domingo, 6 de janeiro de 2013

Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 6


Estranhos bairros! Mas nada me divertia como ver a cada instante, a uma porta de jardim, dois mandarins pançudos que para entrar se trocavam indefinidamente salamalés, cortesias, recusas, risinhos agudos de etiqueta, todo um cerimonial dogmático – que lhes fazia oscilar de um modo picaresco, sobre as costas, as longas penas de pavão. Depois, se erguia os olhos para o ar, lá via sempre pairar enormes papagaios de papel, ora em forma de dragões, ora de cetáceos, ora de aves fabulosas – enchendo o espaço de uma inverosímil legião de monstros transparentes e ondeantes...

– Sá-Tó, basta de Cidade Tártara! Vamos ver os bairros chineses...

E lá fomos penetrando na Cidade Chinesa, pela porta monstruosa de Tchin-Men. Aqui habita a burguesia, o mercador, a populaça. As ruas alinham-se como uma pauta; e no solo vetusto e lamacento, feito da imundície de gerações recalcada desde séculos, ainda aqui e além jaz alguma das lajes de mármore cor-de-rosa que outrora o calçavam, no tempo da grandeza dos Ming.

Dos dois lados são – ora terrenos vagos onde uivam manadas de cães famintos, ora filas de casebres fuscos, ora pobres lojas com as suas tabuletas esguias e sarapintadas, balouçando-se de uma haste de ferro. À distância erguem-se os arcos triunfais feitos de barrotes cor de púrpura, ligados no alto por um telhado oblongo de telhas azuis envernizadas, que rebrilham como esmaltes. Uma multidão rumorosa e espessa, onde domina o tom pardo e azulado dos trajes, circula sem cessar; a poeira envolve tudo de uma névoa amarelada; um fedor acre exala-se dos enxurros negros; e a cada momento uma longa caravana de camelos fende lentamente a turba, conduzida por mongóis sombrios vestidos de pele de carneiro.

Fomos até às entradas das pontes sobre os canais, onde saltimbancos seminus, com máscaras simulando demónios pavorosos, fazem destrezas de um picaresco bárbaro e subtil; e muito tempo estive a admirar os astrólogos de longas túnicas, com dragões de papel colados às costas, vendendo ruidosamente horóscopos e consultas de astros. Oh cidade fabulosa e singular!

De repente ergue-se uma gritaria! Corremos: era um bando de presos, que um soldado, de grandes óculos, ia impelindo com o guarda-sol, amarrados uns aos outros pelo rabicho! Foi aí, nessa avenida, que eu vi o estrepitoso cortejo de um funeral de mandarim, todo ornado de auriflamas e de bandeirnhas; grupos de sujeitos fúnebres vinham queimando papéis em fogareiros portáteis; mulheres esfarrapadas uivavam de dor espojando-se sobre tapetes; depois erguiam-se, galhofavam, e um cooly vestido de luto branco servia-lhes logo chá, de um grande bule em forma de ave. 

Ao passar junto ao Templo do Céu, vejo apinhada num largo uma legião de mendigos; tinham por vestuário um tijolo preso à cinta num cordel; as mulheres, com os cabelos entremeados de velhas flores de papel, roíam ossos tranquilamente; e cadáveres de crianças apodreciam ao lado, sob o voo dos moscardos. Adiante topámos com uma jaula de traves, onde um condenado estendia, através das grades, as mãos descarnadas, à esmola... Depois Sá-Tó mostrou-me respeitosamente uma praça estreita: aí, sobre pilares de pedra, pousavam pequenas gaiolas contendo cabeças de decapitados: e gota a gota ia pingando delas um sangue espesso e negro...

– Uf! – exclamei, fatigado e aturdido. – Sá-Tó, agora quero o repouso, o silêncio, e um charuto caro...

Ele curvou-se: e, por uma escadaria de granito, levou-me às altas muralhas da cidade, formando uma esplanada que quatro carros de guerra a par podem percorrer durante léguas.

E enquanto Sá-Tó, sentado num vão de ameia, bocejava, num desafogo de cicerone enfastiado, eu fumando contemplei muito tempo aos meus pés a vasta Pequim...

É como uma formidável cidade da Bíblia, Babel ou Nínive, que o profeta Jonas levou três dias a atravessar. O grandioso muro quadrado limita os quatro pontos do horizonte, com as suas portas de torres monumentais, que o ar azulado, àquela distância, faz parecer transparentes. E na imensidão do seu recinto aglomeram-se confusamente verduras de bosques, lagos artificiais, canais cintilantes como aço, pontes de mármore, terrenos alastrados de ruínas, telhados envernizados reluzindo ao sol; por toda a parte são pagodes heráldicos, brancos terraços de templos, arcos triunfais, milhares de quiosques saindo de entre as folhagens dos jardins; depois espaços que parecem um montão de porcelanas, outros que se assemelham a monturos de lama; e sempre a intervalos regulares o olhar encontra algum dos bastiões, de um aspecto heróico e fabuloso...

A multidão, junto a essas edificações grandiosas, é apenas como grãos de areia negra que um vento brando vai trazendo e levando...

Aqui está o vasto palácio imperial, entre arvoredos misteriosos, com os seus telhados de um amarelo de oiro vivo! Como eu desejaria penetrar-lhe os segredos, e ver desenrolar-se pelas galerias sobrepostas, a magnificência bárbara dessas dinastias seculares!

Além ergue-se a torre do Templo do Céu, semelhando três guarda-sóis sobrepostos: depois a grande Coluna dos Princípios, hierática e seca como o génio mesmo da raça: e adiante branquejam numa meia-tinta sobrenatural os terraços de jaspe do Santuário da Purificação... 

Então interrogo Sá-Tó: e o seu dedo respeitoso vai-me mostrando o Templo dos Antepassados, o Palácio da Soberana Concórdia, o Pavilhão das Flores das Letras, o Quiosque dos Historiadores, fazendo brilhar, entre os bosques sagrados que os cercam, os seus telhados lustrosos de faianças azuis, verdes, escarlates e cor de limão. Eu devorava, de olho ávido, esses monumentos da Antiguidade asiática, numa curiosidade de conhecer as impenetráveis classes que os habitam, o princípio das instituições, a significação dos cultos, o espírito das suas letras, a gramática, o dogma, a estranha vida interior de um cérebro de letrado chinês... Mas esse mundo é inviolável como um santuário...

Sentei-me na muralha, e os meus olhos perderam-se pela planície arenosa que se estira para além das portas até aos contrafortes dos montes mongólicos; aí incessantemente redemoinham ondas infindáveis de poeira; a toda a hora negrejam filas vagarosas de caravanas... Então invadiu-me a alma uma melancolia, que o silêncio daquelas alturas, envolvendo Pequim, tornava de um vago mais desolado: era como uma saudade de mim mesmo, um longo pesar de me sentir ali isolado, absorvido naquele mundo duro e bárbaro: lembrei-me, com os olhos humedecidos, da minha aldeia do Minho, do seu adro assombreado de carvalheiras, a venda com um ramo de louro à porta, o alpendre do ferrador, e os ribeiros tão frescos quando verdejam os linhos...

Aquela era a época em que as pombas emigram de Pequim para o Sul. Eu via-as reunirem-se em bandos por cima de mim, partindo dos bosques dos templos e dos pavilhões imperiais; cada uma traz, para a livrar dos milhafres, um leve tubo de bambu que o ar faz silvar; e aquelas nuvens brancas passavam como impelidas de uma aragem mole, deixando no silêncio um lento e melancólico suspiro, uma ondulação eólica, que se perdia nos ares pálidos...

Voltei para casa, pesado e pensativo.

Ao jantar, Camilloff, desdobrando o seu guardanapo, pediu-me com bonomia as minhas impressões de Pequim.

– Pequim faz-me sentir bem, general, os versos de um poeta nosso:

Sôbolos rios que vão

Por Babilónia me achei ...

– Pequim é um monstro! – disse Camilloff oscilando reflectidamente a calva. – E agora considere que a esta capital, à classe tártara e conquistadora que a possui, obedecem trezentos milhões de homens, uma raça subtil, laboriosa, sofredora, prolífica, invasora... Estudam as nossas ciências... Um cálice de Médoc, Teodoro!... Têm uma marinha formidável! O exército, que outrora julgava destroçar o estrangeiro com dragões de papelão donde saíam bichas de fogo, tem agora táctica prussiana e espingarda de agulha! Grave! 

– E todavia, general, no meu país, quando, a propósito de Macau, se fala do Império Celeste, os patriotas passam os dedos pela grenha, e dizem negligentemente: «Mandamos lá cinquenta homens, e varremos a China...»

A esta sandice – fez-se um silêncio. E o general, depois de tossir formidavelmente, murmurou, com condescendência:

– Portugal é um belo pais...

Eu exclamei com secura e firmeza:

– É uma choldra, general.

A generala, colocando delicadamente à borda do prato uma asa de frango, e limpando o dedinho, disse:

– É o país da canção de Mignon. É tá que floresce a laranjeira...

O gordo Meriskoff, doutor alemão pela Universidade de Bona, chanceler da Legação, homem de poesia e de comentário, observou com respeito:

– Generala, o doce país de Mignon é a Itália: "Conheces tu a terra privilegiada onde a laranjeira dá flor?" O divino Goethe referia-se à Itália, Italia mater... A Itália será o eterno amor da humanidade sensível!

– Eu prefiro a França! – suspirou a esposa do primeiro-secretário, uma bonecazinha sardenta, de cabelo arruivascado.

– Ah! a França!... – murmurou um adido, revirando um bugalho de olho terníssimo.

O gordo Meriskoff ajeitou os óculos de oiro:

– A França tem um mal, que é a Questão Social...

– Oh! a Questão Social! – rosnou sombriamente Camilloff.

– Ah! a Questão Social! ... – considerou ponderosamente o adido.

E discreteando com tanta sapiência, chegámos por fim ao café.

Au descer ao jardim, a generala, apoiando-se sentimentalmente ao meu braço, murmurou-me junto à face:

– Ai, quem me dera viver nesses países apaixonados, onde verdejam os laranjais!..

– É lá que se ama, generala – segredei-lhe eu, levando-a docemente para a escuridão dos sicômoros...

V

Foi necessário todo um longo Verão para descobrir a província onde residira o defunto Ti Chin-Fu!

Que episódio administrativo tão pitoresco, tão chinês! O serviçal Camilloff, que passava o dia inteiro a percorrer os yamens do Estado, teve de provar primeiro que o desejo de conhecer a morada de um velho mandarim não encobria uma conspiração contra a segurança do Império; e depois foi-lhe ainda preciso jurar que não havia nesta curiosidade um atentado contra os ritos sagrados! Então, satisfeito, o príncipe Tong permitiu que se fizesse o inquérito imperial: centenares de escribas empalideceram noite e dia, de pincel na mão, desenhando relatórios sobre papel de arroz; misteriosas conferências sussurraram incessantemente por todas as repartições da cidade Imperial, desde o Tribunal Astronómico até ao Palácio da Bondade Preferida; e uma população de coolies transportava da Legação russa para os quiosques da Cidade Interdita, e daí para o Pátio dos Arquivos, padiolas estalando ao peso de maços de documentos vetustos... 

Quando Camilloff perguntava pelo resultado, vinha-lhe a resposta satisfatória que se estavam consultando os Livros Santos de Lao-Tsé, ou que se iam explorar velhos textos do tempo de Nor Ha-Chu. E para calmar a impaciência bélica do russo, o príncipe Tung remetia, com estes recados subtis algum substancial presente de confeitos recheados, ou de gomos de bambu em calda de açúcar...

Ora enquanto o general trabalhava com fervor para encontrar a família Ti Chin-Fu – eu ia tecendo horas de seda e oiro (assim diz um poeta japonês) aos pés pequeninos da generala...

Havia um quiosque no jardim sob os sicômoros, que se denominava, à maneira chinesa, do Repouso Discreto: – ao lado um arroio fresco ia cantando docemente sob uma pontezinha rústica pintada de cor-de-rosa. As paredes eram apenas um cadeado de bambu fino forrado de seda cor de ganga: o sol, passando através delas, fazia uma luz sobrenatural de opala desmaiada. Ao centro afofava-se um divã de seda branca, de uma poesia de nuvem matutina, atraente como um leito nupcial. Aos cantos, em ricas jarras transparentes da época Yeng, erguiam-se, na sua gentileza aristocrática, lírios escarlates do Japão. Todo o soalho estava recoberto de esteiras finas de Nanquim; e junto à janela rendilhada, sobre um airoso pedestal de sândalo, pousava aberto ao alto um leque formado de lâminas de cristal separadas, que a aragem entrando fazia vibrar, numa modulação melancólica e terna.

As manhãs do fim de Agosto em Pequim são muito suaves; já erra no ar um enternecimento outonal. A essa hora o conselheiro Meriskoff, os oficiais da Legação, estavam sempre na Chancelaria fazendo a mala para São Petersburgo.

Eu então, de leque na mão, pisando subtilmente na ponta das babouches de cetim as ruazinhas areadas do jardim, ia entreabrir a porta do Repouso Discreto:

– Mimi?

E a voz da generala respondia, suave como um beijo:

– All right...

Como ela era linda vestida de dama chinesa! Nos seus cabelos levantados alvejavam flores de pessegueiro; e as sobrancelhas pareciam mais puras e negras avivadas a tinta de Nanquim. A camisinha de gaze, bordada a soutache de filigrana de oiro, colava-se aos seus seios pequeninos e direitos: vastas, fofas calças de foulard cor de rosa de ninfa, que lhe davam uma graça de serralho, recaíam sobre o tornozelo fino, coberto de meia de seda amarela: – e apenas três dedos da minha mão cabiam na sua chinelinha...

Chamava-se Vladimira; nascera ao pé de Nidji-Novgorod; e fora educada por uma tia velha que admirava Rousseau, lia Faublas, usava o cabelo empoado, e parecia a grossa litografia cossaca de uma dama galante de Versalhes...
–––––––––––

Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com 

Clássicos do Cancioneiro Popular (A Vida de Pedro Cem)


Impressa em Recife, junho de 1932
–––––––

 Vou narrar agora um fato
 Que há cinco séculos se deu,
 De um grande capitalista
 Do continente europeu,
 Fortuna que como aquela,
 Ainda não apareceu.

 Pedro Cem, era o mais rico,
 Que nasceu em Portugal,
 Sua fama enchia o mundo
 Seu nome anda em geral,
 Não casou-se com rainha
 Por não ter sangue real.

 Em prédios, dinheiro e bens
 Era o mais rico que havia,
 Nunca deveu a ninguém
 Todo mundo lhe devia,
 Balanço em sua fortuna
 Querendo dar não podia.

 Em cada rua ele tinha
 Cem casas para alugar,
 Tinha cem botes no porto
 E cem navios no mar,
 Cem lanchas e cem barcaças,
 Tudo isto a navegar.

 Tinha cem fábricas de vinho
 E cem alfaiatarias,
 Cem depósitos de fazendas
 Cem moinhos e cem padarias
 E tinha dentro do mar,
 Cem currais de pescarias.

 Em cada país do mundo
 Possuía cem sobrados,
 Em cada banco ele tinha
 Cem contos depositados,
 Ocupava mensalmente
 Dezesseis mil empregados.

 Diz a história aonde eu li
 O todo desse passado,
 Que Pedro Cem nunca deu
 Uma esmola a um desgraçado.
 Não olhava para um pobre,
 Nem falava com criado.

 Uma noite teve um sonho
 Um rapaz o avisava
 Que aquele orgulho dele
 Era quem o castigava
 Aquela grande fortuna
 Assim como veio voltava.

 Ele acordou agitado
 Pelo sonho que tinha tido,
 Que rapaz seria aquele?
 Que lhe tinha aparecido
 Depois pensou, ora! Sonho,
 É devaneio do sentido.

 Um dia, no meio da praça
 Ele a uma moça encontrou,
 Essa vinha quase nua,
 Aos seus pés se ajoelhou
 Dizendo: senhor? Olhai!
 O estado em que estou.

 Ele torceu para um lado
 E disse: minha senhora?
 Olhe a sua posição!...
 E veja o que fez agora
 Reconheça o seu lugar,
 Levante-se e vá embora

 Oh! Senhor! Por esse sol
 Que de tão alto flutua,
 Lembrai-vos que tenho fome
 Estou aqui quase nua,
 Sou obrigada a passar,
 Nesse estado em plena rua.
 Ele repleto de orgulho
 Nem deu ouvido, saiu,
 A pobre ergueu-se chorando
 Chegou adiante caiu,
 Vinha passando uma dama
 Que com o manto a cobriu.

 Era a marquesa de Évora
 Uma alma lapidada,
 Tirando o seu rico manto
 Cobriu essa desgraçada,
 Ali conheceu que a pobre
 Foi pela fome postrada.

 Levante-se minha filha
 E pegou-lhe pela mão,
 Dizendo a criada a ela:
 Vá ali comprar um pão
 Que a essa pobre infeliz,
 Falta alimentação.

 Entregando-lhe uma bolsa
 Com quarenta e dois mil réis,
 Apenas tirou dali
 Um diploma e uns papéis
 Não consentindo que a moça
 Se ajoelhasse aos seus pés.

 E com aquela quantia
 Ela comprou um tear,
 Tinha mais duas irmãs
 Foram as três trabalhar
 Dali em diante mais nunca,
 Faltou-lhe com que passar.

 Vamos agora tratar
 Pedro Cem como ficou,
 E o nervoso que sentiu
 Uma noite que sonhou
 Que um homem lhe apareceu
 E disse olhe bem quem eu sou,

 Que tens feito do dinheiro 
 Que tomaste emprestado?
 Meu senhor mandou saber
 Em que o tens empregado?
 E por qual razão cumpriu
 As ordens que ele tem dado?

 Ele perguntou no sonho
 Mas que dinheiro eu tomei,
 Até aos próprios monarcas
 Dinheiro muito emprestei,
 O vulto zombando dele
 Disse: quem tu és eu sei.

 Que capital tinhas tu
 Quando chegaste ao mundo?
 Chegaste nu e descalço
 Como o bicho mais imundo
 Hoje queres ser tão nobre,
 Sendo um simples vagabundo.

 E metendo a mão no bolso
 Tirou dele uma mochila,
 Dizendo é esta a fortuna
 Que tu hás de possuí-la,
 Farás dela profissão,
 Pedindo de vila em vila.

 Pedro Cem sonhando disse:
 Ave agoureira te some
 Tua presença me perturba
 Tua frase me consome
 De qual mundo tu vieste?
 Diz-me por favor teu nome.

 Meu nome, disse-lhe o vulto
 És indigno de saber,
 Meu grande superior
 Proibiu-me de dizer.
 Apenas faço o serviço,
 Que ele me manda fazer.

 Despertando Pedro Cem
 Daquilo contrariado
 Ter dois sonhos quase iguais
 Ficou impressionado,
 Resolveu contrafazer,
 E ficar reconcentrado.

 Pensou em tirar por ano
 Daquela grande riqueza
 Sessenta contos de réis
 E dar de esmola à pobreza
 Depois refletindo, disse:
 Não me dá maior fraqueza

 Porque ainda mesmo Deus
 Querendo me castigar,
 Não afundará num dia
 Meus cem navios no mar,
 As cem fazendas de gado,
 Custarão a se acabar.

 As cem fábricas de tecidos
 Que tenho funcionando,
 Os parreirais de uvas
 Que estão todos safrejando,
 Cem botes que tenho no porto
 Todo dia trabalhando.

 Cem armazéns de fazendas
 As cem alfaiatarias,
 As cem fundições de ferro
 Cem currais de pescarias
 As cem casas alugadas,
 Cem moinhos, cem padarias.

 E as centenas de contos
 Nos bancos depositados,
 E tudo isso em poder
 De homens acreditados
 Ainda Deus querendo isso
 Seus planos eram errados

 Pedro Cem naquela hora
 Estava impressionado,
 Quando aproximou-se dele
 O seu primeiro criado,
 E disse: aí tem um homem,
 Diz vos trazer um recado.

 Mande que entre a pessoa
 Ele ao criado ordenou:
 Era um marinheiro velho
 Chegando ali o saudou,
 Que novas traz, meu amigo?
 Pedro Cem lhe perguntou.

 Disse o velho marinheiro:
 Venho-vos participar,
 Que dez navios dos vossos
 Ontem afundaram no mar
 Morreram as tripulações
 Só eu me pude salvar.

 Que navios foram esses?
 Perguntou-lhe Pedro Cem,
 Respondeu o marinheiro:
 Foi Tejo e Jerusalém
 E Douro e Penafiel
 Os outros eu não sei bem.

 Aquela inda estava ali
 Outro portador bateu
 O empregado das vacas
 Contou o que sucedeu;
 Incendiaram os cercados
 E todo o gado morreu.

 Pedro Cem nada dizia
 Ficando silencioso,
 Apenas disse: na terra
 Não há homem venturoso
 Quem se julgar mais feliz
 É pior que cão leproso.

 Chegou outro portador
 O empregado da vinha,
 Disse o depósito estourou
 Vazou o vinho que tinha
 Pedro Cem disse: meu Deus!...
 Que sorte triste esta minha.

 Saiu aquele entrou outro
 Era um cônsul norueguês,
 Disse nos mares do norte
 Andava um pirata inglês,
 Noventa navios vossos
 Tomou ele de uma vez.

 Meu Deus!... Meu Deus!... que fiz eu
 Exclamava Pedro Cem
 Não há homem nesse mundo
 que possa dizer vou bem,
 quando menos ele espera
 A negra desgraça vem.

 Dos cem navios que tinha
 Alguns foram afundados,
 E outros pelos piratas
 Nos mares foram tomados
 Acrescentou a pessoa:
 Vinham todos carregados.

 Ali mesmo veio o mestre
 Da barca Flor do Mundo
 Esse fitou Pedro Cem
 Com um silêncio profundo
 Depois disse: senhor marquês?!
 Dez barcaças foram ao fundo

 Quatros vinham carregadas
 Com bacalhau e azeite,
 Duas vinham da Suécia
 Com queijo, manteiga e leite,
 De todas as mercadorias
 Não tem uma que se aproveite.

 Quatro das dez que afundaram
 Traziam pérola e metal,
 Só da ilha da Madeira
 Vinham um milhão de coral
 Topázio, rubi, brilhante,
 Ouro, esmeralda e cristal.

 Pedro Cem baixou a vista
 Nada pôde refletir
 Exclamou que faço eu?
 Devo deixar de existir,
 Mas matando-me não vejo,
 Isso até onde pode ir.

 Chegou o moço do campo
 Tremendo e muito assustado
 E disse: senhor marquês
 Venho aqui horrorizado,
 Deu murrinha nas ovelhas
 E mal triste em todo gado.

 Naquele momento entrou
 Um rapaz auxiliar,
 Esse puxando um papel
 Disse: venho procurar,
 Tudo quanto se perdeu
 Na barca Ares do Mar.

 Pedro Cem perguntou quanto
 Tirou o moço uns papéis.
 Que se lia entre brilhantes
 Pulseiras, colares, anéis,
 Um milhão e quatrocentos
 E vinte contos de réis.

 Entrou outro auxiliar
 Disse eu quero pagamento,
 Por tudo que se perdeu
 No navio Chave do Vento
 Que vinha da América do Norte
 Com grande carregamento

 Chegou um tabelião
 Dá licença senhor Marquês?
 Venho lhe participar
 Que o grande banco francês,
 Dois alemães, três suíços
 Quebraram todos de vez

 Lá se foi minha fortuna
 Exclama Pedro Cem,
 Ontem fui milionário
 Hoje não tenho um vintém
 Só mesmo na campa fria,
 Eu hoje estaria bem.

 Dando balanço nos bens
 Quis até desesperar.
 Tudo quanto possuía
 Não dava para pagar
 Nem pela décima parte
 Os prejuízos do mar.

 Exclamava: oh! Pedro Cem
 Que será de ti agora!
 No pouco que me restava
 A justiça fez penhora,
 Pedro Cem de agora em diante
 Vai errar de mundo afora.

 Carpir esta sorte dura
 que a desventura me deu,
 Talvez muitas vezes vendo
 Aquilo que já foi meu,
 Em lugar que não se saiba
 Quem neste mundo fui eu.

 Ali no terraço mesmo
 Forrando o chão se deitou,
 As onze e meia da noite
 O sonho conciliou
 No sono sonhando viu
 O rapaz que lhe falou.

 Aquele perguntou, Pedro
 Como te foste de empresa,
 Já estás conhecendo agora
 Quanto é grande a natureza?
 Conheceste que teu orgulho
 Foi quem te fez a surpresa?

 Metendo a mão na algibeira
 Dali um quadro tirou.
 Onde havia dois retratos
 Que a Pedro Cem os mostrou
 Conheces esses retratos
 O rapaz lhe perguntou.

 Via-se naquele quadro
 Uma dama bem vestida
 Pedro Cem disse por sonho:
 Essa é minha conhecida
 A outra uma moça pobre
 Com fome no chão caída.

 Perguntava-lhe o rapaz:
 Quem é esta conhecida
 É a marquesa de Évora
 E esta que está caída?
 Essa? É uma miserável,
 Dessa classe desvalida.

 O rapaz puxa outro quadro
 Verde cor de esperança,
 Onde via-se uma monarca
 Suspendendo uma balança
 Estava pesando nela
 Caridade e esperança.

 Mostrou-lhe mais quatros quadros
 Que Pedro Cem conheceu,
 Tinha a Marquesa de Évora
 Quando a bolsa a pobre deu
 Que estirou a mão dizendo:
 Toma este dinheiro que é teu.

 No quadro via-se um anjo
 Assim nos diz a história,
 Com uma flor onde se lia:
 jardim da eterna glória,
 Presenteado por Deus,
 Esta palma de vitória.

 Quem planta flores tem flores
 Quem planta espinho tem espinho
 Deus mostra ao espírito fraco
 O que nega ao mesquinho,
 A virtude é um negócio
 A boa ação um pergaminho.

 Depois que ele acordou
 Triste impressionado
 Interrogava si próprio
 Porque sou tão desgraçado
 Achou na cama a mochila,
 Com que tinha sonhado.

 Será esta a tal mochila
 Que o fantasma me mostrou;
 É esta que o homem em sonho
 Em desespero exclamou:
 Na noite em que a cruel sina,
 Por sonho me visitou.

 De tudo restava apenas
 A casa de moradia,
 Essa mesma embargaram
 Antes de findar-se o dia
 Então disse Pedro Cem
 Cumpriu-se a profecia.

 Lançando a mão na mochila
 Saiu no mundo a vagar
 Implorando a caridade
 Sem alguém nada lhe dar
 Por uma cinco ou seis vezes
 Tentou se suicidar.

 Ele dizia nas portas:
 Uma esmola a Pedro Cem
 Que já foi capitalista
 Ontem tem, hoje não tem
 A quem já neguei esmola
 Hoje a mim nega também.

 Foi ele cair com fome
 Em casa daquela moça,
 Quando foi a porta dele
 Com fome, frio e sem força,
 Que ele não quis olhá-la
 A marquesa deu-lhe a bolsa.

 A criada o viu cair
 Exclamou: minha senhora!...
 Ande ver um miserável,
 Que caiu de fome agora,
 Onde? Perguntou a moça
 Ana disse: Ali fora.

 A moça disse à criada:
 Que trouxesse leite e pão
 Aproximando-se dele
 Disse: o que tens meu irmão
 Bateste em todas as portas
 Não encontraste cristão.

 Senhora! Se vós soubesseis
 Quem é esse desgraçado
 Não me abririas a porta
 Nem me davas esse bocado
 Respondeu ela: conheço
 Mas eu esqueço o passado.

 Me recordo que a marquesa
 Fez minha felicidade,
 Viu-me caída com fome
 Teve de mim piedade,
 Deu-me com que comprar pão
 E esta propriedade.

 Pedro Cem se levantou
 Disse obrigado e saiu
 Andando duzentos passos
 Tombou por terra, caiu
 E umas frases tocantes,
 Em alta voz proferiu:

 "Vai unir-se à terra fria
 O que não soube viver
 Soube ganhar a fortuna
 Mas não na soube perder
 Se tenho estudado a vida
 Tinha aprendido a morrer.

 Foi como a corrente d’água
 Que pela serra desceu,
 Chegou o verão a secou
 Ela desapareceu,
 Ficando só os escombros
 Por onde a água correu.

 Eu tive tanta fortuna
 Não socorria ninguém,
 A todos que me pediram
 Eu nunca dei um vintém,
 Hoje preciso pedir,
 Não há quem me dê também.

 Não desespero, pois sei
 Que grandes crimes hoje espio,
 Nasci em berços dourados
 Dormi em colchão macio
 Hoje morro como os brutos
 Neste chão sujo e frio.

 Foram as últimas palavras
 Que ali pronunciou,
 Margarida, aquela moça
 Que a marquesa embrulhou
 Botou-lhe a vela na mão,
 Ele ali mesmo expirou.

 A justiça examinando
 Os bolsos de Pedro Cem,
 Encontrou uma mochila
 E dentro dela um vintém
 E um letreiro que dizia:
 Ontem teve e hoje não tem.

Fonte:
Cascudo, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores. Rio de Janeiro, Ediouro, sd. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Mitos e Lendas (Lenda do Flamboyant)


No silêncio da floresta ouvia-se uma voz chorando, amargurada. 

Era uma árvore que chorava a tristeza de não ter flores.

Tupã ouviu-a e, condoído daquela angustia, resolveu mudar a sorte da pobre árvore. E sentenciou:

— Que os raios de fogo do sol ardente transformem os verdes ramos em milhares de flores rubras! 

E imediatamente tal aconteceu. 

A galharia das grandes árvores da floresta afastou-se e o sol, incidindo sobre a árvore que chorava, realizou o milagre: a copa verde do flamboyant transformou-se num lindo ramalhete de flores vermelhas, fulgurantes.

Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Luis Fernando Veríssimo (Pechada)


O apelido foi instantâneo. No primeiro dia de aula, o aluno novo já estava sendo chamado de "Gaúcho". Porque era gaúcho, recém-chegado do Rio Grande do Sul, com um sotaque carregado. 

– Aí, Gaúcho!

– Fala, Gaúcho! 

Perguntaram para a professora por que o Gaúcho falava diferente. A professora explicou que cada região tinha seu idioma, mas que as diferenças não eram tão grandes assim. Afinal, todos falavam português. Variava a pronúncia, mas a língua era uma só. E os alunos não achavam formidável que num país do tamanho do Brasil todos falassem a mesma língua, só com pequenas variações?

– Mas o Gaúcho fala "tu"! – disse o gordo Jorge, que era quem mais implicava com o novato.

– E fala certo - disse a professora. – Pode-se dizer "tu" e pode-se dizer "você". Os dois estão certos. Os dois são português.

O gordo Jorge fez cara de quem não se entregara.

Um dia o Gaúcho chegou tarde na aula e explicou para a professora o que acontecera.

– O pai atravessou a sinaleira e pechou.

– O que?

– O pai. Atravessou a sinaleira e pechou.

A professora sorriu. Depois achou que não era caso para sorrir. Afinal, o pai do menino atravessara uma sinaleira e pechara. Podia estar, naquele momento, em algum hospital. Gravemente pechado. Com pedaços de sinaleira sendo retirados do seu corpo.

– O que foi que ele disse, tia? – quis saber o gordo Jorge.

– Que o pai dele atravessou uma sinaleira e pechou.

– E o que é isso?

– Gaúcho... Quer dizer, Rodrigo: explique para a classe o que aconteceu.

– Nós vinha...

– Nós vínhamos.

– Nós vínhamos de auto, o pai não viu a sinaleira fechada, passou no vermelho e deu uma pechada noutro auto.

A professora varreu a classe com seu sorriso. Estava claro o que acontecera? Ao mesmo tempo, procurava uma tradução para o relato do gaúcho. Não podia admitir que não o entendera. Não com o gordo Jorge rindo daquele jeito.

"Sinaleira", obviamente, era sinal, semáforo. "Auto" era automóvel, carro. Mas "pechar" o que era? Bater, claro. Mas de onde viera aquela estranha palavra? Só muitos dias depois a professora descobriu que "pechar" vinha do espanhol e queria dizer bater com o peito, e até lá teve que se esforçar para convencer o gordo Jorge de que era mesmo brasileiro o que falava o novato. Que já ganhara outro apelido: Pechada.

– Aí, Pechada!

– Fala, Pechada!

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos