domingo, 15 de julho de 2012

Paulo Mendes Campos (Fábula eleitoral para crianças)

Um dia, as coisas da natureza quiseram eleger o rei ou a rainha do universo. Os três reinos entraram logo a confabular.

Animais, vegetais e minerais começaram a viver uma vida agitada de surtos eloqüentes, manobras, recados furtivos, mensagens cifradas, promessas mirabolantes, ardis, intrigas, palpites, conversinhas ao pé do ouvido.

Entre os bichos era um tumulto formidável. Bandos de periquitos saíam em caravana eleitoral, matilhas de cães discursavam dentro da noite, cáfilas de camelos percorriam os desertos, formigas realizavam comícios fantásticos, a rainha das abelhas passava com o seu séquito, sem falar nos cardumes de peixes, nos lobos em alcatéias pelos montes, nas manadas de búfalos pelas savanas, nas revoadas instantâneas dos pombos-correios.

Todas as qualidades eram postas à prova: a astúcia da raposa, a agilidade dos felinos, o engenho dos cupins, o siso da coruja, o poder de intriga das serpentes, a picardia do zorro, a doçura da pomba, a teimosia do burro, o cosmopolitismo dos ratos.

O leão, o tigre, a pantera, o leopardo e os outros queriam derramar muito sangue; os pássaros coloridos faziam frente única para indicar um pássaro colorido; já os pássaros que cantam decidiam apontar como candidato o rouxinol, a cotovia, a patativa; as cegonhas, irresolutas, passavam as tardes pensando; os patos selvagens desfilavam no céu; as andorinhas, tímidas, buscavam o refúgio das igrejas; e a águia, fascista de nascença, pretendia organizar lá no alto uma conferência de que só participassem as aves de rapina, como o falcão, o condor e o gavião-de-penacho.

Os papagaios viviam a arengar bobagens pelas árvores; a raposa corria as várzeas articulando uma candidatura, ninguém sabia qual; os macacos eram vaiados quando alegavam a semelhança com o homem; o cavalo se insinuou candidato, dando a sua condição de antigo senador; o pavão, escondendo os pés, exibia a cauda; nos brejos, os sapos repetiam “slogans”monótonos; os jacarés e as tartarugas ressonavam na beira dos rios, que passavam levando sussurros quase imperceptíveis, a conversar as pedras e as ervas das margens; o rato do campo ia de vez em quando se aconselhar com o rato da cidade; os gansos citavam velhos costumes romanos; certos bichos, como o boi e a íbis, invocavam direitos divinos, que não eram mais levados a sério; as hienas e os chacais opinavam por um conselho de notáveis, a ser constituído pelos animais ferozes, que lhes deixavam os restos; até a ameba, coitada, queria ser candidata, dizendo-se a origem da vida.

A mosca azul voava e revoava por todos os cantos.

Quem será o rei ou a rainha do universo? De dia, as borboletas andavam como doidas pelos campos, à noite, os vaga-lumes acendiam as suas luzes.

Nas profundezas da terra, o carbono fazia estranhas combinações com o hidrogênio. O diamante e o ouro reluziam de esperança. As estrelas pretendiam uma coalizão de todo o espaço constelado em torno de Vênus, causando ciúmes à Lua.

As flores distribuíam perfumes. Árvores agitadas recebiam recados que os ventos traziam de longe. A floresta pensava eleger não um rei, mas um colegiado de carvalhos, velhos, cheios de experiência. E por toda a flora era um germinar, um brotar, um verdejar, um florescer. Os monocotiledôneos discordavam dos dicotiledôneos, os fanerógamos acusavam de hipocrisia os criptógamos. A plena campanha eleitoral com todos os incidentes. Só os ciprestes continuavam fechados em sua indiferença.

A despeito dos interesses em choque, e de tantas contradições, é preciso dizer, a bem da verdade, que o pleito transcorreu com a máxima lisura.

Ao fim de tudo, a escolha não podia ter sido mais feliz, pois os três reinos unidos elegeram a rosa rainha suprema do universo.

Sim, a rosa, a rosa na sua simplicidade tocada de esplendor, presa na sua haste entre o céu e a terra, eterna e efêmera, a rosa, carne, espírito e pó. E, para entronizar a rainha, o dia se iluminou com a sua luz mais clara, o mar se fez manso, os pássaros cantaram com inspiração, as árvores se puseram mais verdes e mais altas, as flores vestiram roupagens de gala, os seixos rolaram alegremente nas praias, os juncos das lagoas se inclinaram em reverência, as nuvens se desfraldaram como cortinas de gaze sobre o berilo. No fundo do mar era uma alegria silenciosa e solene como um “te-déum” em uma catedral verde-escura, os polvos gesticulando em câmara lenta, os peixes e as medusas passando sem barulho.

Entre os seres humanos, só as crianças sabiam que era o dia da entronização da rosa, e nada contaram a ninguém. Mas pelo jardim onde se achava a rosa, expectante no seu recato soberano, passava naquela manhã um homem feio e preocupado. Era um candidato a qualquer coisa, a vereador, a deputado, a Presidente da República, não se sabe ao certo. Distraído com as suas ambições, ele colheu a rainha do universo, que entrou logo a fenecer em suas mãos úmidas. Depois, olhou e viu que se tratava de uma bela rosa, uma rosa digna de se oferecer a uma namorada. Mas ele não tinha namorada. Mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer... Ele começou a desfolhar a rosa só para saber se dessa vez seria eleito: à Câmara de vereadores, de deputados ou à curul da Presidência da República, não se sabe ao certo. E a rosa morreu.

E foi por isso que o dia se fechou de repente, o céu ficou escuro, os animais uivaram nos bosques, os pássaros sumiram, o vento se desatou sobre o mar agora encapelado, o raio e o trovão tomaram conta da noite sem estrelas, e as crianças na hora do jantar perderam a fome. Tinha morrido a rainha do universo.

Mas nas trevas desabrochou outra rosa para iluminar com a sua beleza o jardim amanhecido.

FONTE:
A Garupa, e outros contos /Sylvia Orthof...[et al.]. São Paulo: Martins Fontes, 2002 - (Coleção literatura em minha casa ; v.2)

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 608)

Uma Trova de Ademar  

O vencedor tem que ter
alguns tropeços por meta,
para só depois obter
uma vitória completa!
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional

Venceste alguém...e sorris
numa explosão de prazeres...
Serás, porém, mais feliz
quando a ti mesmo venceres...
–Newton Vieira/MG–

Uma Trova Potiguar


A tartaruga que ostenta
duzentos anos de vida,
apesar de muito lenta,
no tempo, vence a corrida.
–Marcos Medeiros/RN–

Uma Trova Premiada


2011 - ATRN – Natal/RN
Tema - VERTENTE - 2º Lugar


Nas ilusões eu me orgulho
de vencer tempos tristonhos,
pois, destemido, mergulho
numa vertente de sonhos...
–Edmar Japiassú Maia/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram


Herdei de ti, pai querido,
essa força de condor
que te fez, sendo um vencido,
ter ares de vencedor.
–Lilinha Fernandes/RJ–

U m a P o e s i a


Quem no mundo, faz tudo pela paz,
já é mais que herói, que vencedor,
vive um sonho, que pouca gente vive,
e alivia do peito tanta dor;
porque neste universo tão mesquinho,
quem plantar um espinho, colhe espinho,
mas quem planta uma flor, colhe uma flor!
–Prof. Garcia/RN–

Soneto do Dia

TRIBUTO A ADEMAR.
–Francisco Macedo/RN–


A vida de Ademar é um sarau,
sem nenhuma poesia repetida,
razão desta homenagem merecida
desde o primeiro ao último degrau.

Suas duas muletas são a nau
pelos mares revoltos desta vida,
para vencer qualquer uma corrida
sempre ao lado do bem, vencendo o mau.

Mesmo útero materno concebeu,
já nascemos, poetas, ele e eu.
Vigésimo e vigésimo primeiro.

Nas três vezes venceu a própria morte,
obrigado, meu Deus, por ter a sorte,
de tê-lo como irmão e companheiro!

J.B.Xavier (O Teste)

Olhei para as conchinhas com as quais um dia um índio engenheiro chamado Nhuamã, com idade para ser meu filho, me deu a maior lição de minha vida e decidi não abrir mão de tudo o que prometera a mim mesmo naquele distante dia, em que, em sua companhia, atravessei distraidamente uma praia, após a dramática demissão de meu último emprego.

Agora, uma nova oportunidade de voltar ao mercado de trabalho me era oferecida.

Ainda tendo à mão o telegrama que me convocava para uma entrevista, eu pensava na importância que tinha aquele emprego para a seqüência de minha vida. Na verdade, eu precisava desesperadamente daquele trabalho.

Há quase um ano desempregado, minha situação financeira tinha se reduzido a farrapos. Juntamente com ela, meu relacionamento com meus familiares tinha piorado bastante e estava quase insustentável. A despeito de se dizer que dinheiro não é o mais importante, ele tem, sim, importância fundamental para a manutenção da dignidade, numa sociedade que avalia as pessoas pelo que elas têm, não pelo que são.

Fui demitido de meu último emprego quando estava no auge de minha carreira. Disseram-me um monte de baboseiras para justificar minha demissão, mas a verdade é que fui demitido por não ter me atualizado – me reciclado – como querem alguns, em tempo de continuar sendo útil à companhia. Confesso que eu não era lá essas coisas como companheiro, e meu ex-diretor me disse que eu era um elemento desagregador na companhia.

Na ocasião tive a sorte de encontrar um jovem que me conduziu por uma praia, e enquanto catava conchas coloridas ensinou-me uma das maiores lições que já tive em minha vida. Mas essa história eu já contei em outra ocasião e não desejo ocupar seu tempo, amigo leitor, com coisas repetitivas.

Basta que lhe diga que após conhecer esse jovem, eu modifiquei muitos dos meus hábitos de vida: Passei a considerar que sendo eu um ser único, devo ter, sem dúvida, algum valor. Passei também a prestar mais atenção às coisas belas que me rodeiam,e, principalmente, passei a valorizar as pessoas ao meu redor.

Mas - como se costuma dizer - na prática a teoria é outra! No mundo real, somos tentados a toda hora a vender nossos sonhos, e, conforme nossa necessidade, por um preço bem baratinho!

Então, após passar pela terrível experiência de ser demitido, uma das coisas que decidi foi nunca mais abrir mão dos meus princípios básicos de vida, éticos ou morais, nem que disso dependesse meu emprego. Digo isso porque volta e meia meu antigo trabalho me levava a procedimentos que se por um lado eram legais, por outro nem sempre eram éticos. Aliás essa linha divisória entre a legalidade e a ética é as vezes imprecisa e difícil de definir.

Mas não é fácil manter-se íntegro no mundo cão que nos rodeia e do qual dependemos. Mesmo assim, eu estava tentando, e já recusara algumas propostas de trabalho que, se as tivesse aceitado, haveriam de me reconduzir ao meu antigo hábito de violentar a mim mesmo.

Mas como explicar á minha família que um sujeito que precisava de trabalho desesperadamente dava-se ao luxo de rejeitar algumas propostas? Como faze-la compreender que minha integridade, recentemente recuperada, não estava mais à venda?

Foi pensando nisso tudo que tomei o avião, cuja passagem me havia sido enviada juntamente com o telegrama, e viajei até a cidade onde ficava a sede da empresa, para uma entrevista inicial.

Na tarde do dia seguinte, quando compareci ao local onde aconteceria a entrevista, eu estava calmo, mas aos poucos fui ficando tenso, ao ver a suntuosidade do edifício e da sala onde me instalaram à espera do entrevistador.

Quando cheguei já estavam na sala um homem bem mais jovem do que eu, e duas mulheres. Ele estava muito bem vestido e parecia um executivo em pleno esplendor da carreira. Era um jovem muito bonito, que parecia mais um modelo do que um executivo. Sua resposta seca ao meu bom dia enterrou minha curiosidade de saber se ele era também um candidato à vaga. Depois disso não tive oportunidade de lhe dirigir a palavra, porque ele ignorou completamente minha presença, fazendo com que me sentisse transparente contra o fundo, enquanto conversava animadamente com as duas mulheres, tendo na fala um forte sotaque inglês, embora falasse fluentemente o português.

Sorri interiormente, porque eu já havia sido assim, orgulhoso e confiante. Já havia impressionado muitas mulheres com meus conhecimentos de arte, e já causara muito sofrimento àquelas que por mim se apaixonaram inutilmente. Tempos de juventude febril, onde os fins justificavam os meios. Demorou para que eu descobrisse que são os meios que justificam os fins.

Uma das mulheres deveria estar beirando os quarenta anos. Era uma morena, elegante, sóbria e senhora de si. Ela espertamente acomodou-se na poltrona bem em frente ao jovem executivo, e cruzou as pernas de maneira que só ele pudesse ter uma visão aproximada dos tesouros que ela escondia. Pela atenção que ele lhe dispensava, percebi imediatamente que o jovem estava fisgado. Pobres homens!

Numa poltrona próxima, a outra mulher, uma loura muito jovem, beirando os trinta anos, deslumbrante e sensualíssima com seus lábios rubros e sua postura elegante, respondeu com um largo sorriso ao meu cumprimento, e sentou-se próximo a mim, passando a conversar comigo sobre os mais variados assuntos. Seu português escorregava constantemente, numa demonstração de que ela não era brasileira e não dominava o idioma.

Graças a ela, fiquei sabendo que eles também haviam sido convidados para a entrevista.

Fiquei impressionado e um pouco decepcionado. Impressionado porque vi que o nível dos candidatos era internacional, e decepcionado porque achei que a entrevista seria individual. Mas, enfim, talvez fosse alguma técnica de dinâmica de grupo em ação, pensei. O fato é que ao conhecer meus “adversários” na disputa pela vaga, minha preocupação aumentou. Eu já não tinha as mesmas certezas de antes. Minha demissão fizera-me mais consciente de minhas limitações.

Quanto mais eu observava os jovem, mais me convencia de que seria muito difícil ganhar deles na disputa pela vaga. Eles tinham as fichas a seu favor: Juventude, boa aparência, segurança, elegância e refinamento. Pensei que talvez não tivessem a experiência que eu tenho, mas, concluí logo em seguida, a experiência tem sido o maior entrave para minha recolocação no mercado de trabalho! As empresas andam à caça de jovens como esses, que têm menos vícios que executivos maduros como eu. Além disso, eles custam mais barato, quer com os pacotes salariais quer com os treinamentos necessários ao seu desenvolvimento, porque têm menos a desaprender.

A espera durou pouco. Logo uma moça nos conduziu por um extenso corredor cheio de maravilhosas pinturas renascentistas.

Enquanto caminhava ela mantinha um enigmático sorriso burocrático nos lábios. Finalmente chegamos a uma grande porta de vidro. Suspirei e tratei de me preparar para o que me esperava. Fomos introduzidos em uma deslumbrante sala, onde tudo era refinado e de bom gosto.

Meu olhar parou sobre uma réplica da Pietá, que estava sobre uma coluna de mármore verde, a um canto, iluminada pela luz do sol que vinha dos grandes janelões. Era uma peça feita em jade, e deveria ser muito valiosa.

Ao nos ver entrar, um senhor levantou-se de sua escrivaninha e veio ao nosso encontro. Olhando-nos diretamente nos olhos. Ele apertou fortemente a mão de cada um de nós, enquanto nos convidava para sentar.
Sentamos os quatro numa espécie de sofá. Notei que a morena apressou-se em sentar ao lado do jovem executivo, enquanto a loira sentava-se entre ele e eu.

Bom, senhoras e senhores - disse o anfitrião com um forte sotaque espanhol - Meu nome é Martim. Sou o Diretor Geral da filial brasileira da empresa. Somos uma grande companhia de seguros e estamos desembarcando no Brasil.

- A maior do mundo – disse a morena.

- isso mesmo! Somos a maior companhia de seguros do mundo. Estamos á procura de um Diretor Operacional para atuar no Brasil. Começaremos nossas atividades atuando no mercado de seguro de artes. Para isso foi criada uma nova empresa que já está instalada em vários países, e cujo controle acionário pertence ao casal Häagstrom, herdeiros dos controladores da holding. Eles estão no Brasil e em breve os senhores terão oportunidade de conhece-los.

Atuaremos inicialmente no seguro de Museus, bibliotecas, coleções particulares e coisas assim. Os senhores e as senhoras são os profissionais mais experientes desta área que conseguimos encontrar. É bom que lhe diga que alguns dos processos seletivos de que participaram nos últimos meses foram conduzidos por outras empresas de recolocação sob nossa orientação. Portanto, queimamos etapas. Finalmente vocês quatro foram os escolhidos para a seleção final, que será conduzida por nossa cúpula, pessoalmente.

Fiquei embasbacado, ao pensar que já estava sendo avaliado há meses para esta vaga! Mas o homem continuou:

- Após tantos cuidados para nos certificarmos de que escolheremos a pessoa mais adequada, é justo que lhes informe que o processo de seleção para o qual os senhores e as senhoras foram convidados prevê etapas insólitas e testes não convencionais. Diante disso, todos vocês concordam em continuar?

Balançamos afirmativamente a cabeça, mas só percebemos o quanto Martim falava sério quando ele nos apresentou uma declaração de que aceitávamos continuar no processo de seleção, qualquer que fossem os testes a fazer, desde que não implicassem em riscos de danos físicos.

Após assinarmos o papel, ele continuou:

- Serei breve, porque a maratona à qual vocês serão submetidos começa depois de amanhã e será cansativa. Amanhã os senhores terão o dia livre. Aproveitem-no para conhecer a cidade. A companhia os brindará com 500 dólares, a cada um de vocês, para que possam se divertir. Era tudo o que eu tinha a lhes dizer...alguma dúvida?

Resolvi descontrair o ambiente.

- Posso trocar meus 500 dólares pela réplica da Pietá?

- Nem por sonho! – respondeu o homem sorrindo – essa estatueta tem história! O senhor gosta de esculturas?

- Muito! Especialmente as da Renascença – respondi - e a Pietá talvez seja seu ponto mais alto. Michelangelo usou uma ilusão de ótica para produzir esta escultura, e ao fazer isso, inovou a arte da perspectiva...

Martim limitou-se a sorrir, mas a loura ao meu lado apertou meu braço e disse:

- O senhor parece entendido no assunto...

- Apenas gosto de arte...e por favor, se puder evitar o “senhor” fará um favor ao meu ego...

- Bom – tornou Martim a falar - lembro-os de que estão sob contrato, e que a desistência do processo seletivo pode dar-se quando bem o desejarem...

- Não sei quanto aos demais, – respondi – falo apenas por mim, mas para ser franco, eu não tenho muitas opções. Este é o único processo seletivo de que estou participando, portanto tentarei o impossível para me sair bem nele...

Não sei bem porque eu disse aquilo! Normalmente eu teria dito que já participara de muitos processos e que confiaria em que me sairia bem. É o que normalmente dizemos para nos valorizar. Mas eu já havia decidido dizer o que tinha no coração, e se isso fosse bom, ótimo; se não, eu pelo menos ficaria tranqüilo comigo mesmo, dizendo o que me ia na alma. Por isso resolvi ser franco.

Quando saímos daquela sala, estávamos os quatro mais descontraídos. A noite começava a descer. O Jovem executivo, então, contrariando a primeira impressão que eu tive dele, disse:

- Bom, amigos, o fato de concorrermos à mesma vaga, não nos torna inimigos! Que tal se esticássemos essa noite numa boate? Amanhã é nosso dia de folga!

Todos concordaram. Eu aceitei apenas para não ser estraga-prazeres, porque na verdade o que eu desejava era ficar no hotel assistindo a um bom filme na TV e preparando meu espírito para fosse lá o que me aguardava.

Na boate, o previsto aconteceu. Quando a madrugada já ia alta, a morena, depois de uns goles de Whisky, estava totalmente solta, e dançava dependurada no pescoço do jovem executivo, lânguida e suplicante por uma noite de amor.

A loira era mais discreta. Conversamos longamente, e muitas vezes tive que auxilia-la com o português, até que decidimos conversar em inglês. Então, fluentemente, ela demonstrou ter um conhecimento extraordinário do mercado de artes. Fiquei tão impressionado com sua segurança ao falar do assunto que não tive dúvidas de que se conhecimento de causa fosse o critério de decisão, ela certamente seria a escolhida.

Na verdade, ela parecia esperar uma iniciativa de minha parte, que desse início a uma maior aproximação. Considerei todas as vezes em que eu vivera situações semelhantes. Mulheres, sempre mulheres. Cama! É sempre o que a maioria dos homens pensa de uma relação entre um homem e uma mulher! Se era isso que ela pretendia, nesta noite ela ficaria decepcionada.

Felizmente ela não era do tipo agressiva, como a morena, porque eu desistira de viver essas mentiras momentâneas. Mas era uma mulher lindíssima. Ocorre que eu já havia desistido de manter relações que machucam ao invés de alegrar. Vazios da alma que relacionamentos relâmpagos não conseguem preencher.

Finalmente concordamos todos em voltar para nossos hotéis. A companhia nos instalara em hotéis diferentes, certamente para proteger nossa privacidade. A morena, já muito alcoolizada teve que ser carregada para o táxi, e depois para seu apartamento no hotel.

Depois nos despedimos, e cada um tomou o seu caminho. Não combinamos nada para o dia seguinte, por isso pude ficar á vontade para visitar a cidade, que é famosa pelos museus que possui. Fotografei monumentos, visitei galerias, e até assisti a uma peça musical que era executada no Teatro Municipal gratuitamente. Foi um dia extraordinário para mim, onde pude soltar-me das tensões que a pressão de meu desemprego me causava. Pude fazer o que gosto, e ainda com dinheiro no bolso, coisa que há tempos eu não via. Cheguei ao hotel lá pelas 23:00 e após um banho fui direto para a cama, porque o dia seguinte prometia ser árduo.

Na manhã seguinte compareci pontualmente para o início das atividade. Aguardei na mesma sala da vez anterior, porém nenhum dos meus “concorrentes” estavam lá, sinal de que deveriam ter marcado horários diferentes com cada um de nós.

Em poucos minutos, numa pontualidade que me alegrou, fui introduzido na mesma sala onde já estivera. Martim me recebeu com um sorriso e me fez sentar no mesmo sofá.

- Bueno – disse ele em seu “portunhol” - por onde devo começar? Eu tenho duas notícias para lhe dar. Uma boa e uma ruim...qual delas você deseja ouvir primeiro?

- Comece pela boa, por favor, assim me dará forças para resistir à segunda!

- A notícia boa é que pelo seu esforço em ter chegado até este ponto do processo seletivo, a pequena preciosidade que você tanto desejou no outro dia, é sua - a réplica da Pietá...

Um vazio me invadiu o estômago. Percebi logo que aquilo era um prêmio de consolação. Em outra circunstância eu teria pulado de alegria por tão maravilhoso presente, mas agora eu sentia que estava sendo elegantemente dispensado.

- O próprio casal Häagstrom achou que você merece ficar com a estátua...e olha que ela vale um bocado de dinheiro...é feita de jade...

A porta atrás de mim se abrira mas nem prestei atenção. Devia ser a recepcionista para me conduzir de volta.

- E...qual é a notícia ruim? – perguntei.

- É que você tem apenas 10 dias para assumir seu cargo de Diretor Operacional da empresa no Brasil – disse Martim sorrindo.

Nada me preparara para aquela notícia. Nada. Absolutamente nada!

- Mas..e os testes de que falamos...? - perguntei trêmulo e gaguejante...

- Você e a outra candidata já estavam aprovados para o cargo...apenas o casal Häagstrom desejava testa-los pessoalmente...eles têm seus próprios métodos...e ela foi reprovada por eles...

- Parabéns! - Disse uma voz atrás de mim – o senhor foi aprovado com louvor ontem à noite...gostamos muito de sua franqueza, lealdade e honestidade. Gostamos também de seu interesse pelas artes.

Voltei-me e vi o jovem executivo e a jovem loura com os quais eu havia ido à boate. Fiquei confuso.

Isto dizendo o jovem executivo me estendeu algumas fotos onde eu aparecia visitando museus e galerias no dia anterior.

- Queira nos desculpar se o seguimos e fotografamos o dia todo...precisávamos ter certeza de que seus gostos pessoais estavam em sintonia com sua função na empresa...

- Eis o casal Häagstrom – Disse Martin - herdeiros dos controladores da holding e os maiores acionistas de nossa companhia...

* * *
Fonte:
Recanto das Letras

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS (A Ordem é Deletar)

O verbo deletar entrou definitivamente no vocabulário da língua portuguesa. Os dicionários o traduzem por eliminar, suprimir, excluir, apagar. As palavras como sabemos não são neutras. Nascem, entram em uso e se consolidam num território bem preciso, do ponto de vista social e cultural. Abrem-se como janelas sobre um determinado contexto histórico. São filhas do tempo e do espaço. Todo organismo vivo cria novas células e expele os tecidos necrosados. Sendo a língua um desses organismos vivos, também ela faz brotar novas palavras de seu metabolismo, enquanto outras morrem e desaparecem.

O termo deletar é filho da revolução informática das últimas décadas. Insere-se no universo de um relativismo progressivo onde as certezas cedem espaço às dúvidas, as perguntas substituem as respostas e as referências se diluem como bolhas de sabão. Não há “verdades”, e sim interpretações. De acordo com o filósofo francês François Lyotard, em seu livro A Condição Pós-Moderna, acabaram-se as metalinguagens ou metanarrativas, restando apenas os experimentos e estudos de caso. Na contramão da globalização, o olhar amplo e universal deu lugar à visão localizada, setorizada, especializada. Na medicina, o clínico geral desaparece frente à proliferação dos especialistas.

Vem à tona toda a obra do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, com sua insistência no adjetivo “líquido”. Os títulos de algumas de suas obras são ilustrativos: Modernidade Líquida, Tempos líquidos, Vida Líquida, Medo Líquido, Amor Líquido. Tudo parece derreter-se no oceano do relativismo: contratos, relações interpessoais, valores morais, amizades, instituições, regras… Um exemplo corriqueiro e muito frequente: hoje faço cinquenta novos amigos através da rede social Facebook. Trocamos mensagens, fotos e até intimidades. Mas amanhã mesmo, sem maiores explicações, posso deletá-los. Com a mesma rapidez com que os contatei, eu simplesmente os ignoro. Ao invés de um laço sólido e durável, a amizade se converte em um relacionamento líquido, virtual, gasoso… Deletável!

Com o advento dos tempos modernos ou pós-modernos, o universo predominantemente rural da tradição dá lugar ao universo urbano das novidades. Neste último, nada é mais velho do que o jornal de ontem. As notícias ou são simultâneas aos fatos, ou deixam de ter interesse. Os antigos valores e contravalores, passados de geração para geração, são facilmente trocados por novas formas de pensar e de se relacionar. Entram em cena diferentes valores e contravalores, onde a pluralidade e a diversidade tomam o lugar da uniformidade. O tempo, antes marcado pelo sol e a lua, as estações do ano, o plantio e a colheita, o canto do galo ou os sinos da Igreja, agora adquire o ritmo da máquina, do apito do trem. A ciência e a tecnologia imprimiram uma velocidade sem precedentes na produção de mercadorias, inovações e mentalidades.

Torna-se relativamente normal construir e simultaneamente deletar relações de todo tipo. Instala-se progressivamente a ideia de que tudo é descartável: roupas, sapatos, aparelhos domésticos, telefones celulares, televisores, computadores… Mas também amizade, namoro, casamento, profissão, vocação, e assim por diante. Diante de tamanha abundância de coisas e oportunidades, como distinguir o que é essencial do que é secundário? A profusão e pluralidade de pontos de vista podem nivelar tudo por baixo. O experimento ganha força sobre o compromisso de longo prazo. Faz-se uma experiência provisória, se não der certo… Bem, é só deletar e partir para outra! No relacionamento amoroso, por exemplo, o “ficar” substitui o “namorar”, pois este último exige o respeito à alteridade, uma transformação profunda e recíproca, ao passo que o outro representa apenas o uso prazeroso da pessoa em questão.

O conceito de bem-estar pessoal se sobrepõe ao bem-estar social. O engajamento político e social é substituído pela busca do “estar numa boa”. Prevalece o “eu” sobre o “nós”. Os imperativos morais de uma consciência que se sente responsável diante da realidade sociopolítica ou diante da multidão dos pobres cedem o posto ao imperativo da saúde corporal acima de qualquer preço. Multiplicam-se a compra e venda de cosméticos, as academias de ginástica, o culto ao próprio corpo ou às celebridades. Com isso, trocar de partido, de religião, de amigo ou de relacionamento amoroso é quase como trocar de roupa, de sabonete, de shampoo ou de operadora do telefone celular. Busca-se ansiosamente a marca ou grife do momento, mas também elas se perdem na voracidade dos modismos. Tudo se troca, tudo tem vida curta, tudo se deleta… “Tudo que é sólido se desmancha no ar”, afirmava o Manifesto Comunista de Marx e Engels ainda em 1848.

Essa passagem da predominância da tradição ao imperativo da novidade constitui um terreno profundamente ambíguo. Tomemos por exemplo o conceito de liberdade. No mundo da tradição rural e fortemente hierarquizada, a liberdade tem limites convencionais. Desenvolve-se sob a pressão contínua da família, da religião, da moral e da sociedade no seu conjunto. No cenário industrializado e urbano, a liberdade abre novos horizontes. As vielas estreitas se convertem em amplas estradas Mas o caminho largo pode levar aos becos sem saída da violência, da droga, do álcool e da prostituição. Tanto a “liberdade vigiada”, num caso, quanto a “liberdade de fazer o que se quer”, no outro, são extremos que escondem perigos. No primeiro caso, é fácil deletar de uma vez só uma longa e sólida tradição, às vezes adquirida como uma camisa de força. No segundo, é igualmente fácil deletar os laços tênues de relações superficiais e momentâneas. Em geral, tudo o que se engole à força, cedo ou tarde se vomita; mas também é comum vomitar o que se engole com excessiva sofreguidão.

Além disso, num universo pressionado pela observação moral ou moralista de princípios rígidos e hierárquicos, há uma tendência natural ao infantilismo. O indivíduo está mais protegido, sem dúvida, mas tende a manter o cordão umbilical que rege o comportamento. Mantém-se comodamente dentro das normas, dificilmente se arriscando ao novo. Ao invés de ousar, tende a neutralizar-se. Já na atmosfera mais aberta, livre e dinâmica do mundo urbano, o indivíduo sente-se exposto a uma série de riscos e aventuras, mas isso pode levar ao desenvolvimento de uma consciência mais madura. No primeiro caso, digamos, a pessoa nasce revestida pela roupagem protetora da família, do compadrio, da religião, da tradição… Sua identidade não terá grandes sobressaltos. No segundo, a pessoa nasce nua, terá que abrir a própria picada na selva de pedra, a identidade é algo a ser construído passo a passo. Cada um tende a regular-se menos pelas conveniências sociais e mais pelos próprios princípios éticos. Por isso mesmo, apesar dos riscos, os laços tendem a ser mais autênticos.

Mas, na medida em que o universo urbano coloniza gradativamente o mundo rural, em ambos os casos o verbo deletar pode ser acionado: ou para desfazer-se das amarras de um convencionalismo estreito e castrador, ou para exibir-se a cada momento com as novidades de uma sociedade que não pára de fabricá-las. Lojas e farmácias, profusamente iluminadas, expõem uma multidão de objetos e de analgésicos que torna líquido toda forma de comprometimento moral. O desejo, motor implícito ou explícito do comportamento humano, se vê atraído, seduzido, fascinado por todo tipo de apelo e modismo, onde o marketing, a propaganda e a publicidade exercem poderosa influência. Dois estudos de Gilles Lipovetsky poderiam ser chamados aqui em testemunho: A Era do Vazio e O Império do Efêmero, respectivamente sobre o individualismo contemporâneo e a moda e seu destino nas sociedades modernas.

Produzir, comprar, usar, descartar… Eis o círculo de aço que amarra fortemente nossa vontade, nossos projetos e nossos passos. Entramos nele quase sem nos darmos conta, mas, depois de a ele atados, é difícil desvencilhar-se. Mesmo professando o credo da preservação do meio ambiente, hoje em voga, não é fácil libertar-se da ratoeira armada pelo mercado total. Se o enxotamos pela porta, ele entra pela janela ou, mais frequentemente, pela telinha da TV ou da Internet. Para facilitar as coisas, lá está a tecla do deletar.

Fonte:
Revista Espaço Acadêmico (UEM)

sábado, 14 de julho de 2012

Zé Lucas, Ademar Macedo e Prof. Garcia (Um Debate em Setilha Agalopada) Parte 4

91 - Zé Lucas
Nesta praia, que é sonho e que é prazer,
sinto o cheiro do mar em minha rua,
ouço o choque das ondas que se quebram
e o cantar da sereia seminua
que seduz o inocente pescador,
prometendo um castelo encantador,
e ele afunda no mar, olhando a Lua.

92 – Ademar
Pra enfeitar o céu Deus fez a Lua,
Ele fez o mar para os pescadores,
criou pássaros pra brincar na relva,
pra fazer trovas fez os trovadores;
trouxe fé e esperança aos mais tristonhos
fez a virgem que é pra viver de sonhos
e o poeta que é pra morrer de amores.

93 - Prof. Garcia
Deus querendo mostrar seus esplendores,
fez a bela plumagem do pavão,
o negrume das penas do urubu
mãe-da-lua, viver na solidão;
o tetéu dormir pouco e cantar bem,
a beleza do canto do vem-vem
e a corneta do canto do carão.

94 - Zé Lucas
Sertanejo sem terra, meu irmão,
cedo, acorda pra ver o sol raiar,
toma um simples café com tapioca,
beija alegre a rainha do seu lar,
que na cama singela tem um trono,
e pergunta: - quando é que vou ser dono
de um pedaço de chão para plantar?

95 – Ademar
Para mim Deus do Céu irá mandar
as sementes divinas da poesia,
e um roçado de verso agalopado
pra o terreno da mente Ele me envia;
e um inverno de rimas faz chover,
pra que eu possa plantar, depois colher
nesse chão, o meu pão de cada dia.

96 - Prof. Garcia
Assim que me levanto, todo dia,
logo aperto o rosário em minha mão,
ergo os olhos aos céus, faço uma prece,
peço a Deus a divina proteção;
bebo um bom copo d'água, e mato a sede,
beijo o rosto de Cristo na parede,
na moldura de um velho coração!

97 - Zé Lucas
Se chover poesia no sertão,
vou fazer meu chapéu de uma peneira,
pois não quero perder um pingo só
da fartura que desce na biqueira
e, pra o grande calor de minha febre,
eu arranco o telheiro do casebre;
quero é banho de verso a noite inteira!

98 – Ademar
Quero apenas, pra mim, uma goteira,
não precisa ser chuva intermitente;
alguns pingos trazendo inspiração
já gotejam em mim constantemente,
e uma chuva de verso a noite inteira,
me transforma no próprio Zé limeira
que foi grande poeta no repente.

99 - Prof. Garcia
Se chover poesia em minha mente,
minha roça do verso se renova:
vou plantar novidade em todo canto
e um poema na forma de uma trova;
pois, se não faltar chuva, nenhum dia,
nascerá no roçado da poesia
um repente bonito em cada cova.

100 - Zé Lucas
Uma roça bonita, grande e nova,
lá no alto sertão eu inda planto;
cavo a terra com a enxada da fartura,
ponho fé na semente, rezo ao santo
para que chova muito em meu roçado,
haja vagens de amor por todo lado
e haja espigas de paz em todo canto.

101 – Ademar
Nascem versos em mim por todo canto.
Eu já disse num mote improvisado
que os cabelos que nascem no meu corpo
têm nas pontas um verso pendurado;
e por eu ser um poeta do sertão,
nem preciso fazer adubação
pra nascer verso bom no meu roçado.

102 - Prof. Garcia
Com um poeta tão bom de cada lado,
meu repente não fica tão distante,
sou mais um menestrel buscando a rota
deste nosso momento itinerante;
percorrendo as veredas desta luta,
corro atrás da mais rara pedra bruta
e de um verso bem feito a todo instante.

103 - Zé Lucas
Se eu pudesse, da estrela mais distante,
ver de perto metade do infinito,
não seria somente um trovador,
mas o vulto fantástico de um mito
e, por certo, cantando nessa altura,
comporia, em meu sonho, a partitura
do poema que nunca foi escrito.

104 – Ademar
Dos poemas que eu fiz, o mais bonito,
onde o dom da poesia se revela,
foi num mote que deste para mim
inspirado no amor de uma donzela,
onde eu disse com voz quase divina:
“Se tiver que chorar, feche a cortina,
quando for pra sorri, abra a janela”.

105 - Prof. Garcia
Este mote, é a mais linda passarela,
onde a musa desfila todo dia,
é uma foto de triste despedida
e o retrato fiel de uma alegria;
tem a cara feliz de dois amantes,
traz o choro tristonho dos distantes
e a ternura do encanto da poesia.

106 - Zé Lucas
Outro mote que fiz, não lembro o dia,
talvez possa, também, merecer bis,
porque mostra que a vida tem primores,
mas tem coisas que deixam cicatriz,
e entre a dor que machuca e o amor que é lindo,
"se eu disser que não sofro estou mentindo,
mas não posso negar que sou feliz".

107 – Ademar
Outra estrofe bonita que eu já fiz,
a mais bela, talvez, da minha vida,
foi num mote criado por você
que escrevi com minh’alma enternecida,
e este mote dizia algo medonho:
“Quer matar um poeta, mate o sonho,
que o poeta sem sonho se liquida.”

108 - Prof. Garcia
Quando a voz de um poeta, se liquida,
fica a musa sofrendo na orfandade,
a tristeza batendo em cada porta
pranteando na dor da soledade;
e o poeta sem voz, desconsolado,
vê o sonho da vida sepultado
num jazigo de dor e de saudade!

109 - Zé Lucas
Vai ficando distante a mocidade
e eu não posso evitar, por mais que tente;
o passado se alonga a todo instante
e o futuro reduz-se de repente.
Já não sei se dirão que fiquei louco,
mas cem anos de vida é muito pouco
para os sonhos que tenho pela frente.

110 – Ademar
Ninguém sonha no mundo como a gente;
o poeta tanto sonha como faz.
Você sonha fazendo a trova linda,
lindos sonhos Garcia sempre traz;
e eu que sou um soldado fuzileiro,
sonho vendo no nosso mundo inteiro
todo mundo “lutando” pela paz!

111 - Prof. Garcia
Quem no mundo, faz tudo pela paz,
já é mais que herói, que vencedor,
vive um sonho, que pouca gente vive,
e alivia do peito tanta dor;
porque neste universo tão mesquinho,
quem plantar um espinho, colhe espinho,
mas quem planta uma flor, colhe uma flor!

112 - Zé Lucas
Neste mundo de Deus, por onde eu for,
buscarei praticar a lealdade;
viverei do suor de minha face,
pra fugir dos engodos da maldade,
pois meu pai me ensinou esta lição:
- a riqueza maldita do ladrão
dá prazeres, mas não felicidade!

113 – Ademar
Não conheço ninguém nesta cidade
mesmo tendo uma vida de apogeu,
carro novo, mansão, muito dinheiro
e outros bens que a vida já lhe deu,
que consiga viver no dia a dia
simplesmente fazendo poesia
e que seja feliz mais do que Eu.

114 - Prof. Garcia
Tudo quanto Jesus me concedeu,
sei que foi muito mais do que mereço,
se hoje a vida não anda cem por cento,
mesmo assim a Jesus eu agradeço;
porque tendo a riqueza que Deus quis,
sou amante de um mundo mais feliz
onde a vida é um eterno recomeço!

115 - Zé Lucas
Sou tratado por todos com apreço,
muito embora me julgue pequenino;
as grandezas terrenas não me iludem;
para o lado do orgulho não me inclino,
pois não quero ser vítima do estresse
de quem tem muito mais do que merece,
mas reclama de Deus e do destino.

116 – Ademar
Eu não vou reclamar do meu destino,
sou alegre demais e não padeço
apesar de ser hoje um mutilado
vivo muito feliz e reconheço,
não almejo mais nada conseguir,
o que Deus nos permite possuir,
eu já tenho até mais do que mereço.

117 - Prof. Garcia
Nas veredas do mundo, eu subo e desço,
mas às vezes, perdido, eu fico à-toa,
paro e penso nas garras do destino,
e na sorte, que tem cada pessoa;
porque sigo correndo em disparada,
levantando a poeira pela estrada,
na certeza que a vida também voa!

118 - Zé Lucas
Fico muito contente quando soa
o baião da viola nordestina
num alpendre singelo e acolhedor,
quando a noite inspirada descortina
sobre o cume das serras do sertão,
e era mais carregado de emoção
na brandura da luz da lamparina.

119 – Ademar
O bailado que faz a concertina
musicando um forró de Gonzagão,
ta guardado no vídeo da memória
que eu revejo repleto de emoção;
pois relembro demais dos tempos “ido”,
dos forrós que dancei no chão batido
das latadas, e alpendres do sertão.

120 - Prof. Garcia
Inda guardo as batidas do pilão,
com mamãe, de manhã, pilando arroz,
eu mais novo, mais forte e mais disposto,
no rojão, eu na frente, ela depois;
nunca vou me esquecer desta contenda,
o pilão do passado virou lenda,
mas não sai da memória de nós dois!

Teresa Lopes (A Abóbora Menina)

Para a Inês,
que também um dia voará.


Brotara do solo fecundo de um quintal enorme, de uma semente que mestre Crisolindo comprara na venda. Despontava por entre uns pés de couve e mais algumas abóboras, umas suas irmãs, outras suas parentes mais afastadas.

Tratada com o devido esmero, adubada à maneira, depressa cresceu e se tornou em bela moçoila, roliça e corada.


Os dias corriam serenos. Enquanto o sol brilhava, tudo era calma naquele quintal. Sombra dos pés de couve, rega a horas devidas, nada parecia faltar para que todos fossem felizes.

As suas conversas eram banais: falavam do tempo, de mestre Crisolindo e nunca, mas nunca, do futuro que os aguardava.

Mas Abóbora Menina, em vez de se dar por satisfeita com a vida que lhe havia sido reservada, vivia entristecida e os seus dias e as suas noites eram passados a suspirar.

Desde muito cedo que a sua atenção se virara para as borboletas de cores mil que bailavam sobre o quintal. E sempre que alguma pousava perto de si, a conversa não era outra se não esta:

– Dizei-me, menina borboleta, como fazeis para voar?

– Ora, menina abóbora, que quereis que vos diga? Primeiro fui ovo quase invisível, depois fui crisálida e depois, olhe, depois alguém me pôs estas asas e assim voei.

– Como eu queria ser como vós e poder sair daqui, ver outros quintais.

– Que me conste, vós fostes semente e vosso berço jaz debaixo desta terra negra e quente. Nunca por aí andámos, minhas irmãs e eu.

A borboleta levantava voo e Abóbora Menina suspirava. E suspirava. E de nada serviam os consolos de suas irmãs, nem o consolo dos pés de couve, nem o consolo dos pés de alface que cresciam ali perto e que todas as conversas ouviam.

Certo dia passou por aqueles lados uma borboleta mais viajada e foi pousar mesmo em cima da abóbora. De novo a mesma conversa, os mesmos suspiros.

Tanta pena causou a abóbora à borboleta, que esta acabou por lhe confessar:

– Já que tamanho é vosso desejo de voar e dado que asas nunca podereis vir a ter, só vos resta uma solução: deixai-vos levar pelo vento sul, que não tarda nada aí estará.

– Mas como? Não vedes que sou roliça? Não vedes que tenho engordado desde que deixei de ser semente?

E a borboleta explicou à Abóbora Menina o que ela devia fazer.

A única solução seria cortar com o forte laço que a ligava àquela terra-mãe e deixar-se levar pelo vento.

Ele não tardaria, pois umas nuvens suas conhecidas assim lhe haviam garantido. Mais adiantou a borboleta que daria uma palavrinha ao tal vento, por sinal seu amigo e aconselhou todos os outros habitantes do quintal a segurarem-se bem quando ele chegasse.

Ninguém gostou da ideia à exceção da nossa menina.

– Vamos perder-te! - lamentavam-se as irmãs.

– Nunca mais te veremos. – sussurravam os pés de alface.

– Acabarás por mirrar se te desprendes do solo que te deu sustento.

Mas a abóbora nada mais queria ouvir. E logo nessa noite, quando todos dormiam, Abóbora Menina tanto se rebolou no chão, tantos esticões deu ao cordão que lhe dera vida, que acabou por se soltar e assim permaneceu, liberta, aguardando o vento sul com todos os sonhos que uma abóbora ainda menina pode ter na sua cabeça.

Não esperou muito, a Abóbora Menina. Dois dias passados, logo pela manhãzinha, o vento chegou. E com tal força, que a todos surpreendeu.

Mestre Crisolindo pegou na enxada e resguardou-se em casa. As flores e as hortaliças, já prevenidas, agarraram-se ainda mais à terra.

Só a abóbora se alegrou e, peito rosado aberto à tempestade, aguardou paciente a sorte que a esperava.

Quando um remoinho de vento pegou nela e a ergueu nos ares, qual balão liberto das mãos de um menino, não sentiu nem medo, nem pena de partir.

– Adeus, minhas irmãs!... Adeus, meus companheiros!...

– Até... um... dia!...

E voou direitinha ao céu sem fim!...

Para onde seguiu? Ninguém sabe.

Onde foi parar? Ninguém imagina.

Mas todos sabem, naquele quintal, que dali partiu, numa bela tarde de vento, a abóbora menina mais feliz que algum dia poderá haver.

Fonte:
LOPES, Maria Teresa. Histórias Que Acabam Aqui (ilustrações de Sara Costa). Edições ArcosOnline.com (www.arcosonline.com), abril de 2005.

Francisco José Sinke Pimpão (Lançamento de “O Protetorado”, 31 de Julho, em Curitiba)

Prezado(a) amigo(a),

No próximo dia 31 de julho, estarei lançando meu 4º livro (o 2º romance) intitulado O PROTETORADO.

O lançamento acontecerá em um evento denominado III Literatyba, patrocinado pelo meu novo editor, a Juruá Editora, tendo Anthony Leahy à frente do Projeto Semeando Livros.

Sua presença é muito importante para mim. Afinal, o que seria dos homens sem seus amigos?

Conto com vocês em mais essa aventura literária. Seu apoio no dia do lançamento será um incentivo para que eu continue a trilhar o caminho das letras.

Abaixo, o dia, local, horário e endereço do evento
Um abraço

JURUÁ SEMEANDO LIVROS
Data: 31 de Julho de 2012
Horário: das 19h às 22h
Local: Palacete dos Leões -
Av. João Gualberto, 530, Alto da Glória.
# Estacionamento interno gratuito #

Francisco José Sinke Pimpão
http://pimpaofjs.blog.uol.com.br

Concurso Literário Padre João Maia 2012 (Resultado Final)

A obra em prosa “Olhares Difusos”, de José Gaspar, e o conjunto de poesias “Vila de Rei – Rostos, Olhares de Alma”, de Andreia Domingos, venceram o Concurso Literário Padre João Maia organizado pela Câmara de Vila de Rei, anunciou a autarquia.

Os vencedores receberam como prémio um cheque prenda no valor de 75 euros.

Foram ainda distinguidos com menção honrosa os trabalhos de Sara Gaspar Pedro, em prosa, e de Luís Lucas Francisco, em poesia.

Veja o texto dos vencedores e menção honrosa abaixo

Fonte:
Http://concursos-literarios.blogspot.com

José Gaspar (Olhares Difusos)

– Oh menina… deixe-me lá sair… a menina não sabe o que eu tenho para fazer…menina, menina!

Está um dia tão bonito. Elas pensam que eu não sei, mas consegue-se bem espreitar lá para fora pelo canto da janela pequena. Estamos no Inverno e num dia assim, soalheiro, tem que se ir para o campo. Calçam-se as botas de borracha e ala que se faz tarde, enxada e forquilha às costas, leva-se a trouxa para o chão fundeiro. O meu Manel cava a terra, tem que ir bem ao fundo, onde ela ainda está crua e, cômoro atrás de cômoro, eu disponho as couves. Estão desorelhadas, separadas do canteiro onde nasceram, mas a água que lhes faço chegar à raiz, o estrume e um pouco de adubo vão pô-las viçosas num instante.

Vai-se-me acabar a água antes de o chão estar completo, já se percebe o fundo do tanque. Contava que a água desse para a empreitada, mas o Inverno vai seco e não se pode arriscar a deixar as raízes à sorte. Tenho que aparelhar a Branquita e atrelá-la à nora. A Branquita é a burra, foi preciso um grande sacrifício para a comprarmos, mas é um belo animal e não estou nada arrependida. Vedo-lhe os olhos com uma saca de serapilheira e ponho-a a andar à volta do poço e ela, apesar de pequena, dá tal velocidade aos alcatruzes que depressa põe a correr uma levada de água. Tenho um grande amor a este animal, mesmo minorca a burra tem grande energia e, melhor ainda, é esperta, como uma burra que se preze. Faz-me pena vê-la ali à roda, como um cego, parece falta de respeito pelo bicho, mas de outra forma ela não era capaz de fazer o serviço.

Estas couves, se Deus nos der bom tempo, vão ganhar um tronco como deve ser, onde rebentarão folhas largas. Nesta terra que sempre criou couves já as vi de quatro e cinco metros de altura. Uns diziam que era milagre, outros que era um fenómeno, coisa de artes mágicas. Não sei o que foi, mas fiquei satisfeita por ter muita folha para a criação. Tanto as cabras como os coelhos, em anos desses, são lordes de manjedoura sempre fornecida. O mesmo se passa com a manjedoura lá de casa, que é uma maneira de dizer que a panela pode fazer a sopa farta, que com enchido da talha e toucinho da salgadeira vai mantendo a gente a mexer. Quando digo a gente estou a falar de mim e do meu Manel e também dos quatro pequenos, que estes cachopos precisam de comer como deve ser para se fazerem gente.

Mas têm-me aqui presa e não posso tratar da minha vida, o sol já se põe e lá se trespassou mais um dia em que podia ter feito as primeiras sementeiras. Lá vem ela com o prato com aquele caldo sem sabor… não me deixam tratar da fazenda nem do bácoro e assim não se arranja o que é preciso para a sopa, que a isto não se pode chamar sopa, porque falo de sustento a sério, não deste caldo deslavado.

– Oh menina, amanhã é que não posso falhar, está tudo tratado. De manhã passa o porqueiro, o homem que vende os leitõezitos, o meu Manel escolhe os bacoritos, dois machos, que as marrãs são mais sentidas na capadura. Já não é cedo, já não se vão fazer animais de ano, mas se as abóboras não faltarem no serrado e o milho encher a arca, hão-de arrobar como de costume. Não me dê esses comprimidos, menina, que me tolhem as pernas e fico sem forças para levar o balde com as lavaduras para o curral dos bacoritos!

Beterraba, batata, nabo, bagaço, farelo e fruta, quando abunda, tudo isto faz parte do mantimento dos porcos que criamos e que hão-de ser a base do sustento do lar. Parece que já os estou a ver a sangrar, os homens agarrados às pernas, ao rabo e ao focinho, a sangradeira a atingir o coração dos bichos, o esguicho de sangue, que eu mexo e remexo no alguidar de barro, para que não se faça grosso, não posso parar enquanto o líquido está quente. A carqueja a arder põe a coisa a jeito para se chamuscar o pêlo e entesar a carne dos animais. Não digo que não tenha pena, isso não sou capaz de dizer, porque um ano a alimentar os bácoros e a gente afeiçoa-se a eles. Já os vejo lavados, e agora já lhes abrem as carnes. Um homem atrás e outro ao peito: o das traseiras, com mil cuidados, corte minucioso e já ata a tripa, para não derramar porcaria, enquanto o da dianteira ensaia um corte profundo, junto às queixadas, que a facada no porco é sempre bem dada e já se adivinha que são animais de boas febras.

Depois é festa, é sempre assim, matança é festim. Os homens desmancham e salgam e embebedam-se enquanto apostam entre si no peso dos bichos. As mulheres lavam tripas,
fazem morcelas, migam e temperam carnes, cozinham à grande para a família, os amigos e os vizinhos, que um dia não são dias. Acabo por adormecer ao lume, sem forças para avançar para a cama de onde ecoa o ressonar do meu Manel. Mas, mais forte que o cansaço é a alegria de saber que a salgadeira está recheada com a carne que há-de temperar o caldo por mais um ano.

– Oh menina, apague-me esta luz, o sol já se põe e ao lusco-fusco a gente vai para a cama. Se a menina, sempre com essa sua batinha branca, fizesse o favor de correr a cortina eu dava-lhe uma farinheira e uma chouriça das minhas, quando estiverem mais secas, tenho um segredo no tempero que lhe vai deixar a boca a pedir mais, mas não posso contar a ninguém… Agora do que eu preciso é de dormir, não me faz falta essa botica, preciso de me levantar cedo, antes do sol nascer, para fazer o farnel do meu homem.

Nestes dias em que é preciso preparar a bucha é sempre da mesma maneira. Primeiro, às apalpadelas, risco um fósforo e com ele acendo uma pinha e o candeeiro a petróleo. A seguir amontoo lenha sobre as pinhas, a começar paus mais miúdos, para o lume ganhar força e o fumo espalha-se pela cozinha, mas num instante encontra o caminho pela chaminé larga. Já posso juntar lenha mais grossa, uma cepa ou uma cavaca, para ficar a arder ao longo do dia, que o enchido agradece. Com jeitinho, primeiro mais distante do calor e a seguir mais próxima, asso uma chouriça, que junto às couves que sobraram da ceia e que por ela aguardavam na marmita. Arrumo também um quarto de pão e uma maçã e o meu Manel fica com o avio pronto. Vai trabalhar para fora, à jorna, a enxertar árvores, que nisso dizem que é artista, foi um dom que Deus lhe deu.

O tempo está farrusco, o meu homem, que ouço a tossir enquanto se veste, arrisca-se a apanhar uma molha e a piorar a constipação que o tem apoquentado. Mas não há volta a darlhe, a cara que o dia vai ter espera-se no local de trabalho e abençoado quem inventou tal regra, porque de outra maneira muitos homens não chegavam a sair de casa ou da taberna com a desculpa de que se adivinhava temporal.

Aproveito para cortar mais tiras. Pego numa peça de roupa velha que já não usamos e, com uma tesoura, primeiro recupero os botões, depois tiro golas e bainhas, a seguir corto fitas com o maior comprimento que consigo, as quais enrolo em novelos gordos, uns coloridos e outros de cores mais murchas. De vez em quando, a Amarela, gata que tem o nome na cor, pega numa das bolas de tiras e desenrola-a. É uma brincalhona, mas não há tempo para tais desafogos, que o frio aperta e é preciso ter as mantas prontas quanto antes. Amanhã vou levar as tiras à Maria, minha vizinha tecedeira, que com elas vai tecer mantas de trapos. Quando ela as tiver acabado, o Inverno dos meus pequenos vai ser mais aconchegado, porque o peso dessas cobertas, durante a noite, enterra-nos na enxerga e, depois de aquecermos, esquecemonos das agruras da vida. Se o meu Manel aqui estivesse dava um pontapé à gata, que com o pêlo queimado pelo borralho aonde se aconchega parece saída de uma guerra. A mim, já se deve ter percebido, custa-me fazer sofrer os animais, que também são criaturas de Deus e vieram com a gente, que é como quem diz com os nossos antepassados, na grande arca de Noé.

– Deixe-me ir menina. Oh… a menina não é capaz de entender. Nasceu neste tempo em que não há responsabilidade, não há o sentido de que temos que fazer as sementeiras se
queremos colher o fruto. Mas, mesmo assim, uma coisa não basta para que aconteça a outra, é também necessário sachar, regar, espantar a passarada, porque a gente pode ter os cuidados todos e estar-se mesmo a ver que a safra vai ser das boas e… zás! Vem a passarada, ou outros bichos, que é coisa que por cá não falta, e de uma só vez desaparece o fruto maduro e o que estava para inchar. É preciso espantalhar, estar alerta. Mas a menina não percebe nada disso, dá-me uma ou duas pastilhas dessas que parecem grão-de-bico e desfalecem-se-me as pernas, a menina estudou para carcereira. Ah pois, agora está admirada, não sabia que eu conhecia uma palavra tão difícil… acha que aprendi a falar assim no meio destas pedras negras? Não, estive a servir em Lisboa, na casa de uns senhores, foi onde descobri muito do que sei… a senhora era professora, ensinou-me a ler e a ter boas maneiras e eu, à socapa, lia as revistas da época. Mas, nessa altura, a minha mãe adoeceu, tive que voltar para a aldeia… nunca mais de cá saí. Quando regressei ainda dei ajuda nas festas da igreja, depois veio o casamento e logo a seguir os filhos. Nesse tempo comecei a escrever um livro, ainda me lembro do título, chamei-lhe “Vila de Rei: rostos e olhares”. Depois… Tem que me deixar ir, menina, pela sua rica saúde. Tanta roupa que lá tenho para lavar e passar e dentro de poucos dias é a festa da Rainha Santa.

A festa da Rainha Santa é a única em que continuo a colaborar nas actividades da paróquia, porque se não houver gente a ajudar a celebração não se faz ou perde-se a grandeza que a tem marcado ao longo dos anos. Celebra-se o milagre das rosas e da rainha que era amiga dos pobres e lhes dava pão, mas, interpelada pelo rei, viu os hidratos de carbono que carregava transmutarem-se em rosas. “São rosas, senhor, são rosas”, o odor invadiu as narinas dos presente, ainda assim a barriga dos desgraçados continuou a dar horas, mas D. Isabel logo terá mandado fazer mais duas cozeduras de pão. Quanto a D. Dinis, era bom rei, porque mandou plantar pinhais e assinou tratados de paz. Homem de coração amolecido, fez-se poeta, mas não podia permitir que se andasse por aí a dar pão ao povo, que se habituava à barriga cheia sem nada fazer. Ora, um reino que, sabe-se agora, tinha tanto para andar perdia a energia e ficava como um carro sem gasolina na berma da estrada.

Na procissão da Rainha Santa, o meu mais novo vai de anjinho, com duas asinhas de renda e penas a toda a volta. Tem que haver sempre alguém para vestir os fatinhos, mas se alguns soubessem o diabinho que ele é, a quantidade de pássaros que ele engaiola e as patifarias que faz, parece-me que não o iam deixar seguir na procissão sem lhe darem um banho de água benta. A minha mais velha vai de Rainha Santa, escolheram-na por ser bemparecida, sai ao pai, mas vai de contra vontade, foram precisos vários serões para que eu a convencesse. Anda mouro na costa, há um rapazola filho de um comerciante da vila que lhe anda a fazer a corte. É verdade que se trata de um bom partido, mas não sei se os pais dele vão na conversa de ter uma nora sem fazenda. Já disse à cachopa para não se entusiasmar muito, não vá a coisa dar em desgosto, mas tive de lhe fazer ver que sendo ela, mesmo que só por uma tarde, a Rainha Santa isso vai torná-la a princesa da festa, o que lhe há-de ser favorável no interesse do rapazola. É certo que gostava de a ver casada com um bom partido, para amor e uma cabana já bastou este meu casamento, porque o vento entra pelas frechas da choupana e leva parte do amor, mesmo que ele seja muito. Mas cá por dentro mói-me sempre o receio de que o filho do burguês queira festa, se aproveite da moça e depois nos deixe a ambas alagadas em lágrimas. Mãe sofre.

– Já percebeu a minha urgência, não é verdade? Nem assim a consigo convencer? A menina não tem família? Não compreende a minha dor? Carcereira e só carcereira! Não pode ter, não pode, com esse coração de pedra. Ah, já aí vem com a sua arma, com essa seringa que não me deixa ser gente, com essa agulha que me adormece e aprisiona. Mas eu vou na mesma, mas antes de ir preciso de um banho, tenho o corpo amolecido por estes suores, colase-me ao lençol, é o meu sudário. A menina também não gosta de se sentir limpa? Depois do banho sentimo-nos puras e nestes dias soalheiros de Primavera apetece-nos homem. Consigo também funciona desta maneira, não é verdade? Quando o seu namorado está assim, de banho tomado, barba feita, perfumadinho, não lhe apetece atarraxar-se à frescura quente dele? E depois… bem, depois seja o que Deus quiser, que nestas coisas a gente não pode parar a vontade… arrepia-se-nos a espinha. Deixe-me ir menina, primeiro o banhinho e depois saio.

O meu Manel vai chegar do campo e, hoje que é sábado, em que o banho é mais geral, começo a andar num alvoroço, começa-se-me a formar um nó na garganta. É o nó do desejo, atado à espera de mãos habilidosas que o soltem. Ainda hoje, com este rebanho de filhos que Deus me quis dar, quando o pressinto de barba feita, a cheirar a sabão azul, começo a engolir em seco.

Depois da casa lavada, dos garotos aguados e da cozinha arrumada, passo pelas brasas num sono retemperador. A seguir, aqueço bem uma panela grande de água e despejo-a na banheira antiga que encontrámos abandonada no pinhal e que o meu homem ajeitou na pequena casa de banho improvisada. Desço lentamente na água mole e, desde logo, lavo os olhos vezes sem conta, para poder ver bem o prazer que o momento me dá. A seguir, pego no sabão azul, passo-o por todo o corpo, demoro-me nas partes mais íntimas, sem me perder em delírios, porque me estou apenas a preparar para o que a noite me vai trazer.

O meu Manel espera-me na cama, muito sério, preparado para o trabalho mais importante
do mundo. Enxugo o cabelo e deixo-o solto, só de manhã voltarei a fazer o carrapito, sinto-o dançar-me na lisura das costas. Não nos apressamos, se ele acelera sou eu que o travo, que lhe seguro as rédeas do ímpeto. Foi um caminho longo, porque tudo começou exactamente ao contrário, tinha eu dezoito anos, em que com três safanões ele me colocou a barriga da forma e do tamanho da lua cheia. Deixei-me embalar por aquele rapaz elegante, de palavras doces e, zás, eis-me casada à pressa. Mas não se pode amar de afogadilho, fica-nos o sabor a pouco, aprendi-o nas revistas que li à socapa em Lisboa. Quando ganhei coragem, depois de estrebuchar muitas vezes sob os safanões do meu Manel, passei eu para os comandos, deitei-o de costas, prendi-o sob o meu corpo e dei a cadência, num compasso novo para ambos. Depois da surpresa inicial do homem, foi nessa noite que nos casámos de verdade, foi ali que nos tornámos almas gémeas.

– Oh menina, menina, pelo que tem de mais sagrado, pela sua rica família, dê-me as minhas roupinhas, porque se eu não estiver em casa à noitinha pode sempre acontecer qualquer coisa de muito grave. Se eu não apareço, o meu Manel pode não se controlar. A
menina sabe o que isso é, não sabe? Eu conheci o seu paizinho, que Deus o tenha, morreu rebentado do fígado. Lembro-me bem de vocês terem que fugir de casa quando a aguardente lhe atiçava a ira. Era uma vergonha, ninguém falava disso, mas toda a gente sabia. Era normal se fosse numa casa de pobres, mas num lar abastado… E teve consequências, se não fosse aquilo a menina se calhar não era a carcereira de bata branca que é hoje. A meninice marca a gente, disso não há dúvida. Sofreu muito, eu sei, mas não é obrigatório que também faça padecer os que a rodeiam.

Com o meu Manel foi o negócio que esteve na origem do nosso tormento. Nascemos em famílias pobres, tanto ele como eu, acabámos casados à pressa, numa cerimónia triste, com meia dúzia de palavras de circunstância de um padre que me acusou de ir prenha perante Deus e uma dúzia de convidados esfomeados. O meu Manel não aceitava aquela condição e fez-se à vida. Nos primeiros anos, em conjunto, trabalhámos até à exaustão, para conseguirmos um pé-de-meia que nos permitisse olhar para o futuro com outros olhos. Estávamos a conseguir dar a volta por cima e um dia surgiu a oportunidade. Encontrava-se à venda uma serração no cimo da aldeia, não era coisa nova, estava ao abandono, muitas das máquinas achavam-se avariadas, mas o meu Manel começou a magicar, a fazer contas e mais contas, sem me dizer o que quer que fosse. Um dia, ou melhor uma noite, depois de nos termos amado, disse-me que gostava de comprar a serração, que tinha feito todas as contas, porque ele sabia da arte por nela ter trabalhado, e que em dois anos recuperávamos o dinheiro aplicado. Acrescentou que precisávamos de pedir algum capital, que já tinha falado com o senhor doutor, que estava tudo pensado. Ele cheirava a sabão azul, doseado com o que tínhamos transpirado durante a refrega dos corpos nus, e sorri-lhe a dizer que sim.

Arrancou tudo de vento em popa, recuperaram-se as máquinas, contrataram-se empregados capazes, começou-se a comprar a matéria-prima aos madeireiros e aquilo que se produzia tinha saída, porque o meu Manel sabia que a qualidade tinha que ser a imagem da casa. Um dia apareceu um tipo de uma empresa de Lisboa, queria fazer um contrato para a serração produzir só para ele. Trazia dinheiro adiantado e como andávamos apertados para cumprir as prestações do empréstimo não pudemos dizer que não. Depois de um ano em que os pagamentos chegaram dentro do prazo, a produção continuou a sair mas os cheques começaram a atrasar-se e deixaram mesmo de aparecer. O meu Manel confiou e, em pouco tempo, já devia aos fornecedores e aos empregados e o negócio estava em ruptura. A falência foi inevitável, mas como somos gente séria ainda hoje pagamos uma prestação a um banco pelo empréstimo que contraímos para podermos saldar todas as dívidas.

Comecei a ver que o meu homem voltava a casa cada vez mais bebido. No começo ficava calado num canto, depois começou a ralhar por tudo e por nada e um dia, porque as crianças faziam barulho com as suas brincadeiras, levantou a mão para lhes chegar. Travei-lhe o braço e quando o olhar turvo dele se cruzou com as minhas lágrimas disse-lhe pausadamente que ele tinha que escolher, ou a bebida ou eu. Nunca mais bebeu, mas agora que não apareço receio que ele não tenha escolha.

– Oh menina, menina… Pssst.

Não está cá a carcereira. Deve estar distraída ou a dormir. É a minha oportunidade, vou tomar um banho, encontro umas roupas e vou para casa. Não posso esperar pela manhã, é agora ou nunca. Com este andarilho dou os primeiros passos, depois as pernas vão desentorpecer e retomo a cadência da marcha. Já estou na casa de banho. Passo a água fria pela cara e, ai meu Deus… os comprimidos e as injecções estão a dar cabo de mim, os meus cabelos estão brancos e fracos, rugas de todos os feitios lavraram-me o rosto… ai… e agora as pernas fraquejam-me, se calhar é melhor descansar um pouco.
*
Relatório de óbito:
Nome - Maria de Jesus / Idade – 95 anos / Contactos da família – Desconhecidos […].

Fonte:
Município Vila de Rei

Andreia Domingos (Vila de Rei - Rostos… Olhares de alma)

Oh Vila de Rei bem coroada
Que d’outros olhares tiveste reitor
Por Isabel Santa foste amada
Elevada por D. Dinis o Lavrador

No alto Picoto vejo serras
Montes, vales e riqueza
Nem santo, nem rainha, nem rezas
Tiram do olhar tão rara beleza

Tens história, pessoas e artes,
Tens escritos p’ra não esquecer
Rostos, encantos e olhares
Desta gente que te viu nascer

Oh Vila de Rei inebriada
Com séculos de tradição,
Desde sempre abençoada
Por gente de grande coração

Um rosto, um olhar, um ensejo
Coragem escrita na ladainha
Vejo-te crescer com desejo,
De hoje e sempre seres Rainha.

Tens alma de lutador,
E em tudo buscaste sustento
Tens gente que na terra trabalha,
Hoje e sempre com grande alento

Olho, admiro e sonho,
Ó Vila de Rei bela princesa
Tens lagar, moinho e conho
Que sempre trouxeram riqueza.

Rostos e olhares do Mundo
Não conhecem tão nobre terra
Aqui hoje deixo o testemunho
Da rara beleza que ela encerra.

Neste meu cartão de visita,
Hoje de rosto renovado,
Olho para ti com amor
Nobre concelho encantado.

Fonte:
http://www.cm-viladerei.pt/

Luís Lucas Francisco (Rostos e olhares)

Naqueles olhares algo distantes
Há rostos ainda bem risonhos
Mas no futuro pouco confiantes
E no qual não alimentam sonhos.

Da sua terra grandes amantes
Porque a ela se submeteram,
Lutaram por ela como gigantes
E seus braços nunca se renderam.

Rostos flácidos e macilentos
Que duros anos foram moldando,
Ao progresso estiveram atentos
Que quase tudo lhes foi negando.

P’lo sol, seus rostos foram curtidos,
P’ra tirarem da terra magro sustento,
Mas eles não se deram por vencidos
Nem se lhes ouviu nenhum lamento.

Assim por detrás de cada rosto
Há uma bem apurada memória
Que conta com requintado gosto
Lindos trechos da sua história.

Estes beirões rijos e valentes
Habituados aos rigores da serra
Foram “peças” muito influentes
No desenvolvimento da sua terra.

É para estes rostos e olhares
Que aos quatro ventos cantarei;
Eles que habitam aldeias e lugares
Deste concelho de Vila de Rei!

Fonte:
http://www.cm-viladerei.pt/

Sara Gaspar Pedro (“Vila de Rei – Rostos e Olhares” / Elisa Moniz (1990))

Capítulo 1

Passo os dias, imóvel, junto à janela, a tentar observar, de olhos semi cerrados. Hoje, uma criança brinca lá fora e tenta, com grande esforço, colocar o seu papagaio a voar. Não sei quem ela será, provavelmente a neta de algum dos anciãos que me acompanham nesta casa. Gostava de me aproximar, correr com ela, como teria feito muito anos antes com os meus irmãos.

Já conheço o mundo há oitenta e nove longas Primaveras, mas o tempo não foi simpático comigo. Hoje, quando acordei, tentei ver-me, através da branquidão que se vai apoderando do meu olhar, e não me reconheci. O meu rosto, repleto de marcas profundas mostram uma vaga ideia do que fui. As minhas mãos, marcadas pelo tempo, têm constantemente aquele aspecto de quem passou demasiado tempo debaixo de água.

Durante muito tempo fui considerada a rapariga mais bonita da aldeia de Fernandaires. O meu cabelo avermelhado, igual ao do meu pai, dava nas vistas, em especial durante o pôr-do-sol, em que parecia brilhar. Eu e os meus irmãos costumávamos mergulhar todos os dias no rio Zêzere e saíamos a tempo para observar o entardecer. A Maria era a mais velha, como tal, era quem tomava conta de todos nós. Passado um mês da minha irmã ter nascido, a minha mãe tinha engravidado novamente. O meu pai desejava ardentemente um rapaz, para que o ajudasse nos campos e na casa, e ficou radiante quando 9 meses depois recebeu dois: o Luís e o Pedro.

A minha mãe descrevia aquela noite como uma das mais assustadoras da sua vida. Estava a chover torrencialmente, a trovoada rebentava no céu e até o rio parecia zangado! Assim que se ouviram os primeiros trovões, as dores começaram, e a parteira não havia forma de chegar. As Fernandaires não eram um local fácil de aceder, pior ainda naquelas condições. As dores iam aumentando e chegaram a um ponto tal que o meu pai foi obrigado a ajudar a minha mãe a trazer ao mundo o Luís. Ela falava com carinho da cara de felicidade do meu pai quando viu o rapaz. Era pequeno mas chorava com força: “Vai ter garra este rapaz!”. Assim que disse estas palavras, a minha mãe voltou a gritar de dores, sem conseguir compreender porquê. Por momentos achou que ia morrer. Foi nesta altura que chegou a parteira, completamente encharcada e enlameada. E minutos depois nasceu o Pedro.

Enquanto cresciam, os meus irmãos eram exactamente iguais, tanto no aspecto como em tudo o que faziam, quase como se tivessem feito um pacto no ventre da minha mãe de se revezarem em tudo. Havia alturas que trocavam de lugares, sem que ninguém se apercebesse. Por mais que a minha mãe tentasse vestir-lhes roupas diferentes, de modo a conseguir distingui-los, eles arranjavam sempre forma de a confundir. Quando nasci, eles tinham apenas um ano, e já eram as crianças mais irrequietas que se tinham visto naquela pequena aldeia.

Visitaram-me há pouco tempo. Incrivelmente, mesmo na velhice, continuam iguais um ao outro. Mais que isso, conseguiram manter aquele sorriso matreiro que sempre os caracterizou. Fui sempre a sua protegida, mesmo agora, cada vez que os vejo, o meu coração sossega e acabo sempre por sorrir na sua companhia.

Capítulo 2

As dores nas minhas costas, assim como a curvatura que já as caracteriza há uns anos são marcas de todos aqueles anos que passei a ajudar o meu pai, com uma enxada na mão, dobrada, a apanhar todos os alimentos que saiam da terra. Desde muito cedo fui habituada a trabalhar com os meus irmãos nas hortas que tínhamos em volta da casa e nas margens do rio, onde as terras eram mais férteis. O meu pai cultivava tudo o que conseguia e ia todos os Domingos, ainda o sol não tinha nascido, para Vila de Rei, para vender os seus produtos no mercado.

Adorava tudo acerca do mercado: os cheiros, as pessoas, as cores, tudo. No entanto, era cada vez mais difícil vender e as terras, apesar de férteis, quantos mais anos passavam, menos frutos pareciam dar. A minha mãe, ajudava todos os Sábados a limpar as frutas e legumes, e a escolher aqueles que se iriam levar para o mercado. Os que tinham pior aspecto, ficavam sempre connosco e a minha mãe esforçava-se para fazer o que conseguia com o que sobrava. Nos piores dias, comíamos apenas uma batata cada um. Com sorte, os meus irmãos tinham pescado qualquer coisa, ou o meu pai tinha ganho o suficiente para comprar um pedaço de carne para alimentar toda a família.

Hoje relembro esses dias com nostalgia. Eram dias duros, em que se trabalhava estivesse sol, chuva, frio ou calor. Mas toda a família estava reunida, todos tínhamos um propósito e trabalhávamos para um fim. Ao final do dia, toda a família se banhava no rio, e todos sorríamos, satisfeitos com aquilo que tínhamos alcançado naquele dia.

Os gémeos costumavam fazer um jogo, em que ambos mergulhavam mas apenas um vinha à superfície, e nós tínhamos que adivinhar qual dos dois é que aparecia. Quando eram mais velhos e fazia bom tempo, costumavam percorrer o rio e ficar a pescar durante horas. No início a minha mãe ficou muito nervosa, com receio que algo de mal lhes acontecesse, mas rapidamente se convenceu com as iguarias que traziam para a nossa mesa.

Eu e a minha irmã Maria, acompanhávamos a minha mãe em tudo o que ela fazia. Rapidamente aprendemos a cozinhar, limpar e cozer, tudo o que uma boa senhora deveria saber. A minha irmã era, no entanto, muito mais habilidosa do que eu, e muito mais dedicada também. Eu tinha o hábito de desaparecer para explorar os terrenos em volta da casa. Gostava de descobrir os sítios mais recônditos e marcá-los com o meu nome, numa árvore da minha preferência. O meu nome era a única coisa que conseguia escrever, até ter começado a acompanhar o meu pai ao mercado. Rapidamente aprendi a matemática necessária, e as contas pareciam-me bastante óbvias. A escrita, nem tanto, mas todos os Domingos, a professora Amélia, da escola de Vila de Rei, ensinava-me, com a sua paciência, aquilo que conseguia. Seguia, de manhã, com o meu pai e ajudavam nas contas e em tudo o que fosse necessário. Ia ter com a professora Amélia às 2 da tarde, onde limpava a sua casa o mais depressa e o melhor que podia, para que depois ela me desse a lição. Praticava sozinha durante a semana e apresentava os resultados no fim-de-semana seguinte.

Tinha 8 anos quando recebi o meu primeiro livro, mas lê-lo não foi tarefa fácil. Era um catecismo, já com alguma idade e páginas amarelecidas. As letras eram pequenas e as palavras inúmeras, mas passado algumas semanas já sabia cada palavra de cor. Ainda o tenho guardado numa caixa debaixo da minha cama aqui no Lar. É das poucas coisas que guardo do meu pai, que quase chorou por lamentar não conseguir dar-me mais do que aquilo. Fui eu que tratei de ensinar tudo o que aprendia aos meus irmãos, o que não era tarefa fácil, mesmo sendo eles mais velhos que eu. A única escola que havia era longe e nós não tínhamos forma de nos deslocar até lá e os meus pais precisavam de nós.

Apesar de todas as dificuldades, recordo com carinho o pôr-do-sol no rio, as águas frescas, todos aqueles recantos com “Anita” escrito nas árvores… Deveria ter regressado antes que as cataratas me tivessem impedido de ver com clareza.

Capítulo 3

Em cima da minha mesa-de-cabeceira tenho uma fotografia antiga da minha família. Foi tirada antes que o meu irmão Mário tivesse nascido e antes do dia em que a minha família se começou a dividir.

Deveria ter 8 anos quando o meu tio Alberto nos veio visitar. Chegou num carro amarelo berrante, que foi a novidade do dia na aldeia. Vinha vestido com um fato bege e com uma bela gravata. Estava na Alemanha há muitos anos, e ao que parecia tinha vingado no mundo dos negócios. Foi uma noite animada, com muito vinho à mistura. Acho que nunca tinha visto o meu pai ficar com o nariz tão vermelho, mas a verdade é que já fazia dez anos que não via o irmão. Já era bastante tarde quando fomos para os nossos quartos. Os gémeos tinham bebido vinho e estavam a ressonar muito alto no quarto ao lado, apesar disso eu parecia ser a única que não conseguia dormir.

Dirigi-me para a cozinha, queria beber um copo de leite com mel, que mesmo na velhice sempre me ajudou a adormecer. Quando descia as escadas ouvi vozes no andar de baixo. Lembro-me da conversa como se fosse hoje:

“- A vida está cada vez mais difícil por aqui… A minha mulher acha que está grávida outra vez e eu não sei como vou conseguir alimentar mais uma boca. – dizia o meu pai.

- Então, deixa-me levar um dos teus filhos comigo. A vida corre-me bem, mas a Madalena não consegue gerar um filho para nós. Moramos numa zona simpática e temos uma boa vida, mas ninguém para a partilhar. Talvez a tua mais nova… - nesta altura o meu coração deu um salto. Aquilo que menos queria era ir para longe da minha família.

- Não, a Anita é óptima com as contas e já não me imagino no mercado sem ela. E não posso separar os gémeos, acho que nenhum deles sobreviveria.

- A Maria então. Prometo que a deixo bem casada e bem na vida!

- Tenho de falar com a mulher primeiro… Confio que cuides bem dela, mas é difícil deixar ir assim um filho meu. Amanhã falamos melhor sobre o assunto, preciso de pensar.”

Voltei a correr para a cama, a tremer e com suores frios, só de pensar que poderia ter de ir, de partir para tão longe, separar-me da realidade que conheço e adoro. Não há nada como o cheiro da manhã, o som dos pinheiros quando passa aquela brisa suave, a frescura da água, tão próxima, tão fresca.

Dois dias depois o meu pai anunciava que a Maria ia partir com o tio Alberto para Munique, na Alemanha. A minha mãe chorava silenciosamente e todos nós olhávamos a Maria com pesar. Tinha escolhido não lhe dizer nada, não adiantava assustá-la se nada fosse realmente acontecer. Mas agora era tudo real, ela ia partir e eu não conseguia abandonar a sensação que nunca mais a iria ver, o que acabou por acontecer.

A última imagem que tenho dela, é aquele carro amarelo a partir, com o cabelo avermelhado que caracteriza a nossa família, a brilhar ao sol, enquanto nos acena através da janela do carro, tentando esconder as lágrimas e o medo de partir com para um país novo, com um tio que mal conhecia. Foi o início do fim.

Capítulo 4

Uma das meninas que trabalha aqui no Lar da Fundada, costuma ler para mim. Acho que ela nem percebe como isso me faz feliz e infeliz ao mesmo tempo. O meu sorriso, que aparece ligeiro nos momentos felizes da história, mal transparece na minha face enrugada e sem expressão.

Durante muito tempo, a leitura foi a minha paixão, e cada livro um pequeno tesouro. Passei a minha vida a tentar ler tudo o que conseguia arranjar e adorava. Cada vez que a minha irmã nos enviava uma carta, eu lia-a e relia-a vezes sem conta. Era a única forma de me sentir mais próxima dela. Entretanto, o meu irmão Mário nasceu. Era uma criança calma e recatada, que admirava os irmãos mais velhos como se fossem deuses. Costumava vê-los a desaparecer rio abaixo, com as suas canas de pesca e desejava secretamente segui-los. Uma vez ainda o apanhei a tentar e consegui impedilo. Infelizmente, não o vi naquela tarde.

Estava um dia fantástico, solarengo e com aquela brisa que caracteriza os dias de Verão na zona do Pinhal. Os meus irmãos tinham ido à Vila com os meus pais e eu tinha ficado sozinha com o Mário. Depois de fazer as tarefas que a minha mãe me tinha deixado, peguei num livro que uma senhora da escola do Abrunheiro me tinha dado quando a visitei, e estava distraída a lê-lo à beira do rio. Hoje já não me lembro do que tratava, mas lembro-me do pânico que se apoderou de mim quando olhei à minha volta e não vi o meu irmão em lado nenhum. De repente, ouço uma rapariga a gritar, junto ao leito do rio e a pedir ajuda! Foi aí que vi que qualquer coisa contrastava com a água à sua volta, muito perto de onde se encontrava a rapariga que ainda não tinha parado de gritar. Não sei quanto tempo demorei a perceber o que se passava, mas para mim aqueles segundos pareceram horas. Atirei-me à água e lutei com as pedras do fundo para chegar o mais depressa possível onde estava o corpo do meu irmão pequenino a boiar nas águas claras do Zêzere. Trouxe-o o mais depressa que pude para a margem, mas nesse momento, fiquei sem saber o que fazer. Não conseguia gritar, nem chorar, só olhava para aquele corpo branco, sem vida… Como era possível que aquilo tivesse acontecido? Foram segundos, simples segundos de uma vida que mudaram tudo. Ainda hoje me pergunto como é que tudo se passou. Lembro-me de ver os meus pais a surgir ao longe, na sua carroça e aí começo a chorar. Não me lembro do que aconteceu depois, quase como se tivessem apagado da minha memória qualquer memória do que se passou. Nunca consegui ultrapassar aquele dia, chorei durante semanas e nesse tempo decidi que não iria ter filhos, não poderia deixar que o mesmo acontecesse outra vez, não suportaria a dor.

Uns meses depois, a minha mãe ficou gravemente doente, com febres e dores que ninguém conseguia explicar. Mas eu sabia! Era dor, a dor tão profunda de saber que o filho tinha morrido antes da mãe, não era natural. Pouco depois de a minha mãe ter caído neste estado sem razão ou cura, recebemos uma carta da Maria, a sua última carta, trazida à mão por um rapaz que transportava madeira através da fronteira, e tinha percorrido muito até nos encontrar.

Segundo o que a Maria explicava, o meu tio tinha vingado na vida, quando se juntou aos judeus influentes, ricos e poderosos do país. Com a ascensão de Hitler ao poder, todos eles estavam a ser perseguidos e tiveram de fugir. Não sabia quando poderia voltar a escrever ou se o voltaria a fazer. Mandou-nos o seu amor e a sua saudade, com a sua doce assinatura no final da carta, esborratada provavelmente pelas lágrimas. Quando li ao meu pai o conteúdo da carta, conseguia ver o carregar do seu olhar a cada palavra, e as lágrimas no seu olhar quando terminei. Aquele olhar acompanhou-me ao longo de toda a minha vida. Decidimos não contar à minha mãe, mas, a verdade é que não precisávamos porque as mães têm o poder de sentir a dor dos filhos. A cada dia, a sua condição piorava até ao dia em que o seu frágil corpo não aguentou mais e simplesmente adormeceu para um sono eterno.

Capítulo 5

Tento observar as pessoas à minha volta, as senhoras que me fazem a cama, que me trazem a comida, todas as pessoas que partilhavam a mesa comigo. Muitos comiam devagar, como se fosse um desafio enorme levar a colher com a sopa do prato até à boca. Outros, como eu, não conseguiam comer sozinhos. Eu observava mas não via, nada era nítido, apenas vultos e cores. Não conseguia distinguir caras, mesmo que estivessem muito perto dos meus olhos. Assim, a minha vida tornou-se um jogo de sombras. No entanto, era menos sombrio do que a altura da minha vida em que passei casada com o Marco.

Tinha 19 anos quando me apaixonei perdidamente e saí de casa. Entretanto os meus irmãos tinham partido juntos para Lisboa, e eu tinha ficado sozinha com o meu pai, que pareceu ter envelhecido 40 anos depois de a minha mãe ter partido.

Conheci o Marco quando passeava pelos meus recantos privados e ele estava num deles. Tinha montado uma espécie de acampamento com dois amigos, para se dedicarem à caça. Estava encostado a uma das árvores com a minha marca, e observavaa com curiosidade. Eu não estava à espera que alguém estivesse ali, pelo que não foi difícil que ele reparasse rapidamente em mim. Trocámos algumas palavras e rapidamente me senti levada por aquele rapaz grande e forte, mas com uma voz doce e olhos cor de mel. Ele seguiu o meu olhar que se dirigia para o nome que estava escrito na árvore e apenas disse: “Anita?” Eu acenei com a cabeça.“Não sabia que mais alguém conhecia estes lados. Sou o Marco. Prazer em conhecê-la, exploradora Anita.” E foi assim que ele me arrancou o meu primeiro sorriso.

Depois desse encontro, encontrávamo-nos quase todos os dias, sempre à beira do Zêzere. Levou-me a conhecer Vila de Rei, as cascatas de Penedo Furado, os Poios, as igrejas, as aldeias mais lindas. Eu mostrei-lhe todos os meus segredos, todos os espaços e todos os locais que considerava como meus santuários. Costumávamos ir a todas as festas que havia nas aldeias ao lado, e dançávamos, muitas vezes até de madrugada. Passado alguns meses, pediu-me em casamento e mudámo-nos para o Vale da Urra.

Inicialmente tudo correu bem e o amor continuou a dominar as nossas vidas. No entanto, a mesma discussão parecia surgir quando menos se esperava: ele queria filhos e eu não. Com o passar do tempo, a discussão passou a ser cada vez mais frequente e violenta. Num dia, como outro qualquer, a discussão surgiu naturalmente como nos outros dias, mas o final foi bastante diferente. Começou com uma estalada nesse dia, seguida de um grande pedido de desculpas e lágrimas. No entanto, cada semana piorava, e eu ficava cada vez mais magoada. Cheguei a um ponto que deixei de falar, não valia a pena dizer uma palavra. Eu sentia-me envergonhada, toda eu estava vermelha tal como os meus cabelos.

Apesar de tudo, continuámos a passear, e a manter a ilusão que estava tudo bem. Relembro quando apanhámos o meu pai e fomos ver a inauguração da barragem do Castelo do Bode. Não foi uma altura muito feliz para o meu pai. Com a construção da barragem ele tinha perdido todos os terrenos onde tinha as suas plantações nas Fernandaires. Quando perdeu o trabalho da sua vida, pareceu perder o seu sentido. Enquanto via o Salazar no topo da barragem, a celebrar o sucesso da sua construção, ouvia-o a rogar-lhe todas as pragas que se lembrou. Pouco tempo depois, faleceu, sentado à entrada de casa, a olhar para o rio e para aquilo que antes tinha sido o seu trabalho e a sua vida.

Após toda a minha família ter desaparecido da zona, as coisas com o Marco pioraram. Foi um amigo da minha família, o tio Elias, que me salvou daquele que poderia ter sido o meu último dia. Costumava passar no Vale da Urra para entregar o pão, tal como fazia nas Fernandaires, onde o meu pai acabava sempre por dar um cesto com fruta e vegetais para a sua família. Acabaram por ficar amigos, e várias vezes iam para as adegas um do outro. Segundo o que ele me disse depois, o meu pai tinha-o feito prometer que tomaria conta de mim quando ele já não estivesse por este mundo para me ajudar. Como tal, cada vez que passava com a sua carrinha abrandava e certificava-se que estava tudo bem. Naquele dia, percebeu que qualquer coisa não estava certa. Quando viu o Marco subir as escadas e entrar, percebeu que ele não estava no seu estado normal. Ouviu o som seco quando caí no chão após um murro no estômago. Depois, aconteceu tudo muito rapidamente: ele entrou, atacou-o, pegou no meu corpo inconsciente, meteu-me na carrinha e levou-me para casa dele, enquanto o Marco ainda estava demasiado confuso para perceber o que tinha acontecido.

Acabei por ficar em casa do Elias, na Fundada, onde encontrei naquele corpo franzino de olhos verdes, mais que um amigo mas um segundo pai. Nunca mais pensei em voltar para o Marco, apesar de ele ainda ter feito algumas tentativas. Demorei alguns meses a voltar a falar, e quando o fiz, a minha garganta estava seca e roufenha da falta de uso. A primeira coisa que disse foi: “Obrigada”.

Ele tratou-me como a filha que nunca teve e não poderia ter pois a esposa dele tinha falecido há alguns anos. Passámos muitos e bons anos juntos, em que ele me ensinou tudo o que havia para saber acerca da padaria e acabou por me deixar o negócio. No entanto, a idade acabou por levá-lo de mim com um sorriso nos lábios. Nas suas últimas palavras ele disse-me: “Graças a ti, vivi os melhores aos da minha vida. Obrigada.”

Pouco depois disso, recebi uma carta dos meus irmãos, a contar-me como estavam felizes. O Luís já tinha arranjado uma namorada e o Pedro estava noivo. Junto com a carta vinha um convite para o casamento deles, que seria dai a dois meses. Durante muito tempo não recebi notícias dos meus irmãos. Estavam ambos envolvidos em movimentos anti-fascitas, e o facto de serem gémeos permitiu que se livrassem de várias situações de perigo, pois conseguiam arranjar um alibi infalível. Apenas tiveram a sua liberdade após o 25 de Abril, no qual se destacaram sendo chamados para altos postos
na polícia.

Finalmente, tudo começava a encaixar e tinha voltado a sorrir.

Capitulo 6

Hoje o meu sobrinho João veio visitar-me. Disse-me que ainda se lembrava do cheiro do pão e dos bolos que costumava fazer na padaria com o tio Elias, e que tinha saudades das minhas aventuras culinárias que nem sempre corriam bem.

Ao contrário de mim, os meus irmãos vigoravam da terna saúde da idade, e viviam com os filhos e netos mimando-os e contando as suas histórias. Os filhos de ambos os meus irmãos, costumavam vir passar os Verões comigo. Costumava levar os meus sobrinhos a passear no rio, e a conhecer todos os recantos que eram importantes para mim. Fazia jogos e desenhava mapas para ver quem os achava mais depressa. Esses foram os melhores tempos da minha vida.

Quando da sua visita, o João contou-me que tinha remodelado a casa dos avós nas Fernandaires, e que tinha ficado absolutamente fantástica. Agora, os seus filhos poderiam ir para lá brincar no Verão e crescer com memórias do rio, que tanto marcou também a sua infância.

Naquele dia, o meu sobrinho trouxe o filho, um bebé com um ano. E apesar de não lhe conseguir distinguir bem as formas, disse-lhe que era lindo. Só poderia ser. Sempre considerei um acto de coragem ser mãe, e ver aquela criança fez o meu coração saltar. Mas ver a felicidade dos meus irmãos ao longo dos anos, dos seus filhos e agora dos seus netos fez-me sentir mais realizada que nunca.

Amava-os a todos com todas as minhas forças, mas isso já não era suficiente para me manter aqui, à espera que chegue a hora em que a misericórdia chegue e me leve em paz deste mundo, muitas vezes cruel. Em retrospectiva, apesar de todas as dificuldades que passei, nunca escolheria viver longe da minha terra, longe das águas do Zêzere.

Diz-se que na velhice se encontra a sabedoria, o que não deixa de ser verdade, mas na realidade é que a experiência e as memórias são tudo o que se tem quando a vitalidade nos começa a abandonar.

Às vezes a luta torna-se cruel, e nessa noite, não quis lutar mais. A minha vida foi completa, cheia de momentos de dor mas também vivi momentos intensos de pura felicidade. As marcas do meu rosto mostram cada desafio, cada prova que passei. O meu olhar, cada vez mais claro como o sol da manhã, impede-me de ver o que há no mundo lá fora. Talvez já tenha visto aquilo que tinha para ver nesta vida e o meu corpo não tenha mais espaço para memórias.

A menina que costuma ler para mim, passou pelo meu quarto depois de jantar.

- Quer que comece a ler outro livro para adormecer?

- Amanhã, quem sabe, amanhã…

Fonte:
Município Vila de Rei