domingo, 14 de outubro de 2012

Agostinho Rodrigues (Seleção de Trovas Navegantes)


No presépio, um quadro lindo:
a jovem mãe e a criança.
- Era a ternura sorrindo,
amamentando a esperança!
 A. A. DE ASSIS/RJ/PR

Para matar as saudades,
fui verte em ânsias, correndo...
- E eu que fui matar saudades,
vim de saudades morrendo...
   [+]ADELMAR TAVARES/RJ

O amor cristalino é lindo
para quem deseja amar
e possui um dom infindo:
muito carisma a somar.
AGOSTINHO RODRIGUES/RJ
                         
A minha casa pequena,
modesta, embora, é querida!
Há nela a doce e serena
paz que eu almejo na vida.
       [+]ALBERTO ISAIAS RAMIRES/RJ/ES

Sou qual ave em vôo livre,
circulando na amplidão, 
os desenganos que eu tive
deixei jogados no chão.
    APARECIDA MARIANO DE BARROS/SP

Todo amor nos eterniza,
pois toda morte perece
e todo tempo agoniza
aonde uma paixão floresce.
          CARLOS AUGUSTO S. DE ALENCAR/RJ

A verdade atemoriza,
quando ela em nós ocorre,
que ela agoniza, agoniza,
agoniza, mas não morre!
       CÉLIA LEAL DE AZEVEDO/RJ

As vezes tenho vergonha
quando a noite chega ao fim:
pingos de dor sobre a fronha
por não tê-lo junto a mim.
DÁGUIMA VERÔNICA DE OLIVEIRA/MG

Não me negues teu retrato,
que isso é tola precaução,
pois já o tenho, de fato,
gravado no coração!
DIAMANTINO FERREIRA/RJ

Nas asas do desvario,
tentando um sonho alcançar,
eu despenquei no vazio,
mas... aprendi a voar!
EDMAR JAPIASSÚ MAIA/RJ

Esta vida me sequestra
numa espera de ilusão...
- Só o amor tem chave-mestra
para abrir meu coração.
ELIANA JIMENEZ–SP/SC

No tear da solidão,
rendeiro em dias tristonhos,
basta um fio de ilusão
para tecer os meus sonhos!
ELISABETH SOUZA CRUZ/RJ

Poeta é ágüem que procura
iluminar tudo e nada,
baseado na arquitetura
das nuvens da madrugada!
          [+] ENO TEODORO WANKE/PR/RJ

É seguindo sempre em frente
e buscando a perfeição
que a mulher inteligente
faz do trabalho, emoção.
ESTER FIGUEIREDO/RJ

Céu, mares, paisagens, flores,
cujo encanto nos seduz,
Refém de ti não recuo
réu do amor que me corrói:
cada sonho que construo
tua apatia destrói...
        GILVAN CARNEIRO DA SILVA/RJ

A música é tufo em fim
que traduz meu sentimento;
por isso que canto sim
o amor a todo momento.
GLEYDE COSTA/RJ

Quando a vida só nos traz
tristeza e desesperança,
por que não buscar a paz
num coração de criança?
HUGO ROMA/RJ

A poesia é toque n’alma,
um suave aceno de lenço;
filha dileta da calma,
que inebria como o incenso.
           HUMBERTO DEL MAESTRO/ES 

O silêncio, embora mudo,
tem poder envolvente
de, ao coração, dizer tudo
que passa na alma da gente!
JOAMIR MEDEIROS/RN

O homem nasce, cresce, morre, 
deixa o mundo, a ilusão.
Pois o que ninguém esquece, 
seu caráter, retidão.
JORGE FREGADOLLI/PR

Saudade melhor explica
quem dela sofre ou sofreu:
-Saudade é a raiz que fica
de uma flor que já morreu.
JOSÉ ANTÔNIO DE FREITAS/MG

Não há amor que resista
às brigas do dia a dia...
Prefiro nova conquista.
Já me entreguei à Poesia!
  JOTA DE JESUS/RJ

Seu convite amarelado
que hoje encontrei sem querer,
ressuscitou um passado
que eu vivo para esquecer.
MARIA NASCIMENTO S. CARVALHO/RJ

Muito tombo e tropeço
muita reta, muita esquina,
subi, voltei ao começo,
pois a vida sempre ensina. 
MARILU MOREIRA/RJ

No Natal, com harmonia,
muita paz, amor e luz,
festejamos com alegria,
nascimento de Jesus.
     NEIVA FERNANDES/RJ.

Quero um natal diferente
com muita paz e união;
que as bênçãos do Onipotente
alcance a toda Nação.
       ROBERTO PINHEIRO ACRUCHE/RJ

Mercador de ouvidos moucos,
a manhã passa, em andanças,
vendendo ilusões, aos poucos
com roupagem de esperanças.
       RODOLPHO ABBUD – Nova Friburgo/RJ

Mulher de rara beleza
não deve, jamais, pintar-se,
pois obra na natureza
não necessita disfarce.
RUTH FARAH/RJ

Bem raramente se alcança
o que temos na vontade,
por isso vale a esperança
muito mais que a realidade.
[+]TELLES DE MEIRELLES

Eu quisera num segundo
atender ao meu desejo,
sorver todo o amor do mundo
na volúpia do teu beijo!
[+] WALTER ROSSI/SP

Fontes 
Agostinho Rodrigues, editor dos jornais (abaixo) virtuais de onde as trovas acima foram retiradas
Alternativo Navegando nas Poesias
    Nº.  152 – dez 2011
Alternativo Navegando nas Poesias
Nº. 153 – jan/fev/mar - 2012
Alternativo Navegando nas Poesias
Nº 154 – abril de 2012

Nilto Maciel (O Que Significa Talento?)


Em literatura (e nas demais artes) há os imitadores. Não sabem (não conseguem) ir além dos modelos. Há também os que nem isso conseguem, mas insistem nessa labuta de sísifo. Alguns deles estão em jornais e revistas, academias, catálogos de editoras, nos festins, nas congratulações. Arremedam os descobridores, os inventores e os próprios copiadores. Não vão além dos modelos, dos moldes. São conformados. Aceitam tudo como destino. Reverenciam, sorridentes, a seleção natural, a evolução das espécies, a reprodução. Se são cachorros, nunca se veem gatos. Ou não se sentem aves. Apenas latem.

Capazes de tudo, aprendem, com louvor, as normas gramaticais; leem todos os clássicos; conhecem idiomas (pelo menos dois: o de sua pátria e o das multidões); sabem tudo de cinema, teatro, arqueologia, mitologia, filosofia. Dão lições de quase tudo: o uso da vírgula, o desuso de palavras, a morte de Sócrates, a vida de Platão. Não admitem, nem em sonho, a pecha de medíocres, copistas, conformados. Irritam-se, com facilidade, se criticados. Odeiam os críticos. Sentem-se pares dos descobridores e dos inventores. Nunca dizem “eles”, mas “nós”. Formam grupinhos, reúnem-se todas as noites. São gregários. Elogiam-se, riem muito, contam piadas, armam estratégias. Frequentam, juntos, bares e restaurantes, assim como salões de academias de letras, de retórica, de língua. São amigos uns de outros. Visitam-se amiudamente. Levam mimos para as esposas dos amigos, bonequinhas e bolinhas para os filhinhos dos compadres. Os de fora são os “bestas”, os “metidos”, os “doidos”. Os de fora são os talentosos, descobridores e inventores da nova literatura.

Irmão gêmeo do típico escritor comum é o “gênio incompreendido”, que escreve como se desenhasse labirintos. Para ele, é mais do que preciso enredar o leitor, confundi-lo, atá-lo com nós, sufocá-lo e matá-lo. O leitor é seu principal inimigo. E bate no peito: duvido da existência de alguém capaz de entender o que escrevo. Para ele, Fernando Pessoa é muito simples e, portanto, imitável: “Meu coração é um almirante louco / que abandonou a profissão do mar”. Bom, é verdade, mas deveria ter sido mais complexo. Mais plexo, mais exo, mais lexo, mais oxel, mais xelo, mais loxe. Para deixar o leitor, o crítico, o estudioso completamente enredados nas teias da grande aranha do verbo.

À mesa desses privilegiados seres, sempre farta e barulhenta, sentam-se os seus seguidores, os seus bajuladores. São os incapazes de ler cem páginas de um clássico. Muito cansativo! Os que não conseguem aprender nada e gritam: Abaixo a ditadura da gramática! Os que envelhecem e não passam do versinho adocicado. Os que veem em letras de samba ou de rock a poesia mais soberba. Os que acham que romance é uma história comprida. São os pobrezinhos da literatura, os miseráveis, os indigentes, os mendigos das letras. Destes, no entanto, nem é preciso dizer muito.

Os escritores comuns somos quase todos nós que convivemos com os pobres sonhadores e também com os talentosos. Com muita dedicação (e porque conduzem no cérebro algum gene diferenciado), alguns conseguem até engendrar uma ou outra obra valiosa. Assim como os talentosos geram muita mediocridade. Quase todos nós, porém, não passamos do soneto bem medido e rimado, do conto arrumadinho que constará de antologia estadual ou nacional, do romance estudado (por algum tempo) na Universidade.

Ao nosso lado, vivem os descobridores da boa literatura. “Viver ao lado” é modo de dizer. Sim, vivem na mesma cidade, são nossos vizinhos, mas não se misturam muito conosco. Em vez da vida social, preferem os livros. Nada inventam, porém sabem descobrir modelos (que a maioria nem percebe), artifícios de linguagem, entradas e saídas (de labirintos), técnicas de narrar e compor poemas, etc. São os chamados “escritores talentosos”, os capazes de fugir da pura imitação, do plágio e das lições da escola a que pertencem. São românticos que encontram o realismo (Machado de Assis), parnasianos que conseguem alcançar o simbolismo ou o modernismo (Augusto dos Anjos, Jorge de Lima), regionalistas que chegam ao universalismo (Graciliano Ramos, Guimarães Rosa). Não são muitos, razão pela qual são pouco vistos. E, quando percebidos, ninguém sabe sequer seus nomes.

Mais raros ainda são os inventores ou reinventores de literaturas. Também são chamados de gênios. Escrevem nova poesia, como Fernando Pessoa. Novo romance (ou nova prosa de ficção), como Kafka. Estes não vemos por aí, a não ser como estátuas ou em livros. Seria o caso também de James Joyce? Muito escritor torce o nariz: “Eu faço melhor do que ele. Invento coisas tão indecifráveis que até os hieróglifos do Egito se farão (faraós) fáceis (fósseis) diante delas. Nem Jean-François Champollion seria capaz de decifrar os meus finnegans wakes”. E completa: “Na verdade, somos muito parecidos, eu e Joyce. Ele, por seus estudos; eu, por meus…”

Deixemos, porém, esses devaneios para trás. E concluamos este verborrágico passeio com algumas perguntas: Inventar e reinventar são verbos da mesma classe? Joyce reinventou Homero? Quem inventou a Grécia? É possível imitar o gênio? O que significa talento?

Fonte:

Marilda Confortin (Poemas Avulsos)


GOTA A GOTA

Nasci. 
Era um poço raso, vazio; 
com cinco filtros perfeitos 
e um sexto, 
que às vezes fazia sentido.

Através deles, 
como um dreno ao viés,
a vida me foi preenchendo: gota a gota.

Primeiro, assentou pedras, as mais pesadas,
depositadas bem no fundo da infância.
Serviram para controlar a umidade da alma
e fixar meus pés no chão.

(Nasci tão leve e líquida. Não fosse esse peso,
eu seria um pássaro ou um peixe.)

Depois, a vida pregou-me outras peças.
Encaixou-as umas sobre as outras, 
deixando raros intervalos entre elas.
Por esses vãos,
circularam rios de sentimentos. 

E assim,  foi fazendo seu trabalho.
Construindo-me. 
Habitou-me de amigos, amores, filhos. 
Ergueu paredes, dividiu-me. 
Plantou jardins, porões, sótãos, teias. 
Quando percebi, estava cheia. 

Comecei a escavar-me.
Estou quase no  fim.
Purgando: gota a gota
Abrindo espaços dentro de mim.

APURANDO OS SENTIDOS - EM ITAPUà

Manhãs têm gosto de orvalho.
Pequenos Quixotes lutam contra ondas de espuma. 
Crianças: adultos ensaiando tsunamis. 

A tarde tem cor de sol.
Garotos pedalando na orla curvilínea. 
Adolescentes: homens ensaiando amor com suas magrelas.

A noite tem cheiro de vento.
Enamorados ensaiam pecados nos muros. 
A noite ilumina plânctons no mar. 
O amor fluoresce no escuro.

BIENAL 

Muita gente falando ao mesmo tempo 
e as palavras - mudas 
presas nos livros. 

CARTA À AMIGA 
Falando em cartas... essa escrevi há muito tempo, a uma amiga portuguesa

Estio

Perdoe a falta de assunto,
de acento
e os erros de Portugal. 

Talvez eu esteja assim
por ser outono ou nada, 
por não ser uma coisa
nem ostra,
apenas um hoje qualquer,
sem promessa de amanhã. 

Talvez só me faltem humos, 
humor, rumos, amor.

Ou quiçá essa falta de assunto
seja o estio que antecede
outra safra de cios,
Sinto tanto frio... 

FAÍSCA DE VIDA 

Fazia tempo que eu não via a lua,
não saia à rua,
não entrava na tua.

É que com o tempo,
o tempo fechou.
a neve caiu
e eu fiquei assim...
só 
a ver navios.

Não fosse o relâmpago dos teus olhos
eu nem lembraria
que um dia existiu céu.

CLARÃO DA LUA

O teu clarão entra pela janela
Invade as profundezas do meu coração
Que bate forte, feito bateria
Num concerto ao vivo, cheio de emoção

Me faz lembrar o tempo em que a vida
Era curar feridas feitas pelo amor
Em que habitavas todas as esquinas
Como lamparina a me fazer cantor

Mas que saudades da viola linda
Que te faz infinda como o céu e o mar
Das madrugadas, todas encharcadas
Com beijos de fadas, sempre a me amar

Das caminhadas pela noite adentro
Com tua presença a me acompanhar
Balet mais lindo, vinhas me seguindo
Um passo atrás do outro até quase alcançar

Estou sentindo aquela nostalgia
Parece magia, que me faz sair
Viola em punho, o sangue fervendo
Coração batendo, querendo explodir

Vem minha musa, sou teu seresteiro,
Vem, me toma inteiro, me faz recordar
Mais que amantes, éramos errantes
Sempre que o dia vinha nos matar

Mas que saudades, da viola linda
Que te faz infinda como o céu e o mar
Das madrugadas todas encharcadas
Com beijos de fadas, sempre a me amar

Minhas lembranças vão me absorvendo
E eu quase cedendo, acho que vou chorar
Não sei se vale, mas tô com vontade
De matar saudades de você, luar. 

AH MEU FILHO 

Ah... meu filho...
Quando é que você vai crescer?
Quando vai aprender
a descascar cebolas 
sem chorar por elas?

Protege esse peito do frio,
calce sapatos,
cuidado pra não se ferir
nos próprios cacos.

Quando é que você parar
de amar tanto,
deixar de ser santo
aprender a ser mau
igual àqueles que partiram,
que feriram seu coração?

Ah... Meu coração....

Quando é que vou aceitar
que você já cresceu
e não tem medo
de se machucar
feito eu? 

VOLÚVEL 

Tem hora, sou da paz.
Quero casa, casar,
morar num harém,
ser oásis, caça, 
presa, amélia, amém.

Às vezes, creio em buraco negro,
camada de ozônio, câncer no seio,
falta de hormônio, aids, escorbuto, 
mundo corrupto, degelo, desgraça,
apocalipse... Vixe!

Noutras, acho graça
do que disse. 
Quero viver mais cem anos
curtir a velhice, 
fazer planos,
artes plásticas,
ginástica,
poesia, música,
teatro, cinema,
amor...

Ontem te amei.
Hoje, não sei. 
  
SEM MEDIDAS

Quem mediu o dia
não nos conhecia,
nem sabia nada
sobre nosso amor.

Se soubesse,
não se atreveria
a findar o dia
ao amanhecer.

Hoje
vai ter tantas horas
que, quem sabe, agora
já seja amanhã.
No entanto, 
para nós,
é tão cedo ainda;
é ainda ontem;
ainda é dia,
nem anoiteceu.

Nosso amor ninguém mensura.
Dura enquanto o tempo para.
Para enquanto lua.
Lua enquanto há mar. 

Fonte:

Antonio Carlos de Faria (Cardápio Existencial)


-E se a vida for como um cardápio?

A pergunta pegou Rosinha de surpresa. Ela levantou os olhos do menu e se deparou com o marido em estado reflexivo.

-Ora, Alfredo, deixe de filosofar e escolha logo o seu prato. 

Os dois haviam saído para jantar e estavam na varanda do Bar Lagoa, de onde se pode ver um cantinho de céu e o Redentor.

-Rosinha, pense nas conseqüências do que estou dizendo. Se a vida for como um cardápio, nós talvez estejamos escolhendo errado. No lugar da buchada de bode em que nossas vidas se transformaram, poderíamos nos deliciar com escargots. Experimentar sabores novos, mais sofisticados...

-Por que a vida seria como um cardápio, Alfredo? Tenha dó.

-E por que não seria? Ninguém sabe de fato o que é a vida, portanto qualquer acepção é válida, até prova em contrário.

-Benhê, acorda. Ninguém vai aparecer para servir o seu cardápio imaginário. Na vida, a gente tem que ir buscar. A vida é mais parecida com um restaurante a quilo, self-service, entende?

-Boa imagem. Concordo com o restaurante a quilo. É assim para quase todo mundo. Mas quando evoluímos um pouco, chega a hora em que podemos nos servir a la carte. Rosinha, nós estamos nesse nível. Podemos fazer opções mais ousadas. 

-Alfredo, se você está querendo aventuras, variar o arroz com feijão, seja claro. Não me venha com essa conversa de cardápio existencial. Além disso, se a nossa vida virou uma buchada de bode, com quem você pensa experimentar essa coisa gosmenta, o tal escargot? 

-Querida, não reduza minhas idéias a uma trivial variação gastronômica. Minha hipótese, caso correta, tem implicações metafísicas. Se a vida for como um cardápio, do outro lado teria que existir o Grand Chef, o criador do menu. 

-Alfredo, fofo, agora você viajou na maionese. É o cúmulo querer reconstruir o imaginário religioso baseado no funcionamento de um restaurante. Só falta você dizer que nesse seu céu, os anjos são os garçons! 

Nesse momento, dois chopes desceram sobre a mesa. Flutuaram entre as mãos alvas, quase diáfanas, de um dos velhos garçons do Bar Lagoa.

Alfredo e Rosinha trocaram olhares de espanto e antes que pudessem dizer que ainda não haviam pedido nada, o garçom falou com voz grave:

-Cortesia da casa. Já olharam o cardápio?

Fonte:

José de Alencar (Ao Correr da Pena) 24 de setembro: O Jockey Clube e sua Primeira Corrida


(Crônicas publicadas no “Correio Mercantil”, de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de 1855, e no “Diário do Rio”, de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro do mesmo ano, ambos os jornais do Rio de Janeiro).
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Domingo passado o caminho de São Cristóvão rivalizava com os aristocráticos passeios da Glória, do Botafogo e São Clemente, no luxo e na concorrência, na animação e até na poeira. O Jockey Club anunciara a sua primeira corrida; e, apesar dos bilhetes amarelos, dos erros tipográficos e do silêncio dos jornais, a sociedade elegante se esforçou em responder à amabilidade do convite.

Fazia uma bela manhã: - céu azul, sol brilhante, viração fresca, ar puro e sereno. O dia estava soberbo. Ao longe o campo corria entre a sombra das árvores e o verde dos montes; e as brisas da terra vinham impregnadas da deliciosa fragrância das relvas e das folhas, que predispõe o espírito para as emoções plácidas e serenas.

Desde sete horas da manhã começaram a passar as elegantes carruagens, e os grupos dos gentlemen riders, cavaleiros por gosto ou por economia. Após o cupê aristocrático tirado pela brilhante parelha de cavalos do Cabo, vinha a trote curto o cabriolé da praça puxado pelos dois burrinhos clássicos, os quais, apesar do nome, davam nesta ocasião a mais alta prova de sabedoria, mostrando que compreendiam toda a força daquele provérbio inventado por algum romano preguiçoso: Festina lente.

Tudo isso lutando de entusiasmo e ligeireza, turbilhonando entre nuvens de pó, animando-se com a excitação da carreira, formava uma confusão magnífica; e passava no meio dos estalos dos chicotes, dos gritos dos cocheiros, do rodar das carruagens, e do rir e vozear dos cavaleiros, como uma espécie de sabat de feiticeiras, a começar no campo de Sant’Anna e a perder-se por baixo da sombra de meia dúzia de árvores do Prado e das tábuas sujas e carcomidas de uma barraca que por capricho chamam pavilhão, e que de velha já se está rindo das misérias do mundo.

Às 10 horas abriu-se a raia (turf), e começou a corrida com a irregularidade do costume. Os parelheiros pouco adestrados, sem o ensino conveniente, não partiram ao sinal e ao mesmo tempo, e disto resultou que muitas vezes o prêmio da vitória não coube ao jóquei que montava o melhor corredor, e sim àquele que tinha a felicidade de ser o primeiro a lançar-se na raia. A última corrida, que durou um minuto e dezenove segundos, teria sido brilhante se dois dos cavalos não se tivessem lembrado de imitar as pombinhas de Vênus, que dizem, voavam presas por um laço de amor.

A diretoria, que envidou todos os seus esforços para tornar agradáveis as novas corridas, deve tomar as providências necessárias a fim de fazer cessar estes inconvenientes, formulando com o auxílio dos entendidos um regulamento severo do turf. Convém substituir o sinal da partida por outro mais forte e mais preciso, e só admitir à inscrição cavalos parelheiros já habituados à raia.

Seria também para desejar que se tratasse de melhorar a quadra (sport) com as inovações necessárias para comodidade dos espectadores; e que desse alguma atenção à parte cômica do divertimento. Instituindo-se corridas de burrinhos e de pequiras. Nós ganhávamos com isto uma boa meia hora de rir franco e alegre, e estou certo que por esta maneira o gosto dos passatempos hípicos se iria popularizando.

A uma hora da tarde estava tudo acabado, e os sócios e convidados disseram adeus às verdes colinas do Engenho Novo, e voltaram à cidade para descansar e satisfazer a necessidade tão trivial e comum de jantar, insuportável costume, que, apesar de todas as revoluções do globo e todas as vicissitudes da moda, dura desde princípio do mundo. À tarde, aqueles que tiveram a honra de um convite foram a Saúde assistir à inauguração do Instituto dos Cegos na casa que serviu de residência do primeiro Barão do rio-Bonito.

Há muito tempo que se esperava a realização desta bela instituição humanitária, destinada a dar às pobres criaturas privadas da luz dos olhos a luz do espírito e da inteligência. Devemos esperar do zelo das pessoas a quem foi confiada a sua administração que em pouco conseguiremos resultados tão profícuos como têm obtido a França e os Estados Unidos.

A inauguração fez-se em presença de SS.MM. e de um luzido e numeroso concurso de senhoras e de pessoas de distinção, que aí se achavam animados pelo mesmo sentimento, e como para realçarem aquele ato humanitário com a tríplice auréola da majestade, da virtude e da ilustração.

Depois de tudo isto, uma bela noite sem lua, fresca e estrelada; algumas partidas no Catete, um passeio agradável ao relento, ou o doce serão da família em redor da mesa do chá; e por fim cada um se recolheu a repassar lentamente na memória os prazeres do dia, e a lembrar-se de um sorriso que lhe deram ou de uns olhos que não viu.

Entretanto a mim não me sucedeu o mesmo. Tinha-me divertido, é verdade; mas aquele domingo cheio, que estreava a semana de uma maneira tão brilhante, fazia-me pressentir uma tal fecundidade de acontecimentos, que me inquietava seriamente. Já via surgir de repente uma série interminável de bailes e saraus, um catálogo enorme de revoluções e uma cópia de notícias capaz de produzir dois suplementos de qualquer jornal no mesmo dia. E eu, metido no meio de tudo isto, com uma pena, uma pouca de tinta e uma folha de papel, essa tripeça do gênero feminino, com a qual trabalham alguns escritores modernos, à moda do sapateiro remendão dos tempos de outrora.

É uma felicidade que não me tenha ainda dado ao trabalho de saber quem foi o inventor deste monstro de Horácio, deste novo Proteu, que chamam – folhetim; senão aproveitaria alguns momentos em que estivesse de candeias às avessas, e escrever-lhe-ia uma biografia, que, com as anotações de certos críticos que eu conheço, havia de fazer o tal sujeito ter um inferno no purgatório onde necessariamente deve estar o inventor de tão desastrada idéia.

Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos, a passar do gracejo ao assunto sério, do riso e do prazer as páginas douradas do seu álbum, com toda a finura e graça e a mesma monchalance com que uma senhora volta as páginas douradas do seu álbum, com toda a finura e delicadeza com que uma mocinha loureira dá sota e basto a três dúzias de adoradores! Fazerem do escritor uma espécie de colibri a esvoaçar em ziguezague, e a sugar, como o mel das flores, a graça, o sal e o espírito que deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho!

Ainda isto não é tudo. Depois que o mísero folhetinista por força de vontade conseguiu atingir a este último esforço da volubilidade, quando à custa de magia e de encanto fez que a pena se lembrasse dos tempos em que voava, deixa finalmente o pensamento lançar-se sobre o papel, livre como o espaço. Cuida que é uma borboleta que quebrou a crisálida para ostentar o brilho fascinador de suas cores; mas engana-se: [e apenas uma formiga que criou asas para perder-se

De um lado um crítico, aliás de boa-fé, é de opinião que o folhetinista inventou em vez de contar, o que por conseguinte excedeu os limites da crônica. Outro afirma que plagiou, e prova imediatamente que tal autor, se não disse a mesma coisa, teve intenção de dizer, porque, enfim nihil sub novum. Se se trata de coisa séria, a amável leitora amarrota o jornal, e atira-o de lado com um momozinho displicente a que é impossível resistir.

Quando se fala de bailes, de uma mocinha bonita, de uns olhos brejeiros, o velho tira os óculos de maçado e diz entre dentes:”Ah! o sujeitinho está namorando à minha custa! Não fala contra as reformas! Hei de suspender a assinatura”.

O namorado acha que o folhetim não presta porque não descreveu certo toilette, o caixeiro porque não defendeu o fechamento das lojas ao domingo, as velhas porque não falou na decadência das novenas, as moças porque não disse claramente qual era a mais bonita, o negociante porque não tratou das cotações da praça, e finalmente o literato porque o homem não achou a mesma idéia brilhante que ele ruminava no seu alto bestunto.

Nada, isto não tem jeito! É preciso acabar de uma vez com semelhante confusão, e estabelecer a ordem nestas coisas. Quando queremos jantar, vamos ao Hotel da Europa; se desejamos passar a noite, escolhemos entre o baile e o teatro. Compramos luvas no Wallerstein, perfumarias no Desmarais, e mandamos fazer roupa no Dagnan. O poeta glosa o mote, que lhe dão, o músico fantasia sobre um tema favorito, o escritor adota um título para seu livro ou o seu artigo. Somente o folhetim é que há de sair fora da regra geral, e ser uma espécie de panacéia, um tratado de omni scibili et possibili, um dicionário espanhol que contenha todas as coisas e algumas coisinhas mais? Enquanto o Instituto de França e a Academia de Lisboa não concordarem numa exata definição do folhetim, tenho para mim que a coisa é impossível.

Façam idéia, estando ainda dominado por estas impressões da véspera, como não fiquei desapontado no dia seguinte, quando me fui esbarrar com a nova da chegada do paquete de Southampton, o qual parece que mesmo de propósito trouxe quanta notícia nova e velha havia lá pela Europa.

Nicolau, vendo que nada arranjava com os seus primos da Áustria e da Prússia, assentou de aliar-se com o Judeu Errante, um certo indivíduo inventado, no tempo em que ainda se inventava, e correto e aumentado no Século 19 por Eugênio Sue. Entretanto saiu-lhe a coisa às avessas, porque os ingleses e franceses com o cólera ficaram verdadeiramente coléricos e então não há mais nada que lhes resista. Tomaram Bommarsund, e é de crer que a esta hora já tenham empolgado Sebastopol.

Ao passo que eles lá no Oriente pelejam combates e batalhas para se distraírem durante a convalescença da moléstia, os Egípcios deram ao mundo uma grande lição de política constitucional a seu modo em duas palavras – pau e corda; e mostraram claramente que toda a ciência de governar está na maneira de empregar aqueles dois termos.

Se Abbas-Paxá tivesse aprendido na escola de Napoleão pequenino, em vez de mandar meter o bastão nos mamelucos para estes o enforcarem, teria usado da outra forma simbólica de governar, corda e pau, isto é, teria-os mandado enforcar num pau qualquer, e estaria agora vivo e bem disposto para mandar enforcar uma nova porção.

Políticos do mundo inteiro! Jornalistas do orbe católico! Publicistas, que desde Hugo Grocio queimais as pestanas a resolver a grande questão das formas de governo! Podeis fazer cartucho de vossos jornais, podeis vender os vossos enormes infólios para  papel de embrulho, podeis dar aos vossos pequerruchos as memórias que elaborastes para que eles se divirtam a fazer chapéu armado! Paula majora canamus! Tudo quanto escrevestes, tudo quanto meditastes não vale aquela lição simples e grande dada por dois mamelucos!

Quereis ver como a coisa está agora clara e simples? Teoria do governo constitucional – pau e corda. Teoria do governo absoluto – corda e pau. Quanto à república, como é a forma de governo simples por excelência, será simbolizada unicamente pela corda. Os democratas estão livres do bastão, e contentam-se em enforcarem-se uns aos outros como na revolução inglesa, ou a guilhotinarem-se, como têm o bom gosto de fazer os nossos vizinhos do Sul.

Além destas notícias que vos tenho referido, todas as mais, trazidas pelo paquete, não valem uma ode que nos veio também por ele, e que foi publicada no Portuense. Não se riam, nem pensem que há nisto exageração! Leiam, e depois conversaremos. É um homem obscuro, lá de um recanto de Portugal, com o nome mais antipoético do mundo, que de repente sentiu na mente uma centelha de Vitor Hugo, recebeu uma inspiração do céu, tomou uma folha de papel, e lavrou a sentença da Inglaterra com uma ironia esmagadora, com um metro enérgico e uma rima valente. Leiam, e digam-me se neste pensamento grande, nesta concepção vasta, nesta forma imponente, não há como um pressentimento, como a profecia de um acontecimento, que  talvez não esteja muito longe?

Ia-me esquecendo de outra notícia, a da aposentadoria do Sr. Delavat y Rincon, Ministro da Espanha, no caráter diplomático da missão que exercia no Brasil. Residindo entre nós há muitos anos, o Sr. D. José tem-se ligado intimamente ao Brasil, não só pelos laços de família que o prendem, como pelas atenções que sempre mostrou para com o nosso país.

Com tanta novidade curiosa chegada pelo paquete, e que oferece larga matéria à palestra e aos comentários, ainda assim não ficamos de todo livres de certas conversas divertidas, muito  usadas nos nossos círculos.

Não sabeis talvez o que é uma conversa divertida? Pois reparai, quando estiverdes nalgum ponto de reunião, prestai atenção aos diversos grupos, e ouvireis um sem-número desta espécie de passatempo, que é na verdade de um encanto extraordinário.

Uma conversa divertida – é um pretendente que vos agarra no momento em que se vai dançar, para demonstrar a vantagem da reforma das secretarias. É um médico que aproveita a ocasião em que pode ser ouvido por todos, para proclamar a probabilidade da invasão da cólera no Brasil . É um sujeito que escolhe justamente o momento da ceia, para contar casos diversos de indigestão e congestões cerebrais. É um indivíduo qualquer que se vos posta diante dos olhos, como uma trave, e vos tira a vista da vossa namorada, para perguntar-vos com voz de meio-soprano: o que há de novo?

Na primeira revisão do Código Penal é preciso contemplar estes sujeitinhos nalgum artigo de polícia correcional. Uns furtam-nos o nosso tempo, que é um precioso capital – time is money, e, o que mais é, furtam com abuso de confiança, porque se intitulam amigos; por conseguinte incorrem na pena de estelionato. Os outros são envenenadores, porque com as suas conversas de cólera e febre amarela vão minando surdamente a nossa vida com os ataques de nervos e com as terríveis apreensões que fomentam.

Enquanto, porém, aquela reforma não tem lugar, chamo sobre eles a atenção do Sr. Dr. Cunha, assim como também sobre a desordem que reina no teatro nas noites de enchente.

A princípio, um homem sentava-se comodamente para ver o espetáculo. Entenderam que isto era sibaritismo, estreitaram o espaço entre os bancos, e tiraram-nos o direito de estender as pernas.

Ainda a coisa não ficou aí: pintaram os bancos e privaram-nos do espreguiçamento do recosto. Julguei que tinham chegado ao maior aperfeiçoamento do sistema, mas ainda faltava uma última demão. Agora aqueles que querem ver ficam de pé; e os que preferem ficar sentados têm o pequeno inconveniente de nada verem. Não cabem dois provérbios num saco, diz o provérbio: ou bem ver, ou bem sentar.

Isto pode ter muita graça para a diretoria; porém aquele que compra o direito de ver, sentado e recostado, não pode sofrer semelhante defraudação. É urgente proceder-se a uma rigorosa lotação das cadeiras do teatro, e proibir a introdução de mochos e travessas. Este expediente, acompanhado da severa inspeção na venda e recepção dos bilhetes, restituirá a ordem tão necessária num espetáculo onde a presença de Suas Majestades e de pessoas gradas exige toda a circunspeção e dignidade.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

Concurso de Trovas Navegando nas Poesias – 2011 (Vencedores)


TEMA: PRESENÇA

Saibam, irmãos trovadores,
que a rosa, nos dotes seus,
muito mais que as outras flores,
tem a presença de Deus!
JOSÉ ANTONIO DE FREITAS/MG
                
Estás longe... mas nem tanto,
porque, na saudade imensa,
pela casa, em cada canto,
eu sinto a tua presença.
WANDERLEY PEREIRA GOMES/MG
                 
Mesmo em foto esmaecida,
tua imagem, sem piedade,
é presença em minha vida,
na redoma da saudade...
VANDA DE PAULA MOUTHÊ/MG

Dou-te atenção e carinho,
tu me dás indiferença,
pois, mesmo estando pertinho,
me negas tua presença.
RENATO ALVES /RJ

Um bom pai faz diferença,
com seu calor e carinho.
- É a decisiva presença,
que ao filho aponta o caminho!
A. A. DE ASSIS/PR

A tua presença, amado!
É tão forte, tão marcante,
que estarás sempre ao meu lado
mesmo que estejas distantes.
[+} FRANCISCO DAS NEVES MACEDO/ NATAL/RN

Fonte:
Agostinho Rodrigues. Editor de Alternativo Navegando nas Poesias
Nº 154 – abril de 2012

Nilto Maciel (Tonho França: o adeus do cais)


Eu não deveria iniciar esta crônica com um chavão, mas não temerei a cara feia de ninguém: A Internet é uma maravilha. Pronto, está escrito o chavão. E por que isto?  Porque, não fosse a Internet, eu não teria conhecido dezenas de escritores. Ora – dirão os eternos insatisfeitos –, muitos não valem nada, não sabem escrever, são uns principiantes. Pois tenho tomado conhecimento de centenas de bons escritores, primeiro na tela do computador, depois em livros. Esta semana foi a vez de Tonho França, que mora em Guaratinguetá, São Paulo, nasceu em 1965, publicou quatro obras e, com outro jovem escritor, Wilson Gorj, criou a Editora Penalux. (No prelo, mais um manuscrito meu. Umas memórias literárias. Porém, isto é assunto para depois).

             Não fosse o prazer de conhecer escritores jovens ou velhos, a Internet ainda me deu (e dará) a felicidade de me aproximar de pessoas maravilhosas. Sem ela, não teria me abeirado de Sofia Correia. Conto como foi: Acordei um dia cedinho (costumo sair da cama com o sol a meio caminho do zênite), liguei o computador e fiz uma busca: Sophia Loren. Por que isso? Porque horas antes tivera um sonho: encontrava-me com a atriz em Roma. Caminhávamos pela Via Appia, chovia fininho, fazia frio, era noite. Súbito, aparecia um sujeito com cara de Marlon Brando jovem e se punha a me chamar de vagabondo, plebeo, gaglioffo. E eu despertava. Como observou o eterno William, pelos lábios de Hamlet: 

“There are more things in heaven and earth, Horatio, 
Than are dreamt of in your philosophy”. 

Pois não é que outra Sofia me apareceu naquela mesma manhã? Assim: deixei a Loren de lado e passei ao correio eletrônico (todo dia leio primeiro as mensagens de meus amigos e da gente nova, depois de deletar as armadilhas dos hackers). E lá se achava, na primeira linha, certa Sofia Correia. Em três dias de mensagens curtas, eu já sabia trinta curiosidades dela: amava os Beatles e os Rolling Stones, lia Julio Cortázar todo dia, gostava muito de meus “textos”, tinha uma cadela chamada Teresa, etc.

Volto ao assunto principal desta crônica: recebi semana passada, de Tonho França, seu mais novo rebento: O bebedor de auroras (Rio de Janeiro: Futurarte Poesias, julho de 2009). A capa, de Luiza Romar (em azul, preto, branco e amarelo), é um primor. O prefácio vem de meu amigo Tanussi Cardoso. O impresso tem 80 páginas: versos, prefácio, posfácio (de Igor Fernandes), sumário, etc. Li-o em seis dias, entre um gole de Hamlet e um naco de Cortázar. No sétimo dia, deu-se o pecado: a menina dos Rolling Stones surgiu em traje de ninfeta aos meus olhos cansados de letras. E pus-me a ler para ela os tantras de Tonho França: “Na soleira, deixo minhas rotas e meus mapas antigos”. Ela bateu palmas: O viajante, o explorador, o aventureiro, o poeta que parte livre. Sim, deve ser isso – exaltei-me, e corri à geladeira para lhe trazer suco de uva. Ela pediu para ler em voz alta: 

“Não percebo mais minha estrela polar 
e todas as preces que sabia”. 

Tentei dar uma opinião. Ela me fez calar e eu me embasbaquei. Pensei: Para que servem guias e pedidos de proteção? Ela continuou a leitura, enquanto molhava os lábios de roxo: 

“A mesma xícara de todos os dias 
onde me sirvo numa entrega plena, completa 
num ritual todo íntimo 
como cabe à solidão e ao poeta”. 

Pensei em fugir. Fiquei e balbuciei: Eu não disse? 

Deixo de novo a doçura de lado e me atenho ao que Tanussi Cardoso anotou (a essência da arte de Tonho): “Distanciando-se de um tipo de poesia, ora anódina e de conteúdo inócuo, ou de uma outra, que considera a realidade objetiva como tese de poesia e não de prosa, os poemas de Tonho França têm a propriedade de iluminar o cotidiano”.

De volta à realidade, sugeri a Sofia uma leitura mais amena, como o “Cântico dos cânticos” de Salomão. Ela recusou a troca: Hoje prefiro este poeta. E voltou a ler: 

“Tenho nas mãos uma lua e duas moedas antigas 
brinco de jogar pedrinhas”. 

Fiz nova interrupção: É a brincadeira, a infância, a pureza, que é poesia, que é metáfora. Ela fechou o volume: E há poesia sem pureza? Sim, há. Pois o que é o absurdo, o “demoníaco”, o inaceitável? Ela se levantou do sofá: Este poeta prefere ser divino e, ao mesmo tempo, visível. Abriu de novo o tomo: 

“o vento que toca em meus cabelos longos 
é íntimo conhecedor de destinos”. 

Olhei para o céu, pela porta entreaberta: Ora, pois, é o vento (são os ventos) quem nos conduz.

Quando ela se retirou, reli o prefácio de Tanussi: O bebedor de auroras “tem certos motivos preponderantes: emoção à flor da pele, poemas autobiográficos, preocupação existencial e social, visão ambígua do cotidiano, musicalidade, boa escolha vocabular, imaginação vertiginosa, a imensa solidão do poeta, o fazer literário, e uma eterna ‘viagem’ como símbolo abstrato de uma liberdade, mais sensorial do que real, em que o poeta se debate, entre ‘estrelas e luares’ e o caos urbano”. Ufa! Sim, ufa. No entanto, era isto o que eu queria dizer.

Não sei se por culpa de Sofia, saí da leitura de O bebedor de auroras como quem entra num outro mundo, numa outra dimensão. Como se tivesse morrido e aqui estivesse para constatar a enorme diferença entre vida e morte, entre ser e não-ser, entre o real e o sensorial. Lembro-me de ter lido para ela: 

“Há os que precisam ancorar 
Há os que desejam se perder”. 

E ela comentou, muito séria: Chegar e partir. Aportar ou sair aos mares. Li trecho do posfácio de Igor Fagundes: “Tonho França parece bastante ciente de que a poesia, então, não é uma fuga à realidade, a um reino da fantasia que se lhe opõe, mas, arrebatadoramente, significa o encontro intensivo como o que, na realidade, persevera com sua potência e vigor”.  

Encerramos aquela tarde (eu ia dizer fagueira, mas pareceria tão fora de moda o adjetivo, que me calo) com mais versos de Tonho: “Um ponto no horizonte, as dores nunca mais, / Quem dera pudesse, o adeus do cais...”

A fagueira (agora ouso usar este romântico adjetivo) Sofia Correia, tão adornada de rubros lábios, se despediu de mim e saiu. Guardei os saltérios de Tonho numa estante e fui dormir. Talvez sonhasse com Sophia Loren, sem Marlon Brando por perto.

Fortaleza, 3 de outubro de 2012.

Fonte: