segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Antuérpio Pettersen Filho (Poesias Escolhidas)


A ROSA E O BANDIDO

No jardim da casa
 onde morava um bandido
 um botão se abriu em rosa
 e desbrochou.
 Não compreendendo
 que aquele jardim era proibido
 a rosa ali continuou.

 Ninguém podia compreender
 o feio e o bonito
 ali, juntos...

 Por que a semente
 o vento não levou
 para outra casa
 perto dali?

 Mas, não...
 a rosa preferiu
 aquele jardim dentre todos,
 e isso a vizinhança
 não podia aceitar.

 Logo alguém
 roubou a rosa do jardim...
 O bandido desesperado
 pela rosa procurou
 mas não achando nada
 com seis tiros se matou.

 Desde esse dia
 todo mundo que ali passava
 falava que naquela casa
 mora o amor.

A QUALQUER MOMENTO

A qualquer momento...
 Qualquer coisa...
 Pode acontecer...

 Há algo mais pesado no ar
 Do que jatões transcontinentais.
 Há algo mais circulando
 Pelas ruas da cidade
 Do que motocicletas
 E carros em alta velocidade...

 Há um cheiro mais forte no vento
 Do que combustível queimado
 Ou odor de cigarro.
 Há no peito marcas mais visíveis
 Do que as de freio no asfalto
 Ou um salto na escuridão.

 Existe nos olhos
 Uma luz mais intensa
 Do que o brilho dos refletores
 Ou dos letreiros luminosos...Agora!
 A qualquer momento...
 Qualquer coisa pode acontecer!

O VELHO PAI

Todos os dias
 o velho acordava
 pegava a cadeira
 colocava na varanda
 pegava a vassoura
 varria a calçada...
 e assistia
 as pessoas passaram.

 Um dia
 o velho não acordou
 não pegou a cadeira
 não colocou na varanda
 não pegou a vassoura
 não varreu a calçada...
 não assistiu
 as pessoas passarem.

REALIDADE

Quando eu me dei por mim,
 Ela já estava ali...
 Batendo por detrás da porta
 tocando a campainha
 insistindo em entrar...

 Eu corri, e tranquei a janela.
 Fechei as cortinas, prendi a respiração.
 Apaguei as luzes... Fingi dormir.

 Então, em um golpe certeiro
 Ela pôs abaixo a porta...
 Entrou na ventania
 os pés sujos de barro
 manchando o carpete da sala.
 A minha biblioteca
 ficou toda revirada.

 Ela não vacilou:
 Bateu na minha cara
 sentou no sofá da sala
 e ficou ali me olhando...
 Minha vida estava por um triz.

 Chegou invadindo o meu lar
 destruindo os meus sonhos...
 Eu nem havia chamado
 mas Ela estava ali
 me cobrando ser homem,
 e a decisão.

AMOR À PORTUGUESA 

 Eu beijo de língua
 a Língua da Portuguesa
 mas isso me faz
 sentir-me mau.

 Aliás,
 não sei se me sinto mal
 com “l”
 ou se me sinto mau
 com “u”:

 Pensando bem
 me sinto bem !
 Meu bem.

Fontes:

Antuérpio Pettersen Filho


Nasceu em Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais. É um poeta egresso dos tribunais de justiça. 

Advogado de formação, iniciou sua graduação na Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, vindo a formar-se em Minas Gerais, na Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce. 

Lançado em abril de 2000, quando dos quinhentos anos do descobrimento, o "Inconfidente Mineiro", livro de poesias, tão somente, ganhou em 2002 uma versão itinerante, na forma de molduras e painéis conjugando a estética, só possível às ilustrações, aglutinada a concretividade métrica dos seus disformes versos, com os quais passou a fazer exposições: 

Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, abril/2002; 
Assembléia Legislativa de Minas Gerais, dez/2003; 
Galeria Mohangara, Gov. Valadares, março/2004; 
Câmara Municipal de Uberaba, março/2004; 
Palácio Administrativo Municipal de Uberlândia, março/2004; e, 
finalmente a consagração em Ouro Preto, na Fundação de Arte de Ouro Preto, durante as comemorações da Inconfidência Mineira, abril/2004. 

Atualmente Antuérpio é redator-chefe do pequeno Jornal periódico "Grito Cidadão", pertencente à ABDIC - Associação Brasileira de Defesa do indivíduo e da Cidadania, criada como Entidade Civil opor ele próprio, onde se dedica à causa humanitária e justicialista, a qual considera que estão inseridos todos os que desejam ardorosamente participar do tempo em que vivem, e testemunham, com protagonismo e realização.

Membro da IWA – International Writers and Artists Association

Obras:

Participação na Coletânea "Serra em Prosa & Versos" - Poetas e Escritores da Serra", organização de Clério José Borges de Sant'Anna, 2006

Fonte:
Serra em Prosa & Versos - Poetas e Escritores da Serra" - organização de Clério José Borges de Sant'Anna, 2006. em Poetas Capixabas

Marcelo Spalding (3 Dicas para a Escrita Criativa)


Depois de anos ministrando oficinas de criação literária presenciais, iniciei neste ano uma Oficina de Escrita Criativa Online, que já conta com mais de 50 participantes. Como o conteúdo é extenso, é comum pedidos para criar lista de dicas (vício da geração dos cursinhos, creio eu), e aí sempre lembro dos conselhos do grande escritor Luiz Antonio de Assis Brasil.

 Assis, romancista gaúcho reconhecido nacionalmente, professor da primeira Oficina de Criação Literária regular do Brasil (com quase 30 anos de existência ininterrupta) e hoje Secretário de Cultura do RS, costumava dar 3 dicas muito importantes para quem quer escrever (criativamente, ficcionalmente ou mesmo profissionalmente): deixe o texto dormir, leia o texto em voz alta e tenha um primeiro leitor. Comecemos pela importância de deixar o texto "dormir", que nada mais é do que afastar-se do texto.

1. Deixe o texto dormir

 Nosso ímpeto inicial, assim que terminamos um texto, é achar que ele está excelente e deve ser publicado ou está horrível e deve ser apagado. Não faça nem uma coisa, nem outra. 

 Normalmente, há um envolvimento emocional quando escrevemos (especialmente ficção), então é fundamental que possamos nos afastar por um instante de nosso texto, vê-lo com mais frieza, a fim de julgarmos sua qualidade e perceber seus defeitos. Claro que num texto ficcional esse distanciamento pode durar uma noite ou uma semana, pois não há tanta urgência (normalmente). Já num texto profissional (como  uma reportagem de jornal, um anúncio ou um contrato), o texto por vezes tem que ser entregue no mesmo dia. Aí, ao terminar o texto, o autor deve pelo menos dar uma volta, tomar um café, tomar um ar, relaxar um pouco antes de voltar para reler o texto e, aí sim, imprimi-lo ou enviá-lo. 

 Apagar, jamais! Sempre se pode aproveitar algo de um escrito nosso, nem que seja uma frase, uma metáfora. E como hoje é muito fácil salvar versões em nosso computador ou pen-drive, não deletem nada, nunca. Só sejam suficientemente organizados para armazenarem essas anotações todas.

2. Leia o texto em voz alta

 A segunda dica do mestre, ler o texto em voz alta, é de grande valia por diversos motivos: primeiro, lendo o texto em voz alta percebemos cacofonias, rimas indesejadas, trava-línguas, etc. Mas o mais importante talvez seja que apenas na leitura em voz alta é que notamos erros na estrutura frasal, períodos muito longos, muito curtos, sem sujeito, sem verbo principal, etc.

 Ocorre que nossa leitura silenciosa não é "completa". Somos tão habituados a ler que não lemos letra por letra, nosso olho (ou nosso cérebro) vai pulando as letras e juntando as palavras através de combinações previsíveis quando se lê apenas com o cérebro. Quando devemos verbalizar o texto lido, porém, somos obrigados a ler cada sílaba, cada trecho, e isso exige mais do texto e do leitor (não é a toa que atores, jornalistas, apresentadores ou bons oradores leem seus textos diversas vezes antes de apresentá-lo em público).

 Tal dinâmica se torna ainda mais importante quando se trata do próprio texto, pois a leitura em voz alta também é uma forma de afastamento. É comum ouvirmos relatos de escritores ou acadêmicos acostumados com a produção textual de que tal erro passou desapercebido mesmo depois de tantas releituras. E, realmente, o autor de um texto aos poucos acostuma-se tanto com ele que não consegue mais enxergar a troca ou a ausência de uma letra.

3. Tenha um primeiro leitor

 Muitos escritores costumam dizer que não se termina um texto, se desiste dele. Ocorre que o texto, pela infinidade de escolhas que exige do autor, deixa seu criador inseguro e incerto sobre o real valor de sua criação. Mesmo depois de deixar o texto dormir, ler em voz alta, trabalhar e retrabalhar nele. 

 Por isso, antes de publicar o texto, o que se sugere é que se tenha um primeiro leitor. Pode ser um colega de oficina (os mais indicados), um outro escritor que troque correspondências com você, um professor que esteja disposto a esse tipo de leitura, por vezes um amigo ou colega de trabalho que seja leitor experiente.

 Pai e mãe não vale. Filho, esposa, namorada também não. Ocorre que, primeiro, as pessoas têm muito medo de magoar um escritor. Ninguém gosta de ser criticado, e menos ainda quem colocou parte de sua vida, de seus sentimentos, num texto. Depois, esse primeiro leitor não pode ser absolutamente leigo, é importante que tenha certo senso crítico para que possa dar uma contribuição a você.

 Hoje, há uma corrente de pessoas que defende a contratação desse primeiro leitor, em especial quando trata-se de um livro com ambições de ser publicado. Eu, particularmente, não acho que essa primeira leitura precise ser paga, contratada, e sim enviada para alguém que troque textos com você. Aí, se for o caso de publicação, o "décimo" leitor, antes de o texto ir para a editora, pode ser, sim, um profissional experiente que dará dicas precisas e reveladoras.

 Ocorre que você não deve esperar desse primeiro leitor um simples "amei" ou "odiei". Ele deve ser capaz de respondar a sua segunda pergunta: "e por quê?". Mais importante do que a impressão subjetiva de seu primeiro leitor são os comentários dele.

 Claro que você não pode mudar o texto apenas pela opinião desse leitor. Será um olhar de fora, que deve ser considerado, mas não acatado sem o rigor de quem assinará o texto. Muitas vezes pode se enviar o texto para mais de um leitor, em especial quando o texto será publicado. Não por acaso, vale dizer, grandes escritores têm esses primeiros leitores. E por vezes colocam seus nomes na dedicatória ou nos agradecimentos.

 Enfim, o que se depreende dessas breves dicas é que, se por muito tempo se acreditou que as musas inpiradoras eram as responsáveis por toda a boa literatura que a humanidade produziu, hoje vivemos a era da transpiração. 
 Evidentemente que a inspiração, ou chame lá você do que quiser, é fundamental para o impulso inicial, para as palavras saírem de dentro do autor e pularem para o papel em determinada direção, aflorando determinados sentimentos e representando determinadas realidades. Um texto sem inspiração, em geral, é um texto frio. Mas escrever, acima de tudo, um ofício; é trabalho e retrabalho; é paciência e método. 

Porto Alegre, 12/10/2012

Fonte:
Digestivo Cultural

Contos Acumulativos (O Macaco e o Rabo (1))


Um macaco uma vez pensou em fazer fortuna. Para isso foi-se colocar por onde tinha de passar um carreiro com seu carro. O macaco estendeu o rabo pela estrada por onde deviam passar as rodeiras do carro. O carreiro, vendo isso, disse:

 — Macaco, tira teu rabo do caminho, eu quero passar. 

 — Não tiro, — respondeu o macaco.

 O carreiro tangeu os bois, e o carro passou por cima do rabo do macaco, e cortou-o fora. O macaco, então, fez um barulho muito grande:

 — Eu quero meu rabo, ou então dê-me uma navalha…

 O carreiro lhe deu uma navalha, e o macaco saiu muito alegre a gritar: 

 — Perdi meu rabo! Ganhei uma navalha!… Tinglin, tingilin, que vou para Angola!…

 Seguiu. Chegando adiante, encontrou um negro velho, fazendo cestas e cortando os cipós com o dente.

 O macaco:

 — Oh, amigo velho, coitado de você! Ora, está cortando os cipós com o dente… tome esta navalha.

 O negro aceitou, e quando foi partir um cipó, quebrou-se a navalha. O macaco abriu a boca no mundo e pôs-se a gritar:

 — Eu quero minha navalha, ou então me dê um cesto!

 O negro velho lhe deu um cesto e ele saiu muito contente gritando:

 — Perdi meu rabo, ganhei uma navalha, perdi minha navalha, ganhei um cesto… Tinglin, tinglin, que vou pra Angola!

 Seguiu. Chegando adiante, encontrou uma mulher fazendo pão e botando na saia. 

 — Ora, minha sinhá, fazendo pão e botando na saia! Aqui está um cesto.

 A mulher aceitou, e, quando foi botando os pães dentro, caiu o fundo do cesto. O macaco abriu a boca no mundo e pôs-se a gritar:

 — Eu quero o meu cesto, quero o meu cesto, senão me dê um pão!

 A mulher deu-lhe o pão, e ele saiu muito contente a dizer:

 — Perdi meu rabo, ganhei uma navalha, perdi minha navalha, ganhei um cesto, perdi meu cesto, ganhei um pão… Tinglin, tinglin, que vou pra Angola!

 E foi comendo o pão.

Fonte:
Colhido por Sílvio Romero, em Sergipe. 
Jangada Brasil. Setembro 2010. Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário.

Roberto Bolaño (Chamadas Telefônicas)


artigo por Julio Daio Borges, para o Digestivo Cultural

Roberto Bolaño tem sido ovacionado, em prosa e verso, como o novo herói trágico da literatura latino-americana. O fato de não ter sido devidamente reconhecido, o fato de não ter alcançado sucesso e o fato de desfrutar de uma glória póstuma, complementada por uma morte precoce, fazem de Bolaño o eleito para uma literatura que vê a geração do "realismo fantástico" à beira da aposentadoria. 

A verdade é que Roberto Bolaño é, mesmo, um grande escritor, apesar de toda a ovação que hoje o precede, e que, transformando-o num sucesso póstumo, gera desconfiança em leitores de agora. Uma boa introdução para Bolaño é, justamente, Chamadas Telefônicas, aparentemente mais uma coletânea de contos (para ele, que escreveu tanto...). Acontece que o livro fisga o leitor desde o primeiro conto, "Sensini". Desde as primeiras frases se percebe a observação fina e as colocações sábias de quem entende do que fala. 

Uma das obsessões de Bolaño era o mundo literário. Falou de sua geração como ninguém. Mas falou de escritores, em geral, como poucos também. Sensini, o personagem, aliás, conclui: "O mundo da literatura é terrível, além de ridículo". Bolaño não esquece os detalhes comezinhos, da literatura como trabalho (ou quase isso): "De vez em quando recebia um cheque por algum de seus numerosos livros publicados, mas a maioria das editoras se fazia de esquecida ou havia quebrado". Ou das tentativas de sobrevivência dos escritores (latino-americanos ou não): "Quis voltar para a universidade mas, entre trâmites burocráticos e invejas e rancores dos de sempre, o acesso lhe foi negado e ele teve que se conformar em fazer traduções para algumas editoras". 

A ironia de Bolaño lembra Villa-Matas, o espanhol, um dos grandes do nosso tempo: "Os maus poetas costumam sofrer como animais de laboratório, sobretudo ao longo de sua dilatada juventude". Esse trecho, inclusive, é do conto "Enrique Martín", dedicado a ninguém menos que... Enrique Villa-Matas (!): "Naquela época eu tinha vinte e cinco anos e pensava que já tinha feito de tudo. Enrique, pelo contrário, queria fazer de tudo e se preparava à sua maneira para engolir o mundo". O que pensavam da obra um do outro? Bolãno teria influenciado Villa-Matas? Ou teria sido o contrário? Uma pergunta que as vindas de Villa-Matas ao Brasil provavelmente nos deixaram sem resposta. "A princípio, seu livro passa despercebido. Depois, num dos principais jornais do país, publica[-se] um resenha absolutamente elogiosa, entusiasta, que arrasta os demais críticos e transforma o livro num discreto sucesso de vendas". 

Mas nem só de escritores vive Chamadas Telefônicas. Um dos contos mais líricos, e um dos mais tristes também, é "Joana Silvestri": sobre uma atriz pornô italiana que vai reencontrar o amor em Los Angeles. "(...)ele tinha me chamado de Joannie, por uns segundos flutuei no ar como que drogada ou como se estivesse tecendo uma crisálida ao meu redor, mas depois me dei conta e ri e Jack soube do que eu ria sem precisar perguntar e sem precisar que eu dissesse nada". 

Outro dos melhores contos do volume é "Vida de Anne Moore": praticamente a crônica de desamores da personagem, que, em grande parte, transcorre nos Estados Unidos, sendo de uma verossimilhança quase absurda, para um autor "latino". Nessa história, Bolaño não fala de escritores, mas fala de arte (ou de, ao menos, um artista): "Às vezes era insuportável, mas também sabia quando era insuportável e tinha então a virtude de se trancar no ateliê e pintar o tempo todo em que estivesse insuportável(...)". 

No Brasil, a consagração de Roberto Bolaño tem se dado, logicamente, por Os Detetives Selvagens, sua obra-prima. Mas canhestramente, também, por 2666, uma obra póstuma, incompleta, que, na sua ambição, tem sido comparada até ao Dom Quixote. Nem tanto à terra, nem tanto ao mar: antes de encarar o gênio de Roberto Bolaño e se engasgar com sua inventividade, numa obra magna ou inacabada, a sugestão é se embrenhar pelos contos. Afinal, todo grande escritor se manifesta em qualquer formato, ou não se manifesta jamais.

Fonte:

Coelho Neto (Mano) Parte 7


ESPERANÇA

Será crível que ainda resistas ou dar-se-á que haja fantasmas de ilusões?

Serás tu mesmo que ficaste à flor do túmulo, flutuando na morte, e que assim me apareces como sombra do que já não existe?

Serás tu mesma, Esperança, que vens a mim do fundo da noite perpétua?

Contam-se estrelas no céu, mortas há milênios, cuja luz, entretanto, ainda nos deslumbra e guia.

Serás tu como tais astros?

Se és, em verdade, a Esperança, por que me martirizas, tu, que sempre nos socorres como incentivo; tu, que nos manténs as forças para que prossigamos e, na tarde da desdita, promete-nos a manhã da felicidade?

Se és tu, benéfica, porque te fazes cruel acordando-me a alma no coração com o timbre da sua voz, com o rumor dos seus passos como se o trouxesses do além em visita à minha saudade?

A tais ruídos ilusórios, que se levantam no silêncio, encolho-me em mim mesmo, atento, e ouço-te que me dizes em segredo: “Ei-lo aí”.

Volto-me comovido, certo de que o vou encontrar, e só, então, me convenço de que fui vítima do teu sortilégio, quem quer que sejas, tu, que me trazes em tormentos de enganos.

Porque zombas de mim?

Não! Não podes ser tu, Esperança. Tu morreste com ele, foste com ele enterrada, desapareceste para todo o sempre com a sua mocidade.

E como me rondas anunciando-me a sua presença, como se fosse possível realizar o milagre dos milagres de arrancar do poder da morte a presa que ela arrebatou?

Não! Não podes ser tu, deve ser o teu espectro que me obsidia, porque tu, Esperança, ainda que sejas mentirosa, as tuas mentiras têm sempre um fundo de verdade - são como as teias de aranha que, parecendo soltas no ar, prendem-se por fios tênues a ramos ou folhas de árvores, ou como as miragens que espelham visualidades no horizonte, mentiras que, entretanto, são projeções do real.

Mas como podes tu reproduzir a morte, tirar vida da sepultura, ressuscitar o que jaz na terra?

Não! Não és a Esperança, deves ser alguma advérsia.

Vou caminhando descuidado. De repente ouço-te a voz tão perto como se saísse de mim próprio. Escuto e dizes-me que ele ainda vive, que o vou encontrar adiante, em ponto que costumava freqüentar.

Aguardo-o, busco-o na multidão, procuro-o em certos grupos e avisto-o. É ele! É o seu corpo senhoril, é o seu andar garboso. Reconheço-lhe o trajo.

Adianto-me com o coração contente e os olhos rasos de água e a ilusão, de súbito, desfaz-se.

Só, então percebo o logro, lembrando-me da impossibilidade do seu retorno, porque ao destino para onde ele partiu vai-se por uma ponte estreita, que só dá passagem a um por um, e a fila não se interrompe como o curso dos rios.

E como poderá ele regressar se, até hoje, desde que começou na vida a marcha para o abismo, nenhum outro conseguiu ainda remontar a correnteza perene?

Se sei que mentes por que hei de dar ouvidos ao que me dizes? Se estou certo de que é falso tudo quanto me segredas, como me deixo enganar, ainda contando com o que me prometes?

Por que hás de insistir na tortura? Por que assopras o cineral se não há nele centelha que reanime o lume?

Que nos enganes com a vida, compreende-se a vida existe; mas que nos tentes iludir com a morte, é crueldade.

Que posso eu esperar de onde tudo é nada?

E, todavia, espero. Não me conformo com a idéia de que ele não tornará mais, nunca mais! ao meu afeto.

Espero em vão, bem sei! mas bendigo-te, Esperança, bendigo-te porque manténs a ilusão em minha alma.

Se a Saudade não tivesse, para nutrir-se, o alimento que lhe atiras, devorava-nos o coração.

Bendita sejas, pois, Esperança, doce e triste alívio de desventurados.

ROSÁRIO

Como tal ou qual a quem se houvesse rebentado um colar de preço e se pusesse a procurar as pérolas uma a uma por frinchas e taliscas, assim vivemos nos reunindo recordações a ver se recompomos no fio da memória, todos os episódios da sua existência efêmera, desde a hora feliz do seu nascimento, a pérola menor, até a cruz do doloroso instante.

Cada vez que, a um de nós, ocorre um fato ajuntamo-lo às lembranças.

Uma pérola, porém a maior, rolou no abismo e não há como reavê-la. As outras mesmas, que recolhemos, quando as tentamos engranzar logo se dissolvem em lágrimas.

Toda a riqueza que se perdeu, por mais que a busquemos ajuntar, foge-nos em bagas de pranto, pérolas que nos caíram no coração, com as quais, se não refazemos o colar de outrora, formamos o rosário em que rezamos por ele a oração da saudade.

VIVER

Viver! Eu sei que a alma chora
E a vida é só dor ingrata.
Pranto, que a não alivia,
Olhos, que o estão a verter...
Sofra o coração, em hora!
Sofra! Mas viva! Mas bata
Cheio, ao menos, da alegria
De viver, de viver! 

Raimundo Correia

Rugem os ventos, estalam raios, o navio, desarvorado, guina, embica, empina-se, trambolha; entra-lhe o mar a golfos pelas bordas, afreima-se a maruja e, na profundeza, a máquina trabalha.

Não cessa e, quanto mais se enfuria a tormenta, mais se esforçam, os que asseguram o movimento, em manter a fornalha acesa, a caldeira em força, as juntas bem lubrificadas para que nada impeça a propulsão.

Em cima, é a grita espavorida; são preces, ordens, correrias; um que acode ao leme; outro que marinha lesto enxárcia acima. Este, calafeta abertas; aquele, entaipa escotilhas.

E já se desligam os cabos que suspendem aos turcos os barcos de salvamento, cuida-se a palamenta, trazem-se salva-vidas e tudo e apresta para a possibilidade iminente do naufrágio.

E a máquina retroa no bojo do navio.

Aos embates da madria toda a construção abala-se. A hélice, umas vezes aprofunda-se, outras vezes, no levantar da popa, gira rápida no vácuo e toda a nave estremece, range convulsamente sacudida.

Remergulha. Faz-se tão rasa com o oceano crespo que parece ir em soçobro. Surge a ímpeto, arfando; eleva-se mostrando a quilha, torna de chapa ao abismo, bate estrondosamente e, com o choque, demora um instante a pique no côncavo das vagas. Um vagalhão sustem-na, põe-na a flux.

Ei-la a escorrer dos flancos cachoeira mar espumarento, ginga às tontas, cambaleia ringindo e o terror cresce entre os homens e os escarcéus cada vez mais se enfurecem, tudo é desespero. E a máquina trabalha.

Assim também procede o coração na angústia.

Sofra o coração, embora!
Sofra! Mas viva ! Mas bata
Cheio, ao menos, da alegria
De viver, de viver!

A alegria de viver! Isso não torna ao coração. As máquinas de aço e bronze, se conseguem vencer os temporais, quando os navios chegam ao porto são examinadas peça por peça e, nem por serem de metais fortíssimos, deixam de trazer mossa.

Entram, porém, os artífices com o trabalho e, onde encontram falhas, reparam; onde descobrem eiva, corrigem; se um êmbolo ou mancal sofreu dano, logo o substituem e a máquina, refeita, torna ao seu oficio, íntegra como dantes e nela nem sal das ondas se conserva porque tudo é limpado, lixado e ajustado.

O coração, esse... quando chega ao porto de bonança, serenando, é que mais sofre.

Amaina-se o temporal, limpam-se os ares, abre-se o céu em luz, abranda-se em brisa o vendaval, tudo torna à calma do bom tempo, o coração quebrado, esse... quem o conserta? 

Que artífice é capaz de substituir nele as peças que a tormenta inutilizou?

Move-se, vive e bate... mas como vive. Ai! dele... Bate. De que lhe serve bater?

Ao sair do estaleiro o navio corre ao mar e a hélice contra as águas e revolve-as e, cada volta em que gira, leva-a para diante.

O coração, inclinado sobre o abismo, bate em vão, porque toda a sua força perde-se no vácuo, como a da hélice, quando o navio mergulha no côncavo das vagas.

O navio prossegue, singra mar em fora, vai a novos rumos, a novas praias. O coração, de que lhe serve bater se não sai do vazio da saudade?

Mas é preciso viver... Pois seja! Que o coração faça o seu ofício:

Sofra! Mas viva! Mas bata
Cheio, ao menos, da alegria
De viver, de viver!

––––––––
Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com

XI Prêmio Literário Livraria Asabeça (Resultado Final)


VENCEDOR - CONTOS

Marcondes Araujo Campos
Obra: Piolhos de Cobra
Feira de Santana / BA

Obras Pré-selecionadas / Menção Honrosa - Contos

Amanda D'Andréa Lowenhaupt Guimarães
Obra: Retratos
Pelotas / RS

Carlos Bruni Fernandes
Obra: Cinderela Desajustada
São Paulo / SP

Douglas Tavares de Araújo
Obra: Contos Fantásticos
São Paulo / SP

Fabricio Bueno Borges dos Santos
Obra: Contos Insólitos
Chapecó / SC

Fernanda Cupolillo Maina de Faria
Obra: Mínimos Mares
Niterói / RJ

Gabriela Lovato Seli
Obra: O Jogo
Franca / SP

Gustavo Fontes Rodrigues
Obra: Devaneios
São Paulo / SP

Jenny Alexandra Rugeroni
Obra: Um Passo no Escuro
São João da Boa Vista / SP

José Angelo Potiens
Obra: O Homem que Procurava o Ibirapuera e outras histórias
São Paulo / SP

Maria Edy-Lamar Gonçalves de Oliveira
Obra: Cantos de Todas as Águas
Belém / PA

Pollyana Correia Lima
Obra: Lápis, caderno e mochila
Uibaí / BA

VENCEDORA - POESIAS

Aglaé Torres Cristofaro
Obra: DDI – Discagem Direta do Inconsciente - Pensamentos Ilógicos
São Paulo / SP

Obras Pré-selecionadas / Menção Honrosa - Poesias

Alexandre Dias Paza
Obra: A Velha Poesia Novinha em Folha
Guarulhos/SP

Alexandre Márcio da Silva Gouveia
Obra: Àmor-Romá - Proles do Espaço
Itapecerica da Serra/SP

Alexandre Rodrigues da Costa
Obra: Bela Lugosi no Ateliê de Kandinsky
Belo Horizonte/MG

André Luiz dos Santos Gandra
Obra: Urbanóias (e outras modernidades)
Santo André/SP

André Luíz Soares
Obra: Palavras de Sal e Sol
Guarapari/ES

Dalva Agne Lynch
Obra: Nos Jardins Sagrados
São Paulo/SP

Diulinda Garcia de Medeiros Silva
Obra: Através da Vidraça
Natal/RN

Erica da Costa Boia
Obra: Interior
Rio de Janeiro/RJ

Flávia Drummond Naves
Obra: Florárvore no Jardim da Solidão
Belo Horizonte/MG

Flávio Rubens Machado de Queiroz
Obra: Provisórios
Obra: Cabo Frio/RJ

Hideraldo Montenegro
Obra: Flores de Maio
Jaboatão dos Guararapes/PE

Jacqueline Lopes Salgado Soares
Obra: Manual da Metrópole
Belo Horizonte/MG

Jaqueson Luiz da Silva
Obra: Na Velocidade do Pó
Campinas/SP

José Carlos Mendes Brandão
Obra: Relíquias
Bauru/SP

Kleiton Gonçalves Bezerra Alves
Obra: Invenção Noturna
Picos/PI

Luiz Fernando da Fonseca Selistre 
Obra: Breviário
Porto Alegre/RS

Marcelo Gonçalves Silva Torres
Obra: Vertigem de Telhados
São Bernardo do Campo/SP

Margareth Izilda Fiorini
Obra: Simplesmente Mulheres
Joinville/SC

Maria Helena Lopes Latini
Obra: Múltiplo Um
Niterói/RJ

Ramon Luiz Braga Dias Moreira
Obra: Kala
Belo Horizonte/MG

Roberto Nonato de Oliveira Lima
Obra: Contradição
Barbacena/MG

Rogerio Luz
Obra: As Palavras
Rio de Janeiro/RJ

Tanussi Cardoso
Obra: Eu e Outras Consequências
Rio de Janeiro/RJ

Tatiana Oliveira Druck
Obra: Antes Arte do Que Nunca
Porto Alegre/RS

Tiago Butarelli Lima
Obra: Folhas do Mato
Campo Grande/MS

Vinícius Bovo de Albuquerque Cabral
Obra: Outras Tardes Nessa Taça
Vilhena/RO

Fonte:
http://www.concursosliterarios.com.br/home.php 

domingo, 20 de janeiro de 2013

Pedro DuBois (Poemas Inéditos)


SOBRE A MORTE E SUAS SENSAÇÕES  
A sensação da morte
companheira e amiga
solidária

a intenção da morte
solitária na passagem

a compaixão da morte
na combinação irrecusável
do ser encerrado na extremidade
da corda suspensa sobre o nada

a condição da morte
no sentido trânsfuga
da ilusão do início

a similitude onde a morte
é experimento no corpo
que cede ao cansaço.

REVISÃO

Reescrevo a história
em alterados fatos
desabonadores: desligado
o semáforo permite
o entrelaçamento dos carros
abandonados na oxidação
atmosférica

a vida cobra pelo reingresso
de elementos alegóricos

o caso pelo outro lado
do poliedro: a necessidade da ordem
desarruma o caos desligado
em amanheceres amadurecidos

revejo a história sob camadas
arqueológicas: onde e quando
me desligo das respostas.

O PASSAR DOS ANOS
 
Inúteis horas em pensamentos
menores de sobrevivências e amores
inacabados na falta de propostas:
o insucesso avesso do fracasso
diluído em eflúvios gases
na delicadezas e humores
antagônicos dos esgares.

O mútuo acrescentado dos juros
negados no pagamento revertem
ao capital exaurido o último
rasgo de generosidade
e se depositam
no final dos negares: atrás
do altar sob o pecado inútil
rezam cotovias do absoluto
e dos gritos explodem chamas
de calmarias: a inutilidade
se completa ano após ano
em mesmas histórias.

NASCER
 
Nos nascimentos
natais realizados
tisnam meu corpo
no aleatório desejo
de amor e glória:

deposito minha vida
nas mãos que envolvem
o tempo ao vento

nascer e renascer
na coincidência
do extremo gesto

em que realizo em tintas
o que dos nascimentos pintam.

INTIMAR
 
Intimo o tempo
ao cabo
do trajeto: o escoar
ensandecido da montanha
exclui da intimação
a órbita do satélite
(artificial)

não fico no escasso horizonte
da cidade (nascente) refém
do desconsiderado

coerente ao instante
fugidio da aparência
recolho no tempo
o reclame: sublime
verso de poeta alheio
ao castigo. Soprana
voz implicada no tempo
em retornos.

INÉDITA
 
Faz a música
(inédita)
retirada da vida
na agitação
de hoje em dia

faz a música
(inédita)
renovada
na agitação
de hoje em dia

faz a música e do ineditismo
retira o eco do diariamente:

o telefone toca a irritação
de aguardar a chamada

faz a música
(inédita).

IMAGENS
 
Ao espelho
revolta a imagem
invertida (espelhos
repelem vidros)

inventado
o corpo se aproxima
do limite do encontro
(ao espelho
cabe o outro
lado)

ser na imagem o conforto
confronto
o corpo solto no espaço bipolar
do esforço - aqui em carne e osso
projetado ao espaço inexistente -

ao espelho conforta o tempo
dos homônimos e aos nomes
cabe a mesma imagem.

GERAÇÕES
 
Crê na ressurreição
da alma em outra forma
e formato. Acredita
na interdependência
do homem no corpo
espiritualizado
pelo trabalhar
constante
das ideias.

Cobra dos filhos a inserção
no modelo universalizado
do comportamento: o carinho
o aborrecimento
o desejo
e o tédio.

Vê no crescimento a identificação
em que se reconhece: ser
na continuidade a repetição
da face e do nome.

ENTARDECER
 
Presente ao cair da tarde
noite (o pássaro
se recolhe
em gritos
de medo)

onde me apresento
em norte (o desnorteado
pássaro aninhado)

e não me aguardo
no encontro desigual
entre luz e sombra

(ao pássaro cabe
recuar e prender
em galhos
o ninho).

CRIANÇA
 
Na criança permanecemos adultos
na busca das vozes verdadeiras
das primitivas pinturas

que nos dizem do tempo
utilizado para o aprendizado
permitido pelo medo

ainda hoje: no calor da discussão
acadêmicas somos pronunciamentos
aleatórios de temas desnecessários

tal criança divertida em brincadeiras
nos dizemos brabos
e argutos pesquisadores
das cores em que esquecemos os solos
estampadosnas lanças quebradas

da criança trazemos a infelicidade
das histórias contadas como verdades.

CONQUISTAS
 
Onde a paz aguarda o consenso: reviso a fala
ouvida nos extremos. O discurso guerreia
o anseio e dos lugares
longe e perto
o som trombeteia mortes - na evolução
nos fazemos gente - e nos transporta
ao arremedo da tormenta. Atroz: o medo
se faz ciente do engodo e somos atingido
no apogeu do esquecimento - aos mortos
faltam nomes - para onde vamos
ao morrermos: a paz
se apresenta em esqueceres
de conquistas e permanências.

Fonte:
O Autor
http://pedrodubois.blogspot.com/

Julio Daio Borges (A Epopeia de Gilgamesh, pela WMF Martins Fontes)

Qual é a história mais antiga do mundo? Para quem tem formação judaico-cristã, a Bíblia. Para quem cultiva o helenismo, os versos de Homero ou a Teogonia de Hesíodo. Mas, desde o século passado, sabemos que existe uma ainda mais antiga.

Estamos falando da Epopeia de Gilgamesh, que a WMF Martins Fontes acaba de reeditar em formato pocket. Na introdução de N.K. Sandars (que estabeleceu a versão inglesa, a mesma que serve de base para a brasileira), ficamos sabendo que os primeiros autores da Bíblia deviam estar bastante “familiarizados com a história” de Gilgamesh e que esta, inclusive, “precede as epopeias homéricas em pelo menos mil e quinhentos anos”.

Como diria Nietzsche, Gilgamesh é uma história humana, demasiadamente humana, onde estão presentes “a busca pelo conhecimento, a mortalidade e a tentativa de escapar do destino do homem comum”. A epopeia se passa da Mesopotâmia, foi escrita pelos sumérios (que chegaram lá em 3000 A.C.) e está registrada nas mais antigas tábuas de Nippur. Historicamente, Gilgamesh surge como “o quinto monarca de dinastia pós-diluviana de Uruk”. Sim, há um dilúvio. Talvez o mesmo dilúvio bíblico. Pois, cronologicamente falando, a epopeia de Gilgamesh se situa no período entre Noé e Abraão, cujo único registro conhecido era o Livro do Gênesis.

Historicamente, mais uma vez, Gilgamesh foi “um rei que provavelmente comandou uma bem-sucedida expedição para trazer madeira das florestas do norte e que certamente foi um grande construtor”. Já na mitologia, Gilgamesh é dois terços deus e um terço homem, assim como Aquiles, cuja mãe era igualmente uma deusa. Aliás, os gregos já advertiam: “Aquele que se deita com uma deusa imortal perde para sempre a força e o vigor”. Qualquer semelhança com Adão e Eva, a maçã, a descoberta do pecado e a expulsão do paraíso não é mera coincidência. E, mesmo sem Guerras Mundiais como as nossas, reis como Gilgamesh já temiam que “os poderes do caos e da destruição escapassem ao seu controle”.

O homem não comandava a natureza como hoje, e ela poderia se voltar contra a humanidade a qualquer instante, extinguindo o Homo sapiens. Em termos de mitologia, mais uma vez, Gilgamesh habita “um mundo em que deuses e semideuses se confraternizam com os homens num pequeno universo de terra conhecida, cercado pelas águas desconhecidas do Oceano e do Abismo”. (Ruy Castro poderia chamar isso de Ipanema. E é bem por aí.)

O texto em si é agradavelmente legível e muito melhor escrito que o de muitos autores da nossa própria época. Como tantos heróis conhecidos nossos, Gilgamesh “parte numa jornada”, “cansa-se”, “exaure-se em trabalhos”, “retorna”, “descansa” e “grava na pedra toda a sua história”. Gilgamesh é rei, e esse é seu destino. Mas Gilgamesh não viverá eternamente, e esse, também, é seu destino. Pois lhe é advertido: “Enche tua barriga de iguarias; dia e noite, noite e dia, dança e sê feliz, aproveita e deleita-te. Veste sempre roupas novas, banha-te em água, trata com carinho a criança que te tomar as mãos e faze tua mulher feliz com teu abraço; pois isto também é o destino do homem”. “Não existe permanência”, antecipando Heráclito, a história registra. E antecipando, desta vez, o conceito grego de nêmesis e húbris: “Os heróis e os sábios, como a lua nova, têm seus períodos de ascensão e declínio”.

Se a Bíblia, em suas múltiplas versões, serve de base para judeus, cristãos e muçulmanos, podemos dizer que Gilgamesh serve de base para toda a humanidade, assim como os gregos e os romanos transcenderam o chamado paganismo, pois escreveram a história ocidental, que é inescapavelmente a nossa História. A Epopeia de Gilgamesh, assim como a Bíblia, os gregos e os romanos de nossa preferência, pode ser um livro de cabeceira, sim, pois, como Montaigne, que costumava se servir da filosofia, estamos sempre aprendendo a viver, e a morrer.

Fonte:
http://www.digestivocultural.com/arquivo/tema.asp?codigo=7&nome=Literatura