quarta-feira, 13 de junho de 2012

Luís Cláudio Ferreira Silva e Marisa Corrêa Silva (A Personagem Feminina em Saramago)


RESUMO: Durante séculos a mulher foi vista como ―o outro‖, contra o qual o homem impunha seu poder, devendo ser subserviente nas sociedades patriarcais e detentoras do poder, o que descreve a nossa e as sociedades de modelo eurocêntrico em geral. Simone de Beauvoir, em Segundo Sexo, teoriza sobre as origens desse fenômeno, numa obra fundamental para entender a situação feminina. E sua estereotipação se transfere também para o campo literário, onde podemos ver personagens femininas que são dominadas pelas prerrogativas masculinas. Far-se-á uma pequena explanação dessas representações femininas no campo literário. Em seguida, focaremos três romances de José Saramago, Ensaio Sobre a Cegueira, Jangada de Pedra e Memorial do Convento, centrando o foco em personagens que, no universo desse autor, são representadas de forma pouco convencional em seus fazeres e poderes e saber se elas mantém a imagem cristalizada de mulher ou se, ao contrário, elas rompem com tais estereótipos.
PALAVRAS-CHAVE: Crítica Feminista, Personagem Feminina, Gênero, José Saramago.

1 - A condição feminina e crítica feminista

É comum mesmo em uma época que se auto-intitula moderna ouvir frases como ― lugar de mulher é na cozinha‖, ―ser mãe é padecer no paraíso‖, ―tem coisas que só os homens podem fazer‖ etc. O rompimento de muitas barreiras nos campos econômico, tecnológico e medicinal – só para citar alguns – parece não ter tido muito reflexo no que tange à condição feminina.

Claro está que nos tempos atuais as mulheres conseguiram uma certa independência financeira: hoje podem trabalhar, serem bem remuneradas e serem as responsáveis por manter financeiramente um lar. Contudo, há um eco que não cessa de incomodar os ouvidos, herança de um legado patriarcal que assolou as mulheres durante séculos. A mulher sempre foi tida como ―o outro‖ e ainda o é.

Há tempos que a mulher luta pela melhoria de suas condições, e por muito tempo não conseguiram muito avanço. De fato, a questão feminista passou a ter uma voz - talvez ―rouca‖, no entanto uma voz - nos últimos dois séculos. Vem em busca do direito de igualdade de remuneração salarial, direto a voto, entre outros. na segunda metade do século XIX o feminismo político começou a se organizar como movimento, mais especificamente na Inglaterra e nos Estados Unidos. Através de documentos e petições, esse movimento foi em busca da igualdade legislativa, ou seja, do voto, já que o mesmo significava a maior bandeira feminista, pois, a partir dele, outros objetivos poderiam ser alcançados. Contudo, foi exatamente nesta época que, na Inglaterra, durante a Era Vitoriana, a mulher foi majoritariamente discriminada, como se vê nas palavras de Zolin:

A mulher que tentasse usar seu intelecto, ao invés de explorar sua delicadeza, compreensão, submissão, afeição ao lar, inocência e ausência de ambição, estaria violando a ordem natural das coisas, bem como a tradição religiosa [...] a condição de subjugada da mulher deve ser tomada como sendo de vontade divina (ZOLIN in BONICCI & ZOLIN, p. 164).

Vê-se que se utilizou ao longo da história, e porque não dizer, utiliza-se até os dias de hoje, vários meios para manter a mulher como submissa, e um dos mais fortes é a tradição religiosa, que ―obriga‖ a mulher a manter-se como subjugada em relação ao sexo masculino dominante. Segundo Pierre Bourdieu, o estado e o clero seriam os responsáveis pela perpetuação desses valores, como ele diz em seu livro A Dominação Masculina (2005):

Teríamos que levar em consideração o papel do estado, que veio ratificar e reforçar as prescrições e proscrições do patriarcado privado [...] Sem falar no caso extremo dos estados paternalistas, realizações acabadas da visão ultraconservadora que faz da família patriarcal o principio e o modelo da ordem social como moral, fundamentada na preeminência absoluta dos homens em relação às mulheres [...] (BOURDIEU, 2005, p. 105).

A perpetuação de todos esses valores foi feita por meio de fortes estruturas, que, por conta de seus próprios interesses fixaram a mulher como submissa e inferior. Tanto a sociedade quanto a igreja, fixavam suas justificavas em um ponto principal: família. Segundo o autor, essas instituições pregavam a ―pureza‖ feminina em prol da constituição da família. Uma mulher revolucionária, que fugisse aos padrões, tanto de esposa fiel quanto na utilização de trajes mais ousados atingiria a moral e os bons costumes, não sendo apta, assim, a constituir família.

É, sem dúvida, à família que cabe o papel principal na reprodução da dominação e da visão masculinas; é na família que se impõe a experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação legítima dessa divisão [...] Quanto à Igreja, marcada pelo antifeminismo profundo de um clero pronto a condenar todas as faltas femininas à decência, sobretudo em matéria de trajes, e a reproduzir, do alto de sua sabedoria, uma visão pessimista das mulheres e da feminilidade (BOURDIEU, 2005, p. 103).

Em outras palavras, perpetuando a família baseada na religião, perpetuava-se, então, a submissão feminina. Inclusive criam-se mitos. Vê-se o exemplo da gênese bíblica judaico/cristã que conta o nascimento de Eva, a primeira mulher, a partir de uma parte da costela de Adão, seu homem. Ela não foi criada juntamente com Adão, foi moldada a partir de uma parte do seu corpo. Deus não a criou por sua vontade simplesmente, mas por ver Adão solitário e triste, ou seja, criou-a com um único propósito: destiná-la ao homem.

Nem só sua criação é um mito de subserviência, mas também sua atitude que causou a expulsão do paraíso é também um mito que a enquadra como a megera, algo que vêm das trevas para afastar o homem de seu contato com Deus. Ao comer a maçã e a ―ludibriar‖ o homem para que esse também comesse do fruto, Eva passa a ser a culpada do desligamento com o divino. Além de serva, ela é aquela que também não se pode confiar, que tem pensamentos divergentes, que leva o homem para longe do seu verdadeiro caminho.

Simone de Beauvoir, grande referência na crítica feminista diz que nas sociedades mais primitivas, o homem tinha que sair à caça, visto que a mulher tinha que cuidar da prole. Sua inferioridade física em relação aos homens, que tinham que empenhar pedras e armas, pode até ter ajudado na construção da dicotomia de gênero, mas não foi um dos principais fatores, já que suas tarefas domésticas – fabricação de vasilhames, tecelagem, jardinagem e colheita – eram de fundamental importância na vida econômica dessas sociedades.

Porém, quando um povo passou a conquistar outro, a fazer escravos, a se impor em relação a outras tribos é que a mulher sucumbe. Ao menos é o que afirma Beauvoir em seus estudos:

Um trabalho intensivo é exigido para desbravar florestas, tornar os campos produtivos. O homem recorre, então, ao serviço de outros homens que reduz à escravidão. A propriedade privada aparece: senhor dos escravos e da terra, o homem torna-se também proprietário da mulher. Nisso consiste a grande derrota do sexo feminino (BEAUVOIR, 1949, pg. 74).

Sua submissão, segundo Beauvoir, se inicia, então, com o advento da posse e da propriedade privada. Ela já não é mais aquela com quem se divide igualmente o trabalho. Mas se torna também posse do conquistador, escrava do dominador. Anteriormente, o outro, o ser contra o qual o homem de sua tribo se impunha era um mero animal que serviria de alimento ou os outros homens de outras tribos quando essas se punham em batalha. A partir do momento em que o conceito de posse emerge, ela passa a ser o outro contra o qual o homem se impõe. Lá fora do lar, ele se impõe na guerra para suas conquistas, e essa imposição reflete dentro do lar, relegando a mulher ao seu papel de objeto-posse. A partir daí o homem reivindica a colheita, bem como os filhos: é o aparecimento da sociedade patriarcal e detentora do poder baseada na propriedade privada. Quando casada, liberta-se do pai, mas passa então a ser propriedade do marido, não tem voz, não faz suas leis, não impõe seus pensamentos.

Diz-se que a mulher acaba por tornar-se inconscientemente submissa por várias razões. Uma delas é sua passividade na relação sexual. Ela espera, passiva, a entrada ―triunfante‖ do homem, o ser ativo na relação. Logo, pode-se entender que possuir um pênis é possuir o poder dentro das relações. Se o homem impõe-se socialmente, intimamente o instrumento que o leva a permanecer com esse poder é o falo. Lê-se Beauvoir ―O homem exalta o falo na medida em que o apreende como transcendência e atividade, como modo de apropriação do outro‖ (IBIDEM, 205).

2 - A mulher na literatura

A mulher também ficou, por longas décadas e séculos, com um papel secundário nas obras literárias. Aos homens eram dedicadas as principais personagens, as discussões, aventuras e reflexões. Lucia Zolin discute a respeito do estereótipo feminino nas obras literárias. Segundo ela, nas narrativas de autores masculinos, tudo tem uma perspectiva e um direcionamento totalmente masculinos, como se todos os seus leitores também o fossem. Logo, as personagens femininas ficam deixadas em um segundo plano, seguindo paradigmas de estereótipos e papéis.

[...] as críticas feministas mostram como é recorrente o fato de as obras literárias canônicas representarem a mulher a partir de repetições de estereótipos culturais, como, por exemplo, o da mulher sedutora, perigosa e imoral, o da mulher como megera, o da mulher indefesa e incapaz, e entre outros, o da mulher como anjo capaz de se sacrificar pelos que a cercam. (ZOLIN, p. 170).

Podemos enquadrar, segundo as definições dadas acima, algumas das personagens mais importantes das Literaturas Brasileira e Portuguesa. A mulher descrita somente como corpo, feita para o sexo, aquela dedicada aos delírios da carne, sedutora e perigosa pode ser representada pela personagem. Lúcia do romance Lucíola de José de Alencar.

Lúcia saltava sobre a mesa. Arrancando uma palma de um dos jarros de flores, trançou–a nos cabelos, coroando–se de verbena, como as virgens gregas. Depois agitando as longas tranças negras, que se enroscaram quais serpes vivas, retraiu os rins num requebro sensual, arqueou os braços e começou a imitar uma a uma as lascivas pinturas; mas a imitar com a posição, com o gesto, com a sensação do gozo voluptuoso que lhe estremecia o corpo (ALENCAR, 1985, p. 42-43).

Vemos também muito fortemente na literatura o estereótipo de mulher pura, incapaz de maldade, sendo sempre representada com adjetivos alvos, elevada ao estado de anjo ou divindade:

Descansar nesses teus braços Fora angélica ventura: Fora morrer — nos teus lábios Aspirar tua alma pura! Fora ser Deus dar-te um beijo Na divina formosura! (AZEVEDO, 1996, p. 51)

Como a mulher que vive para o trabalho, servindo o homem, podemos ver Bertoleza, de O Cortiço. Sofrida, sem ter a quem recorrer, vê como único caminho trabalhar sol a sol para João Romão, português que lhe mandava e desmandava.

Como sempre, era a primeira a erguer-se e a ultima a deitar-se; de manhã escamando peixe, à noite vendendo-o à porta, para descansar da trabalheira grossa das horas de sol; sempre sem domingo nem dia santo, sem tempo para cuidar de si, feia, gasta, imunda, repugnante, com o coração eternamente emprenhado de desgostos que nunca vinham à luz. Afinal, convencendo-se de que ela, sem ter ainda morrido, já não vivia para ninguém, nem tampouco para si, desabou num fundo entorpecimento apático, estagnado como um charco podre que causa nojo (AZEVEDO, 1997, p. 133).

Resumidamente, a mulher ou é vista como angelical, submissa e fiel ou é megera, objeto de sexo e semeadora da discórdia. É claro no exemplo a seguir, retirado da obra Inocência, de Visconde de Taunay:

Esta obrigação de casar as mulheres é o diabo!.. Se não tomam estado, ficam juradas e fanadinhas...; se casam podem cair nas mãos de algum marido malvado... E depois, as histórias! Ih meu Deus, mulheres numa casa, é coisa de meter medo... (TAUNAY, 1998, p. 27).

Ou seja, há certo modelo de mulher e ―feminilidade‖, que se traduz quase como ―passividade‖, ou mesmo ―sexualidade‖ ou é demonizada como no trecho acima. São dois pólos opostos que as representam, estereotipando-se nos dois, petrificando-a em uma imagem inautêntica.

A mulher representada na literatura, entrando num circuito, produzindo efeitos de leitura, muitas vezes acaba por se tornar um estereótipo que circula como verdade feminina. Presa de representações confunde significante e significado e busca estabelecer uma continuidade do signo com a realidade (BRANDÃO, 2006, p. 33).

3 - A mulher em Saramago

As narrativas não foram escolhidas por acaso. Há nelas personagens femininas que são marcantes por sua força de atuação. Mulher do Médico, de Ensaio sobre a Cegueira, sacrifica-se, logo no início da obra, em prol do marido. Ela o acompanha até ao manicômio onde os cegos estão sendo alojados, fingindo estar também cega para, assim, estar junto dele. A partir dessa atitude, outros fatos importantes se desencadeiam e tornam sua participação na fábula de extrema importância. A sua imunidade acaba se tornando um peso para ela mesma. Enquanto os outros estão cegos e jogados à barbárie, ela, com os seus olhos literalmente abertos, acaba por testemunhar toda a decadência humana, física e moral. No entanto, ela não se entrega, sacrifica-se novamente, desta vez em prol dos cegos de sua camarata: reivindica medicamentos para os feridos, demanda mais comida para a ala que passa fome, dá banho nas outras mulheres e ajuda os feridos.

Sua pureza, ou se preferirmos, sua não altivez, faz com que ela sequer considere a hipótese de tirar proveito da visão intacta, por exemplo, pegando mais comida para si. Ela compartilha os horrores da situação, seguindo com outras mulheres voluntárias até a ala vizinha para servirem, com seus corpos, como moeda de troca por comida para os habitantes da sua ala. E essa ―superioridade‖ que ela tem sobre os outros, ou seja, o fato de enxergar em meio a cegos, ao invés de trazer vantagens, leva-a ao perigo. Após assassinar com uma tesourada o líder da camarata que fazia das mulheres objeto de estupro e/ou prostituição, ela correu o risco de ser entregue por sua própria ala ao covil dos lobos da camarata três. Correu o risco, também, de se tornar escrava dos próprios cegos, guiando-os aos banheiros, lavando suas roupas, etc. Portanto, sua imunidade, ao mesmo tempo em que fortalece sua condição de mulher-sujeito, que se coloca como uma líder, também a coloca em perigo.

Sua força de tutora dos cegos leva-a ao encontro do abuso, recordando-nos de uma figura da mitologia celta: o rei casado com a terra, soberano cuja vida seria oferecida em sacrifício na eventualidade de seca e fome. O ditado ―em terra de cego, quem tem um olho é rei‖ é assumido por ela, mas não no sentido que normalmente se imagina: ser rei nesse contexto significa responsabilidade, cumplicidade e sacrifício, em vez de vantagens, imunidade e ócio.

Tentando fazer uma leitura e tentando encaixá-la nos estereótipos femininos encontrados na literatura escrita por homens, ela bem se aproxima daquela cuja função é se anular perante aos outros, sendo pura e compreensiva (mesmo diante da traição do marido com a amiga), já que ela realmente se sacrifica pelos outros. Porém, ela é uma personagem que foge desses estereótipos. A Mulher do Médico age, faz com que as coisas aconteçam, fortalece-se e lidera todos em meio a uma sociedade patriarcal e imunda. Ela se rebela, enfrenta o perigo ao entrar na camarata dos bandidos para assassinar seu líder. Vê-se que sua imunidade não é a razão que a faz líder, apenas reforça sua liderança dentro do manicômio e fora dele. Desde o início da obra, pode-se perceber sua determinação e convicção, ao se proclamar cega, mesmo não estando cega verdadeiramente, para acompanhar o marido até o manicômio.

Blimunda, protagonista de Memorial do Convento é filha de uma condenada à fogueira, ela conhece Baltazar justamente durante a execução de sua mãe. A sua primeira manifestação de independência ocorre aí: sem conhecê-lo, leva-o para morar consigo.

Nota-se, também, que no casal Baltazar/Blimunda há uma igualdade de papéis. Não há, entre eles, dominador e dominado. Ao contrário, no casal da nobreza, ou seja, na relação entre o Rei e a Rainha, fica evidente a condição da mulher em relação ao patriarca: a soberana serve apenas para a reprodução; em outras palavras, para dar um herdeiro varão ao trono. A esterilidade da soberana pode desgraçá-la, uma vez que transferiria a coroa para um parente próximo do rei. Em meio à nobreza, a relação de poder existente na esfera social se transfere para a esfera matrimonial. Na pobreza, percebe-se, como dito acima, que o casal se coloca no mesmo nível hierárquico: outro ponto importante na leitura de Blimunda. Vê-se que nas classes populares a mulher tem maior liberdade e nem mesmo a virgindade, dentro dessas classes, é considerada um bem tão precioso. Essa liberdade de ação é bem explorada por Saramago, em contraposição à mulher anulada socialmente e sem força de ação, ou seja, a Rainha. Enquanto uma leva um homem para morar consigo e estabelece dentro do seu relacionamento uma igualdade hierárquica de papéis, a outra é anulada pela configuração de poder existente dentro do casamento entre nobres.

Por força de sua ―estranheza‖, ou seja, seu poder de visão (Blimunda podia ver as pessoas por dentro, tanto seu interior físico quanto suas vontades, se estivesse em jejum) ela se torna imprescindível para o vôo da Passarola. . Ora, se o vôo pode ser lido, no romance, como metáfora da liberdade, o papel de Blimunda como a única personagem que pode reunir os elementos (vontades) imponderáveis, etéreos, que serão necessários na engenharia renascentista dessa liberdade, ganha um significado inequívoco.

Depois do sumiço de seu companheiro, que fez um vôo com a Passarola e nunca mais foi visto, Blimunda peregrina todo o chão de Portugal em busca de seu amado. Procura-o por nove anos, indo de terra em terra, povoado em povoado, cidade em cidade. Tal atitude poderia ser considerada, por um lado, como uma atitude de submissão e fidelidade ao seu marido; por outro, pode-se considerar essa posição de Blimunda como força de mulher-sujeito, por ser fiel a si, ao seu amor, aos seus princípios, enfrentando as convenções sociais de sua época, recebendo o rótulo de louca que vem não se sabe de onde e vai não se sabe para onde. Chega até mesmo a enfrentar um apedrejamento nessa sua peregrinação. Contudo, ela não esmorece, vai até o fim, e encontra seu amado a arder na fogueira da Santa Inquisição.

Para finalizar a respeito de Blimunda, ela também não se encaixa nos paradigmas preconceituosos enraizados na literatura. De indefesa Blimunda nada tem. Como classificar como indefesa alguém que, ao sofrer tentativa de estupro por um frade, tem força para matá-lo e fugir. Megera ela é tampouco. Sabe-se que Blimunda, na busca por Baltazar, é perseguida por esse frade, e só comete o crime em legítima defesa. Sua busca incansável por seu amor e a resistência ao apedrejamento mostram sua força, a de uma mulher que consegue se destacar em um universo falocêntrico e patriarcal, fugindo aos padrões de representação feminina.

Para ambas as personagens, os efeitos e acontecimentos inexplicáveis ajudam no fortalecimento de suas personalidades. Porém, tais fenômenos apenas acrescentam força à já firme personalidade dessas mulheres, são apenas uma força que as leva emergirem de um mar dominado pelo masculino. Tanto a Mulher do Médico quanto Blimunda fogem dos estereótipos femininos arraigados na Literatura. Em se tratando da primeira, desde o início da obra ela toma sua posição de líder e enfrenta todos os problemas que lhe atravessam o caminho. Quando a situação está se encaminhando para uma dominação total, tanto moral e física, por parte dos bandidos da ala três, ela toma uma decisão: assassinar seu líder. E o faz apesar de sua consciência acusá-la de que acabara de matar um homem. Sua ―não altivez‖ em não se aproveitar da sua imunidade para tornar-se uma tirana também reforça seu caráter. É mulher que atua em meio a uma sociedade onde os homens ditam as regras.

Em Jangada de Pedra, livro do mesmo escritor, Joana Carda, que acabara de perder do marido, encontra quatro pessoas com as quais se passaram fenômenos inexplicáveis durante o desprendimento da Península Ibérica do resto da Europa. Joana Carda é única figura feminina em meio a três homens, e mesmo assim ela se sobressai tomando atitudes, dizendo coisas que só uma mulher de forte caráter pode fazer. Ao se apaixonar por José Anaiço, Carda (que curiosamente significa ―um tipo de máquina que desembaraça as fibras têxteis‖ e ao mesmo tempo ―máquina que dilacera carnes‖) não hesita, toma a atitude de beijá-lo, mesmo correndo o risco de ser considerada fútil perante aos outros:

Disse Joana adeus até amanhã, e no último instante, quando já tinha um pé no chão, virou-se para trás e beijou José Anaiço, na boca, pois então, não esse disfarce de face ou comissura, foram dois relâmpagos, um de rapidez, outro de choque, mas deste prolongaram-se o efeito, o que não seria o contato dos lábios, tão doce, se tivesse prolongado (SARAMAGO, 2006: 134 - 135).

Se a atitude de Joana Carda fosse atribuída a um homem, este estaria seguindo a ordem natural das coisas. Entretanto, atribuída a uma mulher, essa atitude poderia ser vista com ―maus olhos‖. Mas Carda não teme tais preconceitos, sua vida já estava desintegrada com a perda do casamento, ela arrisca amar e não se arrepende. Toma outras iniciativas como aquela que quando se estava por decidir quem dormiria aqui ou ali na casa de Joaquim Sassa, tendo apenas uma cama de casal, Joana Carda decide e põe fim ao impasse:

Mas dois minutos ainda não tinha passado e aí estava Joana Carda a dizer em voz clara, Nós ficamos juntos, em verdade está o mundo perdido se as mulheres tomam iniciativas deste alcance, antigamente havia regras [..] mas nunca por nunca ser este despautério, esta falta de respeito diante de um homem de idade, e ainda dizem que as andaluzas têm o sangue quente, vejam esta portuguesa, a Pedro Orce que aqui vai nunca nenhuma disse assim cara a cara, Nós ficamos juntos (SARAMAGO, 2006: 148, 149).

Este irônico comentário do narrador só reafirma sua posição de mulher-sujeito, definição dada pela crítica feminista àquela personagem que age e toma decisões no universo patriarcal e detentora do poder. Joana Carda decide passar a noite com José Anaiço. Isto não a torna vulgar, e em muitos pontos da obra vê-se em Joana Carda uma mulher que, apesar do sofrimento, é decidida e se mostra, por vezes, caridosa e de bom coração. O próprio narrador afirma seu brio, vê que Joana Carda é uma mulher que decide reagir, que não espera pelos outros. Vê-se o que ele pensa da personagem no trecho em que os quatro amigos estão ficando sem dinheiro e se preocupam em como consegui-lo:

Mas talvez não venha a ser preciso chegar a tais extremos de ilegalidade, aqui no Porto irá também José Anaiço à agência do banco onde guarda as economias, Pedro Orce trouxe todas as suas pesetas, de Joana Carda é que nada sabemos quanto ao particular dos recursos, pelo menos já vimos que não parece mulher para viver de caridades ou expensas de macho (SARAMAGO, 2006: 152).

Joana Carda é daquelas pessoas que não esperam, já sendo redundante, agem. No trecho em que o cão aparece, é ela que entende que o cão quer que eles o sigam. E nas indefinições de ir ou não com ele, ela decreta: Estou pronta a ir para onde ele nos levar, se foi para isso que veio, quando chegarmos ao destino saberemos (Ibidem: 133). Ela torna-se, pode-se assim interpretar, um ícone a ser seguido. Sua liberdade e determinação a levam ao encontro dos três amigos, e a fazem decidir seguir viagem com eles, atitude de extremo enfrentamento em se tratando de uma sociedade patriarcal e detentora do poder. Isso se torna claro quando, ao regressar a casa dos parentes para passar a noite, Joana Carda, no entrar da noite, conta que decidira ir viajar com os três homens:

[...] Quando todos já dormirem na Figueira da Foz, ainda duas mulheres estarão a conversar numa casa de Ereira, no segredo da noite, Quem me dera ir contigo, diz a prima de Joana, casada e mal-maridada (SARAMAGO, 2006: 135).

A prima, que tem como impedimento para uma viagem deste tipo o mau casamento, e que provavelmente não se separa devido aos valores da sociedade patriarcal, lança em Joana, desquitada e valente, seus anseios, eis a razão do: ―Quem me dera ir contigo‖.

4 - Considerações finais

Em guisa de conclusão, todas as personagens analisadas contribuem, através de suas atitudes, para uma desconstrução dos estereótipos femininos mais conhecidos (a megera, a santa e sedutora/perigosa), contribuindo também para uma desconstrução da ideologia de diferença de gêneros: a dicotomia homem/mulher, em que um sempre é dominante e o outro dominado. É importante, ao fim, frisar que não há um ―super-heroísmo‖ nas mesmas, e nem esse é o norte da crítica feminista. Elas sofrem, passam por tribulações, e são pessoas absolutamente comuns, mas com uma diferença: agem. O que se quer é mostrar mulheres normais que podem, sim, ser ativas, tomarem decisões e ter um nível de igualdade em relação aos homens. Nota-se nas três personagens que elas dividem os papéis com seus companheiros, tomando decisões, participando ativamente da fábula.

Quanto à Blimunda, seus poderes a fortalecem como mulher que atua, porém, mesmo sem eles, ela continua sendo agente, tomando iniciativas sempre que mudanças sejam necessárias, tomando decisões quando os outros não fazem. Ela também não se submete à dominação masculina e detentora do poder, adota uma postura, juntamente com Baltazar, de igualdade dentro de um ―casamento‖. Vê-se uma nítida diferença de valores em comparação com o casal da nobreza, em que se tem o Rei como centro e dominador e a Rainha como mero objeto para reprodução e com vontades e atuações praticamente nulos. Em se tratando de Blimunda, sua independência contribui para sua força de ação e realização de suas vontades.

Entende-se, por fim, que a Mulher do Médico contém muito dos aspectos que tanto a crítica feminista reivindica: uma igualdade de papéis entre homem/mulher, uma mulher com características fortes e força de mudança, que seja determinada, espirituosa e líder e mesmo assim continue sendo uma mulher, com todas as suas peculiaridades femininas. Ela não pode ser julgada como indefesa ou pacífica só porque ―entende‖ a traição do marido, bem como não há nada de mulher megera ou perigosa só pelo assassinato que ela cometeu. Outras características dizem justamente o contrário: a força de lutar por pessoas que não conhece, enfrentando situações perigosas, entrando no covil do inimigo e assassinando o líder rival. Pode-se dizer que a personagem Mulher do Médico é um exemplo para a desconstrução da dicotomia que tanto a crítica feminista luta para desfazer.

E sobre Joana Carda, coloca-se aqui a fala do narrador relatando o espanto dos homens em relação à inteligência e força desta personagem: ―Vê-se na cara de José Anaiço e de Joaquim Sassa que vão desorientados, a mulher que desceu à cidade de pau a proclamar impossíveis actos de agrimensora saiu-lhes filósofa nos campos do Mondego‖ (SARAMAGO, 2006: 127).

Referências bibliográficas
ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo: Ática, 1985
ALMEIDA, Júlia Lopes de. A Intrusa. Pará de Minas: Virtual Books, 2002.
AZEVEDO, Aluísio de. O Cortiço. São Paulo: Ática, 1997.
AZEVEDO, Álvares de. Lira dos Vinte Anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
BRANDÃO, Ruth Silviano. Mulher ao Pé da Letra – A Personagem Feminina na Literatura. Belo Horizonte, UFMG, 2006.
SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SARAMAGO, José. A Jangada de Pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
SARAMAGO, José. Memorial do Convento. São Paulo: Círculo do Livro, 1982.
TAUNAY, Visconde de. Inocência. São Paulo: Martin Claret, 1998.
ZOLIN, Lucia Osana. Desconstruindo a Opressão – A Imagem Feminina em a República dos Sonhos de Nélida Piñon. Maringá: EDUEM, 2003.
ZOLIN, Lucia Osana. Crítica Feminista. In: BONICCI, Thomas & ZOLIN, Lucia Osana. Teoria Literária: Abordagens Histórias e Tendências Contemporâneas. Maringá, EDUEM, 2004.

Fonte:
II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010 Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

terça-feira, 12 de junho de 2012

Trova Ecológica 85 - Carolina Ramos (Santos/SP)


Millôr Fernandes (Reflexão Sobre a Reflexão)


Terrível é o pensar.
Eu penso tanto
E me canso tanto com meu pensamento
Que às vezes penso em não pensar jamais.
Mas isto requer ser bem pensado
Pois se penso demais
Acabo despensando tudo que pensava antes
E se não penso
Fico pensando nisso o tempo todo.


Fonte:
Jornal de Poesia

Mia Couto (O Derradeiro Eclipse)


Justinho Salomão era ratazanado pela dúvida sem método. O homem sofria de ser marido, lhe pesavam as frias sombras da desconfiança. A mulher, Dona Acera, é linda de fazer crescer bocas, águas e noites. Devorado pelo ciúme, Justinho emagrecia a pontos de tutano. Lastimagro, carcomido, ele para se enxergar precisava procurar-se por todo o espelho. Justinho fazia comichão às pulgas. Um dia, o padre o avisou à saída da missa:

-  Seja prestável na atenção, Justinho: sua alma é como um fumo que não tem lugar onde caiba- .

Raios picassem o padre que nunca falava direito. O que o sacerdote sabia era do domínio incomum: Acera era demasiado mulher para esposa. Justinho suspeitava mais dos argumentos que dos factos. Seria a esposa mais desleal que um segredo? A resposta era sombra sem luz nem objeto. Em véspera de viagem, a suspeita do marido se agravava. Desta vez, um longo serviço de visitações o vai obrigar a geográfica ausência. Acera recebe, tristonha, a notícia:

-  Quanto tempo você me vai sozinhar?- 

Um mês. A mulher contorce o batom, abana as  mechas. Até uma lágrima lhe crocodileja a pálpebra. O marido ainda mais se aflige perante tanto inconsolo. Será verdade ou conveniência de fingimento? Quem, tão novo, guelra tão ensanguentada, pode se aguentar em guardos de fidelidade? Na véspera de partir, o marido se decidiu certificar em garantia de lealdade. Primeiro se dirigiu à Igreja e solicitou socorro do padre português. O religioso torce as mãos, reticente e, como era hábito, barateou filosofia:

-  Bem, não sei. Para cruzar as pernas é preciso que haja duas...

-  Duas quê?

-  Duas pernas, ora essa.

E prosseguiu desaguando, água em líquidos carreiros. Justinho esperava que o sacerdote o tranquilizasse. Lhe dissesse, por exemplo: vai em paz, você está bem casado, mais anelado que Saturno. Mas não, o padre ondulava a testa de suposições.

-  Não sei, não. Quem mais espreita não é o próprio sol?

-  Explique-se melhor, senhor padre.

-  Quer que seja mais claro? Me responda, então: onde o chão está mais limpo não é em casa de mortos?- 

Justinho não respondeu. Voltou costas e saiu da igreja. Ainda se afastava e a voz irada do padre se faz ouvir:

-  Já sei para onde vais, criaturazita. Vais ter com o feiticeiro! Mas verás o que os meus poderes, aliás os poderes divinos, irão fazer com esse bruxo tropical!- 

Um arrepio ainda atravessou Justinho. Mas ele não toldou passo no caminho para o feiticeiro e pediu que lhe assegurasse. Heresia bater nos ambos lados da porta? Se um mortal tem mais que um deus-pai não pode ter mais que uma crença?

-  Isso não posso. Vontade de mulher está acima dos meus poderes. Posso, sim, destinar castigo nos abusadores. 

-  E como?

-  Hei-de tratar sua casa.

E foi executado o tratamento: uma pequena cabaça à entrada da residência de madeira e zinco. Desrespeitoso que entrasse haveria de sofrer muitas consequências. O marido ainda tem acanhamento na consciência:

-  Eles... eles irão morrer?- 

O feiticeiro ri-se. O que iria suceder eram inchaços e gases, tudo inflando as entranhas do culposo intrometedor. No final dos serviços e depois de saldadas as contas, o feiticeiro hesita no momento da despedida:

-  Você, antes de mim, consultou o senhor padre? E ele o que disse de mim? 

Justinho subiu as omoplatas, fosse um assunto superior a suas competências. O feiticeiro virou costas e se afasta, enquanto comenta:

-  Esse padre ainda vai chorar como a galinha. Conhece a história da galinha que comeu o colar das missangas só para a outra galinha não usar?- 

Passaram-se dias e Justinho lá partiu. A viagem demora mais que ele pretende. Quando regressa, a mulher está à espera dele, à entrada. Vestido do gosto dele, penteada a presente, corpo todo na conveniência do marido. Até o botão cimeiro está desempregado, distraído sobre o decote. Acera, toda ela, está às ordens da saudade dele. Se engolfinham, enredando pernas nos suspiros, confundindo lábios e suores, vidas e corpos.

Cumpridos os compridos amores Justinho se estira na cama, consolado. Fecha os olhos, menino após o seio. Depois, olha para cima e é fulminado por uma visão: dois homens flutuam de encontro ao teto. Estão redondos, insuflados como balões.

-  Mulher quem é aquilo?

-  Que aquilo? 

Levanta-se em gesto de lamina e se espanta ainda mais ao reconhecer os desditosos ditos. E quem eram?  O padre e o feiticeiro. Esses mesmos a que Justinho confiara a guarda de sua esposa. Esses mesmos estavam ali pregados no teto.

-  Vocês, logo vocês?

-  Marido, está falar com quem? 

Gaguejando o marido aponta o teto. A mulher acredita que ele está em ataque de religiosidade, aspirando proximidades com o céu. Justinho insanou-se, epiléctico?

Acera ainda correu atrás do tresloucado marido. Mas o homem, de venta peluda, se eclipsou pelo escuro. Nem demorou: voltou com testemunhas. Fez introduzir uns tantos no quarto e apontou os autores do flagrante. Os outros ficaram, parvos da cara, sem nada vislumbrarem. Só Justinho via os voáveis amantes de sua mulher. E lhe explicam o padre e o feiticeiro não são possíveis ali Eles se ausentaram em breve excursão à cidade. Todos os viram partir, todos lhes acenaram à saída do machimbombo.

Os vizinhos lhe asseguram os bons comportamentos de Acera. Despedem-se, cuidando de o seguir, doente que estava o viajante. Dava até azar ter um desvairado daqueles no lugar. Mesmo o enfermeiro reformado lhe trouxe uns comprimidos de arrefecer o sangue. Justinho aceitou ficar estendido, a apurar descansos. Dava forma à cabeça, ajustava o pensamento à existência.

E todos e tanto insistiram que ele deixou de ver gente suspensa no tecto. Aos poucos se libertou das visões, manufaturas de suas ciumeiras. Noites há em que, de sobressalto, se levanta. Escuta risos. O padre e o feiticeiro se divertem à sua custa? Escuta melhor: não é gargalhada, é um pranto, um pedido de socorro. Incapazes de descer, os homens aprisionados no teto lhe pedem uma aguinha, migalha de entreteter fome e sede. Os pobres já são só ar e osso.

A voz de Acera o traz à realidade: - venha marido, se deite. Se acalme. Não quer dormir comigo? Durma em mim, então. Não me quer atravessar? Me use de travesseiro.  Isso, descanse, meu amor- . E o tempo passava, compondo semana e mais semana. Justinho não melhora. Mais e mais escuta as lamentações dos dois que agonizam dentro das suas paredes.

Até que, uma noite, ele acordou estrebuchando. Não eram já os gemidos dos moribundos mas uma estrangeira calmaria. Olhou por entre o escuro e viu Acera vagueando, o pé pedindo licença ao silêncio. O marido nem se mexeu, desejoso de decifrar a misteriosa deambulação da mulher. Então ele viu que Acera subia para um banco e, com um cordel, amarrava o padre e o feiticeiro pela cintura. E assim, atados como balões, ela os transportou para fora de casa. No quintal, Acera limpou no rosto do padre uma lágrima e beijou a face do feiticeiro. Depois, largou os cordéis e os dois insufláveis começaram a subir pelos ares, atravessando nuvens e extinguindo-se no céu e nas pupilas espantadas de Justinho Salomão.

Nessa noite, os habitantes da vila assistiram à lua se obscurecer naquilo que viria a ser um derradeiro e permanente eclipse.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

Iara Pacini /RS (Poemas Avulsos)


POR QUE AS ESTRELAS NÃO CALAM

 Em silêncio, sigo cansada,
 longa jornada,
 este peso...
 À noite me olho,
 Vejo,
 Sinto,
 Reflito,
 Mergulho em meu grito!
 As estrelas não calam,
 em dizer, às minhas lágrimas,
 calma ao meu coração
 Torturado
 Cansado,
 as batidas em descompasso
 sentimentos em desalinho,
 talhados em dor...
 E ao chegar a noite,
 Procuro,
 Ando,
 Procuro nas emoções vividas
 que me invadem de mansinho...
 um brilho no céu...
 Luzinhas multicoloridas,
 prateadas,
 me ondulo no mar,
 na longa espera,
 e entre os girassóis suspiro
 com sintomas de solidão,
 e tento,
 reinvento
 a espera da eterna renovação
 do tempo.

 VERSOS DESFOLHADOS

 Hoje, desfolhada pela saudade que me tortura,
 vou a tua procura e choro no meu canto.
 De minha melancolia faço versos desfolhados.
 Plantei e guardei beijos, carinhos e afagos que tu me deste.
 Levei tudo para o universo do meu coração
 Tento caminhar e caminhar ate te encontrar,
 pois calada, consumida pela distancia,
 na solidão das horas das minhas recordações,
 fica o amor imenso que tenho por ti
 Saudades doidas
 que me consomem...

 FLORESCER

 Floresço em cada dia...
 na poesia vou buscar o teu encanto,
 a esperança brota,
 me cubro de amor,
 sonhando ao teu lado,
 sentir um pouco de felicidade,
 e enfrento a distância,
 com tristeza,
 sorrio, pra não chorar,
 memorizando emoções queridas,
 numa silenciosa noite.
 Ó meu Deus,
 como te agradeço o amor,
 pois só tu sabias que o meu caminho seria assim,
 e me faço poeta, cantando, na ilusão de escrever
 na linha de tua mão
 TE AMO

O AGASALHO DO AMOR

 Meus pensamentos voam,
 ouvi de longe, muito longe,
 um sussurro tão doce...
 A alegria tomou conta de mim,
 (A saudade deixou-me,
 embalada pela nostalgia).
 me levaou a alcançar a serenidade
 ao logo do dia,
 em silêncio, revejo cenas lindas,
 coloridas ,
 que enfeitaram meu coração...
 nas colinas o verde,
 no céu o azul,
 nas estrelas o brilho dos teus olhos,
 momento concretizado com emoção pura
 com chuvas de carinho,
 (alimento constante),
 agasalhados nesse amor.

DELÍRIOS !

 Quero você:
 Vontade no cio!
 Nessa estação,
 Em meus braços
 Embalando sonhos
 Dançamos até o amanhecer
 Uma valsa arrebatada de amor...
 Enamorada volúpia
 Flama
 Fornalha quente uivando
 Carícias em beijos...
 Sorvidos - ardemos em paixão
 Bebendo da emoção selvagem.
 Delírios puros em plenitude.
 No ápice do reencontro,
 Prazer supremo!

ÊXTASE

 Quero ficar...
 ao teu lado em êxtase,
 sentir a batida louca do teu coração,
 o dialogo mudo de nossos olhos,
 em busca de sol, em carinhos,
 quero diluir-te em temperos ,
 abraços que se entrelaçam,
 palavras murmuradas sobre as ondas do mar
 sentindo emoções fortes,quentes,
 bombeando o elemento de nossas entregas,
 que levaram a nossa alma em tapetes de brilhantes


Fonte:
Academia Virtual Sala dos Poetas e Escritores.

Alcantara Machado (O Inteligente Cícero)


(Menino Cícero José Melo de Sá Ramos)

Dois dias depois da chegada de Cícero ao mundo (garoava) o Diário Popular escreveu: Acha-se em festas o venturoso lar do nosso amigo senhor Major Manuel José de Sá Ramos, conhecido fabricante do molho João Bull e da pasta dentifrícia Japonesa, e de sua gentilíssima consorte Dona Francisca Melo de Sá Ramos, com o nascimento de uma esperta criança do sexo masculino que receberá na pia batismal o nome de Cícero. Felicitamos muito cordialmente os carinhosos pais. O major foi pessoalmente à redação levar os agradecimentos dos carinhosos pais e no dia seguinte o órgão da opinião pública registrou a visita referindo-se mais uma vez à esperteza congênita de Cícero.

Quando o pequeno fez dois anos passou a ser robusto. Quando fez quatro foi promovido pelo Diário Popular a inteligente e mui promissor menino.

Nesse dia Dona Francisca achou que era chegado o momento de ensinar ao Cícero O Estudante Alsaciano. Seis estrofes mais ou menos foram decoradas. E a madrinha Dona Isolina Vaz Costa (cuja especialidade era doce de ovos) foi de parecer que quanto à dicção ainda não está visto mas quanto à expressão Cícero lembrava o Chabi Pinheiro. No entanto advertiu que do meio para o fim é que era mais difícil. Principalmente quando o heróico rapazinho desabotoava virilmente a blusa preta e gritava batendo no peito: Aqui dentro, aqui é que está a França!

Cícero na véspera do Natal de seus cinco anos às sete horas da noite estava entretido em puxar o rabo do Biscoito quando Dona Francisca veio buscá-lo para dormir. Cícero esperneou, berrou, fugiu e meteu-se embaixo da mesa da sala de jantar. Foi pescado pelas orelhas. Carregado até a cama.

Dona Francisca tirou a roupa dele, enfiou-o no macacão e disse:

- Vá dizer boa-noite para papai.

Beijada a mão do major (que decifrava umas charadas do Malho) voltou. E Dona Francisca então falou assim:

- Olhe aqui, meu filhinho. Tire o dedo do nariz. Olhe aqui. Você agora vai pôr seu sapatinho atrás da porta (compreendeu?) para São Nicolau esta noite deixar nele um brinquedo para o meu benzinho.

Cícero obedeceu correndo.

- Bom. Agora reze com a mamãe para Nossa Senhora proteger sempre você.

Rezou sem discutir.

- Assim sim que é bonito. Não meta o dedo no nariz que é feio. E durma bem direitinho para São Nicolau poder deixar um brinquedo bem bonito.

Cícero no escuro deu de pensar no presente de São Nicolau. E resolveu indicar ao santo o brinquedo que queria por causa das dúvidas. Não confiava no gosto do santo não. Na sua cabeça os soldados vistos de manhã marchavam com a banda na frente. E disse baixinho:

- São Nicolau: deixe uma espingardinha.

Virou do lado direito e dormiu de boca aberta. Às sete da manhã encontrou um brinquedo de armar atrás da porta. Ficou danado. Deu um pontapé no brinquedo. E chorou na cama apertando o dedão do pé.

Na véspera do Natal de seus seis anos às sete e meia da noite estava Cícero matando moscas na copa quando o major veio chamá-lo para dormir. Ranzinzou. Choramingou. Quis escapar. Foi seguro por um braço e posto a muque na cama. Dona Francisca já esperava afofando o travesseiro.

- Fique quietinho, meu filho, que é para São Nicolau trazer um brinquedo para você.

Não quis ouvir mais nada. Arrancou os sapatos e foi mais que depressa deixar atrás da porta. Mas depois ficou algum tanto macambúzio. Coçando a barriga e tal.

- Que é que você tem? Mostre a língua.

Com má vontade mas mostrou. Dona Francisca verificou o seu aspecto saudável.

- Vá. Diga para sua mamãe que é que você tem.

- Como o da outra vez eu não quero mesmo.

- Não quer o quê?

- O brinquedo...

Dona Francisca riu muito. Beijou a cabecinha do Cícero. Foi buscar um lenço. Encostou no nariz do filho.

- Assoe. Com bastante força. Assim. De novo. Está bem. Agora me diga direitinho que brinquedo você quer que São Nicolau traga.

- Não.

- Diga sim, minha flor, para mamãe também pedir.

- Não.

- Então mamãe apaga a luz e vai embora. Depois que ela sair o meu filhinho ajoelha na cama e diz bem alto o presente que ele quer para São Nicolau poder ouvir lá do céu. Dê um beijinho na mamãe.

Não ajoelhou não. Ficou em pé em cima do travesseiro, ergueu o rosto para o teto e berrou:

- Eu quero um tamborzinho, São Nicolau! Ouviu? Também um chicotinho e uma cornetinha! Ouviu?

Dona Francisca ouviu. E o major logo de manhãzinha levou uma cornetada no ouvido. Pulou da cama indignadíssimo. Porém o tambor já ia rolando pelo corredor. O chicotinho foi reservado para o Biscoito.

Cícero na véspera do Natal de seus sete anos às oito horas da noite estava beliscando os braços da Guiomar quando Dona Francisca (regime alemão) apareceu na porta da cozinha para mandá-lo dormir. Escondeu-se atrás da Guiomar.

- Depois. mamãe, depois eu vou!

- Já e já!

O rugido do major dai a segundos decidiu-o.

Sentado na cama bebeu umas lágrimas, fez um ligeiro exercício de cuspo tendo por alvo o armário, vestiu a camisola e veio descalço até o escritório beijar a mão do papai e da mamãe. Dona Francisca voltou com ele para o quarto. Sentou-o no colo.

- Você já pôs os sapatos atrás da porta?

Cícero fez-se de desentendido.

- Eu sou paulista mas... de Taubaté!

- Agora não é hora de cantar. Responda.

- Atrás da porta não cabe.

Dona Francisca não podia compreender. Não cabe o quê?

- O que eu quero.

- Que é que você quer?

Cícero começou a contar nos dedos.

- Um-dois, feijão com arroz! Três-quatro...

- Responda!

- Ara, mamãe...

- Diga. Que é?

- Ara...

- Não faça assim. Diga!

Foi barata que entrou ali debaixo do armário?

- Eu quero... Ah! mamãe, eu não quero dizer...

- Se você não disser São Nicolau castiga você.

- Quando é que a gente vai na chácara de titio outra vez?

Dona Francisca apertou os braços do menino.

- Assim machuca, mamãe! Eu quero um automóvel igual ao de titio, pronto!

- Que é isso, Cícero? Um Ford? Pra quê? Você é muito pequeno ainda para ter um Ford.

- Mas eu quero, pronto!

Dona Francisca deixou o filho muito preocupada e foi confabular com o major. Mas o major (premiado com um estojo Gillette no concurso charadístico do Malho) achou logo a solução do problema.

- Tenho uma idéia genial.

Tapou a idéia com o chapéu e saiu. Dona Francisca ninava o corpo na cadeira de balanço louca para adivinhar.

As sete horas da manhã Cícero sem sair da cama encompridou o pescoço para examinar um automóvel deste tamanhinho parado no meio do quarto. Meio tonto ainda deu um pulo e foi ver o negócio de perto. Em cima do volante tinha um bilhete escrito à maquina: Meu querido Cícero. Dentro de meu cesto não cabia um automóvel grande como você pediu. Por isso deixo este que é a mesma cousa. Tenha sempre muito juízo e seja bonzinho para seus pais. (a) S. Nicolau.

Não vê. Cícero soltou dois ou três berros que levantaram no travesseiro os cabelos cortados de Dona Francisca. O major enfiou os pés nos chinelos e foi ver o que havia. Cícero pulava de ódio.

- Mas você não viu o bilhete, meu filhinho? Quer que eu leia para você?

- Eu não quero essa porcaria!

O major encabulou e se ofendeu mesmo. Dona Francisca veio também saber da gritaria.

- Mas então, Cícero! Não chore assim. Você chorando São Nicolau nunca mais traz um presente para você.

- Eu não preciso de nada!

O major já alimentava a sinistra idéia de passar um dos chinelos do pé para a mão. Dona Francisca pelo contrário ameigava a voz.

- Ah, meu benzinho, assim você deixa mamãe triste! Não chore mais.

O major foi se aproximando do filho assim como quem não quer.

- Deixe, Neco. Agradando se arranja tudo.

Do lado de lá da cama o Cícero desesperado da vida. Do lado de cá os carinhosos pais falando alternadamente. Sobre a cama (já com um farol espatifado) o pomo da discórdia.

- São Nicolau é velhinho. não pode carregar um cesto muito grande...

- E depois por grandão que fosse não podia caber um Ford de verdade dentro dele...

- É. E se cabesse...

- Se coubesse, Francisca!

- ... se coubesse São Nicolau não agüentaria com o peso...

- Está cansado, não tem mais força.

Cícero foi retendo a choradeira. Levantou a camisola para enxugar as lágrimas.

- Não fique assim descomposto!

Os últimos soluços foram os mais doídos para engolir. Mas parecia convencido.

- Então? Não chora mais?

Assumiu uns ares meditabundos. Em seguida pôs as mãos na cintura. Ergueu o coco. Pregou os olhos no pai (o major sem querer estremeceu). Disse num repente:

- Se ele não podia com o peso por que não deixou o dinheiro para eu comprar o Fordinho então?

Nem o major nem Dona Francisca tiveram resposta. Ficaram abobados. Berganharam olhares de boca aberta. O major piscava e piscava. Sorrindo. Procurou alcançar o filho contornando a cama. Cícero farejou uns cocres e foi se meter entre o armário e a janela. Fazendo beicinho. Tremendo encolhido.

- Não dê em mim, papai, não dê em mim!

Mas o major levantou-o nos braços. Sentou-se na beirada da cama com ele no colo. Cícero. Apertou-lhe comovidamente a cabeça contra o peito. Olhando para a mulher traçou com a mão direita três círculos pouco acima da própria testa. Depois mordeu o beiço de baixo e esbugalhou os olhos para o teto. Cícero. Dona Francisca sorriu apertando os olhos:

- Veja você, Neco!

- Estou vendo! E palavra que tenho medo!

Dona Francisca não entendeu. E o major então começou a explicar.

Fonte:
Alcântara Machado. Laranja-da-China.

João A. Carrascoza (Estrelas em Greve)


Todas as noites, as mulheres se punham diante da televisão para ver as novelas. Os homens cochilavam no sofá e a criançada brincava com os computadores. Ninguém tinha tempo de olhar para o céu. 

Sem platéia, as estrelas decidiram entrar em greve por tempo indeterminado. A Lua, solidária com as amigas, aderiu ao protesto e também se escondeu.

Foi um fuzuê no mundo inteiro. As galinhas, que dormiam com a estrela-d’alva, perderam o sono e deixaram de botar ovos. As corujas pararam de piar. Os tatus não saíram mais das tocas. Os grilos silenciaram. Os anjos da guarda, que desciam à noitinha para ninar as crianças, perdiam-se no caminho. As damas da noite não abriram mais suas pétalas. No escuro, o vento não enxergava nada e não sabia para onde soprar. 

Os poetas caíram em desânimo e a produção de poesia imediatamente cessou. Os agricultores ignoravam se era ou não a época certa para semear. As marés, desorientadas, subiam e desciam à deriva. 

Então, os homens descobriram que aquilo tinha a ver com o sumiço das estrelas. Chamaram os melhores astrônomos, mas eles não souberam explicar o ocorrido. Convocaram as feiticeiras para resolver o assunto, elas fizeram lá suas mandingas, mas não adiantou nada. A coisa estava realmente preta. 

Até que, numa noite, um homem saiu de casa e se pôs a contemplar o céu na escuridão. 

Lembrou que a mãe lhe ensinara a posição do Cruzeiro do Sul. Outro se juntou a ele e recordou as histórias de Lua cheia, quando aparecia o lobisomem. Um velho ouviu a conversa dos dois e veio contar que, em criança, tinha visto o Cometa Halley. Apareceu uma mulher e comentou que só cortava os cabelos na Lua minguante. Outra mulher falou que, havia alguns anos, vira uma estrela cadente e fizera um pedido. O marido ouviu-a e disse que o pedido era ter o amor dele para sempre. Outro homem contou que lhe nascera uma verruga no dedo porque, quando garoto, apontara para as Três-Marias. Aos poucos, as pessoas foram saindo de casa e cada uma tinha sua história para contar sobre a Lua e as estrelas.

Quanto estavam todos na rua olhando o céu vazio, as estrelas, que os observavam do fundo da noite, apareceram de surpresa, acendendo-se ao mesmo tempo. Foi lindo: parecia uma chuva de gotas prateadas. Em seguida, despontou a Lua, com seu brilho magnífico, como um holofote. 

Aí todos entenderam o motivo daquela greve. E, imediatamente, decidiram em consenso: podiam ver televisão, dormir no sofá e brincar com o computador todas as noites. Mas, de vez em quando, iriam dar uma espiadinha no céu para ver o show das estrelas.

Fonte:
Nova Escola. Contos, fábulas e outros.

Carlos Nader (Trabalho = poesia)


16/05/2008, para a Revista Trip

Por que a civilização ocidental colocou em polos opostos dois conceitos que têm origem na mesma palavra grega?

 É um fato relativamente sabido que a palavra "poesia" vem do grego antigo "poiesis", que também significa "trabalho". Muita gente já refletiu sobre as razões que levaram os fundadores da civilização ocidental a amalgamarem em uma só palavra dois conceitos aparentemente tão diversos. E eu agora me pergunto, aproveitando o tema desta Trip: o que levou a própria civilização ocidental, no estágio em que a vivemos hoje, a apartar os conceitos de poesia e trabalho em polos praticamente opostos?

 A equação poesia = trabalho é simples e fácil de entender. O relâmpago poético depende do suor do poeta para ser comunicado. Poema é obra. E o chavão "90% de transpiração e 10% de inspiração" é perfeitamente compreensível para qualquer mortal. Os problemas começam quando invertemos o sentido da equação e pensamos na ideia de que trabalho = poesia. Para o imaginário pedestre, poeta é justamente aquele que vive de nuvens, aquele que, na definição oficial do Houaiss, é dado a devaneios.

 Mesmo que enganada no particular, já que o poeta é de fato um trabalhador dos mais aguerridos a seu ofício, a sabedoria pública tem lá seu fundamento. No mundo de hoje, poesia e trabalho são vinho e petróleo. A poesia, como disse Mallarmé, quer limpar o mundo lotado de palavras para criar silêncio ao redor das coisas. O trabalho hoje quer criar muitas coisas e lotar o redor delas de palavras. Poesia é a linguagem pela qual expressamos nossa eterna surpresa com a beleza ou com o horror da vida. Trabalho é a linguagem pela qual 90% dos nossos contemporâneos esquecem-se dessa eterna surpresa.

 A labuta diária é anestésica. Para o mal ou para o bem. Mas uma verdade ainda mais inconveniente que aquela do Al Gore é o fato de que, para a maioria das pessoas, trabalho ainda seja sinônimo de insatisfação. E, pior, a falta de trabalho também. Talvez a mais insana das utopias, o mais nefelibata dos devaneios, seja a ideia de que a humanidade possa um dia sair dessa sinuca de bico que envolve sua relação com o ato de trabalhar. Quando é que as propostas de emprego terão como cerne, tanto do lado do empregador quanto do empregado, a ideia de "vocação", palavra que aliás tem como origem o latim vo catio, que justamente significa "proposta", "chamado", "convite"? 

 TRABALHA-SE PARA QUÊ?

 Robert Frost, um dos grandes nomes da poesia americana do século 20, diz que poeta é uma condição, não uma profissão. É demais esperar que um dia cada profissão humana esteja subjugada à condição mais essencial de cada ser humano? Não sei. Exercer uma profissão harmônica com os desejos vocacionais mais íntimos parece um sonho bem distante da maioria das pessoas. É demais então esperar que um dia essa forma imanente de injustiça social seja corrigida? Também não sei. Mas não me parece que estamos no caminho errado, apesar da histeria produtiva deste início de milênio. Se hoje "trabalho" é sinônimo de "insatisfação", há não muito tempo "trabalho" era sinônimo de "escravidão".

 Andamos bem. Para andar mais, é preciso primeiro colocar a pergunta: "Trabalha-se para quê?". Não há uma resposta única. Se em Pirituba trabalha-se mais pela sobrevivência, na Suécia trabalha-se mais pela inserção social, já que a sobrevivência está garantida. Em qualquer lugar, se uns trabalham por dinheiro, outros trabalham pela reputação, pelo poder ou por tudo isso junto. Talvez uma palavra que resuma os desejos e necessidades envolvidos no ato de trabalhar seja "prestígio". Queremos o reconhecimento da sociedade que nos cerca, seja na forma de um depósito na conta, seja na forma de um afago no ego. "Prestígio." É uma palavra que tem origem no latim praestigium, assim como a palavra "prestidigitador". Significa "ilusão". Ilusão?

 É possível que, um dia, toda decisão de trabalho seja baseada menos na ideia daquilo que o mundo quer de cada um de nós e mais na ideia daquilo que de mais íntimo cada um de nós pode dar ao mundo. Nossa vocação. Nesse dia, a vida se tornará mais real. Como a poesia.

Fonte:
Artigo publicado no site de Bernardo Trancoso, http://www.sonetos.com.br/trip.php