segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Antonio Roberto Fernandes (Poemas Escolhidos)


NOSSAS MÃOS

As tuas mãos tão belas, tão formosas.
 As tuas mãos afeitas aos carinhos.
 As minhas mãos tão feias, tão nervosas.
 As minhas mãos expostas aos espinhos.

As tuas mãos me tocam por piedade.
 As minhas mãos te afagam, mas com medo.
 As tuas mãos são mãos pra eternidade.
 As minhas mãos são mãos de morrer cedo.

As tuas mãos nas minhas, que contraste!
 Mas se não fossem elas, que desastre,
 nem sei das minhas mãos o que seria! 

Por isso às tuas mãos eu agradeço
 o carinho que eu sei que não mereço
 e que em outras mãos não acharia!…

LADAINHA

Olhai pra mim, mulher da minha vida!
 Senhora dos meus sonhos, me escutai!
 Minh' alma já não sabe aonde vai,
 neste vale de lágrimas perdida.

Com a luz de vossos olhos me mostrai
 um caminho, uma chance, uma saída,
 Senhora finalmente aparecida,
 meus negros horizontes clareai.

Não tenho vocação para o martírio,
 perdão se é heresia o meu delírio
 mas nestes lábios que têm fogo e mel.

Arrebatai-me agora, ao gozo eterno
 para que eu - que já conheço o inferno -
 possa, convosco, conhecer o céu!.…

FELICIDADE

Quando “eu era feliz e não sabia”,
 - como diz o poeta, na canção – 
 aos meus desejos, sempre, com ironia,
 o meu destino respondia: não. 

 E tudo o que eu sonhava, a cada dia,
 sempre ficava além da minha mão.
 Se era feliz quem tinha o que queria
 eu nunca pude ser feliz, então.

 Hoje, afogado na realidade,
 relembro a minha infância, com saudade,
 não por ter sido um tempo em que eu sonhei, 

 mas porque, ainda envolto em fantasia,
 eu não era feliz e não sabia,
 como hoje não sou...mas hoje eu sei.

OS PRATOS DE VOVÓ

A minha avó guardava, com alegria,
 muitos pratos, lindíssimos, de louça
 que ganhou de presente, quando moça,
 e que esperava usar – quem sabe? – um dia.

 Mas a vida passando tão insossa
 e nada de importante acontecia
 e ninguém pra jantar aparecia
 que compensasse abrir o guarda-louça.

 Vovó morreu. Dos pratos coloridos
 que hoje estão quebrados e perdidos
 ela jamais usou sequer um só.

Assim também meus sonhos, tão guardados,
 terão, por nunca serem realizados,
 o mesmo fim dos pratos de vovó.

POEMA DA MINHA TERNURA

A minha amada é pura como o orvalho
 que beija as flores pela madrugada.
 As suas mãos são feitas de veludo.
 Juntinho dela sou maior que tudo
 e longe dela sou menor que nada

 A minha amada mostra nos olhinhos
 a luminosidade da manhã.
 A sua voz perfuma a natureza.
 Juntinho dela a vida é uma certeza
 e longe dela uma esperança vã.

 A minha amada tem nos lábios rubros
 uma doçura sem definição.
 Ao seu sorriso desabrocham flores.
 Juntinho dela o mundo é luz e cores
 e longe dela negra solidão.

 A minha amada fala tão bonito
 que até me surpreende, até me assusta.
 Tem das rainhas o semblante e a graça.
 Juntinho dela como o tempo passa
 e longe dela como o tempo custa.

 A minha amada é minha há  mil milênios
 e eu dela sempre fui, antes de mim.
 O nosso amor respira eternidade.
 Juntinho dela é pouco a imensidade
 e longe dela o nada não tem fim. 

 A minha amada é pura como o orvalho
 que beija as flores pela madrugada,
 As suas mãos são feitas de veludo.
 Juntinho dela sou maior que tudo
 e longe dela sou menor que nada.

EMOÇÃO

Quando não há mais nada a ser falado,
 quando os olhares não se cruzam mais,
 é hora de se ver que há algo errado
 nos relacionamentos conjugais.

 Já não importa aí quem é culpado,
 nada resolvem cenas passionais
 nem simpatias contra o mau-olhado
 ou conselheiros matrimoniais. 

 É o fim. Pronto. Acabou. Não tem mais jeito.
 Se, de emoção, um dia ardeu o peito
 que dela reste uma lembrança boa.

 Não se deve é fechar-se numa esfera,
 sem ver que pode estar à nossa espera
 outra emoção no olhar de outra pessoa.

AINDA

Espero que você me ame ainda
 no dia em que bater à sua porta
 e lhe dizer que, agora, só me importa
 livrar-me, enfim, desta saudade infinda.

 E ver no seu olhar que me conforta
 e ouvir de sua boca doce e linda
 que esta minha presença foi bem-vinda,
 que sua casa ainda me comporta.

 Aí, então, num demorado beijo,
 terei pena de quem tem por desejo
 conquistar o dinheiro, a sorte, a fama,

 Pois nada terá tal encantamento
 do que, depois de tanto sofrimento,
 ouvir você dizer que ainda me ama.

RISCO E PETISCO

Minha avó sempre falava:
 - Só petisca quem arrisca.
 E eu, de inicio, perguntava:
 - Vovó, o que é petisca? 

 Ela, então, me respondia:
 - Petisca é de petiscar,
 conseguir alguma coisa
 que se sonhava ganhar. 

 E pra isso precisamos
 arriscar nosso pescoço,
 se não outros comem carne
 e nós roemos o osso.

 O mundo tem muita gente
 e a vida é um constante risco
 pra quem quer chegar na frente
 e conseguir um petisco.

 E o que seria um petisco?
 - Petisco é uma coisa boa,
 um filezinho de peixe,
 um lombinho de leitoa...

 Também pode ser um prêmio,
 pode ser até um beijo
 de alguém por quem se soluça
 e se mata de desejo.

 Vovó sabia das coisas,
 mas as coisas também mudam
 e as suas filosofias
 agora não mais me ajudam,

 pois o petisco que eu busco
 - com tanto risco a buscá-lo -
 não é lombinho de porco
 e nem filé de robalo,

 nem licor de jenipapo,
 nem goiabada ou chuvisco,
 é o petisco mais gostoso
 que compensa qualquer risco.

 Mais que lucro, mais que prêmio,
 é sentir, na ânsia louca,
 o sabor salgado e doce
 que mora na tua boca.

SEM MEDIDA

Quem diz que ama muito ou pouco, mente
 ou não conhece o amor, na realidade,
 pois não se mede o amor em quantidade,
 se ama ou não se ama, simplesmente.

Quem ama, embora sonhe com a eternidade,
 ainda assim não sonha o suficiente
 e em nada modifica o amor que se sente,
 seja na dor ou na felicidade.

Não há um meio olhar ou um meio beijo.
 Ninguém tem dez por cento de um desejo
 nem existe carícia desmedida.

 E o amor, sem ter tamanho, é tão profundo
 que podemos achá-lo num segundo
 ou procurá-lo, em vão, por toda vida.

Fonte:
Site Alma de Poeta (Antonio Manoel Abreu Sardenberg). Poesias de Amigos.

Antonio Roberto Fernandes (1945 – 2008)


CAMPOS

 “Não sou nascido aqui, planície amada,
 mas é como aqui nascido fosse,
 pois tenho a minha alma impregnada
 da brisa que te beija na alvorada,
 e do seu cheiro refrescante e doce.”

Médico, escritor, poeta, figura de destaque da literatura em Campos dos Goytacazes, onde fixou domicílio. 

Nasceu na cidade de São Fidélis, em 31 de maio de 1945. Faleceu em Campos dos Goytacazes em 20 de novembro de 2008.

Filho de Anleifer Leite Fernandes e Djanira Carvalho. Primogênito de uma família de oito irmãos. 

Aprendeu a ler em casa com o pai. 

Aos sete anos entrou para escola no interior de São Fidélis, mas, como era adiantado em relação aos colegas de classe, foi transferido para Escola Barão de Macaúbas no Centro da mesma cidade. 

Cursou o ensino fundamental e médio em sua cidade natal. 

Após passar no vestibular para a Faculdade de Medicina, mudou-se para Campos. Não exerceu a medicina porque passou num concurso e assumiu a postura de bancário para ajudar na criação dos irmãos. 

Poeta, trovador e escritor, Antônio Roberto foi membro da 
– Academia Fidelense de Letras, 
– Academia Pedralva Letras e Artes, 
– Academia Campista de Letras e 
representante da União Brasileira de Trovadores (UBT) em Campos. 

Fundou a Academia Infantil de Letras de São Fidélis. 

Grande idealizador do Café Literário, em Campos. 

Figura cativa dos eventos da Fundação Municipal Trianon, como o projeto “Choro e Cia” e o “Grupo Boa Noite Amor”, brindou o público com seu tradicional intervalo poético. 

Exerceu diversas atividades públicas: 
– diretor da Biblioteca Municipal de São Fidélis, 
– diretor da Biblioteca Municipal Nilo Peçanha e 
– diretor do Departamento de Literatura da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima em Campos.

Obras:
 'Poesia, doce Poesia' – 1978
 'Substantivo abstrato' - 
 'Uma semana de sonetos' – 1993
 'Os pratos da vovó' – 2001
 'Potoc Potoc' -
 'A verve da saudade – Tributo a Antonio Roberto' (vários autores)  1ª ed. - 2009
 'A verve da saudade – Tributo a Antonio Roberto' (vários autores)  2ª ed. – 2009

Fonte:

Raquel Ordones (As Sementes)

Poema formatado obtido no facebook.

Mitos e Lendas (A Preguiça, o Quati e a Juriti)


Contam que a preguiça é muito preguiçosa, não quer fazer nada, não quer trabalhar e trabalha só de comer. Os outros animais não gostam disso e é por esse motivo que se zangam com a preguiça sempre que a encontram.

Um dia, o quati mandou a preguiça fazer um serviço, mas a preguiça não quis saber de trabalhar, só quis comer. O quati insistiu, insistiu, depois ficou zangado e começou a bater na preguiça, que não pôde fugir e se pôs a chorar. 

Estava a preguiça chorando quando chegou a juriti e perguntou: 

— Por que está chorando desse jeito, preguiça? 

— É que o quati me mandou fazer um serviço e como eu estava com preguiça, ele deu muito em mim.

A juriti ficou com muita pena da preguiça e começou a chorar com ela.

Pouco depois, o quati voltou e tornou a surrar a preguiça, dizendo:

— Preguiça mais preguiçosa! E pare de chorar, senão vai apanhar mais. 

A juriti, que se tinha escondido, ouviu aquilo e ficou muito zangada. Começou a pensar num meio de castigar o quati e resolveu fazer uma armadilha. Arrumou uma porção de pedaços de pau e fez um mundéu no caminho que o quati costumava percorrer. Pouco depois, o quati veio vindo, não viu a armadilha, caiu nela e ficou preso. Fez tudo o que pode para escapar mas, depois de muito tempo, nada tendo conseguido, começou a chorar e a gritar.

A juriti ouviu os seus gritos e se aproximou: 

— Olá, seu quati, porque está chorando tanto?

— Estou chorando porque a preguiça fez uma armadilha no meio do caminho, eu caí nela e quase morri. E agora não posso escapar.

— A preguiça fez isso porque você deu nela.

— Quem lhe disse isso? — Perguntou o quati, espantado. 

— Eu mesma vi. Você gostou de bancar o valente. Agora, está pagando por isso. 

E a juriti foi embora, deixando o quati a chorar e a debater-se na armadilha. Chegou ao lugar da preguiça e contou-lhe o que acontecera. 

A preguiça gostou. Riu muito e disse: 

— Muito bem feito. Se ele conseguir escapar da armadilha e vier para cá, nós bateremos nele de novo! 

Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário. 

Clássicos do Cancioneiro Popular (Pitoco)


Pitoco era um cachorrinho
 qu'eu ganhei do meu padrinho
 numa noite de Natá-
 era esperto, muito ativo,
 tinha dois zóio bem vivo,
 sartando pra-cá, pra-lá.

 Bem cedo me levantava.
 Pitoco que me acordava
 c'os latido, sem pará,
 me fazia tanta festa,
 lambia na minha testa,
 quiria inté me bejá.

 Nos dumingo, bem cedinho,
 pegava meu bodoguinho, 
 os pelote no borná.
 Pitoco corria na frente,
 dano sarto de contente,
 rolano nos capinzá.

 Aquele devertimento 
 de grande contentamento
 ia inté no sor entrá.

 Era dumingo de mêis
 e dia de Santa Ineis: --
 tinha festa no arraiá.
 Minha mãe, as criançada
 tudo de rôpa trocada,
 na capela foi rezá;
 fugino por ôtra estrada
 c'o Pitoco fui caçá.

 Hoje, dói minha concência,
 pra morde a desobidiência.
 Pitoco latia... latia,
 mostrano tanta alegria,
 sem nada podê cismá;
 i eu tacava um pelote,
 fazeno virá cambóte,
 um pobre cara-cará. 

 Pitoco me acumpanhava;
 de veis in quano sentava
 e quiria adivinhá...

 De repente fiquei fria
 Gritei pr'a Virge Maria,
 que pudia me sarvá.
 Uma urutu das dorada,
 num gaio dipindurada
 tava pronta pra sartá!

 Pitoco ficô arrepiado,
 ficô c'o zóio vidrado
 e deu um sarto mortá: --
 se cumbateu c'a serpente,
 repicô tudo de dente,
 mais num pôde se escapá.

 Pitoco morreu latindo,
 os zóio vivo, tão lindo,
 foi fechano devagá;
 parece qu'inté se ria
 da minha patifaria
 de num podê le sarvá.

 E neste mundo tão oco,
 unde os amigo são pôco,
 despois que morreu Pitoco
 nunca mais tive outro iguá!

Fonte:
Nhô Bentico e Abílio Victor. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140.Edição Especial de Aniversário. 

Claudia Werneck (Não Somos Figurinhas!)


Uma menina muito ressabiada. Era como se tivesse medo de gente. Família, padrinhos, vizinhos e professores não conseguiam entender o que a impedia de viver em paz com seus iguais. 

"Mas o problema é justamente esse", gesticulava ela, amaciando com seus dedinhos o pêlo macio de seu gato magro, branco e preto — o Bandidão. "Não somos iguais, não somos iguais, é tudo mentira. Eu olho para a Pati, o Ivan, o Ademir, a Tatá e só vejo diferenças." 

Os adultos se entreolhavam desanimados e pediam mais explicações. "Como diferentes, minha filha? Somos seres humanos, gente igual a você, iguais entre nós: duas pernas, dois bracinhos, dois olhos, uma língua, um cérebro, dez dedos na mão, dez no pé..."

Bandidão não estava nem aí para aquela conversa sempre tão óbvia. Entediado, deu um pinote, abandonando o colo de sua dona. Mas, ainda no ar, enquanto preparava suas patas para uma aterrissagem em segurança, ouviu sair dos lábios dela, também como um pinote, algo que a garota nunca havia dito: "E quem não tem duas pernas? Ou não escuta? Ou tem dois olhos mas um é de vidro? Ou é muito feio? Aí não é gente? Para ser gente não basta nascer? E os bebês, não são diferentes? Por que vocês insistem em me convencer de que somos iguais? Gente não é como figurinha, que nós arrumamos em fila, deixando de lado as amassadas e as rasgadas para decidir o que fazer com elas depois".

Bandidão estava emocionado. Entendera tudo, ora pois pois. A menina não tinha medo de gente. Acuada, sofria por outras razões. Faltava-lhe era coragem para discordar do pensamento dos adultos. 

Confiante por ter conseguido, enfim, explicar sua angústia para os pais, ela experimentou uma sensação nova: sentiu pressa, muita pressa de ir para a escola. Pela primeira vez, sentia prazer em ser gente. Dedicou um último olhar de amor para Bandidão e seguiu pela rua. 

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Soares de Passos (O Anjo da Humanidade)


Era na estância cristalina e pura,
Que além do firmamento rutilante
Se ergue longe de nós, e está segura
Em milhões de colunas de diamante;
Jerusalém celeste, onde fulgura
Do eterno dia o resplendor constante,
E onde reside a glória e majestade
D'Aquele que povoa a imensidade.

Na mansão mais recôndita e profunda
A soberana Essência o trono encerra,
Donde a fonte de amor brota fecunda,
Os astros animando, os céus e a terra;
Um mar de luz seus penetrais circunda,
Que o próprio arcanjo deslumbrado aterra,
Luz que em triângulo ardente se condensa
Quando o Eterno os oráculos dispensa.

Por toda a parte o azul e as pedrarias
Na cidade divina resplandecem;
Mil arcadas de sóis, mil galerias
De brilhantes estrelas a guarnecem;
Os anjos em lustrosas jerarquias
Nas harpas d'ouro melodias tecem,
Outros em coros adejando voam
E d'aromas e canto o céu povoam.

Eis de repente nos umbrais divinos,
Sobre as asas pairando, um anjo entrava,
Parecendo de sítios peregrinos
Que às regiões celestes assomava;
Cruzando o empíreo, as legiões, e os hinos,
Qual rápido luzeiro perpassava,
Té que chegando ao trono do Increado,
Nus últimos degraus ficou pousado.

Pelos ebúrneos ombros o cabelo
Em aneladas ondas lhe caía;
A safira das asas sobre o gelo
Das roupagens reluzentes refulgia.
Mais brilhante não é, não é mais belo,
Comparado com ele, o astro do dia,
Ou a estrela que brilha quando a aurora
De purpurina luz o céu colora.

Ao trono augusto levantou a frente,
Mas com as asas a toldou ansioso,
Não podendo suster o brilho ardente
Que despedia o foco luminoso.
A milícia dos anjos resplendente
Fixou atenta seu irmão formoso;
Os concertos pararam, e ele entanto
Assim falou entre o geral espanto:

«Eterno Ser, que as divinais moradas
«Enches de glória em majestoso assento,
«Fonte de vida e criações variadas,
«Que dás ao mundo poderoso alento;
«A cujo aceno tremem abaladas
«As colunas do etéreo firmamento,
«E cujo nome, que o universo entoa
«No céu, na terra, e nos abismos soa!

«Por teu mando supremo destinado,
«A conduzir a humana descendência,
«Desde que a mancha do cruel pecado
«A fez cair da primitiva essência –
«Venho afinal, Senhor, de teu mandado
«Dar-te conta fiel, após a ausência;
«Fazer-te ouvir da humanidade os prantos,
«E aguardar teus preceitos sacrossantos.

«Ordenaste-me, ó Deus, que sempre atento
«Prosseguisse na terra a lei sob'rana
«Que rege, na amplidão do firmamento
«A criação que de teu seio emana:
«Essa lei do progresso e movimento
«Tenho cumprido na família humana,
«Desde que ao mundo, a combater seu fado,
«O desterrado do éden foi lançado.

«Primeiro, sobre a terra esclarecendo
«Seus duvidosos passos vacilantes;
«Depois, o justo c seu baixel sustento
«Nas águas do dilúvio sussurrantes:
«De novo à terra de pavor tremendo,
«Conduzindo mais puros habitantes:
«Mais tarde junto ao berço do Messias,
«Anunciando ao mundo novos dias.

«Agora, sobre as ruínas dum império
«Outro império de novo edificando;
«Agora, as povoações dum hemisfério
«Sobre as doutro hemisfério derramando:
«Já do teu Verbo o divinal mistério,
«Com as santas doutrinas propagando;
«Já mostrando por fim à humanidade
«Nova luz de justiça e de verdade.

«Quantos velhos sofismas desterrados!
«Quantos ídolos falsos em ruínas!
«Quantos sábios triunfos alcançados!
«Quantas conquistas imortais, divinas!
«Calcando o pó dos séculos passados,
«O homem corre ao fim que lhe destinas;
«Mas ah! Senhor, no meio da tormenta
«Seu amor esmorece e desalenta.

«Seu valor esmorece! tantas lidas,
«Tanto lutar contínuo das idades,
«Tanto sangue e martírios, tantas vidas,
«Tantas ruínas d'impérios e cidades:
«E o homem sofre, e as gerações perdidas
«Se revolvem num mar de tempestades,
«Sem ver luzir esse fanal jucundo
«Que por teu filho prometeste ao mundo.

«Quantos males ainda! a lei sublime,
«A lei d'amor que derramou teu Verbo,
«Sobre a face da terra, à voz do crime,
«Sucumbe e morre por destino acerbo.
«O férreo jugo que as nações oprime,
«Os humildes abate, ergue o soberbo,
«E o rei da terra, sobre a terra escravo,
«Sofre mesquinho seu eterno agravo.

«Por toda a parte, em lastimoso acento,
«Se ouve gemer a humanidade aflita.
«A terra, a mãe comum, nega alimento
«Dos filhos seus a à multidão proscrita:
«Enquanto folga em vícios o opulento.
«A indigência cruel na choça habita,
«E a mãe, a mãe ao peito, em desalinho,
«Aperta morto à fome o seu filhinho.

«Entanto a guerra, que a ambição ateia,
«Ensanguenta as campinas e as cidades;
«A crua peste, que ninguém refreia,
«Converte as povoações em soledades;
«Destes males cruéis a terra cheia,
«Cobre-se inda de mil iniquidades;
«O vício, o crime, a corrupção devora
«A pobre humanidade, como outrora.

«Ao ver tanta miséria, o bom padece,
«O mau blasfema de teu nome santo,
«A voz dos inspirados esmorece,
«O futuro se envolve em negro manto...
«Eu mesmo, eu mesmo, recolhendo a prece
«Que a humanidade te dirige em pranto,
«Subi confuso ao eternal assento,
«A depor a teus pés meu desalento.»

Disse, e um gemido d'aflição pungente,
Semelhante a dulcíssona harmonia,
Soltou do peito, reclinando a frente
Com celeste e ideal melancolia:
Assim pendendo ao longe no ocidente,
Se reclina saudoso o astro do dia;
Assim reclina a pálida açucena,
Açoutada do vento, a fronte amena.

Depois, continuando: «Ó Deus, quem há-de
«Sondar mistérios que teu seio esconde?
«Tuas leis divinais, tua vontade
«Cumprirei sobre a terra. Eia, responde:
«Os passos da mesquinha humanidade
«Aonde os levarei, Senhor, aonde?"
Uma voz retumbou do céu radiante.
Que ao anjo respondeu, dizendo: – AVANTE!

Fonte: 
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Coelho Neto (Mano) Parte 4


SAUDADE

PRIMAVERA

Alma da Vida, Primavera, tu que sempre ressurges da neve carregada de flores, tantas que as espalhas profusamente pelos campos, enfeitas com elas serras e penhascos, enches os vales, assoalhas lirialmente as águas, alegras as charnecas, animas os areais estéreis e, porque ainda te sobram nas mãos viçosas, lançá-las pelos velhos muros das ruínas, pelas covas humildes dos cemitérios, forrando-os com a tua generosidade, por que havias de vir ao meu canteiro pequenino talar a flor que era o encanto e o conforto de dois corações, que a defendiam, como as folhas defendem o botão que, entre elas, nasce e vai desabrochando?

Rica, procedeste como o avaro que, possuindo tesouros, enverga olhares de inveja para o mealheiro do pobre e, enquanto o não consegue haver a si, não lhe aquieta a ganância.

O que arrebataste pouco vale na abundância da tua riqueza e era tudo no lar, agora mísero.

Era o calor e a luz; era a alegria e a força de duas fragilidades; era a esperança de dois simples; era a religião de dois crentes; um presente de Deus no altar de dois devotos; a luz de dois felizes que, agora, de olhos sem pupila, caminham às apalpadelas, como cegos a quem houvessem levado o guia, deixando-os ao desamparo, assentados na lápide de um túmulo.

Cruel ambição a tua, Primavera! Nem sabes o que possuis, tão copiosa é a tua florescência, e roubaste o pouco que era a riqueza de um lar.

Tendo um rio, sorveste a gota de orvalho que se achava engastada entre dois corações.

Sendo esplendor, como o sol, roubaste a pequenina chama da nossa lâmpada doméstica

Sendo fertilidade para a Natureza toda, passaste por nós como ceifadora.

Dantes, no evento do teu mês, minha alma rejubilava antegozando o espetáculo, sempre novo, do rebentar dos gomos e do chilreio dos ninhos desempolhados e as primícias da tua feracidade, antes que aparecessem na terra verde, anunciava-as eu em louvores jucundos.

Agora, quando as brumas do inverno forem-se, a pouco e pouco, diluindo e os dias clarearem e aquecerem em sol e embalsamarem-se com o teu hálito, os nossos corações, transidos de saudade, ir-se-ão velando e aos novedios da terra responderão neles os espinhos das dores com que, sem pena, os alanceaste.

E quando todos, em júbilo, exaltarem, felizes, a tua vinda, agradecendo as mercês generosas que lhes distribuíres, nós, lembrados do que nos fizestes, fugiremos de ti, das tuas flores, do teu aroma, da tua claridade, surdos aos galreios dos implumes, ao murmúrio sonoro dos córregos vivazes, e o límpido azul do céu parecer-nos-á retinto em roxo, a terra florida se nos afigurará sepulcro imenso e o teu prestígio, renovadora da vida, não terá efeito em nossas almas. 

Tu, que, só com a magia dos teus eflúvios, fazes brotar no lesim da pedra a saxífraga; tu, que dás viço à duna árida cobrindo-a de folhagens vindes, como a piedosa mãe enfeitou de acanto o túmulo do filho; tu, que tudo animas, não conseguirás, como todo o teu poder divino, reviçar a alegria nos corações que enlutaste.

Tu, que vences o inverno, não vencerás a nossa tristeza, ó Força eterna, eterna criadora que foste para nós a Morte.

Primavera, que mal te fizemos nós?

Quanto mais bela e vicejante fores mais nos ressentiremos da tua crueldade.

Criadora de lírios e de rosas, que mal te fizemos?

Tudo que produzires e despertares será, para nós, motivo de melancolia, porque nos relembrará a traição do teu sorriso.

Quando, na aragem das noites taciturnas, vier a nós o aroma das campinas, virá também a imagem do que se foi e nós, sentindo-o no perfume, amaldiçoaremos o teu poder maléfico, Primavera.

Antes o inverno com os seus dias lacrimosos e as suas noites regeladas!

Que nos importavam os rigores da ventania gemendo no escampo, a névoa álgida velando o arvoredo, os aguaceiros copiosos formando torrentes pelos caminhos, todo o cortejo lúgubre dessa funerária estação de morte se tínhamos conosco o filho amado, aquecendo-nos a alma, como a chama aquecia o corpo, participando do pão de nossa mesa, ele que era o nosso dia de amanhã, o nosso futuro, que rebentara em nossa velhice?

E vieste, entraste-nos pela casa coberta de flores, como noiva, e levaste-o contigo escondendo-o na cova para sempre!

O lavrador, que enterra a semente no alfobre, fá-lo para a Vida. E tu, Primavera, que fizeste do que levaste?

Que dirão de nós os que virem de luto no festival da tua era, cobertos de crepe entre as tuas flores, chorando lamentosamente no coro de risos da Natureza?

Quiseste uma flor nova e viera buscar a que tínhamos tão escondida e não temíamos a morte. E fomos traídos pela Vida, porque foste tu que no-lo roubaste, Primavera.

Tu, que reenfolhas, troncos que o lenhador despreza na floresta tendo-os por mortos e apodrecidos; tu, que dás vida em flor aos pântanos, estagnados; tu, que realizas milagres de ressurreição em toda a natureza; tu, onipotente, tu, vivificadora; tu, antagonista da Morte; tu, inspiradora do Gênese; tu, que és o verbo de Deus, ó estação da benção! tu, que és o raio do Sol dentro do qual erram em átomos as messes; tu, que és a Juventude, Primavera fecunda, flor da Eternidade, que mal te fizemos nós para que no entrasse pela casa coberta de flores, como em festa, para matar, com o teu veneno, o filho do nosso amor, consolação das nossa horas tristes e arrimo de nossa velhice?

Por que nos traíste, Primavera, Vida da Natureza e Morte da Ventura nossa?

CONTRASTE 

Quando o levaram de nós o estádio começava a encher-se para um dos mais renhidos jogos do campeonato sul-americano.

Ao alto da muralha da mole atlética, trapejada a bandeiras e flâmulas, que espadanavam ao vento, borrifadas de chuva, apareciam os primeiros vultos.

O movimento das duas ruas que se cruzam dissemelhava-se em contraste irônico. Em uma, o borborinho alacre da multidão desensofrida, que afluía ao espetáculo da luta: veículos e turba, pregões, estropeada de patrulhas, correrias de retardatários que se apinhavam tumultuosamente junto da bilheteira como se a quisessem tomar de assalto.

Na outra rua, silêncio: gente à espera, em grupos nas calçadas, às portas e às janelas; duas longas filas de automóveis e o coche fúnebre parado diante da nossa casa em pranto.

Na minha sala de trabalho, de janelas abertas, revestida de luto, com um altar armado, jazia sobre a minha mesa, entre círios e flores, o maior desastre da minha vida.

Toda a casa regurgitava de gente: era a solidariedade dos corações amigos na desgraça, a doce esmola de amor trazida à nossa miséria.

Por toda a parte, profusamente, flores: sobre os móveis, pelos cantos, fora, no jardim: em palmas, ramos e grinaldas e ainda esparsas, aqui, ali. Nunca a primavera fora tão pródiga com o meu jardim.

Foi preciso que a Morte nele entrasse para que os meus canteiros se adornassem tanto. Por tal preço não os quisera eu tão vegetos.

Longo, perduradouro vozear no estádio anunciava o início do jogo quando o sacerdote, o mesmo que o ouvira de confissão, aproximou-se para encomendá-lo a Deus.

Era o sinal da partida.

Uma voz sussurrou-me:

“Que iam fechar o caixão”.

Estremeci. Seria possível! Encheu-se-me o peito de tanta agonia que me senti opresso como se o coração se me houvesse petrificado

Que fazer?

Último adeus ao filho, último beijo à fronte gélida, bênção derradeira.

Retiraram-lhe o crucifixo do peito.

Como o que embarca entrega no portaló o bilhete de passagem, assim já lhe não era necessário o símbolo da Fé, porque o seu corpo tinha a câmara à espera e o seu espírito suave já devia achar-se na presença de Deus.

Tomei-lhe, a furto, o que dele me podia ficar - algumas flores que lhe haviam murchado sobre o peito, mortas com ele, bem em cima do seu coração. 

Um a um alguém foi apagando os círios.

Eram as últimas esperanças que se extinguiam. A sua eterna manhã rompera. Para que luzes noturnas?

Fecharam o caixão florido. Que mais?!

Eu olhava em volta de mim em busca de uma esperança e só via lágrimas em todos os olhos. Tudo estava acabado. Dali ao túmulo, nada mais.

Levaram-no.

E a casa foi, pouco a pouco, esvaziando-se - vazia da gente, vazia das flores, vazia, principalmente, da felicidade, que ia com ele.

E tive coragem de o acompanhar até à estância derradeira e vi-o baixar ao fundo da sepultura, profundidade só comparável à do azul infinito.

E o abraço brutal da terra sonora. pouco a pouco encerrando em si o corpo amado, fechando-se sobre ele, abafando-o, sumindo-o até possuí-lo todo, só dela.

E ali fiquei a olhar como quem, de cima de uma rocha, vê perder-se no horizonte a vela da última esperança.

E, diante daquele deserto, eu era como um náufrago em ilhéu estéril na vastidão do oceano.

Arrancaram-me do presídio. Era a vida que me reclamava como a morte o levava, a ele.

E vim, sem consciência, até a casa, onde revi os meus, como se uma vaga me houvesse arrojado à praia e eu acordasse atônito.

A tarde estiara. Dir-se-ia que a chuva fora apenas para chorar o morto, como os olhos dos que me haviam acompanhado no doloroso transe.

Águas que não cessam são as que jorram das fontes e dos corações. Águas que se formam nas nuvens passageiras e nos olhos indiferentes depressa o sol e o esquecimento secam; as que brotam das rochas e das profundas do amor, essas não estancam nunca! Se estancassem como se mataria a sede, como se mitigaria a saudade?

No jardim, restos de flores: ainda na minha sala os círios da vigília.

Já haviam despido do luto as paredes, já haviam desarmado a essa e o altar e a minha sala de trabalho voltara ao seu aspecto natural. Pairava apenas no ambiente um cheiro morno de cera e de flores murchas. E na casa era tudo. Os corações, esses...

Onde quer que se passasse ouvia-se convulso tremor de pranto.

Uma figura inerte, de negro, estatelada, estéril, jazia apagada a um canto, como aqueles círios que ainda lá estavam, de morrões negros, também apagados, sem lágrimas.

Não parecia sentir: olhava pasmada, como alguém que se visse em um patíbulo, condenada sem culpa e, em tamanha injustiça, não achasse palavra para bradar a sua inocência.

Pobre mãe!

Aproximei-me dela, unimos os nossos corações feridos do mesmo golpe e as nossas dores comunicaram-se. 

Assim um rio cresce assoberbado e na violência em que investe derruba árvores e barrancas e tais destroços represam-no até que outro rio, nele despejando-se, engrossa-o e, os dois, juntos, forçam, levam de vencida o empeço e correm alagadoramente.

Chorávamos humildes quando trovejou no estádio clamor imenso de triunfo e o coliseu longamente atroou o estrondo das aclamações vitoriosas.

Ouvindo aquele tronejo heróico lembramo-nos de tardes, outras, iguais àquela e parecia-nos que o nome proclamado estrepitosamente era o dele, dele que ali se fizera desde pequenino, brincando naquele campo, nele crescendo em força e garbo, nele batendo-se pelas cores, que eram o seu orgulho.

E seria dele o nome que ouvíamos nas aclamações ovantes da multidão em delírio?

Sim, era o seu nome, não saía do estádio, mas do fundo dos nossos corações porque, embora estrondosas, todas aquelas vozes de milhares de bocas não estrugiam tão alto como nos soavam intimamente os apelos doloridos da nossa imensa saudade.

E, no final do jogo, com o escoar da turbamulta, a nossa rua encheu-se e os que passavam, comentando os lances mais brilhantes da partida, não se lembravam do enterro que dali saíra.

E, para o seu espírito, foi melhor assim.

Era em tal alvoroço que ele gostava de ver o seu clube, cheio, empavesado, ressoando músicas e clamores. Quanta vez...

A casa, fechada, em silêncio, tremia com o rumor da rua. Pobres corações!

E a tarde daquele dia, que fora de tristeza lúgubre, desanuviara-se a pouco e pouco, galeando-se do sol. Dir-se-ia que o céu despia o luto por aquele que chorava ou, quem sabe! talvez assim se transfigurava para recebê-lo festivamente.

Nós é que em nada mudamos: tal como ele nos deixou jazemos: na mesma desolação, na mesma saudade.

E como não há de ser assim se a nossa alegria era ele e ele foi-se, não torna, não tornará nunca! nunca mais!
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Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com