segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Alex Alves Fogal e Bárbara Del Rio Araújo (A Recriação de Minas Gerais em “Lanterna Mágica”, de Drummond)


RESUMO: Este estudo busca analisar a relação entre literatura e cidade no poema “Lanterna Mágica”, de Carlos Drummond de Andrade. Pretende-se observar como o método poético é capaz de representar as cidades mineiras, seus costumes e história, ao mesmo tempo em que propõe uma reflexão sobre o espaço social e urbano.

PALAVRAS-CHAVES: literatura; cidade; “Lanterna Mágica”; Carlos Drummond de Andrade.

Introdução: A poética da cidade

Pensar a relação entre a poesia de Carlos Drummond de Andrade e as cidades de Minas Gerais é algo de certa forma evidente, pois a composição de seus versos comumente traz junto à representação do sujeito poético, as imagens e sensações relacionadas ao espaço mineiro. Entretanto, a poesia do escritor itabirense não se limita ao registro objetivo desse espaço, ao contrário, ela o toma como um objeto novo, elaborado por meio da desfiguração e recriação no plano estético.

O processo poético drummondiano encara os espaços citadinos mineiros e sua complexa estrutura sócio-espacial como objetos de representação. Ou seja, o olhar do poeta recria as cidades de Minas Gerais pelas relações que mantém com elas: não se trata apenas do esboço do locus sócio-geográfico, mas da re-construção da imagem desse lugar. Nesse sentido, esses espaços são re-configurados e apresentados de maneira dinâmica e heterogênea, passando a assumir uma forma diversa daquela que se apresenta no plano referencial.

A estilização do espaço urbano e o imaginário das cidades é algo comum à Literatura Brasileira, sobretudo no século XX, quando ocorre no Brasil a denominada Belle Époque, fenômeno que visava transformar, segundo os princípios do novo urbanismo, as cidades nacionais nos parâmetros citadinos europeus, os quais eram fundamentados nos ideais de disciplina, ordem e higiene.

De certa maneira, a teatralização da vida urbana fora já encenada na segunda metade do século XIX nos romances de Machado de Assis e Joaquim Manuel de Macedo, entretanto, nesse momento, a cidade ainda era vista de maneira afastada, descentralizada, uma vez que toda funcionalidade social e econômica ainda se fixava no espaço rural, no campo. É no século XX, que se inicia intensamente o pacto urbano, “que teve o poder de enquadrar novos e velhos grupos citadinos à dinâmica de uma cidade em transformação e que entronizava os princípios higienistas como norma e comportamento social”. (PECHMAN, 1996, p. 332).

Verifica-se, nesse período, a proposta de racionalização do espaço, espelhado no universo europeu, sobretudo Paris. Mirando-se na cultura francesa, mais precisamente no modelo de renovação urbanística haussmaniano, o Brasil projetava-se para a construção da cidade moderna. Nesse aspecto, embasado em critérios de melhoramento e embelezamento, o espaço mineiro modificava-se tentando exprimir o paradigma de um país civilizado, organizado. O planejamento de Belo Horizonte é um dos grandes exemplos dessa transformação. A princesinha da república, como era referida, vinha demonstrar a adoção de um projeto afoito pela modernização e eliminação da herança colonial, expressando a renovação do ambiente citadino a condecorar o novo regime político recém instalado.

A utopia da racionalização do espaço urbano afirmava-se normativizando as condições de vida e criando uma teoria sobre a cidade: “Paris foi o pretexto, quem sabe o modelo, para se pensar o mundo a partir do ideário que se construía”. (PECHMAN, 1996, p. 344). As ideias urbanísticas eram traduzidas nas cidades brasileiras independentes das questões de cidadania e direito à cidade. Deste modo, evidenciava-se uma malha ideológica que procurava sucumbir e reduzir qualquer discussão social e política.

A necessidade e expansão do modelo urbanista é analisada por Henri Lefebvre como parte de um processo de modernização, mas, sobretudo de afirmação ideológica do capitalismo. Para ele, o urbanismo – a tentativa de submeter a realidade urbana à racionalidade, transfigurando uma ideia de homogeneidade - explicita a lógica fetichista do sistema capitalista com suas ordens e coerções: “Em verdade, o que o urbanismo acaba promovendo e legitimando é uma redução da vida humana ao mínimo”. (LEFEBVRE, 2001, p. 10).

O raciocínio do autor francês sobre a urbanização moderna revela que a existência impositiva de um paradigma de cidade não permite que o espaço urbano seja vislumbrado na sua completude. A teoria da cidade, embasada apenas na lógica de reordenação do espaço, isenta-se de todo e qualquer embate político e da prática urbana. A idealística urbana, o olhar redutor normativo, homogeneizador do espaço impede de vê-lo como lugar de enfrentamentos confrontações e contradições: “Pelo fato do urbanismo pretender substituir e suplantar a prática urbana, ele não a estuda. Para o urbanista, essa prática é, precisamente, um campo cego. Ele vive nele, nele se encontra, mas não o vê, e menos ainda o compreende como tal.” (LEFEBVRE, 2001, p. 141).

Deste modo, podemos compreender que a racionalização do espaço urbano, a teoria de construção da cidade revela uma cegueira, a qual impede que vejamos “o urbano com os olhos (de)formados pela prática e pela teoria da industrialização, pelas representações (ideológicas, institucionais) engendradas nesse vasto processo através do qual o capital se pôs de pé na História.” (LEFEBVRE, 2001, p. 10).

Para fugir dessa lógica fetichista da teoria da cidade, a Literatura apresenta-se como meio necessário para que se possa observar a imagem da cidade planejada, tal como ela quer se mostrar, e a imagem da cidade porosa, “que abriga em suas dobras uma população sem vínculos urbanos definidos”. (PECHMAN, 1996, p. 337).

A representação poética se revela, pois capaz de imprimir imagens diversas do espaço urbano: re-criações do discurso racionalista e de suas rachaduras. Tomada como objeto de representação, a cidade possibilita refletir sobre a multiperspectividade do espaço e do real. A realidade objetiva, quando re-dimensionado pelos escritores em um plano imaginário e estético, apresenta-se como uma rede de significações: Tomando sua matéria prima daquilo que existe, as representações do urbano se edificam a partir de dados da realidade objetiva, mas a eles atribuem um significado. Não sendo a representação, a reduplicação mimética do real, nela ocorre um deslizamento do sentido. (PESAVENTO, 1996, p. 378).

A poética da cidade permite, pois tomar o espaço urbano como elemento estilizado, ou seja, capaz de configurar e, ao mesmo tempo, desviar do discurso previamente instaurado, da faceta manipuladora da teoria da cidade. Nesse aspecto, desdobram-se os sentidos e as significações.

A representação transfigurada do espaço através do procedimento poético pode ser vista no poema “Lanterna Mágica”, de Drummond. As cidades mineiras que nela se configura não são apenas urbanas, mas um espaço plural. O método poético de representação do autor itabirense funciona tal qual o equipamento cinematográfico que dá nome ao seu poema: Lanterna mágica, composta por uma caixa óptica, reproduz, em uma tela, imagens, por meio da disposição de figuras invertidas. Semelhantemente, o dispositivo poético drummondiano representa as cidades mineiras por uma lógica desfigurativa e recriadora.

Sob a égide da transfiguração, tanto o acessório quanto a poética da cidade drummondiana exibem imagens não somente pela adoção do registro convencional, normatizado, mas também pela inversão deste discurso. Nesse aspecto, pode-se dizer que as exibições imagéticas exploram tanto a realidade figurativa quanto o imaginário, o que contribui para a formação adensada de sentidos. No caso específico desse poema, a poética da cidade permite que Minas Gerais seja representada de maneira múltipla.

A reconstrução estética de Minas Gerais na poética de Drummond

Por diversas vezes, o procedimento poético adotado por Carlos Drummond de Andrade foi associado a uma postura de intelectualidade fria e reflexões livrescas, destacando-se sempre o seu teor de recato e timidez perante o dado subjetivo e lírico. Alguns ensaios de nomes bastante conhecidos, como Afonso Arinos (1978) e Emanuel de Moraes (1978) apostam nessa perspectiva, defendendo a ideia de que o poeta mineiro deveria se entregar de maneira menos desconfiada a um tipo de lirismo mais fácil e menos cerebral. (ARINOS, 1978, p. 84-85).

Entretanto, os estudiosos que pensaram a obra de Drummond a partir dessa lógica, não atentaram para o fato de que, superficialmente, a obra do autor pode nos levar a pensar numa obra reticente em face de tudo que pareça dado pessoal, confissão ou crônica de experiência vivida. Mas é o oposto que se verifica. Há nele uma constante invasão de elementos subjetivos, e seria mesmo possível dizer que toda a sua parte mais significativa depende das metamorfoses ou das projeções em vários rumos de uma subjetividade tirânica, não importa saber até que ponto autobiográfica. (CANDIDO, 2004, p. 68).

Conforme nos mostra Antonio Candido em seu estudo intitulado “Inquietudes na poesia de Drummond”, o eixo subjetivo (o “eu”) e o objetivo (o mundo) estão equilibrados com exatidão na poesia do autor, fazendo com que o fato em si nunca funcione como mero registro e nem o intimismo seja um campo puramente hermético. (CANDIDO, 2004, p. 67).

Esse tipo de constatação geralmente se encontra restrito às obras mais maduras do autor, principalmente aquelas que vieram depois de A Rosa do Povo, surgida em 1945. Porém, conforme desejamos demonstrar, essa tensão entre “eu” e “mundo” já se encontra em seu livro de estreia, lançado em 1930. No poema intitulado “Lanterna Mágica”, contido em Alguma Poesia (2011), pode-se observar esse movimento dialético através da maneira pela qual o eu-poético aborda o espaço mineiro, representado pelas cidades de Belo Horizonte, Sabará, Caeté, Itabira e São João Del Rei.

Em “Lanterna Mágica” nota-se um tipo de projeção que deforma o espaço cartográfico das cidades, operando fantasmagorias no espaço objetivo através do recurso da imaginação, permeado pela memória e um forte tom sentimentalista. Comecemos pela “iluminação” (já que estamos falando da lanterna mágica do escritor) que o eu-poético lança sobre a capital mineira na primeira parte do poema, nomeada de “Belo Horizonte”:

Meus olhos têm melancolias,
Minha boca tem rugas.
Velha cidade!
As árvores tão repetidas. (ANDRADE, 2011, p. 29).

Como se vê, o poeta lança mão de uma estratégia formal que consiste em estender os caracteres físicos e psicológicos do eu-poético ao ambiente referencial. No terceiro verso, quando Belo Horizonte é chamada de “velha cidade”, o que nos assoma é certo sentimento de ternura e saudade, diferente de classificá-la de “cidade velha”: a anteposição do adjetivo ao substantivo nos permite entender que a cidade é vista como se fosse uma íntima conhecida, tanto que as árvores já se mostram repetidas sem que ofereçam novidade alguma aos melancólicos olhos do eu-poético, trazem apenas a sensação de estar em casa. Essa perspectiva sobre o espaço belo-horizontino continua a ser construída nos versos seguintes:

Debaixo de cada árvore faço minha cama,
Em cada ramo dependuro meu paletó.
Lirismo.
Pelos jardins versailles
Ingenuidade de velocípedes. (ANDRADE, 2011, p. 29).

Aqui, a relação de intimidade com a cidade se aprofunda ainda mais, visto que as árvores já servem para fornecer sombra ao sono do eu-poético e funcionam como cabides para que dependure seu paletó. Nesse ponto podemos notar algo bastante interessante para pensarmos a forma de expressão do poema, uma vez que no quarto verso, faz-se menção aos jardins de Versailles de Paris, remetendo à noção de cidade moderna e racionalização do espaço sem que o sentimento expresso nessa estrofe deixe de ser fundamentalmente idílico. Para reforçar isso, basta observar que o poeta recorre a um procedimento visual para forçar o leitor a reparar com mais intensidade na ideia ou conceito de “lirismo”, utilizando um tipo de ritmo sintático. Além disso, há outra questão digna de destaque nessa passagem no que diz respeito às imagens suscitadas. Note-se que, apesar do afastamento em relação à natureza e o traço desumano serem considerados inerentes à poesia moderna por alguns autores de relevância, como Hugo Friedrich (FRIEDRICH, 1991, p. 110-111), aqui temos um claro exemplo de valorização do aspecto natural e se não for exagero, de certo sentimentalismo romântico. Para o teórico Michael Hamburguer essa convivência entre artificialidade e natureza não deve causar nenhuma estranheza, o que nos faz afastar a ideia de Drummond como uma exceção entre os poetas adeptos da estética moderna. Segundo ele, essa ambivalência de perspectivas já pode ser encontrada em Charles Baudelaire, normalmente visto como o mais ilustre representante da “poesia da cidade moderna”. (HAMBURGUER, 2007, p. 373). Nas palavras de Hamburguer, mesmo os poetas posteriores a Baudelaire:

Demonstraram semelhante incapacidade para marchar “fraternalmente” ao lado de uma ciência utilizada para proporcionar novos meios de exploração econômica. Uma razão para tanto pode ser o fato de que a “imaginação é conservadora”, como disse Hofmannsthal; no entanto, a palavra “conservadora” não deve ser entendida num sentido estritamente político. A imaginação também pode ser politicamente radical, como a de William Blake, ou revolucionária, como em tantos poetas desde Baudelaire; não obstante, até mesmo em sua expressão mais utópica ou apocalíptica, a imaginação é conservadora quando recorre a normas e arquétipos. A Cidade Boa é uma dessas normas e arquétipos, mas, uma vez que poucas cidades modernas, ou nenhuma delas, foram consideradas boas por seus poetas, a natureza é a norma a que a poesia voltou repetidas vezes (...) (HAMBURGUER, 2007, p. 375).

Porém, não é apenas essa tensão entre lócus racionalizado e natureza que a temática do espaço mineiro na poesia de Drummond pode nos apresentar. Para dar prosseguimento à discussão, vale observar os versos destacados a seguir:

E o velho fraque
Na casinha de alpendre com duas janelas dolorosas. (ANDRADE, 2011, p. 29).

Trata-se dos últimos versos da parte dedicada à capital de Minas, nos quais o que se vê é um conflito entre a ideia de progresso e requinte, representada pela indumentária de caráter formal e a noção de tradição, ilustrada pela “casinha de alpendre com duas janelas dolorosas”, cenário comum no imaginário do poeta.

Já na segunda parte do poema, dedicada à cidade histórica de Sabará, o eu-poético, ao cruzar o conhecido Rio Das Velhas e a ponte que fora construída sobre ele, nos mostra o seguinte:

Eu fico cá embaixo
Maginando na ponte moderna – moderna por quê?
A água que corre
Já viu o Borba.
Não a que corre,
mas a que não para nunca
de correr. (ANDRADE, 2011, p. 30).

Ele “magina”, bem mineiramente, a ponte moderna e toda sua opulência se estabelecendo por cima do quase mítico Rio das Velhas e pensa no bandeirante Borba cruzando aquelas paragens, trazendo à tona um passado que pertence à história da formação de Minas Gerais. Um pouco mais à frente, depois de sonhar a artificiosa ponte se cruzando com o cenário desbravado pelo Borba, num arroubo de lucidez, chega à seguinte conclusão:

Ai tempo!
Nem é bom pensar nessas coisas mortas, muito mortas.
Os séculos cheiram a mofo
e a história é cheia de teias de aranha.
Na água suja, barrenta, a canoa deixa um sulco logo apagado.
Quede os bandeirantes?
O Borba sumiu,
Dona Maria Pimenta morreu. (DRUMMOND, 2011, p. 30).

Como fica clara, a contraposição entre o velho e o novo, entre tradição e modernidade, é inseparável das impressões que o cenário mineiro constroem na poesia de Drummond. Nessa parte do poema na qual se enfatiza Sabará, o eu-poético vê na cidade uma teimosa resistência contra os impulsos dos novos tempos, chegando a incentivá-la quando “veste com orgulho seus andrajos” enquanto é ameaçada pelas siderúrgicas. (ANDRADE, 2011, p. 31). No entanto, apesar da bravura que tem a cidadezinha:

O presente vem de mansinho
de repente dá um salto:
cartaz de cinema com fita americana.
E o trem bufando na ponte preta
é um bicho comendo as casas velhas. (ANDRADE, 2011, p.31).

Na terceira parte do poema, dedicada à cidade de Caeté, vemos mais um exemplo da poética de transfiguração do espaço aplicada pelo escritor, contrariando facilmente aqueles que já afirmaram, como Afonso Arinos, que em Alguma Poesia:

as velhas cidades de Minas, que tanto nos comovem a todos nós, ele as vê turisticamente, e nem sempre com muita afeição, nem bom gosto. Olha com lucidez, descreve com exatidão (...) (ARINOS, 1978, p. 86).

Diversamente do que se lê no trecho colocado acima, o poeta vê Caetés como o lugar no qual “as nuvens são cabeças de santo” e as casas são “torcidas”, ressaltando o espírito barroco da cidade surgida no ciclo do ouro de Minas Gerais. Vale notar que as nuvens não “parecem” cabeças de santo, elas “são”, deixando claro que o poeta abre mão das metáforas na busca de uma metamorfose poética da realidade referencial. (ANDRADE, 2011, p. 31).

Durante a parte quatro, o eu-poético menciona a cidade natal do poeta, que por sinal, é abordada de modo muito semelhante ao que se vê no poema “Confidência do itabirano”, contido na obra Sentimento do Mundo, publicada em 1940. Em Alguma Poesia, é dito que:

Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê.
Na cidade toda de ferro
As ferraduras batem como sinos. (ANDRADE, 2011, p. 32).

É importante perceber nessa passagem que o pico do Cauê, situado na pequena cidade, é reconhecido como provedor da existência férrea e ensimesmada do cidadão de Minas Gerais: “triste, orgulhoso de ferro”. (ANDRADE, 2008, p.11). Os penhascos mineiros, de maneira análoga ao que se dá em Cláudio Manoel da Costa, deixam de ser simples elementos de cenário para assumirem importante carga lírica.

A quinta e última parte do poema, reservada a São João Del Rei, também nos oferece matéria relevante para esclarecer o que objetivamos demonstrar. As ruas históricas da cidade assumem um aspecto fantasmagórico e fantasioso, bastante recorrente nas poesias de Drummond:

As ruas cheias de mulas sem cabeça
correndo para o Rio das Mortes
e a cidade paralítica
no sol
espiando a sombra dos emboabas
no encantamento das alfaias. (ANDRADE, 2011, p. 32).

O importante município mineiro passa por certo encantamento nas mãos (olhos) do poeta, passando a se constituir como um espaço mítico-colonial, habitado por “mulas sem cabeça” e “emboabas”. A cidade se faz viva, mas apenas para observar estática, a sombra dos personagens da história mineira, que assim como Sabará precisa tomar cuidado com o progresso, simbolizado pelo trem, que cisma em incomodar o sono tranquilo e grandioso com o qual o passado presenteou essas paragens:

Quem foi que apitou?
Deixa dormir o Aleijadinho coitadinho. (ANDRADE, 2011, p. 32).

Conclusão

Este trabalho evidenciou a poética drummondiana de recriação das cidades no poema “Lanterna Mágica”. Procurou-se demonstrar que o espaço mineiro representado na poesia do autor itabirense destaca-se não apenas quando é abordado de maneira referencial, mas também (e talvez com mais intensidade) quando é transfigurado e incorporado como elemento estético. Nesse aspecto, pôde-se revelar a heterogeneidade do espaço de Minas Gerais, capaz de articular imagens múltiplas e diversas significações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. Rio de Janeiro: Record, 2011.
ANDRADE, Carlos Drummond de. O sentimento do mundo. Rio de Janeiro: Mediafashion, 2008.
ARINOS, Afonso. O predomínio dos atributos intelectuais. In: Coleção Fortuna Crítica. Seleção de textos: Sônia Brayner. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978.
CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004.
FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. São Paulo: Duas Cidades, 1991.
HAMBURGUER, Michael. A verdade na poesia: tensões na poesia modernista desde Baudelaire. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Trad. Sérgio Martins. 1° reimpressão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
MORAES, Emanuel de. As várias faces de uma poesia. In: Coleção Fortuna Crítica. Seleção de textos: Sônia Brayner. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978.
PECHMAN, Robert Moses. O urbano fora do lugar? Transferências e traduções das ideias urbanísticas nos anos 20. In: PECHMAN, Robert Moses PECHMAN, Robert Moses e RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz (Org.). Cidade, povo e nação: Gênese do urbanismo moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Entre práticas e representações: a cidade do possível e a cidade do desejo. In: PECHMAN, Robert Moses PECHMAN, Robert Moses e RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz (Org.). Cidade, povo e nação: Gênese do urbanismo moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

Fonte:
RECORTE – revista eletrônica
Mestrado em Letras: Linguagem, Discurso e Cultura / UNINCOR ANO 8 - N.º 2

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 657)

 Uma Trova de Ademar

Fiz do quarto um santuário,
pus sua foto no andor
e rezei um novenário  
para louvar nosso amor!
Ademar Macedo/RN–

 Uma Trova Nacional

A caridade amplifica
o sentimento Cristão
que tão bem se multiplica
quando é feita a divisão.
–Eliana Jimenez/SC–

 Uma Trova Potiguar

Quanto as multidões, sou crítico!
Pois em muitas não há luz;
se não aplaude um político,
coloca um cristo na cruz!
–Manoel Cavalcante/RN–

 Uma Trova Premiada

2011  -  Nova Friburgo/RJ
Tema  -  RECADO  -  3º Lugar

Em meu olhar recatado,
teu olhar viu, mas não leu,
a ternura de um recado
que o meu amor escreveu.
–Marina Bruna/SP–

 ...E Suas Trovas Ficaram

Tenho um segredo profundo
- e é de amor... - e, tarde ou cedo,
eu gostaria que o mundo
soubesse desse segredo!
–João Freire Filho/RJ–

  U m a    P o e s i a  

Passou o tempo. Hoje, o inverno
já chegou à minha vida!
O fim já diviso perto
e, às vezes, fico sentida,
porque dúvidas me assaltam,
quanto à hora da partida!
–Delcy Canalles/RS–

 Soneto do Dia

SE UM DIA...
–Diamantino Ferreira/RJ–

- Se um dia me disseres... se o disseres!
“Amo-te!  Apesar dos teus defeitos!”
Serás a maior, mais falsa  das mulheres,
dentre outras tantas. Sem quaisquer conceitos!

Dirás apenas que .. ”Por que  me queres,
pois nenhuma de nós pensa  em “direitos”?
Eis que somos apenas teus talheres,
das tuas refeições e teus confeitos!

Tenho o direito de dizer: Sou tua!
Enquanto vives tu, vives na rua,
e te queres achar seres meu dono!

Que mãe eu tive – se algum dia a tive?
Não a conheço e se tampouco vive.
...A quem pertenço – enfim - neste abandono?

domingo, 2 de setembro de 2012

Haicai 8 - Hermoclydes S. Franco (RJ)


Alda do Espírito Santo (Poemas Diversos)

PARA LÁ DA PRAIA
Baía morena da nossa terra
 vem beijar os pezinhos agrestes
 das nossas praias sedentas,
 e canta, baía minha
 os ventres inchados
 da minha infância,
 sonhos meus, ardentes
 da minha gente pequena
 lançada na areia
 da praia morena
 gemendo na areia
 da Praia Gamboa.

Canta, criança minha
 teu sonho gritante
 na areia distante
 da praia morena.

Teu tecto de andala (1)
 à berma da praia
 teu ninho deserto
 em dias de feira,
 mamã tua, menino
 na luta da vida.

Gamã pixi (2) à cabeça
 na faina do dia
 maninho pequeno, no dorso ambulante
 e tu, sonho meu, na areia morena
 camisa rasgada,
 no lote da vida,
 na longa espera, duma perna inchada

Mamã caminhando p’ra venda do peixe
 e tu, na canoa das águas marinhas
 - Ai peixe à tardinha
 na minha baía
 mamã minha serena
 na venda do peixe
 pela luta da fome
 da gente pequena.

Notas:
(1) Andala: folha de palmeira;
 (2) Gamã pixi: gamela com peixe.


LÁ NO ÁGUA GRANDE
Lá no "Água Grande" a caminho da roça
negritas batem que batem co'a roupa na pedra. 
Batem e cantam modinhas da terra.

Cantam e riem em riso de mofa
histórias contadas, arrastadas pelo vento.

Riem alto de rijo, com a roupa na pedra
e põem de branco a roupa lavada.

As crianças brincam e a água canta.
Brincam na água felizes...
Velam no capim um negrito pequenino.

E os gemidos cantados das negritas lá do rio
ficam mudos lá na hora do regresso...
Jazem quedos no regresso para a roça.

ILHA NUA

Coqueiros e palmares da Terra Natal
Mar azul das ilhas perdidas na conjuntura dos séculos
Vegetação densa no horizonte imenso dos nossos sonhos.
Verdura, oceano, calor tropical
Gritando a sede imensa do salgado mar
No deserto paradoxal das praias humanas
Sedentas de espaço e devida
Nos cantos amargos do ossobô
Anunciando o cair das chuvas
Varrendo de rijo a terra calcinada
Saturada do calor ardente
Mas faminta da irradiação humana
Ilhas paradoxais do Sul do Sará
Os desertos humanos clamam
Na floresta virgem
Dos teus destinos sem planuras...

PARA A TANIA

Nesta noite morna de luar africano
Salpicando de sombras as estradas
Eu estendo os meus braços sedentos
Para a nossa mãe África, gigante
E ergo para ti meu canto sem palavras
Suplicando bênção da terra
Para as vias dos teus caminhos
Para a rota do destino imenso
Traçado na inteireza de todo o teu ser
Para ti, a projecção das nossas estradas
Varridas da impureza dos dejectos inúteis
Para ti, o canto de glória da nossa
Mãe África dignificada.

Fontes:
Luis Gaspar. Estudio Raposa.
Jornal de Poesia

Isabel Furini (Os Portões)

Nessa tarde de domingo, quando sua irmã Cacilda  espalhou as flores sobre o túmulo, rezou uma rápida prece e disse tchau Maria, vou para casa de mamãe, ela nem se preocupou. Calmamente pegou um gladíolo louçano  que sobressaía entre as flores  e colocou-o no vaso de cerâmica azul. Depois foi a vez de arrumar os cravos brancos.

Quando terminou de arrumar as flores, o Sol já estava caindo e faltava pouco para que o guarda-noturno fechasse os portões. Deveria ter saído com Cacilda em vez de dizer tchau e continuar arrumando as flores. Por que eu não fiz isso? Perguntava-se. Receosa, acelerou o passo. O cemitério ficou deserto e ela lá, sozinha.  Tentou correr. Não conseguiu. Suas pernas não obedeciam a seu comando. Essas cruzes. Oh! não!..  Errei o caminho.

Estava na parte detrás do cemitério, só via um muro pintado de branco.  Voltou sobre seus passos, túmulos enfileirados e mais túmulos... Estou perdida.  Calma, Maria, calma, você conhece este cemitério, já veio aqui várias vezes. Calma, calma, murmurava.

Avançou entre os mausoléus. Ah! Já estava perto de um portão! Seu passo não era tão rápido quanto ela queria e suas pernas tremiam, mas estava indo para frente enquanto as sombras avançavam. Com desespero, viu  os portões fechados.  Onde estará o guarda- noturno?
As sombras se espalharam sobre os túmulos dando ao cemitério um aspecto fantasmagórico. Devia ter saído com sua irmã. Cacilda sempre fazia visitas rápidas apenas para colocar as flores de qualquer maneira, e rezar uma Ave Maria.

As sombras se estenderam e ela aí, caminhando sem cessar. Tentando sair. E o vigia? Olhou suas roupas novas. Nem lembrava quando as havia comprado.   Pena que não tinha o celular com ela. Ela havia esquecido o celular em casa!... Seguramente na mesa de jantar ou talvez no criado mudo.

Aquele mausoléu de mármore branco. Ela já havia passado por ele em outras oportunidades.  Que sorte! O guarda estará lá. Ele abrirá o portão. Apressou o passo e lá estava o portão...

Suspirou aliviada. Sob a lua cheia  viu o portão, mas ninguém por perto. E o guarda? Avançou até o portão e olhou para os lados.  E, determinada, começou a escalar o portão, primeiro colocou um pé na barra inferior da grade e ergueu os braços para segurar na parte superior. Conseguiu elevar-se um pouco. Esforçou-se mais, ergueu os braços novamente e segurou  uma das barras horizontais. Já estou perto do topo. Mais um esforço e... tocou a barra superior do portão, um pé no ar e o outro pé escorregou antes de poder segurar com as mãos e caiu de costas. Sentou-se rapidamente no chão, não estava machucada,  mas devia iniciar de novo a subida.

De repente, sons de passos. Um jovem de cabelo loiro transitava pela rua, vinha do bairro em direção ao ponto de ônibus.  Para chamar a atenção do rapaz sacudiu o portão e gritou com todas suas forças. Viu o rapaz parar em frente do portão, com os olhos arregalados por um segundo, e sair correndo apavorado.

–  Volte!... Ajude-me a sair daqui.

– O que foi moça? – perguntou alguém atrás dela.

Graças a Deus, o guarda do cemitério a escutara. Voltou-se. O que viu a deixou confusa. Havia inúmeras pessoas atrás dela, homens, mulheres, velhos, jovens, adultos, crianças. Todos olhando o portão. Alguns com tristeza, outros com desespero e outros ainda, com raiva.
Um velho aproximou-se dela.

– Você deve ser nova aqui e não conhece as regras. Só podemos olhar para fora, mas não podemos sair. Não podemos sair. Só os vivos podem, só os vivos.

Fonte:
Recanto das Letras
http://www.recantodasletras.com.br/contosdesuspense/2232347

Fernando Sabino (Entre dois amores ...melhor ficar o dito pelo não dito)

 Era uma voz angustiada que o chamava lá embaixo na rua, tirando-o do sono. Acendeu a luz, olhou o relógio: uma hora da madrugada.

- Você está sentindo alguma coisa? - a mulher voltou-se na cama, estremunhada.

- Estão me chamando lá na rua. Acho que é o Gil. - Foi até a janela. Era o Gil, acenando-lhe freneticamente da calçada.

- Joga a chave!

Jogou a chave dentro de um maço de cigarros vazio. Depois vestiu o roupão e foi esperar na sala.

Em pouco o Gil irrompia apartamento adentro, esbaforido:

- Entrei numa fria do diabo. Pelo amor de Deus, me ajuda a sair dessa.

- Matou alguém? - disse o advogado, já alerta par as atenuantes. Só que não militava no crime, apenas no cível.

- Estou perdido - gemeu o Gil, sem ouvir - Me arranja pelo menos um troço para beber. Aceitou um conhaque. - E contou então a sua história. A mulher tinha ido fazer uma estação de águas em Poços de Caldas e levara as crianças. Aproveitou a folga para dar uma bordejada por aí, repassar um velho caso... Pois, naquela noite vinha muito fagueiro em companhia do velho caso quando o carro, também velho, ao entrar na praia de Botafogo, derrapou e bateu de cheio noutro carro. Gritos, confusão, desespero:

- Minha amiga não teve nada, só o susto. Meti a desgraçada num táxi para que ela se mandasse dali, fosse para o diabo. Eu também não tive nada, a não ser uma pancada no joelho, que posso contar ter sido no futebol de praia. Mas o outro carro! Ficou lá arrebentado. A impressão que tenho é que quem estava lá dentro vai ter de ser enterrado com carro e tudo. Como cheguei até aqui, só Deus sabe.

- Calma que tudo se arranja. Você não devia ter fugido, mas agora não interessa. O jeito é a gente ir até lá para ver o que houve.

Avisou a mulher, enquanto se vestia.

- O Gil se meteu numa fria. Sofreu um acidente.

“Isso tudo foi combinado” - pensava a mulher: - “esses dois vão pra farra”.

 No local do desastre deram com os dois carros meio destroçados, em meio a pequeno grupo de curiosos. Nenhum ferido, nenhum cadáver pudera observar à distância. A menos que já tivessem sido removidos.

- Conheço o comissário deste distrito. Vamos lá para ajeitar as coisas. Na delegacia os dois passaram por um senhor agitado, enraivecido, andando de um lado para o outro. O comissário informou-lhes que tomara conhecimento do desastre. E olhava para o Gil, penalizado.

- Então foi o senhor, é? Esse homem que vocês viram aí fora é o dono do outro carro. Está uma fera. O carro dele virou farinha. E o pior é que ele é coronel, parece. Daí pra cima. Disse que não sai daqui enquanto não resolver o caso. Como não houve vítimas...

- Não houve vítimas! - os dois respiraram, aliviados, embora pairasse no ar, ameaçadora, a patente militar mencionada. Antes que perguntassem o que estava pretendendo o coronel, este irrompeu na sala:

- Como é, comissário? O senhor não vai fazer nada? Não vai tomar nenhuma providência? Quem é esse homem? O carro é dele?

- O carro é aqui do meu amigo - interveio o advogado, conciliador. - Sou advogado dele. O senhor tenha calma, coronel, não precisa se exaltar, que tudo se arranja. Graças a Deus só houve danos materiais.

- Danos materiais? - e o coronel arregalava os olhos, fora de si, muito além da compreensão.

- Tenha calma, coronel. Com calma tudo se resolve. Talvez a gente possa chegar a um acordo.

- Acordo?... - balbuciou o coronel, tão transtornado que o outro, precavido, deu um pulo para trás. -  O senhor falou em acordo?

E respirou fundo, erguendo os braços dramaticamente:

- Acordo! Meu Deus, há duas horas estou esperando ouvir esta palavra bendita! Tomou o advogado pelo braço com a maior familiaridade e o levou a um canto, para lhe explicar a situação. Servia numa unidade em São Paulo. Tivera de vir ao Rio a serviço, apenas por um dia, e fizera crer à mulher que viera de ônibus - ele tinha horror de avião, assim ficaria tranqüila.

- E vim de carro, porque resolvi trazer uma velha amiga... O senhor compreende, não? Felizmente ela não sofreu nada. Ninguém sofreu nada, e não se sabe de quem foi a culpa, de modo que um acordo... Se por acaso minha mulher... Meu Deus, o senhor não conhece minha mulher. Faço qualquer acordo! Qualquer acordo! Como no verso de Bandeira, só falta o coronel apoplético, sair gritando: “Je vois des anges! Je vois des anges!” - O advogado lhe disse mais uma vez que não precisava se exaltar, estava tudo resolvido.

- O acordo está feito. Uma mão lava a outra.

O coronel deixou escapar sua satisfação num sorriso:

- Isso mesmo.

- Fica o dito pelo não dito - insistiu o outro.

- O dito pelo não dito. Dito e feito! Ou, melhor dizendo - e o coronel piscou um olho, - elas por elas.
 
Fonte:
Moacir Amâncio (organizador). Cronistas do Estadão. SP: O Estado de São Paulo.

Folclore Português (O Pastor feito Mercador)

Mercador (Pintura de José Rosário)
 Era pastor desde menino. Conhecia o seu rebanho como os seus dedos e mal uma ovelha balia, já ele sabia o que ela queria. Queimado do sol, curtido pela neve no Inverno, atravessava as serras e os vales guiando o seu rebanho a caminho das sombras e das pastagens. Também as ovelhinhas o conheciam muito bem e, a um sinal seu, elas entendiam-no e obedeciam-lhe.

 E numa tarde de Verão muito quente, quase ao anoitecer, desceu com o seu rebanho até à praia, e ovelhas e pastor deitaram-se na areia, à sombra dos pinheiros que havia à beira do mar. As ondas iam e vinham, muito mansas, como ovelhas de um rebanho, debruadas de espuma alva, que se rasgava aos bocados, como rendas leves, presas nas pedras e nas areias da praia. Mas o Pastor não dormia; pensava nas lebres do bosque e nas aves que chilreavam nas fontes e nas árvores, ouvia os sons doces e tristes da sua flauta de cana e sonhava com flores, com pastoras e com a felicidade. Não ser pastor… ser rico… não andar um dia inteiro, uma vida inteira atrás das ovelhas, a guiar o seu rebanho…

 Por fim, a Lua apareceu no céu, a iluminar tudo de sombras misteriosas e de luzes fascinantes. À sua claridade tudo tomou um aspecto diferente e adquiriu uma forma fantástica. O mar era um espelho, mais brilhante e mais atraente, as ondas pareciam pedacinhos de luz,bocados da própria Lua caídos do céu, a rolar na enorme superfície…

 E o Pastor começou a pensar:

 — O mar é tão belo… o mar é tão poderoso… Ele leva-nos para terras distantes… Ele faz-nos conhecer outros mundos… Ele faz enriquecer os homens… Porque hei-de eu continuar a ser pastor?! Se eu vendesse o meu rebanho podia comprar um barco e fazer-me mercador. Levava mercadorias de um lado para o outro do mundo e enriquecia, sem dúvida…

 Levantou-se um pouco, de olhos no céu e no mar:

 — Em pouco tempo seria um homem rico… rico…O mar é tão belo… e tão bom… Como ele está manso…como está bonito…

 Seduzido pela beleza e pela bondade que ele via no mar, o Pastor fez o que pensara naquela noite: vendeu o rebanho das suas ovelhas mansas e bonitas, que baliam por ele, e comprou um barco, um belo navio, com mastros altos, velas brancas e largas, que, abertas, semelhavam asas a levarem o barco para longe, para muito longe…

 O Pastor juntou todo o dinheiro que pôde, pediu algum emprestado, comprou um carregamento de tâmaras e fez-se ao mar, esperançoso e alegre, convencido de que voltaria rico logo na sua primeira viagem.

 A meio do caminho, porém, tudo se modificou. Uma grande tempestade surgiu e o barco de velas brancas e largas foi impelido pelo vento e sacudido pelo mar, de tal maneira que oscilava ao de cima das ondas, como um brinquedo leve. O vento e o mar embravecidos, raivosos, rugindo e silvando medonhamente, partiram-lhe os mastros, rasgaram-lhe as velas e em pouco tempo o barco ficou arrombado, a meter água, e afundou-se, destruído. Dificilmente os homens salvaram a vida: tudo o resto se perdeu.

 O Pastor, que sonhava ser um rico mercador, ficou mais pobre do que antes: agora nem um só cordeirinho tinha… Recordou o seu querido rebanho, que ele trocara por um desejo e por uma esperança, e foi pedir trabalho ao homem a quem o vendera, para voltar a ser pastor e não morrer de fome.

 Depois, quando nas horas de sol se deitava à sombra das árvores com as suas ovelhas, dizia para elas:

 — Nunca mais… nunca mais as deixo por uma coisa que eu não conheça. Aprendi à minha custa, mas as lições aprendidas assim são as que nunca mais esquecem.

Fonte:
Luis Gaspar, in Estudio Raposa.

Afonso Duarte (Livro de Sonetos)


CAMPO

A Alberto Martins de Carvalho

Este verde impossível de se ver,
 Que alegre o camponês cultiva o prazo,
 Não dá sequer para me aborrecer
 Na extensão sem fim do campo raso.

Sem fim, a vida, deixa se correr
 Lisa e fatal, serena, sem acaso.
 E acontece o que tem de acontecer
 Como quem já da vida não faz caso.

Nada se passa aqui de extraordinário:
 Tudo assim, como peixe no aquário,
 Sem relevo, sem isto, sem aquilo;

Muito bucólico a favor da besta,
 O campo, sim, é esta coisa fresca…
 Coaxar de rãs, a música do estilo.

ERROS MEUS A QUE CHAMAREI VIRTUDE 

Erros meus a que chamarei virtude,
Por bem vos quero, e morro despedido
Sem amor, sem saúde, o chão perdido,
Erros meus a que chamarei virtude.

A terra cultivei, amargo e rude,
No sonho de melhor a ter servido;
Para ilusão de um palmo de comprido,
A terra cultivei, amargo e rude.

E o amor? A saúde? Eis os dois Lagos
Onde os olhos me ficam debruçados
— Azul e roxo, rasos de água os Lagos.

Mas direis, erros meus, ainda amores?
— São bonitos os dias acabados
Quando ao poente o Sol desfolha flores.

CABELOS BRANCOS 

Cobrem-me as fontes já cabelos brancos,
Não vou a festas. E não vou, não vou.
Vou para a aldeia, com os meus tamancos,
Cuidar das hortas. E não vou, não vou.

Cabelos brancos, vá, sejamos francos,
Minha inocência quando os encontrou
Era um mistério vê-los: Tive espantos
Quando os achei, menino, em meu avô.

Nem caiu neve, nem vieram gelos:
Com a estranheza ingénua da mudança,
Castanhos remirava os meus cabelos;

E, atento à cor, sem ter outra lembrança,
Ruços cabelos me doía vê-los ...
E fiquei sempre triste de criança.

RISO 

Tive o jeito de rir, quando menino,
Até beber as lágrimas choradas:
Com carantonhas, gestos, desatino,
Passou a nuvem e os pequenos nadas.

A rir de escuridões, de encruzilhadas,
Tornei-me afeito logo em pequenino;
Porque ri é que trago as mãos geladas,
E choro porque ri do meu destino.

Vivi de mais num mundo idealizado
Comigo só: E só de mim descreio
Entornava-me riso a luz em cheio

Quando o meu mundo foi principiado;
Rio agora que não sei donde me veio
Sempre o mal que me trouxe o bem sonhado.

PAISAGEM ÚNICA

Olhas-me tu: e nos teus olhos vejo
Que eu sou apenas quem se vê: assim
Tu tanto me entregaste ao teu desejo
Que é nos teus olhos que eu me vejo a mim.

Em ti, que bem meu corpo se acomoda!
Ah! quanto amor por os teus olhos arde!
Contigo sou? — perco a paisagem toda...
Longe de ti? — sou como um dobre à tarde...

Adeuses aos casais dessas Marias
Em cuja graça o meu olhar flutua,
Tudo o que amei ao teu amor o entrego.

Choupos com ar de velhas Senhorias,
Castelo moiro donde nasce a Lua,
E apenas tu, a tudo o mais sou cego.

HORAS DE SAUDADE 

Vou de luar em rosto, descontente:
Meus olhos choram lágrimas de sal.
— Adeus, terras e moças do casal,
— Adeus, ó coração da minha gente.

A hora da saudade é uma serpente:
Quero falar, não posso, e antes que fale
Ela enlaça-me a voz tão cordial
Que as coisas mais me lembram fielmente.

Olhos de amora, e uma ave na garganta
Para enfeitiçar a alma quando canta,
Moças com sua parra de avental;

Graça, Beleza, um verso sem medida,
A Saudade desterrou-me a vida ...
Sou um eco perdido noutro vale.

INSCRIÇÃO 

Dos vastos horizontes me invocaram,
Noutras formas artísticas imersos,
Revoltos pensamentos que formaram
Todo o amor e pureza dos meus versos.

Melodias que os ventos orquestraram
Foram verbo dos átomos dispersos:
Palavras que meus olhos soletraram
Num indizível sonho de universos.

Foram aromas das fecundas messes:
Como se tu, ó Terra, mos dissesses
Numa profunda comunhão de mágoas.

Geraram-mos os génios das Montanhas
Na sua fé de catedrais estranhas,
Na panteísta devoção das Águas.

Fontes:
Luis Gaspar. Estúdio Raposa 
http://www.estudioraposa.com/index.php/category/poetas/afonso-duarte/
Citador
http://www.citador.pt/poemas/a/afonso-duarte

Afonso Duarte (1884 – 1958)

1884 -Nasce Afonso Duarte, a 1 de Janeiro, na aldeia da Ereira, freguesia de Verride, concelho de Montemor-o-Velho. Filho de Henrique Fernandes Duarte e D. Maria Pereira Cantante.
1896- Faz exame de instrução primária na escola de Alfarelos.
1898 - Entra para o Colégio Mondego, de Coimbra, onde permanece como aluno interno durante 3 anos.
1902- Assenta praça em Lanceiros de EI-Rei e matricula-se no Liceu de José Falcão.
1904 - Sabe-se que tinha já concluído nesta altura o seu primeiro livro de versos, Composições verdes, que não chegou a ser publicado.
1908 - Matricula-se na Universidade de Coimbra (prepararatórios para a Escola do Exército)
1909- Desiste da carreira das armas, passando a frequentar o curso de Ciências Físico-Naturais da Faculdade de Filosofia, hoje extinta.
1912 -Publica o Cancíoneíro das Pedras na Livraria Ferreira, de Lisboa, livro que reúne as poesias escritas de 1906 a 1910. Funda, com Nuno Simões, a revista Rajada.
1913- Bacharela-se em Ciências Físico- Naturais.
1914 - Publica a Tragédia do Sol-posto, Franca Amado, editor, Coimbra. É colocado como professor provisório no Liceu de Vila Real de Trás-os-Montes.
1915- Abandona Vila Real para frequentar a Escola Normal Superior de Lisboa.
1916 - Publica a Rapsódia do Sol-nado seguida do Ritual do Amor, Renascença Portuguesa, Porto.
1917 - É nomeado professor do Liceu de Gil Vicente, de Lisboa. Mobilizado pouco depois, dá entrada na Escola de Oficiais Milicianos de Artilharia de Costa.
1918- É licenciado a seguir ao Armistício, sobrevindo-lhe então a grave doença que esteve quase a inutilizá-lo (paraplegia) e de que nunca mais se curou completamente.
1919 - Volta a exercer funções públicas como chefe de secretaria do Liceu Infanta D. Maria e professor da Escola Normal Primária de Coimbra.
1924 - Lança com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca a revista Triptico.
1925 -Abandona o cargo de chefe de secretaria do Liceu de José Falcão, para onde transitara do Liceu Infanta D. Maria, entregando-se a partir de então, na Escola Normal, a uma experiência pedagógica absorvente, que alcançou verdadeira repercussão europeia. Publica Barros de Coimbra, edições Lumen, Coimbra.
1929 - Dá a lume Os sete poemas líricos, edições Presença, Coimbra, compilação da sua obra poética, inédita e publicada.
1932 - É colocado na situação de adido fora do serviço e compelido à aposentação.
1933 - Publica Desenhos animistas de uma criança de 7 anos, Imprensa da Universidade, Coimbra.
1936 - Publica o ciclo do Natal na literatura oral portuguesa, Biblioteca Etnográfica e Histórica Portuguesa, Barcelos.
1947 - Publica Ossadas, edição da Seara Nova, Lisboa. Poesias escritas, provavelmente, entre 1922 e 1946.
1948 - Publica Um esquema do cancioneiro popular português, também edição da Seara Nova.
1949 - Publica o Post-scriptum de um combatente, Colecção Galo, Coimbra. Escrito em Janeiro e Fevereiro de 1948, excepto as poesias «Post-scriptum de um combatente» (1917), «Coimbra» (1918), «4 de Junho de 1944», «Terra Natal (1947), «Eugénio de Castro» (1947) e a «Saudação a Pascoaes» (1949).
1950-Publica Sibila, edição do autor, Coimbra. Tanto as «trinta e cinco redondilhas fingidas» como o «Soneto verdadeiro» datam de Abril de 1950.
1952 - Publica Canto de Babilónia e Canto de morte e amor ambos edições do autor, o primeiro escrito em 1951, o segundo de Janeiro a Março de 1952.
1956 - Sai a 1.a edição da sua Obra Poética, Iniciativas Editoríais, Lisboa. É uma recolha de todos os livros de poesia já publicados e inclui o livro inédito 0 Anjo da Morte e outros poemas, coligido e completado de 1952 a 1956, embora no plano geral da obra o autor o insira antes do tríptico de redondilhas formado por Sibila, Canto de Babílónia e Canto de Morte e Amor. Acompanha a Obra Poética um apêndice biobibliográfico organizado por Carlos de Oliveira e João José Cochofel.
1956 - A 24 de Junho é-lhe prestada pública homenagem na Ereira, sua terra natal, e descerrada no Castelo de Montemor-o-Velho uma lápide com estes versos seus: Onde nasceu o Fernão Mendes Pinto? Jorge de Montemor onde nasceu? A mesma terra, o mesmo céu que eu pinto, Castelo velho, o que foi deles é meu.
1957 - 2.a edição da Obra Poética, Guimarães Editores, Lisboa, aumentada de novas poesias.
1958 - Morre em Coimbra, a 5 de Março. É sepultado no cemitério da Ereira.
1960 - Sai o volume póstumo Lápides e outros poemas (Iniciativas Editoriais, Lisboa), organizado por Carlos de Oliveira e João José Cochofel.
1974 - Publica-se esta 3.a edição, definitiva, da Obra Poética. A inclusão (não cronológica) de Lápides e outros poemas entre os livros o anjo da morte e Sibila faz-se por determinação de Afonso Duarte, que insistentemente indicou os cicios das redondilhas como fecho de toda a sua obra.
Fonte: