoje de tarde e vai ficar aqui com a gente.

Minha mãe devia ter ficado doida. Que idéia, trazer um lobo para casa!

- Lobos são muito perigosos, eles são maus - eu disse para ela.

- O Levi é muito legal - ela disse, enquanto começava a fazer meu jantar.

- Eles comem porquinhos - eu falei, lembrando da história dos três porquinhos e do lobo mau.

- Nós não somos porquinhos - ela sorriu.

- Também comem meninas e vovozinhas - eu disse, lembrando da história do Chapeuzinho Vermelho.

- Nós não somos nem porquinhos, nem meninas, nem vovozinhas. E, além disso, o Levi só gosta de bife com batata frita - ela disse, tentando encerrar o assunto.

Mas eu não ia ceder tão facilmente. Engrossei a voz e falei bem alto:

- Eu não quero esse lobo aqui em casa de jeito nenhum!

Minha mãe olhou para mim muito séria, com ar de quem ia me dar a maior bronca do mundo. Pelo jeito dela, vi que não adiantava reclamar.

Dei uma espiada para baixo da mesa.

Levi era um lobo grande, peludo, com patas enormes, unhas compridas e dentes afiados.

De repente, ele se espreguiçou, levantou e foi andando devagarinho na direção da minha mãe. Comecei a gritar:

- Mãe, cuidado! Ele vai te comer!

Mas nada disso aconteceu. Ele chegou bem perto dela e esfregou o focinho no seu avental, como se pedisse carinho. Ela se abaixou, deu um abraço nele e depois voltou a se ocupar com a minha comida. Ele sentou no chão, do lado dela, e olhou para mim, com seus enormes olhos vermelhos.

Pensei:

- Céus! É a mim que ele quer comer!

Dei um pulo e saí correndo para meu quarto. Tranquei a porta, me enfiei na cama e fechei bem os olhos.

Eu devia estar sonhando. Aquilo não podia ser verdade. Com certeza, na manhã seguinte, não teria nenhum lobo na cozinha.

É, aquilo tudo só podia ser um sonho ruim.

A manhã seguinte era sábado, dia de meu pai vir me buscar para passear.

Corri para a cozinha assim que acordei. Minha mãe estava preparando o meu leite, viva e inteira, como todos os dias.

Fiquei aliviado. Claro que tudo aquilo tinha sido um sonho. Respirei fundo, tomei coragem e olhei debaixo da mesa.

Mas lá estava ele, enorme, peludo e bocejando: Levi, nosso lobo de estimação.

É bem verdade que ele não tinha devorado minha mãe, nem tentado me atacar. Mas, mesmo assim, eu não gostava nem um pingo dele.

Durante o café, não tive tempo para ficar emburrado porque logo escutei a campainha tocando. Era meu pai.

Corri para a porta. Para minha surpresa, Levi veio atrás de mim, fazendo humpf.

Fiquei gelado de medo. Aquele bicho ia atacar meu pai!

A campainha tocou novamente. Minha mãe gritou, lá de dentro:

- Abra a porta, meu filho. Deve ser seu pai.

Mas cadê coragem?

A campainha tocou de novo e escutei também umas batidas na porta. Meu pai chamava do lado de fora:

- Abra logo, seu preguiçoso. Está um dia lindo. Vamos pescar!

Finalmente, eu gritei, com a boca na fechadura:

- Não posso abrir. Tem um lobo aqui e ele está querendo atacar você.

Escutei novamente a voz do meu pai, desta vez divertida:

- Se o lobo me atacar, eu dou um tiro nele com a minha superespingarda a “laser”.

Como é que eu não tinha pensado nisso antes? Meu pai é um homem forte e poderoso, não tem medo de nada. Ele poderia se defender e ainda por cima salvar minha mãe e eu das garras daquele bicho.

Encarei Levi e abri a porta, pronto para assistir a uma luta espetacular, em que meu pai sairia vencedor.

Mas não foi nada disso que aconteceu.

Meu pai olhou para o lobo. O lobo olhou para meu pai. Os dois ficaram com cara de bobos.

- Ué, mas tinha mesmo um lobo aqui - meu pai disse, meio sem graça.

- Humpf... - Levi respondeu.

Ele não atacou meu pai. E meu pai não deu um tiro nele. Virou-se para mim e disse:

- Vamos logo, filho, vamos pescar.

Quando voltei, no domingo, mamãe e Levi estavam assistindo televisão na sala.

Ele não tinha me comido, nem devorado meu pai, nem matado minha mãe.

Mas também não desgrudava dela! Se minha mãe fosse para a cozinha, Levi ia atrás. Quando ela estava vendo televisão, ele ficava junto...

Podia até não ser mau, aquele lobo.

Mas era um chato!

Normalmente, segunda-feira era um dia complicado lá em casa. Cleide, a faxineira, nunca chegava cedo, mamãe precisava sair para trabalhar e não tinha com quem me deixar.

Ela sempre acabava pedindo ajuda à nossa vizinha, uma mulher chatíssima que tentava se passar por boazinha.

Nossa vizinha abria a porta e dizia:

- Ora, como vai o nosso lindo bebê! Pode deixar que eu cuido dele.

E me torrava a paciência a manhã inteira, me tratando como se eu fosse um bebezinho.

Eu não suportava aquela mulher!

Mas aquela segunda-feira foi diferente. Quando viu que a Cleide não ia chegar a tempo, mamãe disse:

- Não posso mais esperar. Já vou andando.

- Eu não quero ficar com aquela chata! - disse eu, como fazia toda segunda-feira.

E mamãe falou:

- Você não vai ficar com ela. Vai ficar com o Levi.

Meu coração disparou. Mamãe devia ter ficado maluca! Me deixar com um lobo!

- Ah, não! De jeito nenhum... - eu comecei a dizer.

Mas mamãe já estava me dando seu beijo de “tchau” e saindo pela porta.

Ficamos sozinhos, eu e Levi.

Pensei que ele fosse grudar no meu pé, como fazia com minha mãe. Mas Levi se sentou na sala e ficou ali, quietinho como se fosse um gato preguiçoso.

Fui até a cozinha, peguei água, voltei, liguei a televisão, desliguei, peguei meus carrinhos, brinquei um pouco, cansei de brincar...

E Levi continuava ali, quieto no seu canto.

Finalmente, sentei na poltrona e suspirei.

- Isso aqui está muito chato - eu disse, com raiva.

- Humpff. Também acho - disse Levi, bocejando.

Que susto! Ele falava! Um lobo que fala é mais interessante do que um lobo que só faz humpff. Então ele continuou, com uma voz rouca:

- Bem que a gente podia brincar de alguma coisa...

Fiquei desconfiado. Mas aproveitei que ele falava para perguntar:

- Você não vai me comer?

Levi começou a rir e eu levei mais um susto. Nunca vira um lobo rindo. Mas ele me garantiu que não ia comer ninguém. Só queria brincar um pouco.

Mas era difícil brincar com um lobo. Com suas patas enormes, era impossível fazer jogos de montar. Ele era grande demais para brincar de esconder, não cabia em lugar nenhum. Seus dentes afiados estourariam até mesmo minha bola de couro.

De que poderíamos brincar?

- Que tal fazer cavalinho? - sugeriu Levi.

Achei a idéia genial.

Subi em suas costas, que eram tão altas que meus pés ficavam balançando, sem encostar no chão. Agarrei os pêlos do seu pescoço como se fossem rédeas, bati com os calcanhares em sua barriga e gritei:

- Atacar o inimigo!

- Quem é o inimigo? - Levi perguntou.

Nem precisei pensar duas vezes. A vizinha chata, é lógico!

Saímos em disparada pela casa, abrimos a porta, corremos até o fundo do corredor do edifício e paramos na porta da vizinha.

Antes que eu tocasse a campainha, Levi deu um grunhido tão pavoroso que até eu fiquei assustado.

Logo escutamos uma voz melosa perguntando:

- Quem está aí?

- Sou eu - respondi com a voz mais bem-comportada que consegui fazer.

- Ora, mas é o meu pomponzinho fofo, meu lindo bebê bilu-bilu - disse a chata, abrindo a porta.

Quando ela deu de cara comigo montado sobre aquele lobo enorme, deu um berro e desmaiou.

Eu e Levi voltamos para casa às gargalhadas. Eu estava começando a gostar daquela brincadeira.

Lembrei de todas as pessoas em quem gostaria de pregar um bom susto: o menino do 206, que sempre me batia, o filho do jornaleiro, que vivia me chamando de mulherzinha.

Talvez fosse mesmo bom ter um lobo em casa...

Quando minha mãe chegou para o almoço, a casa estava uma bagunça medonha. Levi era muito desajeitado e enquanto corríamos tínhamos derrubado quase tudo pelo chão: almofadas do sofá, abajur, antena de televisão, fitas de vídeo...

Antes que ela pudesse começar a reclamar, tocou a campainha. Era nossa vizinha, em pânico, dizendo que eu tinha sido comido por um lobo terrível.

Foi um custo mamãe acalmar a vizinha, mentindo que não tinha lobo nenhum lá em casa e me mostrando bem vivo e contente.

- Viu só? Ele está aqui, inteirinho. Você deve ter sonhado - disse mamãe, sem graça.

- Mas eu nem estava dormindo... - disse a vizinha.

A partir desse dia, as coisas mudaram muito lá em casa.

Sabe a história do sapo que ganha um beijo da princesa e vira príncipe?

Foi mais ou menos o que aconteceu. Só que eu não sou princesa, Levi não é sapo, eu não dei beijo em ninguém e ele não virou príncipe.

Mas a cada vez que a gente brincava, ele ficava mais parecido com um amigo de verdade.

Primeiro começou a falar, depois a rir, uns dias depois aprendeu a jogar bola, a andar sobre os dois pés, a fazer jogos de armar; começou a usar roupa de gente e a comer com garfo e faca.

Mesmo parecido com gente, Levi é um lobo.

Às vezes, ainda tenho medo dele, como quando ele se zanga.

Outras vezes, acho que ele é um lobo bobo e chato, como quando fica grudado na minha mãe ou come meu bife.

Mas na maior parte das vezes, nos damos bem.

Ele está mesmo ficando a cada dia mais parecido com um homem.

Em compensação, aprendi a dar grunhidos terríveis, a uivar para a lua e estou ficando cada vez mais forte.

Se continuar assim, acho que vou acabar virando um lobinho...

Fonte:
Historinhas pescadas : antologia de contistas brasileiros / [coordenação editorial Maristela Petrili de Almeida Leite, Pascoal Soto].- São Paulo : Moderna, 2001. – (Literatura em minha casa ; v. 2)

Sérgio Rivero (Leitura, Discurso e Ação)


Coloco o pequeno Francisco para dormir. Embalados, os dois, na rede da varanda, navegamos em navios diferentes. Meu filho, ainda sem a pesada carga da cultura, navega num barco onírico que trouxe com ele de algum lugar. Eu, viciado, entorpecido, massacrado pela linguagem, sinto-me a navegar num barco à deriva. Sim. Entre ser pai e não ser pai há muita diferença. Mistura de dor e delícia esse estado. Naquele momento de rede, barco sem porto, nesse momento em que dois navios começam suas mesmas viagens transversais, me vem uma frase síntese na cabeça: – Mostre a ele que na vida há algo em que acreditar… É lançado o desafio e uma onda gigantesca, repleta de espuma e natureza, lança minha embarçação de encontro aos rochedos.

Acreditar. Para mim, uma palavra rica nesse momento da vida.

Acabo de chegar(?) de uma viagem de 3 anos, uma viagem de 450 anos, uma viagem de 65 anos, uma viagem de 500 anos. Eu, Salvador, Carlos Vasconcelos Maia, Brasil.

Ao escrever pensa-se tanto, para se escolher uma única palavra…

Gabriel Garcia Marques, em entrevista, já dizia que a sua palavra é o tempo. Vai-se, assim, suponho, em busca de todos os seus significados, livro a livro, andarilho-lavrador, como que semeando, ao contrário, uma flor que, mesmo conhecida, germinará em semente, em surpresa.

Inicio com Francisco, meu filho, uma viagem que me amedronta muito pois, de fato, vou, unicamente, com a semente-palavra-acreditar. Não há flor, ainda, não há botão que, vejo, desabrocha... a não ser os dentes-de-leite do menino que rasgam dolorosamente suas gengivas e preenchem seu sorriso.

Volto.

Depois de três anos, defendida a dissertação de Mestrado, em março, quis deixá-la fechada, sem leitor, sem 'funcionar'. Determinei que a semente distinta, com o frescor da palavra recém renovada ficasse, lá, esquecida. Mas a terra tem seus mistérios. No mesmo caco da Rosa-Menina, que está na varanda e tem a idade de Francisco, brota e persiste uma planta sem nome. Na mistura que a terra processa e os olhos não vêem, foi colhida, recolhida e acolhida, com a dissertação, uma única palavra: exclusão. E 'exclusão' foi plantada sem que eu soubesse, novamente, como flor; e eis que, agora, a flor nasce sementificada. Acreditar. Exclusão.

Faço uma pergunta: – Acredito na exclusão? Ah, totalmente, respondo a mim mesmo. Acredito, desde 1960, quando ainda não era nascido, mas Vasconcelos Maia, escritor baiano, já havia escrito o conto O homem e as vitrines . 17 anos depois o escritor ainda acreditava em exclusão. Não só acreditava mas ruminava a certeza pois, ao reescrever o mesmo conto, agora entitulado É Natal! É Natal! , o personagem principal, o homem , passaria a ser nomeado o homem grisalho e magro , biotipo do autor naquele ano de 1977.

Nas duas versões, o personagem sai em busca de presentes de Natal para seus filhos mas dá-se conta, ao final da narrativa, que não tem dinheiro. Não há consciência política que lhe faça atribuir responsabilidades, a única saída é individualizada. Retira-se do cenário da cidade, como que, se ausente da Avenida Sete de Setembro, pudesse solucionar, por fim, a uma questão original.

Na primeira versão:

“Mentalmente, com um gozo muito grande, fez o rol dos Papais-Noéis dos filhos: a lambreta, o jipe, o carro de corrida, o cavalo, a boneca, a bola vermelha e preta. Também os preços de tudo vieram à sua lembrança. Deu meia volta, meteu a mão nos bolsos. Nos bolsos vazios. Foi andando, cabeça baixa, procurou outras ruas, sem lojas nem vitrines, sem luzes nem gente. Onde ninguém pudesse surpreender sua dor.”

E na segunda versão:

“Era véspera de Natal e ele ficou ali, parado, imóvel até a loja se fechar, vendo um a um os presentes serem retirados da exposição e entregues em vistosos embrulhos coloridos, a homens e mulheres excitados, de aspecto próspero, decerto bem empregados e bem remunerados. Deu meia volta, pôs-se a andar, a mão nos bolsos. Nos bolsos vazios. Procurou outras ruas sem lojas, luzes ou gente. Onde ninguém pudesse surpreender sua dor e sua miséria.”

Na segunda versão do conto é apresentada, de forma mais incisiva, a condição do personagem. A dor, reflexo da impossibilidade de presentear os filhos com os tão esperados presentes de Natal, está acompanhada da miséria, uma qualificação com significado paramétrico, coletivo.

Ao não querer que alguém surpreenda sua dor e miséria, o personagem em seu único movimento ativo, durante toda a narrativa, retira-se do cenário, assumindo, sem dúvida, sentimento de culpa, fracasso, como se 'não ter dinheiro' fosse um problema de sua inteira responsabilidade. A solução, para ele, é sair dali, esconder-se num lugar sem luzes, nem gente, nem vitrines… num lugar que, em suma, não é o espaço urbano. Vasconcelos Maia vai determinar, assim, que 'exclusão' é conceito absoluto. Não existe lugar na cidade para quem não é consumidor.

Acredito em exclusão, ainda, há mais tempo. Vem da fundação da cidade de Salvador, da sua sina fabricada; a implantação de Salvador como estaleiro, base de todo o processo mercantilista europeu (assim foi idealizado em Portugal), o resultado de uma imposição internacional imediatista que acabou por construir uma baianidade sem sedimentação prévia. A história dos homens, o que fez? Tratou de sedimentar esse fato até hoje e é claro que Salvador é metáfora para Brasil.

Segundo a historiadora Maria Alice Rezende de Carvalho, as cidades brasileiras foram “prefigurações exclusivas da autoridade colonial e concebidas como pastiches de uma racionalidade proveniente de outras latitudes”. Assim, originou-se uma arquitetura desprovida de “densidade estética e política em seu sentido mais amplo”. Não podemos construir algo que não tenha surgido de um desejo coletivo. Não podemos mudar, ativamente, o que não pensamos para nós; aquilo que, passivamente, aceitamos.

Acredito em exclusão, ainda mais, hoje. Ela graça, campeia; o abismo social entre os brasileiros é imenso. Volto à palavra 'acreditar'. Se uma das possibilidades do 'acreditar' vem pela crença religiosa – uma busca de salvação, sempre fora daqui, e portanto, muitas vezes desacreditada de nossa história e suas possibilidades – existe um outro caminho que coloca a palavra acreditar próxima de quem a criou – o Homem. E aqui, destaco a correspondência entre Umberto Eco e o Cardeal Carlo Maria Martini editada no livro, com o título em português, Em que crêem os que não crêem . Uma carta, em especial, a última escrita por Eco ao Cardeal, em janeiro de 1996.

A partir do questionamento se existem 'universais semânticos', ou seja, 'noções elementares comuns a toda espécie humana que podem ser expressas por todas as línguas', Eco enumera 'concepções universais acerca do constrangimento', isto é, entre todos os homens existem determinadas normas básicas de convivência que não podem ser negligenciadas: em síntese devemos, antes de tudo, respeitar o direito da corporalidade do outro, entre os quais o direito de falar e de pensar.

Nesse momento, entendo que a 'viagem transversal' que faço com meu filho, Francisco, pode tornar-se, de quando em vez, paralela se eu seguir à risca essa mensagem.

Segundo Eco, essa semântica é base para uma ética. Assim ele coloca, em primeiro plano, algo distante de nós, aquilo que vem sendo substituído, acredito, pelo que chamamos, hoje, de politicamente correto – 'moda' social tão permeada de massificação e rótulos. Eco fala simplesmente de 'humanidade'. Sim, isso que herdamos (de quem?), carregamos, sabemos que faz parte da nossa natureza – o que de melhor existe em nós – mas que teimamos em não seguir.

O sentimento ético é corporificado, permeia cada uma de nossas ações, ao lado de nossas leituras sobre o mundo, como um grilo falante emitindo, continuamente, bases verdadeiras em nossos ouvidos… mas nossos narizes não crescem, nossa anatomia envelhece mas não se constrange…

E retomo à questão da corporalidade do outro: Eco nos diz que a dimensão ética começa quando entra em cena o outro. E que dificuldade é entender que quando faço a leitura do outro estou fazendo, na verdade, a leitura de mim mesmo… mas parece que a dor é algo muito individualizado, distante, como se existissem mil palavras para dizer dor e mil outras para entendermos dor.

Acreditar, ética, exclusão.

Acreditar na ética, no que o homem tem de melhor, para combater toda espécie de exclusão.

A experiência com a leitura, essa prática de dividir com o outro a leitura de um mesmo texto, compartilhar o espaço da vida; mesmo sob o condicionamento da cultura e todas as suas vozes, desperta na gente, promotores da leitura, uma maior consciência ética. Talvez, por isso, o tema exclusão, em Vasconcelos Maia tenha me seduzido. Sem dúvida, o exercício de ler o mundo, com mais vagar, nos torne mais sensíveis às diferenças, mas, por outro lado, o desafio para o leitor que se forma em constante exercício, não é ler o mundo com mais perspicácia, não é indicar essa ou aquela leitura precisa, mais inusitada, mas é ler (e ler é sempre ler o outro) aproximando-se, sentindo-se capaz de sentir o que o outro sente, ou ainda, de uma maneira mais desafiante, sentindo a alegria que o outro for capaz de sentir, entendendo o que é.

Vamos ao livro, mais especificamente à literatura, campo de reflexão e de descoberta. Ali, vamos todo o tempo ler, como na vida, o confronto do sentimento ético – a reverência à corporalidade do outro – contra a dimensão invasiva que as relações humanas determinam cotidianamente.

Entre realidade e ficção uma tênue fronteira, depois, um único caminho.

Vale a minha leitura sobre o mundo, se consigo unir meu discurso e minha ação. Talvez aí eu tenha o que dizer a meu filho Francisco. Talvez assim eu possa lhe dizer em que acreditar.

Fonte:
Leia Brasil – http://www.leiabrasil.org.br

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 545)


Uma Trova de Ademar

Tem visita que aconchega,
tem outra que não me atrai...
Não empolga quando chega,
mas alegra quando sai!
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


Infiéis os meus cabelos!
saudoso, o careca chora...
Dei carinhos... Tive zelos...
mas foram todos embora!
–HÉRON PATRÍCIO/SP–

Uma Trova Potiguar


Pagar eu nunca me atrevo
a dívida que eu contraio.
A “quem fala” eu só não devo
A rádio e a papagaio
-FRANCISCO MACEDO/RN-

Uma Trova Premiada


1999 - Cachoeiras de Macacu/RJ
Tema: CERVEJA - M/H


Quando um pinguço gagueja
e não se firma nos pés,
diz: tomei uma cerveja,
mas já tomou mais de dez...
–MARIA NASCIMENTO/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram


A origem fica explicada:
nasceu tão pequeno, tão...
que a mãe dele, horrorizada,
Ao vê-lo gritou: “Ah, não!”
–ELTON CARVALHO/RJ–

Uma Poesia


A propósito de nomes
Aqui tenho o meu guardado
Como doce que se come
Como presente envenenado

Felizes as Ivones da vida
As Marias ou as Joanas
Bonitas e doces, queridas
Cuja beleza não engana

Já o meu nome nada revela
De tão simples que é
Quem quer chamar-se Felisbela?
Antes levar um tiro no pé!

Se eu me chamasse Ana
Mariana ou Joaquina
Cheias de graça soberana
Ou de loucura traquina…

Já eu tenho que dizer
Que não estou lá muito feliz
Com o nome dado ao nascer…
Foi o meu pai que assim quis!

Por ter um nome tão "estranho"
Nem as pulseiras consigo comprar
Não há prato de loiça ou de estanho
Que o tenha para mostrar...

E desde a escola primária
Mesmo com tantos afazeres
Brincavam até os professores
"Feliz e Bela", que mais queres?
–FELISBELA/RS–

Soneto do Dia

Um Vice-Versa... Ao Contrário
–HELOISA ZANCONATO/MG–


Amigo Zé Maria que surpresa,
saber-te um Casanova aposentado,
pois, sempre, existe alguma brasa acesa
por baixo do carvão enfumaçado.

Se quem foi rei não perde a realeza,
um pau-de-lei não morre carunchado
e uma viril pistola portuguesa
não vive de gatilho enferrujado...

Esquece a osteoporose... a catarata
e sai, enfim, atrás de uma mulata
que tope um “ti-ti-ti” num canto escuro...

Pois, para um português de nome honrado,
melhor ficar com fama de tarado...
que ser considerado um dedo “duro”!
a soberana
Ou de loucura traquina