sábado, 5 de janeiro de 2013

Mitos e Lendas (A Raposa e as Aves)


Contam que um dia a galinha estava ciscando embaixo de uma goiabeira quando lhe caiu uma goiaba na cabeça. A galinha levou um susto tremendo e gritou: 

— Có-có-có-có! Vamos fugir amigo galo! O mundo está acabando! 

— Quem lhe disse isso? — perguntou o galo. 

— Foi uma coisa que caiu no meu cocuruto — E os dois saíram correndo como doidos. Mais adiante encontraram o peru, o o galo disse: 

— Corra, amigo peru. O mundo está acabando! 

— Quem lhe disso isso, amigo galo?

— Foi a amiga galinha.

— E quem disse à amiga galinha?

— Foi uma coisa que caiu na cabeça dela.

Os três saíram correndo. Um pouco mais adiante encontraram o pato, e o peru convidou-o a correr, contando-lhe a história. O pato juntou-se a eles e correu também. Depois encontraram o ganso, a marreca, a saracura e outras aves e todos seguiram na carreira, até encontrarem a raposa.

— Fuja, amiga raposa! O mundo está se acabando!

— Quem lhe disse isso, amiga saracura?

— Foi a amiga marreca.

— Que lhe disse isso, amiga marreca?

— Foi o amigo ganso.

— Quem lhe disse isso, amigo ganso? 

— Foi o amigo pato.

Assim, de um em um, até chegar à galinha, que respondeu:

— Foi uma coisa que caiu no meu cocuruto.

— Então, vamos. Venham comigo — disse a raposa. E todos se puseram a correr de novo, até chegarem à casa da raposa.

— Entrem na minha casa e fiquem escondidos, — disse ela, parando à porta. Passado algum tempo, a raposa falou:

— Acho que não há mais perigo, mais é preciso cuidado. Agora, venham saindo, mais, um a um, quando eu chamar.

E ela ia chamando, um a um e comendo um a um... Não sobrou nada. Já vê que o mundo acabou mesmo para eles. A galinha tinha razão.

Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Machado de Assis (A Crítica Teatral. José de Alencar: Mãe)


ESCREVER crítica e crítica de teatro não e só uma tarefa difícil, é também uma empresa arriscada.

A razão é simples. No dia em que a pena, fiel ao preceito da censura, toca um ponto negro e olvida por momentos a estrofe laudatória, as inimizades levantam-se de envolta com as calúnias. Então, a crítica aplaudida ontem, é hoje ludibriada, o crítico vendeu-se, ou por outra, não passa de um ignorante a quem por compaixão se deu algumas migalhas de aplauso.

Esta perspectiva poderia fazer-me recuar ao tomar a pena do folhetim dramático, se eu não colocasse acima dessas misérias humanas a minha consciência e o meu dever. Sei que vou entrar numa tarefa onerosa; sei-o, porque conheço o nosso teatro, porque o tenho estudado materialmente; mas se existe uma recompensa para a verdade, dou-me por pago das pedras que encontrar em meu caminho.

Protesto desde já uma severa imparcialidade, imparcialidade de que não pretendo afastar-me uma vírgula simples revista sem pretensão a oráculo, como será este folhetim, dar-lhe-ei um caráter digno das colunas em que o estampo. Nem azorrague, nem luva de pelica; mas a censura razoável, clara e franca, feita na altura da arte da crítica.

Estes preceitos, que estabeleço como norma do meu proceder, são um resultado das minhas idéias sobre a imprensa, e de há muito que condeno os ouropéis da letra redonda, assim como as intrigas mesquinhas, em virtude de que muita gente subscreve juízos menos exatos e menos de acordo com a consciência própria. Se faltar a esta condição que me imponho, não será um atentado voluntário contra a verdade, mas erro de apreciação.

As minhas opiniões sobre o teatro são ecléticas em absoluto. Não subscrevo, em sua totalidade, as máximas da escola realista, nem aceito, em toda a sua plenitude, a escola das abstrações românticas; admito e aplaudo o drama como forma absoluta do teatro, mas nem por isso condeno as cenas admiráveis de Corneille e de Racine.

Tiro de cada coisa uma parte, e faço o meu ideal de arte, que abraço e defendo. Entendo que o belo pode existir mais revelado em uma forma menos imperfeita, mas não é exclusivo de uma só forma dramática. Encontro-o no verso valente da tragédia, como na frase ligeira e fácil com que a comédia nos fala ao o espírito.

Com estas máximas em mão — entro no teatro. É este o meu procedimento; no dia em que me puder conservar nessa altura, os leitores terão um folhetim de menos, e eu mais um argumento de que cometer empresas destas, não é uma tarefa para quem não tem o espírito de um temperamento superior.

Sirvam estas palavras de programa.

Se eu quisesse avaliar a nossa existência moral pelo movimento atual do teatro, perderíamos no paralelo. Ou influência ou estação, ou causas estranhas, dessas que transformam as situações para dar nova direção às coisas, o teatro tem caminhado por uma estrada difícil e escabrosa.

Quem escreve estas palavras tem um fundo de convicção, resultado do estudo com que tem acompanhado o movimento do teatro; e tanto mais insuspeito, quanto que é um dos crentes mais sérios e verdadeiros desse grande canal de propaganda. Firme nos princípios que sempre adotou, o folhetinista que desponta, dá ao mundo, como um colega de além-mar, o espetáculo espantoso de um crítico de teatro que crê no teatro. E crê: se há alguma coisa a esperar para a civilização é desses meios que estão em contacto com os grupos populares. Deus me absolva se há nesta convicção uma utopia de imaginação cálida.

Estudando, pois, o teatro, vejo que a atualidade dramática não é uma realidade esplêndida, como a desejava eu, como a desejam todos os que sentem em si uma alma e uma convicção. Já disse, essa morbidez é o resultado de causas estranhas,
inseparáveis talvez — que podem aproximar o teatro de uma época mais feliz.

Estamos com dois teatros em ativo; uma nova companhia se organiza para abrir em pouco o teatro Variedades; e essa completará a trindade dramática. No meio das dificuldades com que caminha o teatro, anuncia-se no Ginásio um novo drama original brasileiro. A repetição dos anúncios, o nome oculto do autor, as revelações dúbias de certos oráculos, que os há por toda parte, prepararam a expectativa pública para a nova produção nacional.

Veio ela enfim.

Se houve verdade nas conversações de certos círculos, e na ânsia com que era esperado o novo drama, foi que a peça estava acima do que se esperava. Com efeito desde que se levantou o pano o público começou a ver que o espírito dramático, entre nós, podia ser uma verdade. E quando a frase final caiu esplêndida no meio da platéia, ela sentiu que a arte nacional entrou em um período mais avantajado de gosto e de aperfeiçoamento.

Esta peça intitula-se Mãe.

Revela-se à primeira vista que o autor do novo drama conhece o caminho mais curto do triunfo; que, dando todo o desenvolvimento à fibra da sensibilidade, praticou as regras e as prescrições da arte sem dispensar as sutilezas de cor local.
A ação é altamente dramática; as cenas sucedem-se sem esforço, com a natureza da verdade; os lances são preparados corri essa lógica dramática a que não podem atingir as vistas curtas.

Altamente dramática é a ação, disse eu; mas não pára aí; também altamente simples. Jorge é um estudante de medicina, que mora em um segundo andar com uma escrava apenas — a quem trata carinhosamente e de quem recebe provas de um afeto inequívoco. No primeiro andar, moram Gomes, empregado público, e sua filha Elisa. A intimidade da casa trouxe a intimidade dos dois vizinhos, Jorge e Elisa, cujas almas, ao começar o drama, ligam-se já por um fenômeno de simpatia.

Um dia, a doce paz, que fazia a ventura daquelas quatro existências, foi toldada por um corvo negro, por um Peixoto, usurário, que vem ameaçar a probidade de Gomes com a maquinação de um trama diabólico e muito comum, infelizmente, na humanidade. Ameaçado em sua honra, Gomes prepara um suicídio que não realiza; entretanto, envergonhado por pedir dinheiro, porque com dinheiro removia a tempestade iminente, deixa à sua filha o importante papel de salvá-lo e salvar-se.

Elisa, confiada no afeto que a une a Jorge vai expor-lhe a situação; esse compreende a dificuldade, e, enquanto espera a quantia necessária do Dr. Lima, um caráter nobre da peça, trata de vender, e ao mesmo Peixoto, a mobília de sua casa. Joana, a escrava, compreende a situação, e, vendo que o usurário não dava a quantia precisa pela mobília de Jorge, propõe-se a uma hipoteca; Jorge repele ao princípio o desejo de sua escrava, mas a operação tem lugar, mudando unicamente a forma de hipoteca para a de venda, venda nulificada desde que o dinheiro emprestado voltasse a Peixoto.

Volta a manhã serena depois de tempestade procelosa; a probidade e a vida de Gomes estão salvas. Joana, podendo escapar um minuto a seu senhor temporário, vem na manhã seguinte visitar Jorge. 

Entretanto o Dr. Lima tem tirado as suas malas da alfândega e traz o dinheiro a Jorge. Tudo vai, por conseguinte, voltar ao seu estado normal. Mas Peixoto, não encontrando Joana em casa, vem procurá-la à casa de Jorge, exigindo a escrava que havia comprado na véspera. O Dr. Lima não acreditou que se tratasse de Joana, mas Peixoto, forçado a declarar o nome, pronuncia-o. Aqui a peripécia é natural, rápida e bem conduzida; o Dr. Lima ouve o nome, dirige-se para a direita por onde acaba de entrar Jorge.

— Desgraçado, vendeste tua mãe!

Eu conheço poucas frases de igual efeito. Sente-se uma contração nervosa ao ouvir aquela revelação inesperada. O lance é calculado com maestria e revela pleno conhecimento da arte no autor.

Ao conhecer sua mãe, Jorge não a repudia; aceita-a em face da sociedade, com esse orgulho sublime que só a natureza estabelece e que faz do sangue um título. Mas Joana, que forcejava sempre por deixar corrido o véu do nascimento de Jorge, na hora que este o sabe, aparece envenenada. A cena é dolorosa e tocante, a despedida para sempre de um filho, no momento em que acaba de conhecer sua mãe, e por si uma situação tormentosa e dramática.

Não é bem acabado este tipo de mãe que sacrifica as carícias que poderia receber de seu filho, a um escrúpulo de que a sua individualidade o fizesse corar. 

Esse drama, essencialmente nosso, podia, se outro fosse o entusiasmo de nossa terra, ter a mesma nomeada que o romance de Harriette Stowe — fundado no mesmo teatro da escravidão. Os tipos acham-se ali bem definidos, e a ligação das frases não pode ser mais completa. O veneno que Joana bebe, para aperfeiçoar o quadro e completar o seu martírio tocante, é o mesmo que Elisa tomara das mãos de seu pai, e que a escrava encontrou sobre uma mesa em casa de Jorge, para onde a menina o levara.

Há frases lindas e impregnadas de um sentimento doce e profundo; o diálogo é natural e brilhante mas desse brilho que não exclui a simplicidade, e que não respira o torneado bombástico.

O autor soube haver-se com a ação, sem entrar em análise. Descoberta a origem de Jorge, a sociedade dá o último arranco em face da natureza, pela boca de Gomes, que tenta recusar sua filha prometida a Jorge.

Repito-o: o drama é de um acabado perfeito, e foi uma agradável surpresa para os descrentes da arte nacional. Ainda oculto o autor, foi saudado por todos com a sua obra; feliz que é, de não encontrar patos no seu Capitólio. A Sr.ª Velluti e o Sr. Augusto disseram com felicidade os seus papéis; a primeira, dando relêvo ao papel de escrava com essa inteligência e sutileza que completam os artistas; o segundo, sustentando a dignidade do Dr. Lima na altura em que a colocou o autor. A Sr. ª Ludovina não discrepou no caráter melancólico de Elisa; todavia, parecia-me que devia ter mais animação nas suas transições, que é o que define o claro-escuro. O Sr. Heller, pondo em cena o caráter do empregado público, teve momentos felizes, apesar de lhe notar uma gravidade de porte, pouco natural, às vezes.

Há um meirinho na peça desempenhado pelo Sr. Graça, que corno bom ator cômico, agradou e foi aplaudido. O papel é insignificante, mas aqueles que têm visto o distinto artista, adivinham o desenvolvimento que a sua veia cômica lhe podia dar. Jorge foi desempenhado pelo Sr. Paiva que, trazendo o papel a altura de seu talento, fez-nos entrever uma figura singela e sentimental. O Sr. Militão completa o quadro com o papel de Peixoto, onde nos deu um usurário brutal e especulador.

A noite foi de regozijo para aqueles que, amando a civilização pátria , estimam que se faça tão bom uso da língua que herdamos. Oxalá que o exemplo se espalhe. 

Na próxima revista tocarei no teatro de S. Pedro e no das Variedades, se já houver encetado a sua carreira. Entretanto, fecho estas páginas, e deixo que o leitor, rigor da estação, vá descansar um pouco, não à sombra como Títiro, mas entre os nevoeiros de Petrópolis, ou nas montanhas da velha Tijuca.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Raimundo Fontenele (Poesias Avulsas)


O DOM DE SER DE NOVO

 Como num passe de mágica
 vi-me posto de joelhos adorando uma paisagem.
 Todas as estrelas eram azuis
 e o céu era azul e assim era a vida.
 Aquela água cristalina e verde entre montanhas,
 aquele verde de Deus doendo em nossos olhos,
 aquele murmúrio de pássaros,
 leves plumas, algodão nos lábios passeando,
 ó alegria do mundo!, glória única entre os homens.
 E a paz guardada num coração de cofre.
 E os animais com seus passeios divinos.
 Água dos rios, mar de lágrimas oceânicas,
 piano e voz, é esse o criador que tudo faz.
 Você que me trouxe ao mundo e me deu voz
 para falar, e cantar e gritar: vida é isso aqui.
 Nuvens com chuva pra ninguém chorar.
 Fogo nas montanhas para seguirmos viagem.
 Pasto pros animais. Mundo verde, mineral.
 Ponte e abismo pra sairmos da lama.
 Deu-nos o dom dos salmos para dizermos verdades,
 deu-nos o ar nos pulmões pra respirarmos em uníssono
 e suspirarmos, depois, de amor e de lembranças.

OS DOMINGOS

 Domingo sozinho é pára-raios
 de lágrimas. E chove como nunca nessas flores,
 o dia amanhecendo com seus galos.

 Há barulhos estranhos pela casa.
 Um livro de Vallejo e uma faca
 com a qual devo arrancar meu coração para
 ofertar-te : um peixe pulando sobre a mesa.

 Toda ferida acesa. Todo o céu maculado.
 Embaçado amor, corrente de amarrar doido
 que não me deixa correr ao teu encontro.
 É tudo que leio e vejo.

Fonte:
Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante. Ano XI. Edição 269. 9 junho 2012.

Raimundo Fontenele (64 anos de nascimento 42 anos de poemas)


Artigo de Alberico Carneiro

 Raimundo Fontenele nasceu em Predeiras, MA. Em sua trajetória de mais de quatro décadas de publicações, ele nos lega uma obra literária que é causa de orgulho a todos quantos, dentre os maranhenses, levam a sério o reconhecimento do nome do Maranhão como terra de excelentes artistas. E quando dizemos terra de artistas, estamos falando em algo com letra maiúscula, para que o povo não confunda a palavra artista com a mesma que se usa para designar pessoas que, com suas atividades, promovem apenas distração, diversão ou entretenimento, o que, sem dúvida já é alguma coisa, mas não é a mesma coisa. Assim, quando dizemos terra de excelentes artistas, estamos nos referindo a uma São Luís que pode se orgulhar de pessoas que aspiram a dar ao Maranhão um lugar de destaque, como o fazem Ferreira Gullar ou Zeca Baleiro, por exemplo.

 A obra literária de Raimundo Fontenele não se constitui de inúmeros livros, mas o conjunto de textos que ele assina o impõe como uma das mais expressivas referências da poesia maranhense escrita a partir da década de 1970 aos dias atuais.

 Irreverente, ousado, transgressor, não é um poeta de concessões, louvores, marca quase comum de inúmeros escritores que tanto envergonham a classe, nesta província. A mediocridade sempre carrega consigo esse estigma maldito.

 A poética de Raimundo Fontenele não se parece com os textos de ninguém de sua geração. É um poeta marginal ou, conforme melhor se diz, maldito, desses cujos poemas sempre causam estranhamento e espanto aos leitores acostumados com a contemplação do cultivo de hortas, jardins e pomares paradisíacos, onde não penetrou a insídia da conspiração, da obliquidade e do olhar que lê o amor e o revela como a senda do prazer e da dor. Por isso, já os textos de Fontenele selecionados para a antologia Antroponáutica, publicada pelo então Departamento de Letras, de São Luís, em 1972, estavam marcados por aquela dicção de um poeta que optava pelo desvio do lugar comum, ocupado por aqueles que preferem repetir os passos seculares de uma tradição herdada e, não, de uma tradição marcada pela rebeldia, própria de poucos que fizeram ou fazem o caminho sangrando as mãos, os pés e as mentes.

 Claro que a aparição desse poeta, em livro, já em 1970, com Chegada Temporal, causou espécie, incomodou a crítica oficial, conquistou a indiferença dos meios acadêmicos. Tratava-se de um poeta que, no mínimo, rompia com a linha tradicional dos conteúdos poéticos, em se tratando essencialmente de uma linguagem que procurava se impor, transgredindo, rompendo, negando. Sim, uma linguagem que se permitia, metalinguisticamente, criticar a tradição, negar a tradição, dizer que a poesia, em essência está além de cânones, estando muito mais na beleza que se expressa melhor através do fluxo natural dos dados imediatos do inconsciente, detonando os padrões de beleza clássica universal.

 E como a tradição não aceita de graça quem ousa se desenraizar e desfamiliarizar, escritores como Raimundo Fontenele sempre pagam um preço doloroso pela autenticidade da produção de uma obra literária que se quer afirmar sem o selo e a chancelaria de uma sintaxe normativa, já que a finalidade primeira desse tipo de poeta é explodi-la.

 Recebi sempre com surpresa, entusiasmo e orgulho os livros que Raimundo Fontenele tem publicado. Cada vez que ele quebrou uma telha, rasgou livros dos medíocres, detonou um sobradão colonial, fez ajoelharem-se os políticos ladrões e hipócritas e os sentenciou à pena de exílio do convívio social, lá eu me senti em comunhão com ele, cúmplice do mesmo santo e abençoado crime que tanto nos irmana, quando se trata de chutar, quebrar, destruir, eliminar todos, que são poucos gatunos, quantos impedem a humanidade de partilhar dos bens e dons da vida, conferidos a todos nós pelo Criador. Sim, a elite dos abomináveis eleitos do Diabo, que aliena o público no particular.

 Então, com imenso prazer releio Chegada Temporal, 1970; Às mãos do dia, 1972; Venenos, 1994; Marginais, 2001, dentre outros.

 Hoje, ele nos surpreende, entusiasma e enche de orgulho mais uma vez, com o lançamento simultâneo de duas obras-primas – estes antológicos O troglodita e Amores.

 É como um coroamento de uma viagem do poeta em sua circunavegação por São Luís e em exílio. Exílio porque quem verdadeiramente se pode tornar um artista de nome, vivendo aqui nesta província? Meu Deus, raras e honrosas exceções. Costumamos dizer, ficando aqui é melhor morar aqui, mas viver em outros lugares, vivendo aqui. É possível esse milagre?

 Certo é que, com os dois últimos livros, o poeta Raimundo Fontenele confirma a conquista de uma poesia forte, humana, singularmente, genial. Como poucos ele vem sabendo se impor pelo bom uso do talento que recebeu ao nascer. A maioria joga tudo fora, ou na primeira lixeira de bandalheiras que descobrem nos cérebros. 

Fontes:
Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante. Ano XI. Edição 269. 9 junho 2012.
Foto: http://www.editoraalcance.com.br 

Jornais e Revistas do Brasil (Hierarchia)

Período disponível: 1931 a 1932
Local: Rio de Janeiro, RJ

Hierarchia foi uma revista de política, economia, cultura e questões sociais lançada no Rio de Janeiro (RJ) em agosto de 1931, tendo Lourival Fontes como diretor e Rodolfo Carvalho como diretor-comercial e diretor-secretário. A redação era na rua Teophilo Ottoni, passando depois para o nº 110 da Avenida Rio Branco (uma sala no prédio do Jornal do Brasil), e, já em 1932, para o nº 23 da praça Marechal Floriano, onde então funcionava a Casa Allemã.

Lourival Fontes se tornaria mais tarde diretor do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural – que mais tarde se tornaria o famoso Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão responsável também pela censura durante a ditadura do Estado Novo – e chefe do Gabinete Civil da Presidência da República. Admirador, tal como muitos quadros do governo Vargas, do Estado fascista, Lourival Fontes imprimiria à publicação um conteúdo nacionalista, antiliberal e anticomunista, o mesmo atribuído a sua congênere Política, também por ele fundada.

Em formato de livro e com 128 a 166 páginas, a revista era feita em duas colunas e dividida em seções. "Artigos Especiaes", a seção principal, tratava de temas como ensino religioso e ensino leigo, fascismo, diretrizes sociais do Brasil, família e divórcio, centralização e federação, economia, architetura, organisação nacional e defesa militar, democracia. Algumas de suas seções permanentes eram "O mez internacional" e "Revista dos llvros". Os artigos eram, em geral, longos e densos.

Entre os temas mais explorados estavam os rumos políticos do Brasil, a identidade nacional, questões relativas ao fascismo (concepção de Estado, relação com o catolicismo, organização sindical etc), economia e finanças do país, nacionalismo, democracia e corporativismo, política internacional, paz mundial, educação, ensino moral e religioso, família (ver "A família e o divórcio", no nº 2), relações entre Igreja e Estado, estudos sociológicos sobre o Brasil, questões militares, conflitos armados no mundo, eugenia e “limpeza étnica” (como o artigo "A primazia da educação hygienica e eugenica escolar", de Belisário Penna, no nº 2), cultura brasileira, literatura, belas artes (como o artigo de Cândido Portinari no nº 5, mar. e abr., 1932), paralelos entre o Brasil e a Rússia soviética, industrialismo, crise econômica mundial, direitos do operariado, federalismo no Brasil, saúde pública, arquitetura, figuras políticas de destaque, questões agrárias, direitos políticos femininos (nº 5), liberdade de imprensa, turismo etc.

Colaboram nas poucas edições da revista: Antônio José Azevedo Amaral, anos depois responsável pelas revistas Diretrizes e Novas Diretrizes, Sérgio Buarque de Hollanda, Plínio Salgado, Alceu Amoroso Lima (que assinava Tristão de Athayde), Cândido Portinari, Christóvam de Camargo, José Maria Bello, Oliveira Vianna, Octavio de Faria, Heráclito Sobral Pinto, Hélio Vianna, Bezerra de Freitas, Moacyr Pompéa, Alberto Gonçalves, Reis Carvalho, o padre Galdino Moreira, padre Leonel Franca, Mattos Pimenta, José Augusto, Luiz Schnoor, Mendes Fradique, Ildefonso Albano, Fábio Sodré, Povoas de Siqueira, Samuel Torres Videla, Saboya de Medeiros, Ribas Carneiro, Gilberto Amado, Belisário Penna, Anísio Teixeira, Fernando Magalhães, Francisco de San Tiago Dantas, Gustavo Lessa, A. Carneiro Leão, Gennaro Vidal, Pandiá Calógeras, Madeira de Freitas, Pantoja Leite, Bernardo Lichtenfels Júnior, Osório Lopes, Belmiro Valverde, Lino Piazza, Ítalo Balbo, Rego Lins, Geraldo Vieira, Basílio de Magalhães, Everardo Backheuser, João Neves da Fontoura, Levi Carneiro, Agenor de Roure, Vital Brasil, Vicente Licínio Cardoso, Arthur Torres Filho, Aguinaldo Rocha Lima, Graccho Cardoso, Ronald de Carvalho, Nicanor Nascimento, Sebastião Pagano, Daniel de Carvalho, João Prestes, Américo Silvado, Arthur Guimarães, R. P. Motta Lima, Hermínio Conde, Olbiano de Mello, Mesquita Pimentel, Paulo da Silveira, Arlindo de Assis, Waldir Niemeyer, Azevedo Lima, George Readers, Janine Boissounouse, além de Rodolfo Carvalho e Lourival Fontes.

A periodicidade oscilou entre bimestral e irregular. O nº 1 foi lançado em agosto de 1931, ao passo que o nº 2 data de outubro de 1931, o nº 4 de janeiro-fevereiro de 1932 e o nº 5, o último publicado, de março-abril de 1932. Esta 5ª edição foi a última.


Fonte
http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/hierarchia

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 28 de outubro de 1855: Sem Inspiração


(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)

Estava sem inspiração, o que me sucede muita vez.

Abri um livro, nem me lembra que livro era.

A primeira palavra que vi foi em latim; era um provérbio:

Res est magna tacere.

Façam idéia, pois, que impressão podia produzir uma semelhante máxima num espírito que procurava inspirações.

Quando eu desejava um tema para falar, - e falar mais do que uma moça que discute modas, ou um ministro que falta a uma promessa, - salta-me pela frente a sabedoria romana, e manda-me calar da maneira mais impertinente.

Ora para um folhetinista que não quer absolutamente indispor-se com os sábios, não havia remédio senão obedecer.

Resolvi portanto calar-me.

A resolução era a mais prudente, e também a mais cômoda possível mas tinha um inconveniente.

Os meus leitores, e sobretudo as minhas maliciosas leitoras, eram muito capazes de supor que me calava por não ter nada que dizer.

Isto seria uma quebra para a minha reputação de folhetinista; seria uma falta imperdoável para aqueles que julgam que o espírito de um escritor de revista deve ser uma esponja que durante a semana se embebeda e sature de idéias, e que ao domingo se esprema no papel, e deite uma chuva de bonitos pensamentos e lembranças graciosas.

Ora, apesar de não pretender a glória desta comparação polipiana, contudo o meu amor-próprio não podia consentir que me visse decaído das boas graças do leitor por causa de três palavras latinas.

E três palavras latinas que eram por si mesmas uma mentira e uma contradição; porque, se o tal sábio (Salomão ou Sócrates) estivesse bem convencido da utilidade de calar-se, não teria a indiscrição de falar e dizer aquelas palavras: Res est magna tacere.

Mas é que todos os sábios deste mundo são assim; pregam muito boas máximas, excelentes conselhos, e eles são os primeiros que fazem o contrário, e que dão o mau exemplo.

Tudo isto porém nada tem com a questão; o que é verdade é que me achava na mais difícil posição do mundo; por um lado a prudência e a sabedoria mandavam que me calasse, por outro o leitor e o público exigiam que falasse e escrevesse.

Se houvesse um meio de combinar as duas coisas, e ficar com ambas, seria para mim um salvatério.

Mas ainda estou pouco ao fato destes meios empregados por certos jornalistas e certos políticos, novos Janos da civilização que passam pela sociedade, sorrindo para um e outro lado com cada um dos cantos da boca.

Não me restava pois senão um expediente, e foi o que decidi-me a adotar.

Era preciso calar-me, visto que os sábios o ordenavam; mas, calando-me, restava-me o direito de dizer ao menos os assuntos diversos sobre que me calava.

Assim nem incorro na censura de falador, nem também se pode dizer que não tenho matéria sobre que escrever.

Uma das primeiras coisas sobre que eu me calo é sobre a questão atual da farinha de trigo, sobre a questão do pão.

Com efeito, poucas matérias são tão importantes como esta, que afeta geralmente a todos os diversos interesses da sociedade.

Os pobres e os ricos, os empregados, os ministros, os pretendentes, os confeiteiros, os gastrônomos, as senhoras, o país, a colonização, a estatística, enfim tudo tem uma relação imediata com esta grande questão.

Isto exige uma explicação.

Ei-la:

Há diversas espécies de pão: o pão branco e o pão de rala, o pão-de-ló, o pão d’ouro, e muitas outras espécies menos importantes; há igualmente uma espécie indefinida, genérica, ainda não caracterizada, e que se exprime ordinariamente pelo simples termo – o pão.

Esta última espécie é a mais importante; todos trabalham para ganhar o pão; o pobre muitas vezes não tem o pão para a boca; e o operário vê-se obrigado a regar o pão com o suor do seu rosto.

Já se vê que este pão não é feito nos fornos e nem se compõe de fermento, e que por conseguinte não é o preço da farinha de trigo ou uma padaria central e privilegiada que o tornarão mais fácil para o pobre.

Este pão é o pão do trabalho, do trabalho ativo, honesto e inteligente a que todo o pobre deve dedicar-se com amor, deixando os hábitos de indolência e os vícios, que quase sempre são a causa única da miséria.

Esta espécie pois exige do governo não só uma proteção à indústria do país, como uma política ativa e regular, com as competentes casas de detenção, necessárias para o trabalho dos velhos e mendigos.

A questão do pão-de-ló tem grande interesse também: este pão é muito saboroso e muito suave ao paladar, mas por isso mesmo é um pouco mais caro do que os outros.

Dizem que o pão-de-ló – higienicamente falando – é um pouco indigesto; mas a experiência tem mostrado o contrário: há estômagos que digerem um número extraordinário de boas fatias.

A respeito desta espécie já pusemos em prática o sistema francês da administração municipal da boulangerie parisienne.

Temos uma padaria central ou nacional, e diversas padarias provinciais, onde se fabrica excelente pão-de-ló, que se distribui conforme o estômago de cada um.

Esta organização precisa de uma reforma radical, que demanda longos estudos e muita prudência e reflexão da parte do governo.

Vejam pois que tinha razão quando disse que a questão do pão era uma das de maior vulto da atualidade.

Quanta reforma importante, quanta ciência, quanto estudo e prática não exige esta única palavra?

Que revolução econômica e social não são capazes de produzir estas três linhas juntinhas e cobertas com um til à guisa de chapéu-de-sol?

E ainda isto não é tudo. Disse que o país, as senhoras, as famílias, a população, a estatística, as modas, tudo enfim estava empenhado na questão do pão.

E vou prova-lo.

Mas... agora me lembro que não posso falar, que obriguei-me a calar, em deferência aos provérbios latinos.

Portanto fiquem os leitores em jejum, a menos que algum dos tais impertinentes provérbios não queira falar por mim, como por exemplo, este: Sine Cerere et Baccho friget Vênus.

A bom entendedor meia palavra basta. Aquele friget que ali está com um ar tão sonso e tão ingênuo é um brejeiro de conta; e se ele quisesse falar mostrar-nos-ia a influência legítima do pão.

Porém é um verbo muito sisudo e discreto, e por isso não há meio de arrancar-lhe uma explicação mais clara.

Há ainda outras muitas coisas sobre que podia falar, mas a respeito das quais me calo para cumprir o prometido.

Podia falar da representação da Sapho, e dizer muita coisa bonita e interessante sobre a nossa grega, que inspira com seu canto os nossos poetas, e com os seus olhos os nossos diletantes.

Podia fazer um poema sobre esta história de um amor profundo, que se reproduz entre nós todos os dias, e que acaba sempre por um passo de Leucate.

A única diferença que existe é na posição geográfica e na qualidade do passo de Leucate moderno, o que é devido à diferença dos países e à diversidade das idades, dos usos e costumes.

Assim, o passo de Leucate antigo era um rochedo à beira do mar; o da Idade Média era um convento no cimo de uma montanha; o de nossos dias é um casamento de conveniência.

As Saphos de hoje, quando chegam ao triste desenlace de uma história de amor, sobem ao altar e de lá precipitam-se...

Precipitam-se nos braços de um homem que não amam, precipitam-se na monótona e triste existência de um casamento mal sucedido.

Mudados pois os nomes e os lugares, o drama é o mesmo, e as personagens idênticas.

Em continuação deste tema de Sapho moderna, podia falar-vos das Mulheres de mármore, representadas sexta-feira no Ginásio, e pintar-vos uma bela cena da Grécia criada pelo pincel do Bragaldi.

Haveis de saber o admirável efeito que produziu esta representação, a que deveis ir assistir esta noite; lá conversaremos a gosto, e apreciaremos juntos a habilidade com que todos os artistas desempenham os seus papéis.

Sobre o concerto do teatro lírico desta noite, também poderia escrever algumas linhas recomendando-vos o talento da distinta harpista Mme. Belloc, que não foi feliz na concorrência.

Mas a razão, eu a sei: nesta época de tantos desconcertos era impossível que fosse bem aceito um concerto.

Agora, tendo eu me calado sobre tanta coisa, é justo que converse um pouco com as minhas leitoras.

Tenho de lhes noticiar que se acha criada uma nova ordem – A ordem das violetas...

Esta ordem é dedicada especialmente à caridade, e teve sua origem no dia do leilão das Belas-Artes, em um bouquet de violetas.

Quem a criou (o que para mim é segredo) teve uma feliz inspiração; tirou o ramo do seio, distribuiu as flores à direita e à esquerda a quem as mereceu por caridade; e o sorriso de seus lábios dizia neste momento: - Honni soit que mal y pense.

O caso é que a ordem está criada, e que agora o luxo, o chic, é trazerem os gentlemen na casaca preta a modesta e linda florzinha, que tornou-se o emblema de uma tão santa virtude.

por falar nisto lembro-me que hoje tem lugar o segundo leilão das Belas-Artes.

Quando criaram este edifício, nunca pensaram que ele teria o nobre destino que lhe deram domingo passado, e que o seu nome teria uma outra significação ainda mais apropriada.

Com efeito, que mais belas-artes, do que as artes, as travessuras, os meios engenhosos, que a caridade aí inspirou domingo passado às elegantes peregrinas da Glória?

Mas que há aí de admirar!

Eram brasileiras.

Se não sabeis o que quer dizer isto, ouvi-me.

Vou contar-vos uma história muito linda, um verdadeiro conto de fada.

Não sei se minha pena ainda se lembrará dessas coisas de outro tempo, desses contos árabes tão cheios de poesia oriental.

Mas enfim lá vai.

Foi um dia...

Lancei os olhos sobre uma página solta deste folhetim, e lá vi o meu Cabrion.

Res est magna tacere.

Calo-me pois, e desta vez seriamente; dou um ponto na boca, ou antes, no papel.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Nilto Maciel (As Galhofas de José Alcides Pinto)

José Alcides e Nilto Maciel
Estive poucas vezes com Alcides Pinto. Antes de 1977, quando morava em Fortaleza, só o conhecia dos livros. E de ouvir falar. Não me aproximava dele, por retraimento. Talvez nem me ouvisse. Talvez nem me cumprimentasse. Ora, eu o sabia poeta muito conhecido, desde Concreto: estrutura visual-gráfica (1965) e Cantos de Lúcifer (1966), sem contar as antologias de que participara no início dos anos 1950. Além de poeta de renome, romancista, contista e autor da peça Equinócio (1973). E eu? Apenas um estudante, apenas um sonhador, apenas um quase-escritor. Mas um estudante, um leitor não podia se aproximar de um escritor, pelo menos para lhe pedir autógrafo? Podia e pode. Mas cadê coragem para tanto? Como eu me enganava! Alcides sempre se mostrou muito acessível. Nunca pareceu arrogante. Dava-se bem com jovens e velhos. Com “marginais” e “acadêmicos”.

Não lembro quando o conheci de fato. Tenho alguns livros dele autografados, quando eu morava em Brasília e certamente o procurei, em Fortaleza, em 1982: O enigma (Fortaleza: Edições Quetzalcoalt, 1974), Cantos de Lúcifer (Rio de Janeiro: Edições GRD, 1966), Manifesto traído (Fortaleza: Lourenço Filho, 1979) e As águas novas (Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno, 1975). Autografados no mesmo dia, possivelmente. Na sua casa. Vieram outros autógrafos, outros encontros, em 1998 e 2002.

Não acompanhei sua trajetória de vida, suas “loucuras” (conheço-as de oitiva), suas excentricidades. Falavam-me dele: é doido; virou franciscano; largou o emprego público para se dedicar à literatura; comprou uma fazenda no sertão do ceará, onde só brotavam pedras e onde dorme o dragão da mitologia alcideana. Nunca o vi louco, não o vi vestido de frade, não conheci a famosa fazenda Equinócio. Vivia como pobre, numa casinha de uma vila localizada na Avenida Tristão Gonçalves (sua última morada): na sala, uma rede e uma estante com seus livros (os dos outros nunca vi. Como os meus. Talvez os tenha doado. E como conseguia fazer citações? Tudo de cor. Por isso, às vezes se confundia). Uma cama no quarto. No cozinha, um fogão, uma geladeira, uma mesa com cadeiras. E só.

Fora de casa, andava sempre bem vestido. Quem não se lembra de seu terno branco, com que se apresentava em lançamento de livro, entrega de prêmio, palestra, dele ou de outros? Magro, quase esquelético, flutuava, feito pena branca. Dava gargalhadas estrepitosas, de fazer corar magistrados e madamas, nos salões mais nobres.

O Alcides que conheci vivia em constante alegria, a galhofar com tudo e com todos. Fingia-se doido, sim. Puro gracejo. Certa tarde (não lembro o ano: se antes de meu regresso a Fortaleza, em 2002, se depois), convidou-me Pedro Salgueiro a irmos visitar Alcides. Bateu palmas, à porta. Alcides gritou: Já vou. Pela frincha da porta eu vi: ele se vestia, apressadamente. Já vou, já vou. Pedro repetiu as palmas: Trouxe, para vê-lo, um grande contista cearense. O velho poeta abriu a porta, assanhado, nu da cintura para cima, olhou para mim, me abraçou com força e exclamou: Meu grande contista Airton Monte! Ora, Alcides enxergava bem e sua lucidez não confundiria Airton comigo. Aquilo não passava de mais uma brincadeira.

Visitei-o algumas vezes, ora só, ora acompanhado. Não para conversar demoradamente, mas para vê-lo e levar-lhe alguma publicação, sobretudo a revista Literatura, na qual publiquei poemas e artigos dele, assim como uma entrevista que me concedeu em 2003. Recebia-me com alegria, como certamente acolhia outros amigos e conhecidos. Brincalhão como sempre, quando nos víamos, divertia-se muito: Só existem dois escritores bons no Ceará: eu e você. Se eu mencionava o nome de algum conterrâneo, ele sorria: Esse não sabe escrever.

Vez por outra, telefonava para mim ou eu telefonava para ele. Constantemente a brincar: Poeta (tratava assim todo mundo; pelo menos, os escritores), venha me visitar. Arranjei uma namorada, mas não tenho mais condições de fornicar. Venha me substituir. Eu prometia visitá-lo. E assim o tempo ia passando, até que um dia a outra namorada de todos nós – aquela que aguardamos, mas não queremos –, até que um dia Ela, montada numa motocicleta, o encontrou desprotegido e só, no meio de uma rua, e o levou para as núpcias eternas. Sua última galhofa, em 2 de junho de 2008.

Fortaleza, 5 de outubro de 2009.

Fontes:
http://www.niltomaciel.net.br/node/204
Foto = http://literaturasemfronteiras.blogspot.com

Sonetos Dispersos 1

Gustavo Teixeira
(1881/1937)
Casa Paterna


Da velha casa em que a manhã da vida
passei – conservo uma lembrança exata:
antes de eu vir ao mundo foi erguida
perto da serra, quase ao pé da mata.

Dá para o sul a frente enegrecida;
ao lado, para um poente de escarlata,
janelas donde, na estação florida,
se aspira o cheiro dos jasmins de prata.

Perto, o bambual em cujo seio amigo
cantam graúnas, e o pomar antigo
com melros, tiés e gurundis em bando.

O ribeirão, o cafezal, a horta...
Ah! que saudade o coração me corta
do lar querido que deixei chorando!
– – –


Luís Caetano Pereira Guimarães Júnior
(1845/1898),
Visita à Casa Paterna


Como a ave que volta ao ninho antigo
depois de um longo e tenebroso inverno,
eu quis também rever o lar paterno,
o meu primeiro e virginal abrigo.

Entrei. Um gênio carinhoso e amigo,
o fantasma talvez do amor materno,
tomou-me as mãos, – olhou-me, grave e terno,
e, passo a passo, caminhou comigo.

Era esta a sala... (Oh! se me lembro! e quanto!)
em que da luz noturna à claridade
minhas irmãs e minha mãe... O pranto

jorrou-me em ondas... Resistir quem há-de?
Uma ilusão gemia em cada canto,
chorava em cada canto uma saudade.
– – –

Elizabeth Barrett Browning 
(1806/1861)
Soneto


Ama-me por amor do amor somente,
não digas: “Amo-a pelo seu olhar,
o seu sorriso, o modo de falar
honesto e brando. Amo-a porque se sente

minha alma em comunhão constantemente
com a sua.” Porque pode mudar
isso tudo, em si mesmo, ao perpassar
do tempo, ou para ti unicamente.

Nem me ames pelo pranto que a bondade
de tuas mãos enxuga, pois se em mim
secar, por teu conforto, esta vontade

de chorar, teu amor pode ter fim!
Ama-me pelo amor do amor, e assim
me hás de querer por toda a eternidade.
– – –


Darly O. Barros / SP
Celagem


Meu estro se extasia, ao ver o ocaso
vermelhecer, à curva descendente
do sol: são seis e vinte e é, sem atraso,
que ele boceja e some, no ocidente...

Meus dedos fremem, não por mero acaso:
há que selar o vôo mais recente,
os frêmitos e arroubos do parnaso,
ao mergulhar as asas no poente;

e, então, a gotejar vermelho e rosa
– colhidos na viagem espantosa,
realizada às fímbrias do cariz, –

vê-lo embebendo a pena em mil rubores
e, num papel, eternizando as cores
do sol poente, em glorioso bis...
– – –


Raimundo da Mota Azevedo Correia
(1860/1911),
A Cavalgada


A lua banha a solitária estrada...
Silêncio!... Mas além, confuso e brando,
o som longínquo vem-se aproximando
do galopar de estranha cavalgada.

São fidalgos que voltam da caçada;
vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando.
E as trompas a soar vão agitando
o remanso da noite embalsamada...

E o bosque estala, move-se, estremece...
Da cavalgada o estrépito que aumenta
perde-se após no centro da montanha...

E o silêncio outra vez soturno desce...
E límpida, sem mácula, alvacenta,
a lua a estrada solitária banha...
– – –


Sebastião Alício Sundfeld,
Saudade em Tarde de Chuva


Nessa tarde chuvosa, meio acinzentada,
vou na infância buscar a emoção fugidia.
Encosto-me à janela, como antes fazia,
para espiar na rua as águas da enxurrada.

Ronda-me conhecida sensação passada...
O vidro da vidraça é uma carícia fria!
Aqueço-me, porém, no afago que existia
naquele alegre tempo de criança amada.

Tarde de chuva, tarde de história tristonha,
a relembrar da vida um tempo muito antigo,
que mais parece ser a história de quem sonha.

Sou menino outra vez, na magia de agora,
ao pressentir mamãe a contemplar comigo
a chuva derramando saudades lá fora.
– – –


Athayr Cagnin
Cavalheiro


Graças a Deus, ela voltou! Sozinho,
eu já não suportava os dias meus.
Aves, cantai! Abre-se um novo ninho!
Tristezas, meu tormento amargo, adeus!

Ela voltou. Enfeita-se o caminho
por onde passam os pezinhos seus.
Vem para mim. Espera-a o meu carinho.
Ela voltou, por fim... graças a Deus!

Juntos, quem o diria, novamente!
Eu e ela. Nós dois... quem o diria?
Juntos de novo como antigamente!

Voltou. Abrem-se flores. Tons irreais
dão novo colorido ao velho dia.
Um amor que ressurge. Um poeta a mais.
– – –


Luís Vaz de Camões (c. 1517/1580),
“O fogo que na branda cera ardia”


O fogo que na branda cera ardia,
vendo o rosto gentil que eu na alma vejo,
se acendeu de outro fogo do desejo,
por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dois ardores se incendia,
da grande impaciência fez despejo,
e, remetendo com furor sobejo,
vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve
a apagar seus ardores e tormentos
na vista a quem o sol temores deve!

Namoram-se, senhora, os elementos
de vós, e queima o fogo aquela neve
que queima corações e pensamentos.
– – –


Leonilda Hilgenberg Justus / PR
Vazios


Certo dia, em floresta perfumada,
dois pássaros falavam seriamente:
– Ai, amigo... a minha alma está agoniada
ante as ações dos que se dizem gente...

– Eu, também (fala o outro da galhada).
Mudei-me já três vezes, num repente!
Homens em ambição descontrolada,
arrasaram meus lares, friamente!

Bem logo, onde árvores e claros rios,
delícias para amar, viver, cantar,
veremos só vazios... só vazios...

E daí... – continua mais baixinho... –
ninguém terá ninguém por quem chorar...
sem vida alguma, e até sem passarinho...
– – –


João Henrique da Silva
Extremos


Andavam pela rua avô e neto,
apoiados em mútua confiança,
dividindo entre si, o mesmo afeto.
Eram dois velhos, ou duas crianças.

Neto querido, com avô dileto,
um dando ao outro inteira segurança
através de palavras simples mansas
vindas, ora do avô; ora do neto.

Fiquei admirado, olhando a esmo.
Depois, me perguntei a mim mesmo:
– Qual é o velho, qual é a criança?

Quando eu olhei para eles novamente,
já iam de mãos dadas bem distantes.
Era o adeus apoiado na esperança.
– – –


Raimundo da Mota Azevedo Correia
(1860-1911)
Anoitecer


Esbraseia o Ocidente na agonia
o sol... Aves, em bandos destacados,
por céus de ouro e de púrpura raiados,
fogem... Fecha-se a pálpebra do dia...

Delineiam-se, além, da serrania
os vértices de chama aureolados.
Em tudo, em torno, esbatem derramados,
uns tons suaves de melancolia...

Um mundo de vapores no ar flutua...
Como uma informe nódoa, avulta e cresce
a sombra, à proporção que a luz recua...

A natureza apática esmaece...
Pouco a pouco, entre as árvores, a lua
surge trêmula, trêmula... Anoitece.
– – –


Josué Anacleto Vieira
Meu Cajueiro


Foi da semente que brotou viçoso,
meu cajueiro amigo do cerrado;
no chão fecundo seu feliz repouso,
na imensidão do campo desbravado.

Foi na floresta que cresceu frondoso,
sob a magia do céu azulado;
lá, onde corre manso o Rio Formoso,
fonte da vida como no passado.

Essa distância que afastou nós dois,
parece até que me feriu depois,
da nostalgia que meu peito invade.

Vejo o orvalho das folhas deslizando,
a se espalhar no chão de vez em quando
como se fossem gotas de saudade.

Fontes:
Seleções em Folha. Ano 4, Nº 08 – AGOSTO 2000
Seleções em Folha. Ano 4, Nº 07 – JULHO 2000
Seleções em Folha. Ano 4, Nº 06 – JUNHO 2000
Seleções em Folha. Ano 4, Nº 09 – SETEMBRO 2000

Monteiro Lobato (Sorte Grande)

Foi numa quieta cidadezinha entrevada, dessas que se alheiam do mundo com a discrição humilde dos musgos. Havia lá a gente do Moura, o arrecadador de taxas municipais do mercado. A morte arrecadou o Moura muito fora de tempo e propósito. Consequência: viúva e sete filhos na dependura.

Dona Teodora, quarentona que nunca soubera a significação da palavra descanso, viu-se de trabalhos dobrados. Encher sete estômagos, vestir sete nudezas, educar outras tantas individualidades... Se houvesse justiça no mundo, quantas estátuas a certos tipos de mães!

A vida em tais lugarejos lembra a dos liquens na pedra. Tudo se encolhe no “limite” – no mínimo que a civilização comporta. Não há “oportunidades”. Os meninos mal empanam emigram. As meninas, como não podem emigrar, viram moças; as moças passam a “tias”, e as tias evoluem para velhinhas enrugadas como maracujá murcho – sem que nunca venha ensejo para a realização dos grandes sonhos: casamento ou ocupação decentemente remunerada.

Os empreguinhos públicos, de paga microscópica, são tremendamente disputados. Quem se aferra a um, dali só é arrancado pela morte – e passa a vida invejado. Uma só saída para as mulheres, afora o casamento: a meia dúzia de cadeiras das escolinhas locais.

O mulherio de Santa Rita lembra os rizomas de gladíolos de certas casas de “cera e sementes” pouco freqüentadas. O dono do negócio os expõe numa cesta à porta, à espera do freguês eventual. Não aparece freguês nenhum – e o homem os vai retirando da cesta à proporção que murcham. Mas o estoque não diminui porque entram sempre rizomas novos. O dona da casa de “cera e sementes” de Santa Rita á a Morte.

A boa mãe revolta-se. Tinha culpa de terem vindo ao mundo as cinco meninas e dois meninos, e de nenhum modo admitia que elas virassem maracujás secos e eles se estiolassem na lembrança viciosa dos zes-ninguéns.

O problema não era totalmente insolúvel como os meninos, porque podia mandá- los para fora no momento oportuno – mas, as meninas? Como arranjar a vida de cinco moças numa terra em que havia seis para cada homem casadouro – e só cinco cadeirinhas?

A mais velha, Maricota, herdara o temperamento, a valentia materna. Estudou o que pôde e como pôde. Fez-se professora – mas já estava nos vinte e quatro e nem sombra de colocação. As vagas iam sempre para as de maior peso político, ainda que analfabetas.

Maricota, um peso-pluma, que poderia esperar?

Mesmo assim, dona Teodora não desanimava.

– Estudem. Preparem-se. De repente qualquer coisa acontece e vocês se arrumam.

Os anos, entretanto, passavam sem que a esperadíssima “qualquer coisa” viesse – e os apertos recresciam. Por muito que trabalhassem em cocadas, bordados de enxoval e costurinhas, a renda não se distanciava do zero.

Dizem que as desgraças gostam de vir juntas. Quando a situação dos Mouras atingiu o ponto perigoso da “dependura”, nova calamidade sobreveio. Maricota recebeu do céu um estranho castigo: a singularíssima doença que lhe atacou o nariz...

No começo não deram importância ao caso; só no começo, porque a doença entrou a progredir, com desorientação de todos os entendidos em medicina das redondezas. Nunca, verdadeiramente nunca, ninguém soubera por lá de coisa assim.

O nariz da moça crescia, engordava, engrouvinhava, lembrando o de certos bêbados incorrigíveis. A deformação nessa parte do rosto é sempre desastrosa. Dá à fisionomia um ar cômico. Todos se apiedavam da Maricota – mas riam-se sem querer.

A maldade dos lugarejos tem a insistência de certas moscas. Aquele nariz foi virando o prato predileto do Comentário. Nos momentos de escassez de assunto era infalível porem-no à mesa.

– Se aquilo pega, ninguém mais planta rabanetes em Santa Rita. É só levar a mão ao rosto e colher...

– E dizem que está crescendo...

– Se está! A moça já não põe o pé na rua – nem para a missa. Aquela negrinha, cria de dona Teodora, me disse que já não e nariz – é beterraba...

– Sério?

– Cresce tanto que se a coisa continua vamos ter um nariz com uma moça atrás e não uma moça com um nariz na frente. O maior, o principal, ficará sendo o rabanete...

Nos galinheiros também é assim. Quando aparece uma ave doente, ou ferida, as sãs correm-na a bicadas – e bicam até destruí-la. Em matéria de maldade o homem é galináceo. A tal ponto chegou a de Santa Rita que quando aparecia alguém de fora na vacilavam em enfileirar entre as curiosidades locais a doença da moça.

– Temos várias coisas dignas de ver-se. Há a igreja, cujo sino tem um som sem igual no mundo. Bronze do céu. Há o pé de cacto da casa do major Lima, com quatro metros de roda na altura do peito. E há o rabanete da Maricota...

O visitante espantava-se, está claro.

– Rabanete?

O informante desfiava a crônica do famoso nariz com invençõezinhas cômicas de sua lavra. “Não poderei ver isso?” “Creio que não, porque ela já não tem ânimo de pôr o pé na rua – nem para a missa.”

Chegou o momento de recorrer aos médicos especialistas. Como por lá não houvesse nenhum, dona Teodora lembrou-se de um doutor Clarimundo, especialista de toas as especialidades na cidade próxima. Tinha de mandar-lhe a filha. O nariz de Maricota estava ficando clamoroso demais. Mas... mandar como?

A distância era grande. Viagem por água – pelo rio São Francisco, em cuja margem direita se assentava Santa Rita. O percurso custaria dinheiro; e custariam dinheiro a consulta, o tratamento, a estada lá – e onde o dinheiro? Como reunir os duzentos mil réis necessários?

Não há barreiras para o heroísmo das mães. Dona Teodora redobrou da faina, operou milagres de gênio e, por fim, reuniu o dinheiro da salvação.

Chegou o dia. Muito vexada de mostra-se em público depois de tantos meses de segregação, Maricota embarcou para a viagem de dois dias. Embarcou numa gaiola – o “Comandante Exupério” – e logo que se viu a bordo tratou de descobrir um cantinho em que ficasse a salvo da curiosidade dos passageiros.

Inutilmente. Deu logo nos olhos de vários, sobretudo nos dum moço de bom aspecto, que entrou a mirá-la com singular insistência. Maricota esgueirou-se de sua presença e, de bruços na amurada, fingiu-se absorta na contemplação da paisagem. Fraude pura, coitadinha. A única paisagem que via era a sua – a nasal. O passageiro, entretanto, não a largava.

– Quem é essa moça? Quis saber – e um de boca perdigotante, também embarcado em Santa Rita, regalou-se em contar permenorizadamente tudo quanto sabia a respeito.

O moço refranziu a testa. Reconcentrou-se a meditar. Por fim, seus olhos brilharam.

– Será possível? – murmurou em solilóquio, e resolutamente encaminhou-se na direção da triste criatura, absorvida na contemplação da paisagem.

– Perdão, minha senhora, eu sou médico e...

Maricota voltou para ele os olhos, muito vexada, sem saber o que dizer. Como um eco, repetiu:

– Médico?

– Sim, médico – e o seu caso está me interessando profundamente. Se é o que suponho, talvez que... Mas, venha cá – conte-me tudo – conte-me como isso começou. Não se vexe. Sou médico – e para os médicos não há segredos. Vamos.

Maricota, depois de alguma resistência, contou tudo, e à medida que falava o interesse do moço recrescia.

– Com licença – disse ele, e pôs a examinar-lhe o nariz, sempre com perguntas cujo alcance a moça não percebia.

– Como é seu nome? – atreveu-se a indagar Maricota.

– Doutor Cadaval.

A expressão do médico lembrava a do garimpeiro que encontra um diamante de valor fabuloso – um Cullinan! Nervosamente, ele insistia:

– Conte, conte...

Queria saber tudo; como aquilo começara, como se desenvolvera, que perturbação ela sentira e outras coisinhas técnicas. E as respostas da moça tinham o condão de aumentar-lhe o entusiasmo. Por fim:

– Maravilhoso! Exclamou. Um caso único de boa sorte...

Tais exclamações desnortearam a doente. Maravilhoso? Que maravilhamento poderia causar a sua desgraça? Chegou a ressentir-se. O médico tentou sossegá-la.

– Perdoe-me, dona Maricota, mas o seu caso é positivamente extraordinário. De momento não posso firmar parecer – estou sem livros; mas macacos me lembram se o que a senhora tem não é um rinofima – um RINOFIMA, imagine!

Rinofima! Aquela palavra estranha, dita naquele tom de entusiasmo, em coisa nenhuma melhorou a situação de atrapalhamento de Maricota. O fato de sabermos o nome de uma doença não nos consola nem cura.

– E que tem isso? perguntou ela.

– Tem, minha senhora, que é uma doença raríssima. Pelo que sei a respeito, não se conhece um só caso em toda a América do Sul...

Compreende agora o meu entusiasmo de profissional? Médico que descobre casos únicos é médico de nome feito...

Maricota começou a compreender.

Longamente Cadaval debateu a situação, informando-se de tudo – da família, do objeto da viagem. Ao saber de sua ida à cidade próxima em busca do dr. Clarimundo, rebelou-se.

– Qual Clarimundo, minha senhora! Esses médicos da roça não passam de perfeitas cavalgaduras. Formam-se e afundam nos lugarejos, nunca lêem nada. Atrasadíssimos. Se a senhora vai consultá-lo, perderá o seu tempo e o seu dinheiro. Ora, o Clarimundo!

– Conhece-o?

– Claro que não, mas adivinho. Conheço a classe. O seu caso, minha senhora, é a maravilha das maravilhas, desses que só podem ser tratados pelos grandes médicos dos grandes centros – e estudado pelas academias. A senhora vai mas é para o Rio de Janeiro. Tive a sorte de encontrá-la e não a largo mais. Ora esta! Um rinofima destes nas mãos do Clarimundo! Tinha graça...

A moça alegou que a sua pobreza não lhe permitia tratar-se na capital. Eram paupérrimos.

– Sossegue. Eu farei todas as despesas. Um caso como o seu vale ouro. Rinofima! O primeiro observado na América do Sul! Isso é ouro em barra, minha senhora...

E tanto falou, e tanto gabou a beleza do rinofima, que Maricota deu de sentir uns começos de orgulho. Depois de duas horas de debates e combinações, já estava outra – sem vexame nenhum dos passageiros – e a exibir pelo tombadilho o seu rabanete com quem exibe algo fascinante.

O doutor Cadaval era um moço extremamente expansivo, dos que não param de falar. O empolgamento em que ficou fê-lo debater o assunto com todos a bordo.

– Comandante – disse ao capitão horas depois –, aquilo é uma preciosidade sem par. Único na América do Sul, imagine! O sucesso que vou fazer no Rio – na Europa. É dessas coisas que arrumam a carreira de um médico. Um rinofima! Um ri-no-fi-ma, capitão!...

Não houve passageiro que não se inteirasse da história do rinofima da moça – e o sentimento de inveja tornou-se geral. Evidentemente Maricota fora marcada pelo Destino. Possuía algo único, uma coisa de fazer a carreira de um médico e de figurar em todos os tratados de medicina. Muitos houve que instintivamente correram os dedos pelo nariz na esperança de apalpar um comecinho da maravilha...

Maricota, ao recolher-se à cabine, escreveu á mãe:

“Tudo está mudando da maneira mais esquisita, mamãe! Encontrei a bordo um médico distintíssimo que, ao dar com o meu nariz, abriu a boca no maior entusiasmo. Eu só queria que a senhora visse. Acha que é uma grande – uma grandíssima coisa, a coisa mais rara do mundo, única na América do Sul, imagine!

Disse que vale um tesouro, que para ele foi o mesmo que ter encontrado um tal diamante Cullinan. Quer que eu vá para o Rio de Janeiro. Paga tudo. Como aleguei que somos muitos pobres, prometeu que depois da operação me arranja um lugar de professora no Rio!... Até a vergonha lá se foi. Passeio com o nariz à mostra, alto.

E, coisa incrível, mamãe, todos me olham com inveja! Inveja sim – eu leio nos olhos de todos. Decore esta palavra: RINOFIMA. É o nome da doença. Ah, eu só queria ver a cara desses bobos de Santa Rita, que tanto caçoavam de mim – quando souberem...”

Maricota mal conseguiu dormir essa noite. Grande mudança de idéias se operava em sua cabeça. Qualquer coisa a advertia de que era chegado o momento de uma grande tacada. Tinha de tirar vantagens da situação – e como ainda não dera resposta definitiva ao dr. Cadaval, deliberou executar um plano.

No dia seguinte o médico abordou-a de novo.

– Então, dona Maricota, está resolvida, afinal?

A moça estava resolvidíssima; mas, boa mulher que era, fingiu.

– Não sei ainda. Escrevi à mamãe... Há a minha situação pessoal e a da minha gente. Para que eu vá ao Rio preciso ficar sossegada quanto a estes dois pontos. Tenho dois irmãos e quatro irmãs – e como é? Ficar lá no Rio sem eles, impossível. E como deixá- los ficar sozinhos em Santa Rita, se sou o esteio da casa?

O dr. Cadaval refletiu uns momentos. Depois disse:

– Os rapazes eu posso colocar facilmente. Já suas irmãs, não sei. Que idade têm elas?

– Alzira, a logo abaixo de mim, está com 25 anos. Muito boa criatura. Borda que é um primor. Bonitinha.

– Se tem essas prendas poderemos colocá-la numa boa casa de modas. E as outras?– Há a Anita, com 22, mas essa só sabe ler e escrever versos. Sempre teve um jeito extraordinário para a poesia.

O dr. Cadaval coçou a cabeça. Colocar uma poetisa não é nada fácil – mas veria.

Há os empregos do governo, nos quais cabem até os poetas.

– Há a Olga, com 20 anos, que só pensa em casar. Essa não quer outro emprego. Nasceu para o casamento – e lá em Santa Rita está secando porque não há homens – todos emigram.

– Arranjaremos um bom casamento para Olga – prometeu o médico.

– Há a Odete, com 19 anos, que ainda não revelou posição para coisa nenhuma.

Boa criatura, mas muito criançola, bobinha.

– Vai ser outro casamento – sugeriu o médico. – Arranja-se. Arranjaremos a vida de todos.

O dr. Cadaval ia prometendo com aquela facilidade porque no íntimo não tinha intenção de colocar tanta gente. Poderia, sim, arrumar a vida de Maricota – depois de operá-la. Mas o resto da família que se fomentasse.

Assim não sucedeu, entretanto. As aperturas da vida tinham dado a Maricota um senso das realidades verdadeiramente totalitário. Percebendo que aquela oportunidade era a maior de sua vida, resolveu não deixá-la escapar. De modo que, ao chegar ao Rio, antes de entregar-se ao tratamento e exibir na Academia de Medicina o seu caso único, impôs condições.

Alegou que sem a irmã Alzira não tinha jeito de ficar sozinha na capital – e o remédio foi a vinda de Alzira. Mal pilhou lá a irmã, insistiu em colocá-la – porque não tinha o menor propósito ficarem as duas nas costas do médico. “Assim, a Alzira acanha-se e volta.”

Ansioso por dar início à exploração do rinofima, o médico pulou para arranjar a colocação da Alzira. E depois disso deu novos pulos para mandar vir e colocar a Anita. E depois da Anita chegou a vez de Olga. E depois de Olga chegou a vez de Odete. E depois de Odete chegou a vez de dona Teodora e dos dois rapazes.

O caso de Olga foi difícil. Casamento! Mas Cadaval teve uma idéia filha do desespero: intimou um seu ajudante no consultório, português quarentão de nome Nicéforo, a casar-se com a menina. Ultimatum da Moral.

– Ou casa-se ou vai para o olho da rua. Não quero mais saber de auxiliares solterões.

Nicéforo, tipo bastante pai-da-vida, coçou a cabeça mas casou-se – e foi o mais feliz dos Nicéforos.

A família já estava toda arrumada, quando Maricota se lembrou de dois primos. O médico, porém, resistiu.

– Não. Isso também é demais. Se continuar assim a senhora acaba forçando-me a arranjar um bispado para o padre de Santa Rita. Não é não.

A vitória do dr. Cadaval foi verdadeiramente estrondosa. Encheram-se as revistas médicas e os jornais com a notícia da solene apresentação à Academia de Medicina do belíssimo caso – único da América do Sul – dum maravilhoso rinofima, o mais belos dos rinofimas. As publicações estrangeiras acompanharam as nacionais.

O mundo científico de todos os continentes ficou sabendo de Maricota, do seu “rabanete” e do eminente doutor Cadaval Lopeira – luminar da ciência médica sul-americana.

Dona Teodora, felicíssima, não cessava de comentar o estranho curso dos acontecimentos.

– Bem se diz que Deus escreve direito por linhas tortas. Quando havia eu de imaginar, ao nos surgir aquela horrível coisa no nariz de minha filha, que era para o bem geral de todos!

Restava a parte última – a operação. Maricota, entretanto, ainda nas vésperas do dia marcado vacilava.

– Que acha, mamãe? Deixo ou não deixo que o doutor me opere?

Dona Teodora abriu a boca.

– Que idéia, menina! Claro que deixa. Pois há de ficar toda vida assim com esse escândalo na cara?

Maricota não se decidia.

– Podemos demorar um pouco mais, mamãe. Tudo quanto nos veio de bom saiu do rinofima. Quem sabe se nos rende mais alguma coisa? Há ainda o Zezinho a colocar – e o pobre Quindó, que nunca achou emprego...

Mas dona Teodora, arquifarta do rabanete, ameaçou de levá-la de volta para Santa Rita, se ela teimasse na asneira de retardar, por um só dia, a operação. E Maricota foi operada. Perdeu o rinofima, ficando com um nariz igual ao de todas as outras, apenas levemente enrugadinho em conseqüência dos enxertos de epiderme.

Quem positivamente desapontou foi a gente maldosa do lugarejo. O maravilhoso romance de Maricota era comentado em todas as rodinhas com grandes exageros – até com o exagero de que ela estava noiva do dr. Cadaval.

– Como a gente se engana neste mundo! – filosofou o farmacêutico. – Todos pensamos que aquilo fosse doença – mas o verdadeiro nome de tais rabanetes, sabem qual é?–?

– Sorte grande, minha gente! Sorte Grande da Espanha…

Fonte:
Monteiro Lobato. Negrinha. Disponível em Portal São Francisco

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 774)



Uma Trova de Ademar

Vejo sentadas no chão,
trajadas de desamor,
crianças comendo pão
amanteigado de dor!

–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional

Na mesma rua onde os nobres
desfilam pompa e capricho,
se encontram crianças pobres
entre montanhas de lixo.

–Elen de Novais Félix–

Uma Trova Potiguar


Fui rever meu chão de outrora,
mas a saudade era brava:
meus olhos sorriam fora;
dentro o coração chorava!

–José Lucas de Barros/RN– 

Uma Trova Premiada


2012 - Cantagalo/RJ
Tema - ESPAÇO - 3º Lugar


Ao passar por mim, nem para...
sou a sombra de ninguém!
Que espaço enorme separa
meu amor de seu desdém!

–Wanda de Paula Mourthé/MG–

...E Suas Trovas Ficaram


Arranje um amor, depois
despreze-o, só por maldade,
e temos já pra nós dois,
a receita da Saudade.

–Fernando Pereira/RJ–

U m a P o e s i a


MOTE:
Depois de uma certa idade
fui te esquecendo, meu bem;
chega um tempo em que a saudade
perde a memória também!
–José Ouverney/SP–


GLOSA:

Depois de uma certa idade,
querendo a vida entender,
vi que a mente da saudade
pode o passado esquecer.

Sofri e chorei baixinho,
fui te esquecendo, meu bem,
quando eu vi que o teu carinho
desembarcou do meu trem.

Eu não sei se é por maldade,
mas é um fato frequente:
chega um tempo em que a saudade
também se afasta da gente.

Se a gente, por vil destino,
perde, na vida, o que tem,
mais tarde, por dom divino,
perde a memória também!

–Gilson Faustino Maia/RJ–

Soneto do Dia

A   P I N T U R A.
–Diniz Vitorino/PB–


Os meus cabelos ainda são aqueles
que me encheram de amores e regalos!
Chuva alguma esmaece a tinta deles,
mas o tempo os desbota sem lavá-los.

Hoje a neve dos anos caiu neles,
vem com ordem suprema pra pintá-los.
Não pergunta para mim, nem para eles
se estamos de acordo em transformá-los.

Mesmo frágil demais, finjo ser forte,
por sentir que a vida é como a morte:
tem segredos demais, mas não tem cores.

Pois, se aos negros as eras deram fim,
que os grisalhos se estendam sobre mim,
ocultando do mundo as minhas dores!