sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Hildeberto Barbosa Filho / MA (Pequena Propedêutica Litúrgica ao Sagrado Corpo da Mulher Amada)


 nada
 é mais sagrado
 que o corpo da mulher
 amada

 o corpo
 da mulher amada
 é um evangelho de veredas
 abissais

 é uma planície habitada
 por silentes centopéias

 é sempre um país estranho
 estrangeiras águas
 donde vêm as violetas
 do amor

 o corpo
 da mulher amada
 está salpicado de picassos
 vermelhos
 e os milharais sobrevoam
 os corvos do coração

 o corpo
 da mulher amada
 sangra a cada mês
 a divina palidez das metáforas
 nuas

 o corpo
 da mulher amada
 tem vidraças
 tem chafarizes
 e tem colmeias
 e tem garças
 e tem antíteses

 procuremos
 no corpo da mulher
 amada
 os demônios do paraíso

 bebamos
 o corpo da mulher
 amada
 como os sedentos que naufragam
 nas miragens do deserto

 [...]
 o corpo
 da mulher amada
 é para ser olhado como se olha
 uma paisagem de gerânios
 solitários

 é para ser tocado como se toca
 as harpas do sol
 é para ser consumido como se consome
 uma rara liturgia

 é para ser amado como se ama
 o secreto lume da noite
 derradeira

 pobre do amante
 que não alcança as mandalas
 eróticas

 os imprevistos rituais
 os translúcidos castiçais
 os lóbulos lacustres
 do corpo da mulher
 amada

 o corpo
 da mulher amada
 nunca morre

 o corpo
 da mulher amada
 nunca apodrece

 o corpo
 da mulher amada
 nunca é pornográfico

 nunca é banal
 nem árido
 nem deserto

 nunca é abjeto
 o corpo da mulher
 amada

 o corpo
 da mulher amada
 é alma tangível

 mais sagrado
 que o corpo da mulher
 amada
 só o beijo da mulher
 amada

 [...]

Fonte:
FILHO, Hildeberto Barbosa. Nem morrer é remédio, Poesia reunida. João Pessoa, PB: Ideia Editora Ltda., 2012, p.259-265

José Antonio Jacob (Sonetos Escolhidos)


SONETO PARA UMA AQUARELA
(ou a princesa e o sapo)

Na desbotada folha do papel
 Luiza vai compondo o meu destino,
 De início ela pintou um lindo céu
 Acima dos meus sonhos de menino.

 Depois foi desenhando: um carrossel,
 Uma quermesse, uma igrejinha e um sino.
 E, ao lado de um castelo pequenino,
 Uma princesa e um sapo num corcel.

 Em derredor, nos campos, se depara,
 Lírios-do-vale, margaridas, dálias.
 Uma aquarela de paisagem rara.

 Ó doce Luiza, ó flor que me ampara!
 Por que sua princesa usa sandálias
 E o feio sapo tem a minha cara?!…

DE VOLTA AOS QUINTAIS

Mesmo corrido o tempo guardo apreço
 Aos meus passos cansados, desiguais,
 Que sempre me levaram sem tropeço
 Ao refúgio da infância dos quintais.

 Nada mudou! De longe reconheço
 A confraria alegre dos pardais
 E as mesmas roupas claras nos varais:
 Nunca tirei daqui meu endereço!

 Apenas me ausentei de casa cedo,
 Qual criança que se afasta do folguedo
 Para mais tarde aconchegá-lo a si.

 Eu sou esse menino arrependido
 E quero o meu brinquedo envelhecido
 Para brincar no tempo que perdi!

ELOGIO À DOR DO DESAMOR

I

Ainda que até o amor você me roube
 (Pode roubar-me sem abrir a porta)
 Rogarei que outro amor maior me arroube,
 Pois só o amor meu coração conforta.

 Ora, que triste, a noite é quase morta!
 E o meu beijo em seus lábios nunca coube,
 Eu amo a dor e a dor não me suporta
 Porque eu já morri e você não soube.

 O meu amor que o seu amor espalma,
 Em troca de ter-me arrebatado a alma,
 Haverá de avivar as suas dores.

 Que vibre no seu peito outros amores!
 Você feriu-me a vida e dou-lhe flores...
 E morro sem você na noite calma.

  II

Que doce olhar... e a vida é tão pequena!
 O mundo é triste sem seu doce olhar...
 Para mim seu olhar é uma novena
 Que acompanho de longe sem rezar.

 Amo-a tanto e ela sabe que me amar
 É dor, tristeza, mágoa, perda e pena,
 Por isto ela não me ama e me condena
 A entrar no céu e não poder ficar.

 Que coisa triste, que desesperança!
 Ponho em seus olhos meu olhar que clama
 E ela olha-me inocente feito criança.

 Adeus! (meu breve adeus é o de quem ama)
 Deixo-lhe meu sorriso de lembrança,
 Pois tenho de ir que a minha dor me chama.

III
  
Não me diga adeus que ainda é cedo amor,
 Antes sorria para que eu não chore
 E deixe que entre nós tudo demore,
 Até a despedida e o desamor.

 Eu sei que você sabe a minha dor,
 (E haja em mim mais angústia que lhe implore)
 Essa dor que os meus olhos descolore
 Haverá de ficar se você for.

 Não faça assim amor, não me entristeça,
 Se for para você se despedir
 Tomara que amanhã não amanheça!

 Nada acontece quando Deus não quer,
 E eu peço a Deus para você não ir
 Nem me dizer adeus... Se Deus quiser!

IV

Enquanto, em seu olhar, o amor se cala,
 Se Deus quiser você verá que aqui
 No meu olhar é o coração que fala:
 - É a minha alma que nele lhe sorri!

 Eu tive tanto tempo para amá-la,
 Os dias todos em que não morri,
 E amei a solidão na minha sala
 Nos mesmos dias em que não vivi.

 Eu não a vejo na minha saudade,
 E o que os seus olhos podem me dizer
 Sua saudade ingênua não me diz.

 Que seu olhar se cale de verdade!
 Mas se a verdade é o que me faz sofrer
 Dê-me a mentira para eu ser feliz.

O VENDEDOR DE BONEQUINHOS

De manhãzinha, à beira da calçada,
 Diariamente a corda eu estendia,
 E pendurava nela uma braçada
 De bonequinhos feios que eu vendia.

 Eram polichinelos que eu fazia
 De trança de algodão, mal desfiada...
 No pano das feições não conseguia
 Puxar-lhes traços de melhor fachada.

 Ao desbotar o azul, no fim do dia,
 Quando eu os desatava dos alinhos
 Desse varal de cordeação brilhante,

 Esses desengonçados bonequinhos
 Desciam-me nas mãos com alegria
 E me davam abraços de barbante.

A DOR DO VINHO

Lembras-te tu do vinho da ilusão,
 Que, entre olhares confusos de fumaças,
 Bebemos devagar em nossas taças
 E que nos deu delírios de paixão?

 Bem me lembro dos risos nas vidraças
 E da música suave no salão,
 E que ninguém mais nos prestava graças
 Quando toquei de leve a tua mão.

 E enquanto te fiz tratos de carinho
 E amei teus olhos grandes e indecisos,
 Fitaste-me a sorrir em desvario...

 E zonzo, para o sempre, fui sozinho,
 Levando na lembrança os teus sorrisos
 E o coração no peito mais vazio…

VERSOS DE AMOR

Ó alma solitária, outrora envaidecida,
 Que dirás aos teus olhos, nesta noite morta,
 Ao veres tua vida triste e desflorida,
 Se o desespero vier te aferrolhar a porta?
  
 - Aqui jaz a pessoa que ninguém suporta!
 (Mal ouvirás o som da tua voz ferida)
 E escreverás no espelho, com a letra torta,
 A derradeira frase de repúdio à vida.
  
 Caso vieres, Senhora, sofrer a inquietação,
 Da incômoda lembrança, dos doces sinais,
 Que o passado feliz deixa no coração...
  
 Lembres que teu futuro não existe mais,
 Que estás vivendo a última recordação
 Nestes versos de amor de quem te amou demais…

Fontes:

José Antonio Jacob (1950)


José Antonio de Souza Jacob, nasceu em Juiz de Fora (MG) em 11 de fevereiro de 1950 onde realizou seus primeiros estudos, ingressando em seguida no curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais "Vianna Júnior”. 

No final dos anos 70 iniciou-se no jornalismo como redator da Gazeta Comercial, tendo nessa época se aprofundado no estudo de Filosofia e Letras e logo em seguida foi admitido, por concurso, na área de Recursos Humanos da Companhia Telefônica de Minas Gerais, tendo se aposentado do serviço público em 2005. 

Desde as primeiras letras o menino foi estimulado a ler poetas, levado pela mão de seu pai, um comerciante que apreciava poesia, especialmente a dos brasileiros e dos portugueses. 

Entre as leituras de sua adolescência estão poesias de Raul de Leôni, Mário Quintana, Augusto dos Anjos, António Nobre, Cesário Verde, Fernando Pessoa, José Gomes Ferreira e Charles Baudelaire. 

Da mãe Heloisa herdou a doçura das palavras e a maneira singela de contemplar a vida sem ser alienado. 

Seu estilo simples e requintado de escrever poesia conquistou grandes poetas e escritores, de sua cidade, de quem passou a desfrutar de convivência contínua, mesmo ainda muito jovem. 

Por sua perfeição na metrificação e na qualidade poética é considerado por muitos que conhecem sua obra como “um dos mais importantes sonetistas da língua portuguesa na atualidade”. 

Este juizforano, nascido sob o signo de aquário, recusa-se a escolher seu verso do coração e a participar de escolas e grupos literários, preferindo o sossego da vida bucólica nos arredores de Juiz de Fora. 

A 27 de abril de 2007 foi condecorado e recebeu a insigne Medalha do Mérito Legislativo, Mérito Excepcional em Poesia, na Câmara Municipal de Juiz de Fora. 

A 06 de julho de 2007 foi sancionado pelo prefeito de Juiz de Fora o "Título Honorífico de Cidadão Benemérito de Juiz de Fora ao Poeta José Antonio de Souza Jacob", por indicação do vereador Bruno Siqueira, com aprovação unânime da Câmara Municipal. Acadêmico HONORÍFICO AVPB, ocupa a cadeira de honra n 01.

Fonte:

Mitos e Lendas (O Urubu e o Sapo)



Certa vez, o urubu e o sapo foram convidados para uma festa no céu. Todos os pássaros tinham sidos convidados e estavam contentes. O urubu, querendo caçoar do sapo, foi à casa dele e falou-lhe: 

— Ei, compadre sapo! Já sei que você também vai à festa no céu! Quero ir em sua companhia.

— Pois não, compadre urubu — respondeu calmamente o sapo — contanto que você leve a sua viola. 

— Como não? Contanto que você leve seu pandeiro. 

Combinaram que o urubu viria buscar o compadre no dia seguinte.

No dia da festa, o urubu chegou à casa do sapo e foi muito bem recebido. O sapo mandou-o entrar, para ver a comadre e os afilhados. E enquanto o urubu estava entretido, o sapo entrou na viola do urubu, dizendo: 

— Até logo, compadre. Como ando devagar, já vou indo.

E ficou bem quietinho dentro da viola do urubu. Dali a pouco o urubu despediu-se da comadre e dos afilhados, pegou na viola e voou para o céu. 

Quando chegou, perguntaram-lhe pelo compadre, mas o urubu disse: 

— Ora, ele não vem, nada. Se anda tão devagar lá em baixo, como há de voar?

Quando o urubu deixou a viola num canto, o sapo saltou de dentro e apareceu entre os convidados, gritando:

— Pronto, gente! Aqui estou eu! 

Todos se admiraram de ver o sapo naquelas alturas mas, pouco depois, começaram a dançar e a brincar, esquecendo-se dele. Mas a festa acabou e chegou a hora de voltar. Novamente o sapo, sem ser visto, meteu-se na viola do urubu, que largou vôo para a terra. Mas o sapo moveu-se dentro da viola, o urubu ouviu e virou o instrumento de boca para baixo. Então o sapo despencou lá de cima e, enquanto caia, gritava: 

— Arreda pedra, senão você se quebra! 

— Ora essa! — exclamou o urubu rindo — Não é que o compadre sapo sabe mesmo voar? 

O sapo caiu, esborrachou-se e esfolou-se todo. Por isso é que ele é assim como o vemos hoje.

Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Clássicos do Cancioneiro Popular (A Sogra Enganando o Diabo)


 Dizem, não sei se é ditado,
 Que ao diabo ninguém logra;
 Porém vou contar o caso
 Que se deu com minha sogra.
 As testemunhas são eu,
 Meu sogro, que já morreu,
 E a velha, que é falecida.
 Esse caso foi passado
 Na rua do Pé Quebrado
 Da vila Corpo Sem Vida.

 Chamava-se Quebra-Quengo
 A mãe de minha mulher,
 Que se chamava Aluada
 Da Silva Quebra-Colher,
 Filha do Zé Cabeludo.
 Irmã de Vítor Cascudo
 E de Marcelino Brabo,
 Pai de Corisco Estupor;
 Mas ouça agora o senhor
 Que fez a velha ao diabo.

 Minha sogra era uma velha
 Bem carola e rezadeira,
 Tinha seu quengo lixado,
 Era audaz e feiticeira;
 Para ela tudo era tolo,
 Porque ela dava bolo
 No tipo mais estradeiro.
 Era assim o seu serviço:
 Ela virava o feitiço
 Por cima do feiticeiro!

 Disse o demo: — Quebra-Quengo,
 Qual é a tua virtude?
 Dizem que és azucrinada
 E que a ti ninguém ilude?
 Disse a velha: — Inda mais esta!
 Você parece que é besta!
 Que tem você c’o que faço?
 Disse ele: — Tudo desmancho,
 Nem Santo Antônio com gancho
 Te livra hoje do meu laço!

 Ela indagou: — Quem és tu?
 Respondeu: — Sou o demônio,
 Nem me espanto com milagre,
 Nem com reza a Santo Antônio!
 Pretendo entrar no teu couro!
 E nisto ouviu-se um estouro!
 Gritou a velha: — Jesus!
 Ligeira se ajoelhou
 E, depois, se persignou
 E rezou o Credo em cruz!

 Nisto, o diabo fugiu.
 E, quando a velha se ergueu,
 Ele chegou de mansinho,
 Dizendo logo: — Sou eu!
 Agora sou teu amigo
 Quero andar junto contigo,
 Mostrar-te que sou fiel.
 Minha carta, queres ver?
 A velha pediu pra ler
 E apossou-se do papel.

 — Dê-me isto! grita o diabo,
 Em tom de quem sofre agravo.
 Diz a velha: — Não dou mais!
 Tu, agora, és o meu escravo!
 Disse o diabo: — Danada!
 Meteu-me numa quengada!
 Sou agora escravo dela!
 E disse com humildade:
 — Dê-me a minha liberdade,
 Que esticarei a canela!

 Disse a velha: — Pé de pato,
 Farás o que te mandar?
 Respondeu: — Pois sim, senhora,
 Pode me determinar,
 Porque estou no seu cabresto
 Carregarei água em cesto,
 Transformarei terra em massa,
 Que para isso tenho estudo;
 Afinal, eu farei tudo
 Que a senhora disser — faça!

 Disse a velha: — Vá na igreja,
 Traga a imagem de Jesus.
 Respondeu: — Posso trazê-la,
 Mas ela vem sem a cruz,
 Porque desta tenho medo!
 Disse a velha: — Volte cedo!
 Ele seguiu a viagem
 E ao sacristão iludiu:
 Uma estampa lhe pediu
 Que só tivesse uma imagem.

 A velha, então, conheceu
 Do cão o quengo moderno,
 E, receando que um dia
 A levasse para o inferno,
 Para algum canto o mandou
 E em sua ausência traçou
 Com giz uma cruz na porta.
 Voltou o cão sem demora,
 Viu a cruz, ficou de fora,
 Gritando com a cara torta.

 Gritou o cão no terreiro:
 — Aqui não posso passar!
 Venha me dar minha carta,
 Quero pro inferno voltar!
 Disse a velha que não dava,
 Mas ele continuava
 A rinchar como uma besta.
 — Pois fecha os olhos! ela diz.
 Ele fechou e, com giz,
 Fez-lhe outra cruz bem na testa!

 Aí entregou-lhe a carta
 E o demo pôs-se na estrada,
 Dizendo com seus botões:
 — Não quero mais caçoada
 Com velha que seja sogra,
 Porque ela sempre nos logra!
 Foi, assim, a murmurar.
 Quando no inferno chegou,
 O maioral lhe gritou:
 — Aqui não podes entrar!

 — Então, já não me conhece?
 Perguntou ao maioral.
 — Conheço, porém, aqui
 Não entras com tal sinal:
 Estás com uma cruz na testa!
 Disse ele: — Que história é esta?
 Que é que estás aí dizendo?
 Mirou-se dum espelho à luz:
 Quando distinguiu a cruz,
 Saiu danado, correndo!

 E, na carreira em que ia,
 Precipitou-se no abismo,
 Perdeu o ser diabólico,
 Virou-se no caiporismo,
 Pela terra se espalhou,
 Em todo lugar se achou,
 Ao caipora encaiporando,
 Embaraçando seus passos
 E com traiçoeiros laços
 As sogras auxiliando...

 Deste fato as testemunhas
 Já disse todas quais são.
 Agora, quer o senhor
 Saber se é exato ou não?
 Invoque no espiritismo
 Ou pergunte ao caiporismo,
 Este que sempre nos logra,
 Se sua origem não veio
 Do diabo imundo e feio
 E do quengo duma sogra!

Fonte:
Barroso, Gustavo. Ao som da viola (folclore); nova edição correta e aumentada. Rio de Janeiro, 1949. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140.Edição Especial de Aniversário

Coelho Neto (Mano) Parte 2


SEDE

Na escala dos ásperos tormentos, entre tantos que sofreu Jesus, foi o da sede o mais acerbo e o único de que ele deu queixa.

Não se lhe ouviu palavra quando dos tratos e afrontas com que o aviltaram no Pretório. Nas três vezes que caiu no caminho do Calvário não soltou um gemido: calado suportou a cravação na cruz e calado nela esteve até a hora terça da tarde.

Secaram-se-lhe, porém, os lábios e ele entreabriu-os arquejantemente bradando aos seus algozes:

- Tenho sede!

De tais palavras à rendição do espírito divino mediou apenas o instante breve em que soou o “Consummatum est!”

Mais longa que a de Jesus foi a agonia de meu filho.

Durante dias, a todo o instante, queixava-se ele de sede e eram todos a atendê-lo, cada qual mais solícito,

Que intenso ardor o abrasaria para que se não saciasse, já reclamando água mal lhe retiravam o copo dos lábios ávidos?

Febre? nem tanto acusava o termômetro. Que incêndio lhe arderia nas entranhas para que, apenas sorvia, sôfrego, a água que lhe davam, no mesmo instante fosse ela absorvida, como se caísse em forno caldo?

Não, não era febre, se não a própria vida em luta, que reclamava o que se lhe esvaía a golfos.

Quando o retiramos do leito foi que se nos patenteou a causa da insaciável sede: o colchão, o estrado, ainda o soalho, sob o leito, tudo era púrpura.

E, pois, como havia ele de acalmar-se se a água, assim como lhe descia a goles árdegos, saía-lhe tinta de sangue, dessorando as artérias exauridas?

E, como um vaso partido, de que se extravasa a água que alimenta flor querida, assim pela artéria aberta escoou-se todo o sangue daquele corpo, e a vida, flor que era o nosso encanto, murchando pouco a pouco, feneceu à míngua do que a mantinha.

VOLTA AO NINHO

Pediu-me que o mudasse de leito, e quis o nosso.

Podia alguém imaginar que era o Destino que o fazia retroceder ao ponto onde principiara a sua genitura para encerrar o círculo fatal?

Quem o diria presa da morte vendo-o tio robusto, em pleno viço de saúde, mascarando com o sorriso o ricto do sofrimento?

Alarmando-me o grande aparato de socorros de que se cercava o médico e a solicitude ativa do enfermeiro, interroguei-os aflito.

Sorriram-me tranqüilizando-me. Ele próprio estranhou os meus cuidados impertinentes.

“Era lá possível, diziam, que tão exuberante mocidade perecesse, frágil como uma ruína? Só um desastre.”

Todavia eu procurava ler nos olhos de quantos o visitavam e, desconfiado, tornei-me espião dentro da minha casa, vigilo, atento a tudo e a todos, escutando às portas, caminhando mansinho no silêncio das noites desveladas para surgir, a súbitas, entre os que se lhe revezavam à cabeceira, surpreender cochichos, gestos, ver o que faziam, ouvi-lo, a ele, inquieto, de olhos despertos e ansiosos, gemendo, a pedir alívio ainda que à custa de martírios.

Mísero corpo! Quanto sofreste pungido, de instante a instante, para inoculações de vida efêmera.

Por que não haviam de dizer-me a verdade? Por que não ma disseram, se a sabiam? Ao menos eu não o teria deixado um só instante e, aproveitando-me, sem desperdício de um segundo, do tempo que lhe restava, tanto o havia de prender a mim que... sabe-se lá o que é a vida e como são as raízes que a sustentam e nutrem! - talvez não fosse tão fácil à Morte arrancar-mo do amor.

Mas confiava em todos, nele principalmente e, quando saí da ilusão em que me mantinha a esperança, onde o vira nascer, no leito que ele pedira, o nosso, vi-o, pouco a pouco, aquietar-se, cerrar os olhos, dormir nos braços daquela mesma que, em pequeno, o acalentava e que, então, o abraçava imóvel, sem lágrimas, como se a dor a houvesse petrificado, como faz o inverno intenso com as águas múrmuras e correntias.

Leito de nascimento, ninho; leito de morte, esquife: princípio e fim da mesma felicidade, tu no-lo deste, tu no-lo levaste.

Agora, quando me deito, antes do sono vir, sinto-o comigo, a meu lado, vivo na minha lembrança, em saudade, sombra que me ficou no coração, rastro de uma ventura que passou, sonho com que me consolo dentro da noite triste e eterna, no qual o vejo desde pequenino, quando ali nasceu para tão curta vida, até o doloroso instante em que se foi para o sempre. 

O VIÁTICO

Ao Rev. Sr. Padre Henrique de Magalhães, que o confessou e ungiu

Quando, dissimulando a agonia, entrei no quarto para abençoá-lo e o vi arfando, imóvel, alagaram-se-me os olhos. Quis falar: as palavras desfizeram-se-me em balbucios, como se dissolvem em espuma as vagas de encontro às penhas.

Estatelei-me, de mãos enclavinhadas, trêmulo. Acendeu-se-me, então, na Fé o último clarão de esperança e minh'alma elevou-se, em surto, a Deus.

Fugindo daquele transe, procurei a que não chorava: fria, apática diante da catástrofe, imagem da geleira eterna que não deflui, petrificada em friul.

Expus-lhe o que me inspirava a Crença: a conveniência de o prepararmos para a partida e ela, encarada em mim, hirta, impassível, abriu desmesuradamente os olhos espavoridos, parecendo medir a imensidão da nossa desventura.

Insisti. Tremeram-lhe, de leve, os lábios como vibra a haste do arbusto ante o adejo de um beija-flor.

Pedi a alguém que fosse à igreja próxima buscar um sacerdote.

O tempo que mediou entre a partida do emissário e a chegada do religioso foi tão breve ou tanto eu nele me perdi que, ao avisarem-me da chegada do padre fiquei surpreso como de milagre.

Sim, era ele com a maleta em que vinham os sacramentos.

Olhamo-nos sem palavras. Silêncio como jamais abafara a minha casa encheu-a toda. As próprias janelas, largamente abertas, não pareciam respirar.

Pé ante pé tornei ao quarto, certo de encontrar o enfermo na inércia em que o deixara. E que vi eu, arrepiado de horror e no auge da mais feliz surpresa? Meu filho a olhar pela janela aberta o céu azul, almofadado em nuvens, os ramos da árvore da rua, que devassam o mais íntimo do nosso lar (ramos onde, de madrugada, quase conosco, doméstico, saltita certo passarinho, e canta), tão calmo, tão sereno, que dir-se-ia haver acordado de noite bem dormida e estar ali gozando a preguiça da manhã.

Fora uma crise apenas e eu, por ela, imprudentemente, me precipitara.

Que fazer? Despedir o sacerdote? Anunciá-lo ao enfermo? Tal anúncio valeria por sentença e ainda havia esperança em nossos corações. E ele nem sequer pensava na gravidade do seu estado, tanto que, momentos antes, ao raiar da alva, quando a passarada começava com os gorjeios, dissera, lembrando-se de passados tempos e pensando em futuros dias:

“Esta é a hora melhor no mar. Os rapazes devem estar treinando. E eu, aqui! Enfim... ainda pode ser...”

O coração cresceu-me, harto; as veias túrgidas puseram-se a latejar, a ímpetos; lágrimas ardiam-me nos olhos.

Que fazer? Que dizer?!

Foi ele que me tirou da hesitação angustiosa, perguntando-me, a sorrir, surpreendido com a minha atitude:

- Que tens? Porque me olhas assim?

Que teria ele visto nos meus olhos, percebido no meu olhar que ia tão longe. tão longe que chegava à morte?

Animei-me a falar. Não sei que disse, não sei!

De repente vi-o cerrar a fronte, soerguer-se a custo, fitar-me a vista terebrante, pálido, de lábios trêmulos e exclamar, com espanto doloroso, como se eu o houvesse amaldiçoado: “Papai!”

É que eu rasgara violentamente o véu misterioso mostrando, no fundo da esperança, Deus é que eu lhe anunciara a hora suprema da Religião, hora última da terra, hora que não soa nem declina hora incomensurável, parada, fora do dia e da noite, rosto da Eternidade.

Houve, então, entre nós, um olhar, e, nesse olhar, como se cruzam no beijo os amores, cruzaram-se desesperos.

Tentei justificar o meu procedimento:

“Que a religião e a medicina que não falha, porque os seus remédios são aviados por Deus, e salvam”.

As lágrimas intrometeram-se-me pelas palavras e ele, comovido, tomou-me a mão, atraiu-me a si e, meigo, interrogou-me.

- Você quer?

Solucei, acenando afirmativamente.

- E mamãe?

Respondi com o olhar.

- Pois sim, concordou, suave: então também eu quero.

Todo o meu fôlego afluiu-me à garganta, sufocando-me.

Ele, sentindo a minha angústia, sorriu-me confirmando o que dissera com um gesto de brandura.

Caminhei para a porta. Antes, porém, de sair voltei-me. ele inclinara a cabeça e então vi as lágrimas da sua juventude, os seus sonhos desfolhando-se às gotas, todos os seus amores despedindo-se. Saí. O sacerdote entrou.

Quanto tempo durou a confissão daquela alma em flor? Foi para o meu coração tão longo que ainda nele persiste e durará enquanto eu viver, durará como um remorso dentro da minha saudade; durará como espinho na flor da minha ternura.

Quando o padre saiu, fui-me direito a ele. Chorava e sorria.

Chorava como homem, com pena daquela vida talada em pleno viço. Sorria como sacerdote, por haver achado em anos tão tenros coração tão virtuoso.

Então atrevi-me a tornar ao quarto e, ainda hoje, pensando nesse momento grandioso e horrível, hesito em decidir se fiz mal, se fiz bem: mal, levando àquela consciência, ainda clara, a certeza da morte; bem, preparando para Deus quem, já de partida, ainda nos iludia com a coragem e a robustez, ainda nos acariciava com a meiguice e, já desprendido da terra, de asas abertas para o vôo, ainda nos abraçava, animando aos que ficavam na vida, ele, que começava a morrer. 

E, ainda hoje, nos silêncios em que me encerro com minha alma, murmuro, em dúvida que me excrucia:

“Quem sabe se o não entreguei cedo demais a Deus! É possível que se eu lhe não houvesse quebrado as forças da alma, se não houvesse, imprudentemente, substituído a Esperança pela Fé, deslocando-o da terra para o céu, ele resistisse e ainda vivesse conosco, amado e amando-nos”.

Mas... E se, por descuido nosso, ele partisse sem a unção que salva?!

Precipitei-me, talvez, mas foi ainda por amor, para que tua alma, meu filho, fosse, como foi, na tristeza daquela tarde lúgubre, direita e triunfante para o esplendor eterno, que é o próprio olhar de Deus.

–––––––––continua

Fonte:
http://leituradiaria.com